O Último Prisioneiro escrita por Kallina


Capítulo 1
Zan


Notas iniciais do capítulo

Heeey, e aí, como vocês estão?

Esse é o meu segundo grande projeto de escrita -- mas acredito que não tão longo quanto o primeiro hahaha --, que se passa no mesmo universo que eu criei. Pretendo tentar manter os posts nas sextas-feiras ;)
Espero que gostem, e boa leitura!



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Zan bocejou. Mais um dia de trabalho estava para terminar, e ele havia sido idêntico aos outros. Talvez qualquer outra pessoa achasse isso terrivelmente agoniante, mas não ele. Ele estava lá exatamente por isso.
Quando o sol ainda estava no céu, mas já quase completamente escondido pelas torres do castelo no topo das montanhas ao fundo, o rapaz se desencostou da parede e trocou a lança simples de mão. Já era hora de voltar. Se ele quisesse ir antes, talvez também ninguém percebesse. É claro que ele tinha superiores. Vários deles, inclusive. E que tinham coisas bem mais importantes a se fazer do que supervisionar se ele saía no horário exato ou não. Ainda assim, Zan tentava ser pontual para evitar qualquer chance de problema.
Caminhou de volta para casa. Era o início do verão,  então ele queria tirar logo o uniforme, já que era muito mais quente do que as vestes normais. Imaginou se todos os outros guardas se sentiam assim também, mesmo aqueles que estavam na profissão por pura paixão.
Ele passou pelas mesmas ruas de calçamento cinzento, cumprimentou as mesmas pessoas e chegou ao mesmo portão, exatamente como todos os dias.  
A casa a sua frente possuía a mesma aparência desde sempre. Era simples e de porte médio, o suficiente para se usufruir de uma vida confortável. As paredes claras o pai fazia questão de retocar todo ano. Agora que o inverno passou, pensou Zan, talvez logo tenha que ajudar na pintura. Ele suspirou desgostoso com a ideia.
Já as portas, janelas, e telhado combinavam no tom escuro. Ele percebeu que as telhas da lateral do telhado inclinado ainda tinham que ser consertadas,  fruto de uma estação de ventanias. O problema, era que ninguém tinha tempo ultimamente, fosse para pensar ou gastar naquilo. Wei está em casa quando não está estudando, Zan resmungou mentalmente. Às vezes parecia que o irmão usava da desculpa de estudar para fugir de todos os outros deveres.
O rapaz abriu o portão e cruzou a pequena área gramada e com arbustos da entrada. Ao menos isso não foi deixado de lado. A manutenção do jardim foi sempre algo que coube a sua mãe, não imposto, mas sim que ela escolheu por pura espontânea vontade. Ela adorava as plantas e as folhas, aparar os galhos de bonsai e moldá-los quase que como os próprios filhos. Era algo que ela já havia tentado ensinar para Zan no tempo livre. Pensar nisso o fazia rir. Se não fosse a óbvia semelhança com o irmão, poderia dizer que não era filho daqueles dois. Mas bastava uma olhada para se perceber o mesmo formato de rosto, o mesmo cabelo, que o irmão passara a deixar curto nos últimos meses. Talvez estivesse cansado de ser confundido, já que, embora mais novo, tinha quase a mesma altura de Zan.
O garoto empurrou para o lado a porta de correr e foi recebido pelo aroma do jantar. Sopa de repolho, ele concluiu quase que automaticamente. Sentado a mesa baixa, com as pernas cruzadas sobre uma almofada, Wei tinha, como de costume, o nariz enfiado em um livro. Mais a frente, atrás de uma parede divisória pintada com padrões geométricos de mosaicos e as flores azuis da região, que levava a lareira apagada, Zan ouviu o ressoar da mãe mexendo nas panelas. Ela parou por um momento quando escutou o barulho da porta sendo fechada, e espiou de trás da parede.
—Ah, Zan, querido. — a mulher de meia idade e cabelos curtos limpou as mãos no avental. A barra do robe azul claro estava ligeiramente suja de terra, então devia ter feito mais manutenção no jardim naquela tarde. —Chegou mais cedo?
—Não. — ele se aproximou e com a mão livre que não segurava a lança, deu um meio abraço na mãe, junto de um beijo no meio da testa. Ela era pequena e magra, não tornando muito difícil alcançar o beijo sempre que chegava em casa.
—Ah, sim. — ela reparou, olhando para a claridade vindo das janelas redondas abertas. Em seguida, para a porta de entrada, e as almofadas vazias. —É claro, desculpe. — a mulher deu um sorriso rápido e carinhoso, afastou os braços e gesticulou para mesa. —Pois bem, sente-se. A comida estará pronta em um instante.
Zan sorriu de volta e fez como ela disse. Sabia porque a mãe havia se confundido e parecido preocupada de novo. Mais uma vez, o pai estava atrasado.
Wei ainda não havia afastado os olhos do livro, ou o cumprimentado, o que não surpreendeu Zan. O relacionamento deles sempre fora assim. Não terrível. Mas também não maravilhoso. Era como se vivessem em mundos separados. O mundo de Wei, onde ele cumpria todas as expectativas, e o mundo de Zan, onde ele era só um guarda da cidade.
O rapaz encostou a lança  contra a parede e ficou brincando com uma das ameixas da fruteira na mesa até que a mãe apareceu com uma panela de metal escuro e fumegante. Empilhada sobre a tampa, os talheres e tigelas de louça.
Ela distribuiu tudo, e quando estava prestes a abrir a panela, Wei finalmente falou.
—Podemos esperá-lo.
—Não, querido. — a senhora falou com um suspiro. —Você sabe que ele chegou perto da madrugada outro dia...
—Eu devia estar indo com ele. — Wei abaixou o livro.
—Não, não devia. — a mãe deles respondeu, servindo a sopa. —Isso consumiria tempo dos seus estudos, e você sabe como eles são importantes.
—Se não os utilizo para ajudar os outros como o papai, então qual é o uso?
E aí está, pensou Zan, se controlando para não rolar os olhos. Já estava me perguntando quando o discurso altruísta começaria.
—Terá o momento certo para isso, filho. — a mulher disse em tom acolhedor e fechou a panela depois de servir por último a sua própria tigela. —E quando ele chegar, deixará seu pai ainda mais orgulhoso do que ele já está.
Zan soprou a colherada, desejando poder comer no quarto. Só não o fazia, pois sabia que magoaria a mãe. Já há algum tempo o marido não chegava mais para o jantar. Se até mesmo seu filho mais velho não aparecesse mais, ela teria mais um motivo para se preocupar. E provavelmente tentaria usar algum discurso motivacional, que nunca funcionavam direito nele. Então, quando eles começavam a falar sobre a profissão da família, e elogiar Wei como se Zan não estivesse no mesmo recinto, ele realmente desejava sumir.
Não era como se seu irmão mais novo não merecesse os elogios. Todos sabiam como ele sempre fora dedicado aos ensinamentos do pai. Como ele era o que Zan devia ser.
A família Min era uma linhagem de curandeiros há muitos séculos. O conhecimento sendo passado a cada geração de pai para filho. Mesmo aqueles que se tornavam parte da família graças ao matrimônio, por tradição, deviam aprender ao menos o básico, como foi o caso da mãe deles.
Zan e Wei tinham idades muito próximas, em uma diferença de somente dois anos. E mesmo que o irmão mais velho tenha começado a ser educado primeiro, o caçula logo o superou.  O que, aos poucos, deixou de incomodar Zan, já que logo isso se tornou algo comum.
Desde que podia se lembrar de ouvir e conseguir compreender o pai falando sobre como era parte do seu dever dar continuidade às atividades familiares, Zan achou uma grande baboseira. Ser obrigado a fazer ataduras, costurar feridas e estancar sangramentos apenas porque todos os velhos antes dele fizeram isso, o parecia ridículo, e, acima de tudo, extremamente cansativo. O rapaz não se recordava de ter sido capaz de terminar um único livro ou atividade que o pai lhe oferecera. Não podia acreditar que realmente esperavam que ele conseguisse guardar todas aquelas palavras complicadas. Tantos nomes de ervas medicinais, misturas e usos diferentes, o deixavam com sono automaticamente. Inclusive em um dia em que o pai o percebeu cochilando durante a lição, e isso o rendeu um dos seus castigos mais longos.
E então Wei chegou à idade do treinamento, e se tornou o aprendiz perfeito. E, aos poucos, a insistência sobre Zan começou a se esvair. Não que os olhares repreendedores ou decepcionados tivessem deixado de existir. O garoto só tinha preguiça demais para se importar com eles para sempre.
—E você, querido? — sua mãe perguntou, voltando a perceber que o outro filho também estava ali. —Nenhuma confusão hoje?
—Não... — Zan finalmente tomou a colherada. —Foi tudo como sempre — ele falou de boca cheia. —Temos sorte que mesmo com tudo acontecendo, nosso distrito continua sendo bem tranquilo.
A mãe anuiu, tentando disfarçar o desagrado com um sorriso que depois de seis meses já estava se tornando comum para Zan. Há meio ano ele se alistara nos serviços militares da Capital. E embora todos os dias fossem calmos e iguais, a mãe não conseguia deixar de se preocupar. Ela parecia ser a única que não gostava do seu trabalho, não por não ser de um curandeiro, mas só por trazer alguns riscos. Mas ainda assim, Zan não podia negar que tinha tido bastante sorte, pois conseguiu exatamente o que queria.
Durante os testes, ficou claro que ele não tinha muita proficiência com lanças, ou qualquer conexão significativa com algum animal. Logo, não serviria como um guarda dos muros ou portões. Ele seria só mais alguém fazendo patrulhas diárias e intercaladas por algum bairro. E então ele foi designado para um posto próximo de casa, o que lhe pareceu bom o suficiente. Zan também sabia como conseguiu a vaga, mesmo sendo uma das posições mais baixas. Ele tinha o sobrenome Min. Ele era filho de Yuhan Min. Seu pai não fazia parte dos curandeiros reais, mas tinha uma reputação boa e antiga o suficiente.
Não podia afirmar que era o emprego dos sonhos. Mas o rapaz estava ciente que já havia alcançado os dezenove anos, e não poderia continuar sentado em casa apenas porque não pretendia ser um curandeiro. Ele não via muitas opções, já que, na verdade, nunca sentiu que era bom, ou que gostava de qualquer coisa em particular. E muito menos, que tivesse força de vontade para se esforçar tanto em algo quanto seu pai e irmão tinham para medicina, ou a mãe para jardinagem. Tudo que tentava parecia cansativo demais, ou entediante demais — e então se tornava cansativo também.
A verdade é que quando era criança, e sua mente flutuava para longe durante alguma lição com o pai, ele captava com o canto da visão, um guarda que fazia patrulhas sempre no mesmo horário, no mesmo ritmo, e com a mesma aparência. Eles pareciam importantes, respeitados... E além de tudo, Zan achava os uniformes bem legais.
Quando ainda estava soprando a próxima colherada, ouviram a porta abrir.
O pai deles estava parado no batente. Com uma expressão cansada, a mesma mochila velha de ervas e suprimentos ao ombro, e os robes escuros ensanguentados na altura do peito e mangas largas. Isso ainda os causava um pequeno sobressalto, mas ultimamente havia se tornado uma visão comum. Sabiam que o sangue não era dele.
A mulher se levantou surpresa.
—Chegou a tempo do jantar hoje!
—Parece que sim. — ele deu um leve sorriso para a esposa que se aproximava quando entrou. E com cuidado para não tocá-la com as roupas sujas de sangue, ele depositou um beijo no topo da sua cabeça. Depois, olhou para os filhos sentados a mesa e acenou com a cabeça em um cumprimento. —Não se incomodem e terminem de jantar. Pelo que tudo indica ainda terei que tomar um banho razoavelmente demorado.
Ele passou por eles quando a esposa o interrompeu.
—Posso te ajudar.
—Não se preocupe com isso, Zhao. — ele segurou a mão dela. —Não vou interrompê-la no meio da refeição. Sem mencionar que prefiro aproveitar da sua companhia quando estiver um pouco mais limpo. — ele riu de leve e libertou o aperto.
—Pai, gostaria que me contasse como foram os trabalhos de hoje, se o senhor puder. — Wei pediu.
—Claro. Vá para a nossa sala de estudos mais tarde, certo? E traga as atividades do dia. — ele não perguntou se o filho as havia feito. Não precisava.
E com isso, o senhor deu as costas e desapareceu ao virar no corredor.
Zhao ficou mais um instante no mesmo lugar, suspirou, e então voltou a se sentar com os filhos.
—O que houve mãe? — Zan perguntou ao perceber as sobrancelhas franzidas da senhora que ainda não continuou comendo. —Papai chegou um pouco mais cedo que das últimas vezes...
—É, eu sei... — ela suspirou de novo e finalmente ergueu outra colherada. —É só que ele me parece... Perturbado.
Zan não tinha achado nada disso. Bom, sim seu cabelo e cavanhaque grisalhos estavam despenteados, e as roupas tinham sangue. Mas não parecia nada de diferente de como esteve voltando para casa nas últimas semanas.
Ainda assim, Zan não contestou. Os pais se conheciam há quase quatro décadas. Não seria surpreendente que sua esposa percebesse nuances nas rugas mais discretas do marido.
Eles terminaram o jantar com pouca conversa e ajudaram a mãe a arrumar a bagunça. Cada irmão foi para o seu próprio quarto enquanto Zhao levava uma tigela de sopa para sua suíte.
Zan acendeu as velas quando entrou e se deparou com o mesmo cômodo de móveis e pisos escuros. As paredes eram a única coisa de cores mais vibrantes, exibindo tons avermelhados. No meio do quarto estava seu colchão. Na parede à esquerda os armários, na oposta a escrivaninha quase inutilizada. E ao fundo, largas janelas moldadas por cortinas brancas.
O garoto deixou a lança recostada contra a mesa quase vazia, se não por alguns papéis, pincel com tinta e um lampião. Um ano atrás ali estaria repleto de livros. Livros sobre doenças, livros sobre ervas, livros sobre anatomia. Livros que agora aumentavam a pilha que o irmão possuía.
Aliviado, Zan  foi tomar um banho, agradecendo pela casa ter dois banheiros. Ele ainda achava o uniforme legal, mas a beleza não o tornava menos quente. Ele provavelmente usou mais tempo do que o necessário na banheira, e somente quando os dedos começaram a enrugar se decidiu por sair.  Enrolou-se em vestes leves e azuis, prendeu o cabelo para aliviar o calor, e se deitou de novo.
Passou alguns vários minutos olhando para o teto e aproveitando a sensação da pele e cabelos ainda úmidos. E então percebeu erhu próximo da janela. Ele era um instrumento de madeira longo, com um corpo baixo e pequeno, e de apenas duas cordas, que ressoavam com um arco.
Quando ele tinha dez anos e o irmão oito, a mãe insistiu em colocá-los em aulas de música. Zan não gostava muito da ideia no início. Se já não bastasse o pai o cobrando para aprender medicina, não precisava de outro tipo de pressão vindo da mãe. Mas era diferente. Ela nunca os forçou, só achava que os filhos poderiam gostar. Era bem cansativo no início, e ele não podia negar que tinha preguiça de ir para as aulas ou praticar em casa, mas com certeza era melhor do que as lições com o pai. Wei foi o primeiro a abandonar, aos doze anos, quando passou somente a se focar em medicina. Zan continuou as aulas até os dezesseis, embora o erhu em seu quarto estivesse bem menos empoeirado do que o de seu irmão. Quando estava muito entediado o rapaz ainda mexia em algumas cordas, às vezes nos finais de semana. Ultimamente, esteve até tocando diariamente, enquanto ele e Wei faziam companhia para a mãe, que aguardava preocupada durante a noite pelo marido. Ela parecia feliz que Zan ainda soubesse um pouco do instrumento.
Pensando que estava tão entediado quanto podia estar, e para aguardar o sono, o garoto sentou para esticar o braço e agarrar o erhu quando ouviu a voz do irmão na porta, carregando sua usual pilha de livros.
—Nosso pai quer falar com você.
Zan ficou em silêncio por um momento e franziu as sobrancelhas.
—O que...?
—Ele me pediu pra te chamar. Está te esperando no escritório.
—Oh... — ele soltou breve. —Mesmo? — se sentiu um pouco estúpido assim que a pergunta saiu dos lábios. Havia um bom tempo desde que o pai lhe falava em particular, então não conseguiu esconder a centelha de surpresa.
Wei suspirou.
—Não, eu certamente só estou tentando te pregar uma peça. Vamos lá e levante logo esse traseiro de guarda daí.
—Tudo bem! — Zan se rendeu, se pondo de pé com as mãos na frente do corpo. —Só é estranho que ele queira conversar comigo, para variar, e não com o filho preferido.
—Certo. — Wei rolou os olhos com  um pequeno sorriso. —Que tal diminuir um pouco a autopiedade. — ele deu um soco sem muita força no ombro do irmão. —Além do mais, ele já terminou de falar com o filho preferido dele.
Dizendo isso, o caçula se virou, acenou e entrou em seu quarto.
Zan caminhou até o escritório do pai, a última porta do corredor. Ela estava fechada,  e quando o rapaz a empurrou para o lado, avistou o homem debruçado em sua velha escrivaninha. A sala dele era pintada de azul acinzentado, com todas as paredes tomadas por estantes abarrotadas de livros, com exceção de onde as janelas a direita estavam — essa estava obstruída por seu estoque de ervas para o trabalho. Algumas em conservas em jarros, outras em cestas de palha. Isso trazia a sala um misto de aromas de floresta e papel velho.
Mesmo a mesa que usava também continha sua própria coleção de volumes velhos. O pai estava perdido em um deles quando percebeu a entrada do filho.
—Ah, você veio. — ele tirou os óculos redondos.
—Bem, sim. — Zan respondeu inseguro. —Pediu-me para vir, não foi?
—Sim, sim. — seu pai fechou o livro e passou uma mão no rosto. E então Zan percebeu.
Talvez sua mãe estivesse certa. O senhor a sua frente estava agora limpo, os cabelos que começavam a aparentar uma leve calvície, penteados, assim como a barba. E embora parecer cansado fosse plenamente aceitável visto como vinha sendo suas últimas semanas de trabalho, ele realmente parecia preocupado com algo. Mais curvado do que o habitual, os olhos fendidos e amendoados pesados.
—Devia tirar alguns dias de folga.
—O que?
—O senhor parece estar precisando. Sem falar que há muitos outros curandeiros que podem pegar um pouco do seu trabalho.
Ele suspirou e esfregou os olhos novamente.
—Suponho que sim.
—Até Wei pode dar conta no seu lugar por um tempo. — continuou Zan. —Ele fala muito disso, sabe.
—Ah, eu sei. — ele esbanjou um meio sorriso cansado. —Ele com certeza não se esquece de me deixar ciente dos seus desejos.
—Bom, então, por que não? Aposto que uma mão a mais faria diferença.
—Então está apostando certo. Mas seu irmão... Ele é sim extremamente dedicado, isso é inegável, contudo... Não consigo deixar de sentir que ainda não estaria pronto se tivesse que enfrentar na vida real tudo que lê nos livros que lhe entrego. É mais fácil de lidar quando são apenas letras e ilustrações. Quando é apenas tinta.
Fez-se um breve silêncio. Para mim não eram fáceis de lidar nem quando era só tinta.
—Mas o motivo de eu ter te chamado aqui não é esse. — o pai dele falou. Pegou os óculos e começou a limpar as lentes na gola das vestes. — Na verdade, não estou certo de nada ainda, mas achei melhor te prevenir mesmo assim.
As palmas das mãos de Zan começaram a suar.
—Tenha em mente, no entanto, que o que vou te dizer, não revelei nem a sua mãe ou seu irmão.
Zan teve que — quase — discretamente limpar as mãos na roupa.
—O sangue em mim hoje quando cheguei não era apenas de filhos de Bhallamuz. Mas de Druidas também.
Zan parou de tentar limpar as mãos.
—O que? — ele sussurrou assustado.
—O fato de eu ter voltado mais cedo para casa se deveu as inspeções terem terminado antecipadamente também depois de uma série de incidentes.
—Pai... — o rapaz murmurou temeroso pelas próximas palavras. — O que aconteceu?
—O que eu já sabia que seria só uma questão de tempo até ocorrer. — ele terminou de limpar os óculos e os colocou de volta sobre a mesa. Quando ergueu os olhos para o filho, tinha uma expressão tensa e pesarosa. — Cinco Filhos do Deserto e três cidadãos mortos. Outros dez feridos, incluindo alguns guardas.
Zan respirou fundo. Mesmo depois de todo esse tempo em que o conflito entre Brysh — a Capital do território ao lado — e Allast estava acontecendo, nunca havia ocorrido mortes de Druidas dentro dos muros da própria Capital. Ele sabia que as coisas estavam se tornando um pouco mais caóticas com cada dia que se passava, cada inspeção nas casas procurando fugitivos, alimentando o ódio. Sem falar em tudo que acontecia do lado de fora dos portões, coisas que ele nunca havia vivenciado.
—E isso foi só o acontecimento do fim do dia. — seu pai continuou. —Antes disso, é claro, atendi outros casos de doentes e feridos como toda vez, quase todos os pacientes sendo Filhos do Deserto legalmente asilados.
Zan trocou o pé de apoio nervosamente e cruzou os braços.
—E você não contou para Wei ou nossa mãe sobre isso?
—Saber que eu estive no meio dessa bagunça só a deixaria mais preocupada, e seu irmão mais afobado com a ideia de ajudar. E você deve concordar comigo que não precisamos disso. Além do mais,  mais cedo ou mais tarde eles saberão do que aconteceu, assim como todo o restante da população. Notícias como essas se espalham pela cidade como fogo em uma floresta no verão.
—Mas está me contando. — falou Zan. E então soltou o resto em uma rápida enxurrada de palavras. —Veja, se é algum tipo de aviso por causa do que aconteceu com os guardas hoje, eu entendo, mas não acho que o senhor precise se preocupar. A região das minhas patrulhas é muito pacífica, e não acho que nenhuns dos moradores do distrito ajudariam a esconder estrangeiros ilegais-
—Mas não é sobre isso. — o pai cortou-o. —Quero dizer, sim, é um aviso. E sim, também é sobre o seu trabalho. Mas a questão é que... Eu ouvi algumas coisas, de outros guardas, enquanto trabalhava hoje.
O senhor hesitou, o que só deixou Zan mais agoniado. Inquieto, ele finalmente puxou uma cadeira próxima de uma estante e se sentou em frente à mesa do pai.
—Como o que?
Yuhan suspirou pelo nariz.
—Vão formar uma comitiva. — ele olhou para o filho, mas como este permanecia com uma expressão confusa, continuou. —Uma equipe para uma missão. Muitos imigrantes ilegais conseguiram entrar recentemente.  E sim, eles têm êxito por que são auxiliados por outros Filhos do Deserto que vivem legalmente aqui em Allast. Mas depois de tudo isso que aconteceu... Acho que querem cortar ao menos essa parte do mal pela raiz.
—E o que significa? — Zan perguntou ainda intrigado.
—Significa... — ele continuou, desanimado, olhando para a capa de couro velha do livro fechado em sua frente. — que vão formar essa comitiva para exterminar os acampamentos e ocupações de Filhos do Deserto ilegais pelos nossos territórios. Para impedir que mais deles entrem na cidade. É claro, já havia ouvido sobre isso antes. Estiveram sempre planejando um “contra-ataque”, caso fosse necessário. Mas depois de hoje... Temo que finalmente vão executá-lo.
Zan demorou um instante para absorver e conseguir compreender tudo. E então quando entendeu a preocupação do pai, ela o pareceu ridícula.
—Oh, bem... Se esse é o problema, não acho que me incluiriam nessa missão. —Ele finalmente descansou as costas contra o encosto da cadeira.
O pai balançou a cabeça em descrença.
—Zan, acho que eles querem recrutar bastantes pessoas. Querem muito que essa investida seja um sucesso, querem mostrar quem está no controle depois de todas essas brechas acontecerem...
—Mas eles têm a minha ficha. Sabem que não sou, bem, o melhor. — Zan deu de ombros.
—Mas também podem verificar que o distrito que você patrulha quase não tem necessidade de vigilância, e por isso te convocarem.
—Francamente pai... — Zan disse, desanimado, os ombros ainda mais caídos, embora continuasse com certa tensão sobre eles. —Estou começando a achar que você quer que façam isso.
—É claro que não! — ele respondeu prontamente. Então suspirou cansado uma vez mais e apoiou a cabeça segurando as têmporas. — só receio que você tenha se alistado no pior momento possível, filho.
Mesmo que oculto pela preocupação e exaustão, Zan pôde perceber o leve tom de decepção que já ouvira tantas vezes. Àquela altura, já não o atingia mais.
—Ainda assim, realmente acho que você pode ficar tranquilo, pai. — ele finalmente continuou depois de um pequeno silêncio. —Realmente acho que não vou ser convocado.
A conversa terminou, Zan foi dormir. E quando acordou no dia seguinte para trabalhar, ele descobriu.

Ele foi convocado


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, e até a próxima semana!
Kissus >3



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