Narcissa escrita por Nanquim


Capítulo 1
Narcissa




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Narcissa Druella Black não estava no céu.

Toda a sua família brilhava à noite, traçando belos desenhos em luz, e fazendo a escuridão parecer mais linda do que jamais poderia ser. Mas ela estava presa na terra, frágil e perdida, olhando apenas para o próprio reflexo e nada mais.

Ela estava sozinha.

Narcissa não se importava muito com sangue; nunca se importara.

Não conseguia pensar em nenhum motivo mais estúpido pelo qual odiar alguém do que a origem de sua magia. Sangue-puro, meio-sangue, sangue-ruim… De que importava? Eles eram todos pessoas, todos bruxos, e de que importava a origem de sua magia? Aquilo não fazia sentido para ela, nunca fizera.

Mas ela tinha medo.

Narcissa Black não era corajosa como sua irmã mais velha, ou como seu primo. Eles haviam olhado seus pais nos olhos e dado-lhes às costas. Andrômeda havia partido à noite, após contar a todo mundo que estava grávida do namorado, um sangue-ruim que ela amava mais do que qualquer outra coisa, exceto talvez aquele bebê podre que ela carregava com tanto orgulho. Seus pais queriam se livrar do problema logo pela manhã, então ela fugiu no meio da noite, quando ninguém a via – ninguém exceto Sirius e Narcissa, ambos escondidos nas sombras, alheios à presença um do outro.

Sirius havia rido. Aquela risada latida que Walburga sempre achara perturbadora. Ele havia rido alto e dito exatamente o que ele pensava de suas regras idiotas de casamento. Ele havia olhado Orion nos olhos e lhe contado exatamente onde ele podia enfiar suas ameaças quanto a Durmstrang. Então, ele havia saído à plena vista, para que todos vissem o quanto ele desprezava aquela família e tudo no qual ela acreditava.

Eles eram corajosos. Realmente corajosos. Eles podiam fazer tais coisas, eles tinham coragem de se erguer pelo que acreditavam e não eram tão fracos que se retrairiam ao primeiro olhar feio. O mesmo valia para Bellatrix. Ela estava do lado de sua família, acreditava em pureza de sangue e tais valores, Narcissa não tinha dúvidas de que sim. Bellatrix era forte, cruel, e uma serva fiel ao Lorde das Trevas. Ela havia tomado a Marca Negra em seu décimo sétimo aniversário, feliz. Ela era uma guerreira, e ela faria sua família orgulhosa.

E então, havia Regulus. Ele não parecia forte como a prima. Era tímido e quieto. Nunca falava muito sobre a escola ou seus planos para depois, e ficou apenas mais sombrio e quieto e um tanto melancólico depois que seu irmão saiu. Tinha apenas treze anos, então – apenas um ano mais novo que ela – e ele já se parecia tanto com Orion. Depois da escola, talvez até antes, ele tomaria a Marca Negra e corrigiria a mancha que seu irmão deixara na árvore genealógica dos Black. Regulus era quieto e sombrio, mas sempre havia sido seu favorito.

Regulus era seu tudo. Ele lhe contava tudo o que seu irmão lhe dizia e tudo o que suas irmãs não lhe contariam. Ele era mais novo, mas tão mais sábio. Ela o ajudava a estudar e ele a fazia feliz. Era para ele que ela ia sempre que tinha um pesadelo, e ela era quem ele pedia sempre que tinha um problema. Ela sabia que ele amava Sirius mais, muito mais do que jamais poderia amá-la, mas isso não a impedia de amá-lo mais do que jamais amara qualquer pessoa ou coisa. Ele nunca a amaria de volta, entretanto, especialmente do jeito que ela o amava, porque Narcissa era fraca.

Tão, tão fraca.

Ela nunca poderia tomar a Marca Negra, porque tinha medo de sentir dor e de causa dor. Ela tinha medo do que o Lorde das Trevas faria a ela e do que ela teria que fazer para provar sua lealdade. Ela não queria ser uma Comensal da Morte, ela só queria ter paz.

Felizmente, Druella não queria que ambas suas filhas fossem guerreiras. Ela queria que uma delas fosse mãe.

Era claro que Bellatrix nunca poderia ser mãe. Ela tinha um marido direito e havia se casado como toda mulher devia ser, mas Narcissa duvidava que ela houvesse sequer consumado o matrimônio. Elas nunca conversariam sobre tais coisas – não era o lugar de uma mulher fazê-lo – mas ela podia perceber que se uma mulher estava de fato ocupando a cama de Rodolphus Lestrange, aquela mulher com certeza não era Bellatrix.

Quando a própria Narcissa se tornou mulher, ela tinha treze anos. Seu pai decidiu que ela deveria se casar logo, mas Druella, que sempre comandara o marido, lhe disse que estava sendo estúpido. Ela se casaria quando tivesse dezessete anos e terminado a escola, e nem um segundo antes. Abençoada fosse, Narcissa pensava.

Em princípio, o cunhado de Bellatrix queria se casar com ela. Rasbatan Lestrange havia contado a Cygnus todos os seus planos para a garota, e tudo o que suas famílias poderiam ser se fossem unidas por mais um matrimônio. No começo, parecia que Cygnus ia aceitar – ele gostava dos Lestrange, uma vez que eram seus primos –, mas sua mãe, sua bendita mãe, se intrometeu.

Ela não gostava dos Lestrange.

Talvez porque eles a assustassem tanto quanto assustavam Narcissa, ou talvez porque ela não queria mais nenhuma aliança com uma família que estava rapidamente caindo em desgraça – ninguém mais parecia notá-lo, mas Druella o afirmava com tanta certeza que ninguém ousava duvidar –, ou talvez apenas porque ela gostava da filha, mas esta última hipótese contrariava a própria natureza dos Black.

E então, no segundo dia de julho, 1978, ela vestiu um belo vestido branco e escondeu o rosto com um véu longo e macio, e caminhou pelo corredor com rosas nas mãos e lágrimas nos olhos. Ela se casou com Lucius Abraxas Malfoy naquele dia, e ela estava com medo.

Ela o havia visto em Hogwarts. Seis anos mais velho do que ela, mas ela o havia visto a admirando de vez em quando. Todas as garotas diziam que ele era lindo e ela era sortuda por ter um homem como aquele prestando atenção a ela, mas para Narcissa, ele nunca seria tão especial quanto Regulus.

“Você não precisa ter medo”, ele dissera enquanto fechava as portas do quarto, “Eu não vou te machucar”.

Ele mentira, é claro. Ela não achava que ele tivera a intenção, mas mentira. Doeu. Quando os lábios dele tocavam os seus, eles eram frios, mais frios do que qualquer lábio devia ser. Quando os dedos dele tocavam sua pele, eles eram rudes, mas rudes do que qualquer dedo devia ser. Quando ele revelou seu corpo e seus olhos devoraram sua nudez, eles eram famintos, mas famintos do que qualquer olho devia ser.

Narcissa chorara a noite toda, seu corpo doendo e sangrando. Lucius havia tentando confortá-la, mas ela tinha medo dele e tentava escapar de seu abraço e voz suaves, então ele se vestiu e saiu do quarto.

Eles não compartilharam uma cama novamente por vários meses. Ele não a tocou, nem ousava olhar para ela daquele jeito desde aquela primeira noite. Ele era polido e gentil e a chamava de “meu amor” e lhe oferecia o mundo.

Eles agora moravam na Mansão Malfoy, com mais ninguém além de seu pai, Abraxas Malfoy, por companhia. Era uma vida quieta, e Narcissa descobriu que gostava dela.

Não havia limites na Mansão Malfoy. Ela podia ir a qualquer parte da biblioteca, a qualquer cômodo, comandar qualquer elfo doméstico, fazer tudo o que quisesse. Tinha o quarto principal apenas para si mesma, e Lucius não parecia querer fazer muito mais do que beijar o chão por onde ela andava.

“Eu notei que meu filho não compartilha a cama com você”, Abraxas comentou um dia, quando os dois sentavam do lado de fora. Ela desenhava a paisagem, ele lia um livro.

“De fato, ele não compartilha”, sua voz era fria e sólida, pois ela não podia quebrar agora. Era uma senhora agora, esta era sua casa, e ela não deixaria ninguém fazê-la sentir-se culpada.

“Você o expulsou, minha querida?”.

Narcissa virou-se para ele, um pedido de desculpas já em seus lábios pálidos e olhos assustados, mas Abraxas sorria divertido. Ela recuperou o controle.

“Ele saiu por escolha própria”, foi tudo o que disse. Abraxas assentiu.

“Você talvez tenha acabado de conhecê-lo, minha querida, mas meu filho tem a observado por um longo tempo. Ele acredita que você é sua princesa e rainha, seu amor. Ele não a machucará novamente. Se você pudesse lhe dar mais uma chance… Bem, eu sou velho, como logo se vê, e eu gostaria de conhecer meus netos antes de deixar este mundo de vez”.

Então ele se levantou, pegou sua bengala, e deixou o jardim.

Ela adentrou os aposentos de Lucius naquela noite. Eram finamente decorados, belos e amplos, mas ela sabia que não eram de forma alguma apropriados para o rei da casa. As janelas eram demasiadamente pequenas, as cortinas eram demasiadamente simples, as paredes eram demasiadamente pálidas. Era um quarto de hóspedes, e ela não conseguia pensar em nenhuma humilhação maior para um homem do que se esconder no quarto de hóspedes de sua própria casa.

Ela sentia muito por ele, como ela não sentia por alguém em um longo tempo.

Ele estava sentado na cama, de peito nu, lendo um livro sobre magia negra antes de dormir. Seu cabelo comprido estava seguro longe do rosto por um laço elegante, e seus olhos cinzas estavam presos às páginas com uma raiva que ela só havia visto uma vez, em olhos muito mais gentis e escuros – olhos que ela amava mais do que tudo no mundo, e dos quais ela sentia falta todos os dias. Olhos que nunca a veriam do mesmo modo com que ela os via.

Ele levantou a cabeça ao ouvir o som da porta se fechando. Estudou seu rosto com um traço da mesma fome que ela havia visto naquela primeira noite, uma fome que ela não havia visto desde então, uma fome com a qual ela havia sonhado. Suas mãos tremiam, mas ela as forçou a parar.

Lentamente, olhando-o nos olhos, ela deslizou para fora do vestido, deixando-o no chão, e subiu na cama. Lucius colocou o livro de lado e a segurou quando ela se acomodou em seu colo.

“Minha senhora…”, ele sussurrou, observando seus lábios “Meu amor…”
Ela sentiu os olhos dele deslizando por seu corpo, banqueteando-se na visão da pele pálida e delicada.

“Estou aqui”, ela respondeu, permitindo-se tocar seu peito “Sou sua.”.

Ele não a machucou naquela noite. Nem na depois desta, e nem na próxima.

Demorou um tempo para que ela aprendesse a estar e a gostar de estar com ele. Era desconfortável a princípio, mas ela continou voltando noite após noite até que pudesse realmente suspirar de satisfação e chamar o nome dele como ele chamava o dela. Não compartilhavam a cama, ainda assim. Toda noite, depois que ele a havia amado e feito-a dele, ela saía da cama, se vestia, e voltava para os próprios aposentos, onde dormia sozinha.

Eventualmente, ela engravidou.

Descobriu apenas quando seus pais exigiram uma visita, e a Tapeçaria a conectava a Lucius por um fio dourado que lentamente construía outro ramo da longa árvore. Narcissa fingiu que já sabia, e Lucius fingiu que não se importava. Quando voltaram à própria casa, entretanto, ela pôde ver a dor e a alegria misturadas em seus olhos.

“Há quanto tempo você sabe?”, ele perguntou.

“Tanto quanto você.”, ela admitiu.

“Meu amor…”, ele beijou suas mãos, seus braços, seu rosto… Finalmente, ela o deixou beijar seus lábios, e pela primeira vez, Narcissa estava de fato beijando um homem.

Não era apenas um movimento mecânico de lábios, como na cama. Não era intenso como sob os lençóis, mas não era distante como nesses momentos. Finalmente, era morno, não quente, e faiza seu coração bater mais rápido, e ele tocava sua cintura com carinho, não apenas fome.

Ela descobriu que gostava daquilo.

Abraxas tornou-se radiante quando eles lhe contaram. Seu sorriso foi mais claro que o sol, e ele a abraçou. A única pessoa que já havia lhe abraçado fora Regulus, e ela sentira falta disso. O abraço durou mais do que o apropriado, mas Abraxas não parecia querer defazê-lo mais do que ela.

“Vocês precisam pensar em um nome! Decorar o quarto! Encontrar alguém para tomar conta dele!”.

“Nós nem sabemos se é um menino ainda, Pai”, Lucius argumentou, mas calou-se sob o olhar irritado do outro.

“É claro que será um menino! Eu sinto no meu joelho! Você verá.”.

Daquele dia em diante, ela foi mais mimada do que jamais havia sido. Lucius a procurava de cinco em cinco minutos, perguntando se precisava de alguma coisa; eles compartilhavam a cama, e ele nem ao menos a tocava se ela não lhe pedisse. Abraxas insistia que ela sentasse em seus lugares preferidos, mesmo que fossem os mais apropriados para um homem de sua idade. Dois elfos domésticos estavam com ela a todos os momentos para acatarem todos os seus desejos. Narcissa estava feliz pela primeira vez na vida.

Regulus morreu.

Sem nenhum aviso, sem nenhum tipo de preparação, ele morreu. Partiu em uma missão para o Lorde das Trevas – ela nem sabia que ele já era um Comensal da Morte – e nunca voltou. E todo o mundo era cinzento novamente.

Por uma semana inteira, Narcissa não deixou seus aposentos. Não falou com Lucius ou mais ninguém. Comia forçadamente porque sabia que seu bebê precisava. Ele deixou-a sozinha novamente, e ela não sentiu-se mal desta vez. Abraxas vinha dia sim, dia não, a bengala em uma mão e um livro na outra. Sentava-se contra a parede e lia o dia inteiro sem fazer qualquer som. Ela não suportava olhá-lo.

“Você o amava”, seus olhos diziam, e ela não podia negá-lo “Você o amava mais do que jamais amou meu filho”.

E nada disso era mentira.

Em seus sonhos, Narcissa via Regulus novamente. Ele saía da água, rindo como se houvesse estado apenas nadando. Segurava sua mão e beijava seu rosto.

“Olá, Cis”, ele dizia, tão excitado por vê-la quanto ela por vê-lo “Venha, a água está ótima!”.

Às vezes, era um sonho mais inapropriado do que isso. Às vezes, sonhava que ele estava na cama com ela, tocando-a como Lucius fazia, e a beijava como Lucius beijava, e a amava como ela o amava. E ela acordava, um gemido na garganta e seu nome nos lábios. Ela se envergonhava disso, mas em seus sonhos, Regulus era um amante melhor do que Lucius jamais seria, e ela gostava de estar na cama com ele, mesmo se apenas em seus sonhos.

Seu luto foi cortado por uma dor aguda no meio da noite. Ela acordou sentindo-se desesperada e gritou como havia ouvido Sirius gritar no porão. Lucius invadiu seu quarto meros segundos depois, e seus lençóis estavam molhados e pesados.

Apesar das primeiras dores, seu primeiro e único filho nasceu fácil e calmamente. Pálido como os pais, ele não chorava muito. Ela queria chamá-lo de Regulus, como seu amor perdido, mas a tradição Black exigia que ela o nomeasse por uma estrela que estivesse no céu quando ele nascera. E Leão não estava em nenhum lugar à vista naquela noite, então ela o nomeou por uma de suas constelações favoritas; Draco Lucius Malfoy.

Depois dessa noite, Lucius voltou aos seus aposentos, mas ela não mais passava a noite neles. Ela acordava não muito depois de ter adormecido e ia até o quarto do filho. A babá havia dito que ela não deveria incomodar o bebê, mas Draco não parecia se incomodar com as visitas da mãe. Ela apenas o observava por um tempo, e quando ele reclamava ou se movia ou dava qualquer sinal de estar prestes a acordar, ela o tomava nos braços. Isso o impedia de chorar e parecia curar seu coração machucado.

Narcissa não sorria muito. Ela não havia sorrido desde que tinha treze anos e Cygnus começara a tentar achar um marido para ela. Quase não conseguia se lembrar da sensação, mas quando Draco riu pela primeira vez, ela sorriu calorosa e verdadeiramente. Fora em uma tarde de julho, 1980. Eles estavam do lado de fora, Abraxas lendo, Lucius pensando, e ela admirando seu lindo, lindo bebê, quando uma borboleta pousou em sua barriga. O garotinho riu das asas coloridas e ela sorriu para a coisa mais mágica e maravilhosa que já havia visto em toda a sua vida.

Ela não notou, mas Lucius a olhava como se estivesse vendo o céu estrelado pela primeira vez.

O Lorde das Trevas caiu. Toda a sua família foi presa – até mesmo Sirius, e apesar de ela ter quase certeza de que fora um erro, não disse nada. Lucius mentiu e pagou para fugir da prisão. Delatou alguns Comensais e prometeu-lhe que tudo ficaria bem. Ele estava fazendo isso para proteger sua família, seu filho. Ele não iria para Azkaban, mesmo que tivesse que delatar seus colegas. A família deles era mais importante.

No começo, ela acreditou nele.

Draco cresceu sendo mimado, e ela sabia disso. Ele corria pela casa sem limites – ela nunca conseguia forçar-se a impô-los a ele como seus pais haviam os imposto a ela – e ninguém dizia “não” a ele. Abraxas amava o garoto mais do que tudo e brincava com ele o dia todo. Narcissa parava toda e qualquer coisa que estivesse fazendo ao som de sua voz e acatava cada um de seus pedidos, o que quer que fosse. Ele era seu príncipe, seu amor, a única coisa mantendo seu coração dolorido e rachado junto.

Ela amou Lucius. Cinco anos depois da morte de Regulus, ela aprendeu a amá-lo. Mas ela nunca o amaria tanto quanto amara o primo, nem como amava o filho. Seu amor por ele era pálido, frio e construído, não imposto como os outros dois. Ela ensinou-se a sentir-se daquele jeito, e isso exigiu-lhe esforço. Ele não a encantava como Regulus, nem roubara seu coração como Draco. Ela amava Lucius em gestos frios e olhares distantes. Ela a tocava na cama e ela o tocava ainda pensando em outro homem, praticamente um garoto. Ele beijava seus lábios e ela beijava os dele em um movimento ensaiado, nunca mais profundo do que o primeiro.

Eles não eram miseráveis, mas estavam longe de serem felizes.

Ele ainda a tratava como uma deusa e ela nunca o negava nenhum desejo. Mas ela era rainha e ele não era rei. Não para ela, de qualquer forma.

Não demorou muito para que ela notasse que Lucius não gostava do filho. Ele passava quase o dia todo em seu estúdio desde que o garoto aprendeu a caminhar, e mesmo que ela quisesse confrontá-lo a esse respeito, ela não tinha coragem para tal. Abraxas nunca tecia nenhum comentário, apesar de estudar o filho com um olhar um tanto triste sempre que estavam juntos. Às vezes, ele aparecia para o almoço cheirando a álcool, e ela tentava ignorar o fato, mas sua expressão a delatava.

Draco tinha dez anos e Abraxas havia acabado de morrer.

Ela sabia que ele o amava mais do que ao seu próprio pai, e Lucius também. O garoto se trancou em seus aposentos por uma semana inteira, e ela o ouvia soluçar por trás da porta fechada. Lucius proibiu todos os elfos domésticos de levá-lo qualquer tipo de comida – “se ele está com fome, então deveria sair do maldito quarto e vir até a cozinha!” –, mas ele nunca pudera obrigá-la a obedecê-lo. Ela levava comida para o filho e beijava sua testa. Ele chorava em seus braços e lhe dizia o quanto sentia falta do avô.

Finalmente, Lucius havia tido o suficiente. Agindo como se apenas quisesse se aproximar do filho, ele levou o garoto para seu estúdio todos os dias, e eles permaneciam lá dentro por longas horas. Narcissa estava solitária de novo, mas dizia a si mesma que Draco estava feliz, e isso era o que importava.

Hogwarts veio, e sua única alegria partiu.

A casa era escura e vazia sem a voz de Draco chamando-a pelos corredores. Era fria sem o sorriso brilhante de Abraxas. E era assustadora com o cheiro de álcool que vinha do estúdio de Lucius. Frequentemente, ela comia sozinha, apenas ela e um prato vazio do outro lado da mesa, silêncio enchendo suas orelhas e solidão enchendo seu peito. Ela dizia a si mesma que era apenas até o Natal, e então a Páscoa, e então haveriam as férias de verão. Era apenas até o Natal…

Mas o Natal estava muito longe.

Quando Draco retornou, ela viu o que Lucius estivera fazendo ao seu doce menino. Suas cartas haviam sido cheias de encantamento pelas maravilhas do castelo, e ela havia estado cega ao trabalho do marido. Seu doce, doce menino era agora um espelho do pai. O modo com que ele falava de trouxas de nascença e “traidores do sangue”… Oh, ela se sentia traída. Ela fora traída.

“Por quê”, indagou “Por que você fez isso? Por que transformou Draco em… Você?”.

Ele a encarou como se não gostasse de ser questionado. Ela sabia que não, mas não recuou.

“Porque”, sua voz era rude “não vê no que meu pai o estava transformando? Não percebe o que o nosso filho ia se tornar? Eu tinha que consertá-lo, Narcissa! Eu não vou tolerar uma bicha manchando essa família! Não como Sirius manchou a sua!”.

Oh.

Narcissa deixou seus aposentos mais uma vez naquela noite, como ela não havia feito em anos. Ela foi para o jardim e encarou o céu noturno, a constelação de Canis Major brilhando tanto quanto sempre, talvez um pouco mais.

Ela sabia. É claro que sabia, havia sabido o tempo todo, Sirius havia contado para todos naquele último jantar em família, latido para que todos eles ouvissem.

Adivinha só? Eu estou apaixonado por um homem. Um mestiço.”.

Eu não vou tolerar uma bicha manchando essa família!”.

Mas Draco não… Ele… Ele não poderia ser… Poderia?

O Lorde das Trevas retornou.

Retornou rastejando, exigindo asilo na Mansão, ele e o resto de seus Comensais da Morte. Lucius os deixou entrar com um sorriso, praticamente implorando perdão de todos eles. E daquele momento em diante, eles estavam condenados. Narcissa sabia disso do mesmo modo que Druella sabia dos Lestrange. E o Lorde não se atrasou em deixar o fato claro. Humilhações não eram raras. Ele aproveitava toda e qualquer oportunidade de ter certeza de que todos sabiam quão desprezíveis os Malfoy eram agora.

Lucius foi preso.

E, antes que ela soubesse, seu filho estava sendo Marcado.

Seu lindo, doce, precioso garotinho era um Comensal da Morte. A caveira estava marcada em seu antebraço, a cobra passeando na pele clara. Ela podia ouvi-lo chorando quando a noite vinha, e isso a destruía. A Marca, as ameaças… E a missão. A missão na qual todos tinham certeza de que ele iria falhar. Apenas mais um modo de provar a todos que os Malfoy não eram nada além de uma família caída.

Ela pediu ajuda.

Ela sempre fora fraca, e temia que sua fraqueza houvesse passado para ele. Ela conhecia Draco, e ele era apenas um garoto. Não era um Comensal, nem um assassino. Ele era apenas um garoto, e não seria capaz de matar Dumbledore – ou assim ela esperava. Então, ela pediu ajuda a Snape, que sempre cuidara dele em Hogwarts, que era seu herói. E ele fez o Voto Perpétuo.

E ela soube que tudo ia ficar bem.

Ainda assim, seu garotinho estava quebrando e ela sabia disso. Cada tentativa frustrada de completar sua missão era reportada ao Lorde. Cada falha dele resultava em uma hora de tortura para ela. Ela sabia que o Lorde forçava Draco a assisti-la através da Marca Negra, e ela só esperava que seu filho havia se tornado tão frio e distante quanto seu pai o ensinara a ser, mas também esperava que não.

Dia e noite, as palavras do marido ecoavam em sua mente, mantendo-a acordada e assustada.

Eu não vou tolerar uma bicha manchando essa família!”.

Oh, o que o Lorde das Trevas diria se soubesse? O que a sua irmã, louca, louca irmã, faria se descobrisse?

Não foi nenhuma surpresa para Narcissa quando ela adentrou os aposentos do filho em uma manhã e não o encontrou sozinho na cama. Reconheceu o garoto que o abraçava: Theodore Nott. Seus pais estavam vivendo na Mansão, também, e os garotos vinham passando quase todas as noites juntos, conversando – ou, assim as pessoas pensavam. Mas suas roupas estavam no chão e seus tóraxes estavam cheios de marcas e eles seguravam um ao outro tão fortemente, como se temessem que o outro desapareceria se largassem.

Eu não vou tolerar uma bicha manchando essa família!”.

Ela fechou a porta e prometeu a si mesma que nunca deixaria ninguém descobrir.

O Ministério havia caído. Scrimgeour estava morto.

Lucius estava de volta à casa, e o cheiro de álcool estava mais forte do que nunca. Novamente, ele a machucava durante a noite. Ela chorava até cair no sono, e ele não parecia ligar, ou sequer notar. Seu pescoço, coxas e tronco foram rapidamente cobertos por hematomas que ela escondia sob vestidos longos e capas elegantes. Havia sangue fresco em seus lençóis toda noite, e os elfos não se preocupavam mais em trocá-los.

Ela costumava ser uma rainha, mas agora não era nada.

Era Páscoa quando Harry Potter apareceu em sua casa. Ela sabia que era ele, tinha que ser. Não disse nada, entretanto. Ela os havia assistido torturar aquela garota, aquele duende e o fazedor de varinhas. Assistiu-os torturar a nascida trouxa e não disse uma única palavra quando Harry Potter escapou. Houve uma punição, mas nem mesmo por um momento ela pensou em culpar Draco, como Bellatrix. Nem mesmo por um momento ela pensou em culpar Draco por ser tão fraco quanto ela.

“Sinto muito”, Lucius disse certa noite. Ele a havia machucado mais uma vez, e ela mal podia sentir mais, observando o teto borrado por suas lágrimas, suas coxas e pulsos queimando por seu toque. “Eu sinto muito, meu amor.”.

Ele a enojava. Mas ele era a única coisa que ela tinha quando Draco não estava ali. Então, ela o perdoou.

Ele nunca mais a tocou. Dormia no chão ao lado de sua cama porque não havia nenhum outro quarto livre, e nunca mais a olhou com fome como costumava fazer. Ele nunca mais tocou ninguém, nem a si mesmo.

Ela sim, entretanto. Os sonhos com Regulus haviam voltado, lindos, lindos sonhos onde ele a levava para nadar no céu estrelado, e beijava seu pescoço em silêncio e dizia que a amava. Regulus era bom para ela, mesmo que estivesse morto. Ela acordava com seu nome nos lábios e suas mãos dentro das vestes. Uma parte de si esperava que Lucius nunca descobrisse. Outra não se importava.

Quando Harry Potter apareceu em Hogwarts, ela já havia perdido todas as esperanças.

Eles seguiram o Lorde das Trevas porque eles eram Comensais da Morte e era isso o que faziam. Sem varinha, ela permaneceu na Floresta com outras esposas não marcadas, esperando por seus maridos e filhos. Alguns deles não voltaram.

“Draco. Está vivo? Está no castelo?”

Oh, talvez ela fosse uma tola por fazê-lo. Talvez isso fosse sua ruína, seu último movimento. Talvez aquelas fossem as últimas palavras que ela pronunciaria. Mas ela não poderia nunca, jamais, simplesmente desistir. Ela não pensava em salvar a vida de Potter. Não estava preocupada nem com o Mundo Mágico. Não, ela estava pensando apenas em seu filho, seu garotinho, em algum lugar do castelo, assustado, talvez machucado, talvez perguntando-se onde ela estaria. Talvez sozinho.

“Morto”.

Narcissa sorriu apenas três vezes em sua vida. Quando Regulus foi sortado na Slytherin com ela, quando Draco riu pela primeira vez, e quando ela o encontrou no Grande Salão, machucado e ensanguentado e cansado e assustado e vivo. Ela o abraçou apertado, nem mesmo pensando no fato de que sua irmã havia acabado de morrer, ou de que o Lorde das Trevas havia se ido, ou no que ia acontecer depois. Ela apenas beijou sua testa e sua bochecha e o topo de sua cabeça e cada centímetro de sua pele que ela conseguia alcançar. Ele escondeu o rosto em seu pescoço e ela o ouviu soluçar.

O tempo pareceu passar mais depressa depois disso.

Julgamento após julgamento, seu mundo desmoronou. Todo mundo que ela conhecia estava sendo preso, e logo ela estaria sozinha. Em julho, foi o julgamento de Lucius, e nem mesmo cada galeão que ele já havia possuído e cada nome que ele conhecia poderia salvá-lo de Azkaban desta vez. Não lhe foram permitidas despedidas ou últimos desejos. Ela o assistiu ser carregado para longe com lágrimas nos olhos e gelo no coração. Ele havia sido um bom marido, considerando-se todas as coisas, mas ele nunca havia sido um bom homem.

Andrômeda estava lá para o seu julgamento. Ela manteve-se ao lado de Draco, seus olhos molhados, seu rosto cansado, seus braços pesados com seu neto. Ela manteve-se ao lado da irmã durante o julgamento de Draco, também, e os levou para a própria casa depois.

“Senti sua falta, irmãzinha”, sussurrrou, como se fosse algum tipo de segredo “Eu estive preocupada com você”.

Narcissa havia sentido sua falta, também.

Então, Draco foi para Hogwarts pela última vez. E ele voltou segurando a mão de Theodore Nott, dizendo que o amava e pedindo permissão para quebrar todas as regras e ser feliz ao menos uma vez.

Eu não vou tolerar uma bicha manchando essa família!”.

“Ele não está manchando essa família, Lucius”, ela pensou, enquanto conduzia seu filho até o altar com lágrimas nos olhos “Você estava”.

A quarta vez que Narcissa sorriu, ela tinha apenas quarenta anos. Draco foi até sua casa – ele e Theodore moravam longe, agora, em Londres, enquanto ela dividia uma casa com a irmã e o sobrinho-neto, sem nenhum dos luxos aos quais estivera acostumada, uma vez que o Ministério os havia confiscado todos; mas tudo bem, ela preferia sua nova vida – com um sorriso no rosto e uma bebê em seus braços.

“A mãe dela morreu no hospital”, contou, de alguma forma ainda sorrindo “Ela não tem mais ninguém; nenhum nome, nada. Eu e Theodore vamos adotá-la”.

E então, Narcissa tinha uma neta, Cassiopeia Narcissa Malfoy-Nott.

Ela sorriu muitas vezes desde então; todas sem exceção foram para esta criança que não possuía uma única gota de sangue em comum com ela, mas a quem ela amava mais do que a si mesma.

“Mãe, já conheceu o Scorpius?”.

Scorpius havia sido abandonado no hospital, Draco explicou. Pelo que sabiam, ele podia ser um trouxa. Mas ele tinha os cabelos de um Malfoy e os olhos de um Nott e apenas dois anos a menos do que Cass, e ele foi o quarto e último amor da vida de Narcissa.

Seus netos eram adultos, agora. Cass havia casado-se com James Sirius Potter, como todos haviam previsto, e Scorpius estava indo a algum lugar com aquela garota Weasley, e Teddy e Victoire já eram pais. E Andrômeda estava morta. E ela estava de volta à Mansão Malfoy. Uma última vez. Ela vivia lá com os elfos domésticos e Theodore e Draco apareciam quase todos os dias, assim como as “crianças”. Trêmula e fraca, ela vagava pelos corredores, tocando as velhas paredes que haviam visto demais.

Narcissa Druella Black Malfoy não estava no céu.

Toda a sua família brilhava à noite, traçando lindos contornos de luz e fazendo a escuridão parecer mais bela do que jamais poderia ser. Mas ela estava presa à terra, frágil e perdida, encarando apenas o próprio reflexo e nada mais.

Ela estava sozinha.

Ela os observava com lágrimas nos olhos e uma xícara de chá ao seu lado. Sozinha em uma casa que era grande demais para ela e para seu coração rachado.

Talvez um dia ela adormeceria e acordaria com Regulus ao seu lado. Talvez um dia ela colocaria uma mão sobre o peito e sentiria seu coração batendo. Talvez um dia ela descobrisse que era feliz.

Mas aquele dia estava distante. Perdido entre as estrelas.

E ela estava presa à terra.


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Notas finais do capítulo

E aí? Gostaram? Odiaram?
Fiz justiça a essa personagem maravilhosa que é a Narcissa? Espero que sim...
Sou sempre aberto a críticas, então podem ser sinceros, por favor.



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