Uma Canção de Neus Artells escrita por Braunjakga


Capítulo 16
O agente duplo




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Tremp, Catalunya

22 de Agosto de 1714

 

I

 

Clow estava parado diante de uma casa arruinada.

A casa estava coberta de fuligem e ainda dava pra ver sangue nas pedras da casa.

Tremp foi uma das cidades mais brutalmente atacadas por Enric durante a operação de retomada do norte da Catalunya.

Os poucos que sobreviveram serviram como testemunhas do que esperava acontecer com as cidades que resistissem.

Dois homens estavam revistando o mago.

Apesar de Clow usar um gibão espanhol, seus cabelos longos e olhos asiáticos eram incomuns por aquelas bandas e, gente como ele estava sendo procurada!

Os soldados largaram Clow decepcionados.

Não encontraram nenhum livro mágico e nenhum companheiro mágico.

Um tenente da Ordem gritou furioso:

— Como é que vocês me dizem que não encontraram nada? Revistem ele direito!

— Mas já revistamos, senhor! Até mesmo ele tirou a roupa e não vimos nada!

— Não pode ser! A gente tinha suspeitas de que tem um mago do oriente aqui! Ele tava curando os Coronelas no norte de Girona faz nem uma semana direito!

— Acho melhor deixar ele ir…

Uma voz grave surgiu atrás do Tenente:

Era um homem de armadura negra como a noite, muito parecida com a armadura da ordem, só que com chifres na cabeça:

— Você não ouviu, Tenente, o homem está limpo! Deixe-nos!

— Mas quem é você pra insultar a Ordem do Dragão assim?

— O pior pesadelo do velho Oriol Junqueras…

O Tenente olhou para os outros soldados da ordem que estavam em volta e fizeram sim com a cabeça.

Sacaram espadas, lanças, manguais e porretes e partiram pra cima do homem.

O homem de armadura negra só precisou estalar os dedos para que todos eles tomassem no chão de uma vez, mortos.

Só o Tenente ficou em pé.

— Mas… o que?

O homem de armadura negra tirou o capacete, mostrando a cabeleira loira e os olhos azuis e apertou o pescoço do Tenente:

— General Enric?

— Tenente, você tava zombando de mim quando o maldito Gerard me venceu, não foi? Agora eu tenho o poder, não só pra acabar com ele, mas com todos vocês!

Enric apertou o pescoço do homem até estourar.

Clow aplaudiu Enric, sorrindo de leve.

— Mylord realmente tem uns poderes assombrosos!

 

II

 

Clow sacou uma garrafa de gin, abriu-a e se serviu em um copo.

— Gin, mylord? Eu posso ficar longe de casa, mas eu nunca vou deixar de ser britânico, em minha maneira de pensar, em meus atos. Vai querer?

Enric sorriu:

— Mas que merda de patriotismo, Clow; nações vão e vem e nós também!

— O lugar que a gente nasceu sempre vai ser o lugar onde a gente nasceu. Você não se importa com a Espanha?

— Dane-se a Espanha! Ela só é uma base pros meus projetos futuros… no futuro esse negócio de nação não vai existir mais…

— E o lugar onde a gente nasceu?

Clow sorria e Enric se irritava:

— Me vê alguma coisa aí, vai!

—  Tem uma bebida do México que é feita com uma espécie de cacto, sabe?

— Tequila?

— Sim, acho que é ela! Ela é terrível, desce rasgando na garganta… se mylord quiser…

Mal Enric pensou e estava na frente dele uma garrafa de tequila reposado.

Tomou tudo de uma vez e repetiu a dose:

— Ao Gerard, aquele grande fdp!

— À Neus… aquela menina Valente e ousada!

Os dois brindaram. Enric Gargalhou.

— Neus valente e ousada? Vamos ver… Eu quebrei tanto o espírito dela que ela não vai se meter a besta comigo…

— As suas costas estão bem, mylord?

Clow sorria e Enric não gostou.

Enric tomou um trago de tequila e respondeu:

— Pode rir a vontade, Clow, mas eu te digo: mais fácil acabar com um touro em fúria que um touro manso; a gente sabe exatamente o que ele vai fazer…

— Concordo...

Os dois estavam reunidos em um bar, ou pelo menos o que restou dele.

Mesmo com o teto acima deles rachado, as paredes com os tijolos no chão e um corpo morto ressecado ao lado, nada foi empecilho para que eles arrumassem uma mesa e uma cadeira caídos e parassem para beber.

Devido a guerra, o povo ainda não tinha voltado para reconstruir as cidades devastadas e tudo ainda estava em escombros.

Para completar a paisagem, corpos de soldados da Ordem estavam espalhados pelas ruas, mas não foi obra de Neus, foi obra de Enric mesmo.

— A respeito dessa guerra, tudo por España, Enric? Pois, se você, como general, não luta pela unidade de España, luta-se pelo que?

— Mas que merda de nacionalismo idiota, Clow! Eu já te disse que esse conceito não significa nada pra mim! Criar um império onde eu possa juntar mais gente como nós é uma proposta interessante…

Clow arregalou as sobrancelhas:

— Conte mais sobre isso, mylord…

Embalado pela tequila, Enric falou:

— Minha mãe era se Vilafranca de Penedès, terra do vinho. Ela me criou sozinho até ela morrer lutando pela Espanha, nessa maldita guerra contra os separatistas. O velho Oriol só agradeceu e me deu uma bandeira imperial que tava em cima do caixão dela em vez de devolver a vida dela. Núria Miró ela se chamava. Era loira de olhos claros como eu.

— E você só tem o nome da sua mãe, mylord?

— Meu pai deixou a minha mãe quando ele descobriu que ela tava grávida de mim; um grande merda ele era! Era um soldado espanhol que tinha voltado das Américas, dizia pra minha mãe que enfrentou tribos e tribos de índios, mas foi incapaz de encarar o filho dele… mas uma hora ele teve que enfrentar.

— E seu pai era um comum? Na Inglaterra chamamos eles de 'trouxas’.

Os dois gargalharam.

— Sim, um 'trouxa’ de merda. Minha mãe sabia um pouco de magia e eu puxei a ela. Eu só não fui parar num orfanato porque ela conhecia uma amiga da Ordem. Minha mãe sempre me criou dizendo pra eu me dedicar a magia, ser tão forte quando um mago puro sangue… e é isso que eu fiz! Até mesmo chegar a maior patente da Ordem eu consegui, pena que ela não viveu pra me ver virando Major…

— Voce disse que seu pai chegou a te conhecer…

— Sim, e como! Sabe, estava eu na beira do rio Ebro, em Tortosa, quando eu vi uma moça de pele morena, lábios de mel e um traseiro e busto bem crescidinhos pra uma mulher tão jovem, tomando banho no rio… Eu sabia que meu pai estava por lá… Minha mãe sempre me dizia que as pessoas que os magos são superiores às pessoas comuns, que devemos assumir nosso lugar no mundo e que o resto dos comuns são como um bando de porcos a nossa disposição, sabe? Só serve pra ser abatidos. Ler sobre a história da Ordem e de Lluís Soler me fez pensar 'por que não?’

— Mas sua mãe teve um filho com a ‘raça inferior’, não é? Um filho que é capaz de usar magia…

Enric não sorriu. Teve vontade de quebrar a garrafa de tequila, mas tomou três tragos seguidos antes de recomeçar:

— Ainda bem que eu nasci com magia, porque se fosse diferente, eu mesmo ia me imolar!

Clow tentou colocar panos quentes naquilo:

— Mylord, acalme-se! Estou querendo dizer que essa coisa de os comuns serem iguais a nós é o maior debate na Inglaterra! Mas continue seu relato… o que aconteceu com a moça de pele morena?

— Bem, eu tentei virar amigo dela e ela caiu no meu papo. Eu também tenho desejos e, comum ou não, não resisti e me deitei com ela. Ela não quis, me deitei mesmo assim, afinal, ela era uma comum e eu sou um mago! Não foi só uma não! Eu ameacei ela e foram duas, foram três, foram quatro… até que ela engravidou e o pai dela descobriu…

— Mas você ainda continuou em Tortosa depois de se deitar com ela?

— Sim, mas é claro, só pra saber a reação, só pra enfrentar o pai dela; se ele fosse comum, tava ferrado, mas se ele fosse mago… eu confio nas minhas habilidades!

— Mas as Cortes mágicas…

— As cortes mágicas não significam nada pra Ordem! A gente usa um poder mágico que não deixa rastros e nem presença; vivemos na sombra do universo mágico! Já fizeram alguma coisa assim na Inglaterra?

— Eu acho que já tentaram fazer, mas não deu muito certo não… mas, continue, mylord…

— Bem, como eu estava falando, o pai dela veio. Um cara loiro, olhos azuis e muito bonito! Merda! Aquele cara era um reflexo meu mais velho! Até o cara ficou chocado! Àngel Gavarró era o nome dele…

— Teve briga?

— Não, mas eu falei na cara dele que eu não ia assumir filho nenhum. Ele entendeu. Botou o rabo entre as pernas e foi embora. Ele sabia quem eu era. Ele sabia que era o troco que eu tava dando e agora eu tinha o poder pra isso… mas eu não tinha poder pra tudo. O Velho Oriol descobriu e não gostou nada disso. Ele me deu uma bronca dizendo que magia não era para aquilo. Daí eu debati com ele falando que Lluís Soler matou uma tribo inteira de Olmecas no México só por ter zombado da nossa armadura… Ele não entendeu. Falou que a Ordem antes era uma coisa agora é outra coisa e que ele era o Interventor agora e estava mudando tudo! Daí eu joguei na cara dele que ele também participou daquilo… Nunca mais minha relação com o velho foi a mesma, e olha que ele já gostou de mim um dia, talvez pelo meu passado, mas ele nunca chegou a saber que minha mãe pensava que os magos eram superiores aos comuns…

— Você se deitou com sua irmã, Enric…

— E como eu ia saber? Meu pai era branco como neve, ela era morena; depois eu descobri que ele fez aquela filha com uma índia que achou no Peru…

— Você acha que ele descobriu?

— Acho que sim… O problema é o Velho Oriol. Todo mundo na Ordem já sabia que eu seria o próximo Interventor da Catalunya, eu sei de coisas que nem mesmo os interventores sabem! Foi um choque pra todo mundo quando o Velho escolheu o filho de um associado da Ordem pra virar interventor do que um nascido e criado lá! Isso nunca aconteceu! Eu tive que lutar e perdi! Usando magia natural e não dá Ordem!

— E você perdeu tendo tanto conhecimento assim…

— Clow, pensa comigo: uma vez que você usa magia da Ordem, não dá pra parar mais! É viciante! Eu enferrujei na magia comum, o velho sabia disso e me passou a perna. Minha mãe era boa com feitiços de memória, eu herdei isso e só sou bom com magia arcana, de condições físicas e mentais… mas o que é magia arcana comparada com magia elemental?

— Sei muito bem, mylord, Se você não se dedicar com tempo e experiência, não vira…

— Pois é, eu perdi, mas agora, eu posso me vingar do Gerard e tomar o posto de Interventor da Ordem com o fim da guerra com uma magia que eu mesmo desenvolvi ao longo desses cinco anos… E não para por aí! Quem sabe o mundo? E você vai me ajudar, Clow…

Clow entendeu onde ele queria chegar.

— Sim, as cartas Clow… você também tá interessado nela?

— Pena que você deu em mãos erradas… agora eu vejo que elas podem ser úteis…

—  Tou vendo… mas antes, acho que tou entendendo esse plano, só me diz uma coisa: a entrada da Neus na guerra foi intencional?

— Totalmente intencional… Ela é a namorada dele! Namorada do Gerard! Eu só fiz um teste queimando Girona, sabe?

Clow pensou em Josep e Carles quando eles lhe roubaram as cartas.

— Depois eu parti pra queimar a fazenda dela… Sucesso total! Eu sabia que aqueles idiotas iriam pensar que foram os espanhóis… mas Neus era durona, o irmão dela era mais maleável… mas os dois caíram no final… eu só não esperava que o Santi e o Pere sonhassem com a independência da Catalunya e quisessem uma ‘arma’ mágica que fizesse isso; dois idiotas! As cortes iam cair em cima e acabar com a farra deles mais cedo ou mais tarde! Mas, descobrir as cartas Clow e descobrir que estava com elas foi um achado! Uma pena que essas cartas são o antídoto ao poder da Ordem… mas tou preparado… uma hora ou outra essa menina morre e as cartas caem nas minhas mãos!

— Mas os selos…

— Sim, os selos… não é qualquer um que pode mexer naquilo… Por isso eu vou precisar do senhor, Senhor Clow.

Enric olhava Clow de modo sedutor.

Clow percebia que estava na frente de um homem sedutor, persuasivo e ambicioso que era capaz de tudo para atingir seus objetivos.

O problema era que Yue estava sob o poder dele.

Ele poderia usar o guardião como moeda de troca pelas cartas.

Clow estava preparado para isso:

— O que me diz, Senhor Clow? Quer viver como um vagabundo sem rumo, caçado pela Inglaterra a vida inteira

— O senhor é incrível, Mylord!

— … ou tá pronto pra construir um mundo comigo? Esse era o sonho de Lluís Soler, a gente tem que terminar…

“Eu não vivo os sonhos dos outros, mylord, só os meus…”, Pensou Clow.

Sobre a mesa, tanto a garrafa de gin quanto a garrafa de tequila já tinha acabado e nenhum dos dois estava mais com sinais de embriaguez.

Enric estendeu a mão nua para Clow.

— Eu vou ter meu guardião de volta, mylord?

— Yue é o nome dele, não? Sim, em breve, quando a gente acabar com a Neus e essa guerra toda acabar também...

Clow deu uma longa encostada na cadeira e olhou para o teto destruído:

— Vocês são terríveis mesmo, hein? Nem sei como tomar uma decisão dessas sendo chantageado…

Enric não gostou da resposta:

— Não é uma chantagem, Senhor Clow; é uma parceria que eu estou propondo; se o senhor não quiser, pode ir e eu fico com o anjo.

Clow se levantou da cadeira, encarou Enric e estendeu a mão para ele:

— Yue é um filho meu e eu nunca largaria ele; por onde começamos?

 

Continua...


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