A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 6
05: Férias de verão com uma raposa.


Notas iniciais do capítulo

Glossário:

LINE: Um aplicativo de mensagens instantâneas por celular.
Yukata: Uma espécie de quimono mais informal, muito comumente usada em festivais de verão ou em pousadas, especialmente após o banho ou até como pijamas.

P.S: Caso aja alguma coisa que não compreendam avisem-me, por favor.



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O dia estava realmente quente.

Sentado na beirada do corredor, cuja porta de correr levava ao quintal da casa daquela família humana — nos fundos da hospedaria da própria família — vendo a roupa secar no varal, com os longos cabelos prateados amarrados em um nó no alto da cabeça, o quimono recolhido e enrolado até acima dos joelhos e metade da parte superior caída de lado de forma a lhe deixar o ombro direito, todo o braço e boa parte do tórax a mostra, enquanto tinha os pés mergulhados numa bacia de água e comia algumas fatias de melancia, Gintsune aproveitava a tranquilidade do lugar, o sol, o ar fresco... Mesmo fazendo quase um mês que ele chegara ao mundo humano ele ainda os aproveitava como se fosse o seu primeiro dia ali.

Apoiando-se sobre o braço esquerdo Gintsune inclinou-se para trás e deu uma mordida numa fatia de melancia que segurava com a outra mão, acima de si havia um sino dos ventos pendurado, mas estava completamente silencioso pela falta de correntes de ar.

Gintsune atirou uma semente contra o sino dos ventos e ele tilintou suavemente, fazendo a raposa sorrir.

Atirou mais uma.

—Você quer parar com isso, por favor? 

Yukari perguntou de dentro da sala, sentada de costas para ele, e Gintsune jogou a cabeça para trás para vê-la.

—Parar com o que?

Assim como ele, ela estava ali durante a manhã inteira, e havia chegado até mesmo antes dele — inclusive, quando Gintsune apareceu, ela simplesmente lhe deu as costas e tentou ignorá-lo —, mas diferente dele não estava aproveitando o dia ou qualquer coisa assim, e sim se estressando — que parecia ser o que fazia de melhor — com um monte de livros, cadernos e papéis.

—Eu sei que é você que está tocando o sino dos ventos! — acusou virando-se...

E então ficou intensamente vermelha e lhe deu as costas novamente.

—Eu? — fez-se de inocente

—E pensar que essas coisas deviam afugentar maus espíritos. — resmungou.

—Eu não sou um mau espírito, sou uma raposa muito bem comportada. Obrigado. — respondeu cinicamente — E se você quer proteção contra os espíritos malignos não há melhor proteção do que eu.

—Certo, mas quem nos protege de você? — ela resmungou.

—Além do mais. — continuou Gintsune — É um sino dos ventos, é normal ele tocar no verão.

—Só que não está ventando. — ela respondeu — Então pare, está me desconcentrando.

Gintsune comeu o último pedaço da fatia de melancia que tinha na mão.

—Você é muito jovem para ser assim tão ranzinza. — comentou — Desse jeito vai ficar grisalha antes dos vinte, sabia?

—Diz isso por experiência própria? — Yukari perguntou impassível.

—Hum... Que grosseiro. — disse olhando para o céu, ela podia tê-lo irritado da primeira vez, mas que não esperasse conseguir toda vez — O meu cabelo não é grisalho, ele tem um lindo tom de prateado.

—Isso é o que você diz, mas quando se transformou em raposa naquela vez era claramente uma raposa branca.

Colocando a mão dentro do quimono Gintsune tirou seu cachimbo de cabo longo e, com apenas uma sacudida da mão, o transformou em um leque japonês.

—Isso é porque você só meu viu na minha forma mais básica. — respondeu.

Yukari parou por um momento com o lápis sobre o papel.

—Forma mais básica? — repetiu.

—Sim, embora eu seja nobre e magnífico em qualquer forma que assuma, a minha verdadeira forma é muito mais magnífica que aquela forma de raposa branca de uma cauda que mostrei a você. — contou se abanando levemente com o leque — Talvez você não entenda, mas uma forma tão magnífica quanto a minha não é algo que se sai exibindo por aí de forma tão leviana, mas se está mesmo tão curiosa eu posso te dizer que em minha forma original eu sou uma esplendorosa raposa prateada gigante com...

—Hum... Essa questão cinco está difícil mesmo, talvez eu deva passar para a próxima e voltar a essa mais tarde... — Yukari comentou em voz alta, deixando claro que já tinha parado de prestar atenção em Gintsune há muito tempo.

A raposa suspirou e continuou a abanar-se levemente com o leque.

—Que criança mal educada. — comentou decepcionado.

—A propósito. — ela voltou a chamá-lo depois de algum tempo — Você não disse que ia embora?

—Eu disse? — perguntou inocente. — Não me lembro disso.

—Você disse. — ela insistiu — Disse que iria embora depois que visse o selo, mas ainda está aqui.

—Ah o dia está tão quente. — ele reclamou se abanando — Nem dá vontade de sair para brincar.

—Ei! Você está ignorando minha pergunta! — ela reclamou.

Trocando o leque de uma mão para outra Gintsune pegou mais uma fatia de melancia.

Ao que parece o mundo humano havia mudado muito mais do que ele pensara a principio então isso significa que, por hora, ele ainda não podia sair daquela cidade, porque se mesmo numa cidadezinha pequena de interior — segundo as palavras daquela garota — como aquela ele já ficava animado o tempo todo e mal era capaz de controlar a cauda que sempre lhe escapava, imagine então o que aconteceria em uma cidade grande?

E é por isso que, pelo menos até se readaptar ao mundo humano, Gintsune ficaria em Higanbana.

Então sim, parece que por mais algum tempo ela ainda teria que aturá-lo. Noticia essa que ele teve o prazer de lhe dar naquela mesma madrugada.

Flutuando acima da garota adormecida ele a acordou com um peteleco na testa.

—Ei. — Ela abriu os olhos de uma só vez e, no instante em que o viu ali, fez menção de gritar, mas ele rapidamente cobriu-lhe a boca com a mão. — Quer parar de reagir assim sempre que me vê? — reclamou — Eu sou belíssimo, sabia? Não é uma visão com a qual se assustar, muito pelo contrário, nem em seus piores pesadelos você poderia se assustar com meu belo rosto mesmo porque qualquer sonho em que eu esteja nunca haveria de ser um pesadelo.

Ela permanecia imóvel, mas por trás de sua mão o encarava com olhos queimando de fúria.

—Mas o que você ainda faz aqui?! — perguntou irritada sentando-se na mesma hora em que ele a largou e se afastou voando mais para o alto — Não disse que ia embora?!

—Eu disse. — confirmou. — Mas antes eu tinha que te devolver algo.

E jogou para ela algo que segurava fazendo-a instintivamente ergue as mãos para se proteger... De algo que acabou revelando-se ser apenas um pedaço amarrotado de pano.

Yukari franziu o cenho.

—Isso é...?

—Você enfaixou minha mão com isso. — ele respondeu — Apesar de isso ser apenas um trapinho de nada e eu ter avisado de que não era necessário.

Ele mostrou a mão perfeitamente sã para comprovar.

Aquele lacre... Provavelmente já estava enfraquecido, pois do contrário os danos teriam sido piores.

Mas ele não quis falar isso para ela.

—Você voltou aqui só para me devolver isso? — perguntou claramente descrente.

—Você não entende nada mesmo, não é? — Gintsune, sentado no ar, reclinou-se para trás com os braços cruzados atrás da cabeça — A maioria dos youkais não gosta de dever favores, qualquer que seja o favor, muitos podem dar até a vida para devolver um favor, especialmente se for para algum humano. — ele fez uma careta — Porque é inconcebível ficar devendo algo para um humano. Então você me fez um favor, embora desnecessário, e eu estou retribuindo te devolvendo o trapo, algo igualmente desnecessário.

—Então você me devolveu isso. — ela olhou do pedaço de pano na mão para ele — E vai devolver também todas as coisas aleatórias que encontrei pela pousada?

—Claro que não, aquelas coisas não foram me dadas como favores, eu as consegui por mérito próprio, fosse tomando-as para mim ou ludibriando as pessoas a me darem.

—Então você vai embora agora?

Gintsune girou no ar, até estar “deitado de bruços” e apoiando o rosto entre as mãos perguntou:

—Mas por que você parece tão ansiosa em se livrar de mim? Não vê como sou bonito? Além do mais, ter uma raposa em casa pode te trazer grande sorte.

—Ou grande desastre. — ela retrucou — De qualquer forma eu não quero o tipo de sorte que uma raposa tem a oferecer.

Dito isso ela voltou a deitar-se dando as costas a ele e cobrindo-se até acima da cabeça.

É verdade que às vezes algumas raposas eram capazes de assombrar uma casa e até causar mal aos seus moradores apenas para expulsá-los e ficar com a moradia, mas elas também podiam ser benéficas se quisessem e trazer grande sorte aos moradores da casa ao emprestar suas habilidades ladinas para afanar dinheiro e outros itens de valor que pudesse trazer para a casa.

Ainda assim parecia haver humanos ingratos que não apreciavam tais esforços.

—Bem, que seja, de qualquer forma vocês não precisariam da minha sorte, não enquanto aquele camaradinha estiver morando lá na hospedaria... Mas de qualquer forma eu vou ficar pela cidade, parece que há um festival de verão daqui a três dias e eu quero ver isso. Depois irei embora.

Ele não queria. Ele simplesmente não podia dizer que conhecia tão pouco do mundo que não se sentia capaz de deixar a cidade ainda.

Seu orgulho não lhe permitia.

O festival de verão foi divertido como Gintsune esperava que fosse, mas ele não foi embora depois, como disse que faria.

—Eu não te vi no festival ontem à noite. — comentou se materializando ao lado da garota, apoiando os cotovelos no balcão e deixando o rosto entre as mãos.

Ela sobressaltou-se um pouco pela aparição repentina dele, mas então respondeu inexpressiva e controlada sem sequer encará-lo:

—É porque eu não fui.

—Não foi? Mesmo depois de aquela garota de cabelos ondulados ter vindo ate aqui só para te convidar? Que pena. — respondeu pouco interessado.

Ela finalmente o olhou.

—Como sabe disso?

—Eu estava vendo, é claro. — ele a olhou — Acha mesmo que essas tranças são adequadas para se usar quando se está vestindo um quimono? Porque eu não acho.

Ela desviou o olhar, focando-o a sua frente.

—Eu não fui porque tinha que trabalhar. — respondeu.

—Que chatice. — ele bocejou, como se a voz dela o entediasse — Ah! Mas eu conheci uma garota lá, e ela...!

Nesse momento, porém, a porta abriu-se quando dois novos clientes entraram e ela olhou-o assustada, mas a raposa já havia sumido, olhando novamente para frente ela curvou-se e cumprimentou:

—Bem vindos à casa de banhos Shibuya!

Depois que eles se foram quando ela pegou o dinheiro e passou devidamente o troco, ela voltou a ouvir ao seu lado:

—Ei Yukari, o que quer dizer quando alguém te pede o seu número?

Novamente com um sobressalto ela olhou para o lado, mas ele não estava lá, e só quando olhou para baixo foi que percebeu que em momento algum ele havia sumido, apenas se escondera atrás do balcão, e agora estava sentado no chão.

—Isso é... Espere. Como sabe meu nome?

—Hum? Eu li nisso aqui que peguei na sua bolsa quando estava no seu quarto mexendo nas suas coisas. — respondeu tirando de dentro do quimono a carteirinha estudantil dela.

—Isso é meu! — ela reclamou tomando-lhe a carteirinha das mãos.

—Eu sei que é. — ele a olhou — Acabei de dizer que peguei na sua bolsa enquanto estava no seu quarto mexendo nas suas coisas.

Ele tinha uma cara tão deslavada!

—Muito obrigada, senhor raposa, mas eu gostaria de pedir que não saia já me chamando assim pelo nome de forma tão intima.

—Pare de me chamar assim é um tanto quanto irritante, Yukari. — ele disse despreocupado.

—Não me trate de forma tão informal! — Yukari reclamou — Chame-me, no mínimo, de Shibuya-chan! Pode compreender isso senhor raposa?

—Me chame simplesmente de Gintsune — ele respondeu como se não a ouvisse.

Ela o olhou.

—Não posso chamá-lo de senhor raposa, mas devo chamá-lo de Gintsune? — ela nem precisava soar irônica a situação já dizia tudo por si só.

—Exato. — Gintsune estava mexendo nas unhas — Agora, Yukari, sobre aquele negócio de número...

Aparentemente quando humanos pediam o seu número, eles estavam se referindo a um número de celular, algo que usavam para se comunicar e que, como Gintsune logo descobriu, ele não podia imitar com uma simples ilusão ou mesmo pegar de outro humano, como de fato ele fez, porque quando o aparelho tocava era para perguntar pelo humano em questão.

Então ele simplesmente abandonou o celular em algum canto aleatório.

Alguns dias mais tarde Yukari comentou que tinha encontrado um celular, ela colocou-o para recarregar, seja lá o que isso queria dizer, e quando o dono ligou ela avisou que o celular havia sido esquecido na casa de banhos Shibuya, e ele fez-se delicadamente de inocente, algo no que ele a propósito era muito bom.

Como num certo inverno quando nevou tanto, mas tanto, que toda a sua cidade afundou-se em neve, e a árvore no quintal da casa do tengu — Gintsune fora arrastado a passar aquele inverno na casa do tengu e da esposa que tinham medo que ele congelasse em seu casebre, embora fosse um youkai com domínio sobre o fogo — havia sido encoberta de tal forma que se transformara numa montanha de lama, gelo e neve com quase cinco metros de altura, e Gintsune teve a ideia de descer aquela “montanha” de trenó junto com o filho mais velho do tengu — o outro sequer sabia andar na época.

A coisa não tinha como prestar, os dois bateram e a asa direita do garoto dobrou-se num ângulo estranho e antinatural, além do monte de neve sob o qual foram soterrados onde quase morrerem congelados de uma forma muito estúpida, mas mesmo enquanto tremia e batia os dentes com tanto frio que sequer era capaz de ascender suas chamas, Gintsune ainda tinha um olhar absurdamente inocente em seu rosto de criança — assumira a forma infantil no intuito de pesar menos para a descida de trenó — o que só deixou a esposa do tengu ainda mais estressada com ele.

—E pare de me olhar com essa cara de “não briga comigo não” que eu sei que você não e nenhuma criança de verdade Gintsune! — a esposa do tengu o repreendeu naquele dia.

Lá nos fundos ele ouvia os gritos do garoto que sequer dera seu primeiro voo ainda enquanto o pai tentava lhe recolocar a asa no lugar.

De qualquer forma, Gintsune logo desistiu dessa ideia de “número de celular”, não era como se, no final das contas, ele quisesse manter contato com alguma daquelas pessoas, pois se, por ventura, alguma delas realmente o interessasse ele a encontraria de um jeito ou de outro.

Assim todos os dias ele ia à cidade, e nem sempre apenas para se divertir com os humanos, às vezes, na verdade na maioria das vezes, ia para conhecer e aprender mais sobre o quanto mudara o mundo, mesmo naquele lugarsinho pequeno e parado que era Higanbana.

De fato o lugar que mais o fascinava de todos era a lavanderia pública.

No mundo youkai havia tipos de youkais “faxineiros”, como os que viviam de lamber a sujeira dos banheiros, embora sua saliva fosse tóxica e altamente venenosa para humanos, e ainda aqueles que se alimentavam das sobras de comida e vários outros tipos de semelhante repugnância, mas ali no mundo humano, sem acesso àqueles tipos de youkais, mas igualmente preguiçosos, eles haviam construído maquinas que fizessem os serviços por ele.

Como as incríveis máquinas de lavar.

Tudo o que eles tinham de fazer era jogar lá dentro a roupa suja junto com o sabão, e por algumas moedas e de repente a máquina começava a se sacudir e fazer muito barulho, enquanto a roupa girava e girava lá dentro, e depois quando terminava tudo estava magicamente limpo!

E ainda tinha uma máquina para secar as roupas!

Gintsune podia ficar por horas na lavanderia pública olhando as máquinas de lavar.

Imagine então... Quando ele descobriu que havia maquinas iguais àquelas na casa de Yukari.

Ela estava separando as roupas brancas das coloridas quando a raposa de repente apareceu às suas costas:

—Uau! Então vocês também têm essas máquinas! Que incrível! E são tantas!

Como sempre ela se assustou, mas já estava ficando estranhamente acostumada aquilo.

—É importante manter os convidados confortáveis e sempre termos toalhas, yukatas e afins, por isso temos tantas. — respondeu ponto as roupas coloridas numa máquina — Mas também as usamos para uso pessoal.

Lá fora já escurecia.

—Incrível! — ele agia com o fascínio que somente uma criança poderia ter.

Yukari ligou a máquina e passou para a próxima, onde poria mais uma leva de roupas coloridas.

—O que há de tão incrível em...?

Mas quando se virou viu-o agachado em frente à máquina que ligara, com as mãos espalmadas nela e o olhar completamente deslumbrado.

—O que você está fazendo?

Ele não respondeu, na verdade sequer pareceu ouvi-la.

Yukari suspirou e dizendo um “Não se deixe ser pego” saiu dali.

Horas mais tarde quando retornou viu que Gintsune ainda estava ali parado na mesma posição, como se nem sequer houvesse se movido. Com certeza não havia.

—Você ainda está aqui? — ela franziu o cenho.

Ele olhou-a com olhos brilhantes.

—Vai ligar mais alguma máquina? Vai?

Ela fez uma careta, abriu a máquina e tirou as roupas dali, depois, para o completo êxtase de Gintsune, colocou-as na secadora.

Ah! E ele também gostava da biblioteca pública da cidade!

A biblioteca era sempre vazia e silenciosa, tediosa aos olhos da maioria, mas não havia lugar na cidade onde ele aprendesse mais sobre o mundo do que ali, e às vezes perdia dias inteiros folheando livros, observando mapas... E assistindo pequenas peças de teatro de fantoches.

Segundo os livros parecia que os humanos havia sobrevivos a grandes guerras, guerras de poderes destrutivos tão colossais que ele ficou simplesmente surpreso por ainda haverem tantos humanos vivos ainda.

Na verdade, certa vez estava lendo um livro intitulado “A mágica lógica dos números”, quando ouviu duas garotas se aproximando.

—Ele é lindo não é? — cochichava uma delas.

—Parece estar sozinho. — respondeu a outra — Vamos falar com ele?

—Vamos, vamos!

Parando ao lado dele uma delas perguntou:

—Com licença, você vem sempre aqui?

—Venho e vocês duas estão me atrapalhando.

Respondeu com uma voz tão mortal que as duas garotas imediatamente debandaram-se dali, pedindo mil desculpas, e ele em fim pôde voltar à lógica matemática dos números. E quando Gintsune voltava, ele gostava de contar tudo que fizera e aprendera durante o dia para Yukari, não que ela tivesse alguma opção além de ouvi-lo.

—Ei. — Yukari o chamou.

E ele a olhou por cima do ombro, ainda se abanando com o leque.

—O que? Não me diga que eu ainda estou te desconcentrando.

—Na verdade está. — ela respondeu tensa, apertando o lápis com força desnecessária.

Gintsune arqueou as sobrancelhas.

—Mas como pode? Eu não fiz nada dessa vez!

—Como... Como eu posso me concentrar em matemática com você seminu aí atrás de mim?

Mesmo de costas era possível ver o calor que se espalhava por sua nuca e orelhas.

—Hum? — Gintsune encostou o leque ao queixo e olhou a si mesmo, com os joelhos e parte das coxas de fora, e mais da metade do tórax também — Mas o que importa está coberto, então está tudo bem.

—Não está tudo bem! — ela virou-se com o rosto vermelho, mas não conseguiu olhá-lo por mais de três segundos, mesmo que de costas, antes de virar-se novamente — Por isso será que dá para se cobrir de uma vez?

—Eu não quero, está calor. — reclamou como que fazendo birra.

Mas na verdade estava se divertindo incomodando-a, afinal ele não sentia a temperatura da mesma forma que os humanos.

—Você já me atrapalhou durante o mês inteiro, sempre me importunando com os seus caprichos, e me fazendo arrumar toda a bagunça que você causa, movendo as coisas de lugar, pondo-as em lugares estranhos, furando o papel arroz da porta...

—Eu nunca fiz nada disso.

—Você está fazendo isso agora mesmo! — acusou virando-se irritada no exato momento em que Gintsune tirava o dedo da boca e o atravessava pelo papel arroz da porta que dividia a sala do corredor onde ele estava. Yukari suspirou irritada. — Por causa disso eu tive que tirar os três últimos dias de férias inteiros só para fazer a lição, porque não me restou nenhum outro tempo, você poderia colaborar só dessa vez? — uma pausa — Além do mais o que você está fazendo aqui? Sempre passa o dia fora e volta só à noite.

—Está muito quente, nem dá vontade de sair. — ele olhou para o céu com ar cansado e, com um único movimento, transformou o leque de volta em seu cachimbo de cabo longo e o guardou dentro do quimono.

—E o que você vai fazer se alguém da minha família chegar? — Yukari perguntou apoiando o rosto numa mão. — Minha mãe ou minha avó virá daqui a pouco para casa para fazer o almoço. Sabia?

—Se alguém da sua família aparecer eu simplesmente desapareço. — ele respondeu tirando os pés da água e secando-os na barra do quimono.

—E quanto a essas fatias de melancia e a bacia de água? — perguntou, embora das fatias de melancia só restassem cascas.

—Apenas diga que estava relaxando um pouco. — respondeu enfiando o braço na manga vazia e ajeitando o quimono.

—Eu não posso dizer que estava relaxando logo depois de ter pedido folga justamente para fazer as tarefas! — ela irritou-se se virando para olhá-lo.

—Então tente arrumar alguma outra desculpa convincente — disse despreocupado enquanto colocava as meias. — Mas está realmente quente hoje, isso é normal? Já que estamos no final do verão...

—Deve ser o aquecimento global.

—O que?

Yukari franziu o cenho.

—Você continua me desconcentrando! — acusou dando as costas a ele — Eu tenho muita lição sabia?

—Que horas são?

—Quase dez.

—Entendi. Bem, eu estou indo agora.

—Indo? — estranhou virando-se e vendo-o calçar as sandálias e levantar-se já com o enorme chapéu em mãos. — Não disse que está muito quente para sair?

—Eu disse. — respondeu e apoiando uma mão no quadril começou a girar o chapéu na outra mão — Mas acontece que eu conheci uma garota... — enquanto ele falava o chapéu que girava diminuía cada vez mais de tamanho, e parecia mudar de forma também, até que de alguma forma ele estava segurando um simples boné azul. — E tenho um encontro marcado agora.

Soltando os cabelos, que escureceram conforme lhe caiam pelas costas, ele colocou o boné na cabeça com a aba voltada para trás e suas roupas transformaram-se em um par de calças jeans, tênis e camisa de mangas curtas.

—Diga àquela velha que a melancia estava realmente gostosa.

—Não é uma velha, é minha avó, tenha mais respeito! — o repreendeu.

—Ainda é velha e a melancia ainda estava gostosa. Então até depois. — ele acenou e saltou sumindo em pleno ar.

Ao menos por Higanbana ele já tinha confiança o suficiente para conseguir andar sem expor a cauda, desde que ficasse longe da lavanderia pública, claro.

Yukari cerrou os olhos.

—Como ele pode agir assim de maneira tão leviana? — perguntou a si mesma em voz alta.

E então balançando a cabeça voltou a se concentrar em seus estudos.

Parando apenas quando precisou almoçar, Yukari estudou pelo resto do dia, mas depois de um total de quase cinco horas ela percebeu que só havia conseguido fazer vinte e oito das cinquenta questões de matemática, mas tinha quase certeza que menos de dez deles estavam realmente corretos, e por fim acabou desistindo, resolvendo que faria aquilo outra hora, e passando para os exercícios de inglês.

É claro que ela sabia que se pedisse ajuda ao pai ele, com sua obsessão pelas contas, poderia resolver aquelas questões em pouquíssimo tempo, mas preferia não o fazer, primeiro porque seu pai era um péssimo professor, ele explicaria apenas uma vez, de uma forma pouco didática e muito impaciente e depois, quando ela não conseguisse fazer já de primeira, ele simplesmente tomaria o lápis de sua mão, diria “Não, você está fazendo errado! Como pode estar fazendo errado?! Eu já disse é assim que se faz!” e então faria o exercício ele mesmo, não apenas aquele, mas a apostila inteira.

Segundo que ele já estava estressado demais com as coisas que mudavam de lugar e os balneários que sempre amanheciam como se ao menos um deles houvesse sido usado — ao menos agora ele não podia se irritar com ela já que isso acontecia mesmo quando era ele a limpar os balneários.

E ela não queria incomodá-lo depois de ter pedido três dias inteiros de folga.

Estava agora tentando se concentrar no dever de estudos sociais — o de inglês acabara sendo deixado de lado ainda incompleto, tal como o de matemática, mas mesmo assim ainda havia tido um progresso maior nele do que em matemática — quando o celular ao seu lado vibrou com a chegada de uma mensagem.

Normalmente Yukari não recebia muitas mensagens, e quando recebia demorava horas ou até um dia inteiro para lê-las e respondê-las — celulares eram proibidos na escola e enquanto trabalhava, logo nada mais natural do que ela não estar com ele durante a maior parte do dia.

Mas eram férias de verão e ela estava de folga da casa de banhos, então daquela vez ela leu a mensagem na mesma hora.

Era Kaoru no LINE.

Yuki!

Eu estava conversando com Aoi-chan e ela me disse que ainda não terminou as lições dela, e já estamos no final das férias!

Para mim também faltam algumas, e você Yuki como está?

Yukari olhou para os livros e apostilas espalhados sobre sua mesa, ainda havia muita coisa a fazer, mas lá fora já era noite então logo a raposa estaria de volta e ela não conseguiria fazer mais nada, por isso só lhe restavam agora mais dois dias.

Umedecendo os lábios Yukari começou a digitar a resposta para Kaoru:

Confesso que estou um pouco atrasada.

Na verdade estou começando a ficar meio nervosa.

Poderíamos nos reunir para nos ajudarmos, o que acha da biblioteca?

Ela deixou o celular de lado e voltou a estudar, precisava resolver tudo o que fosse possível antes da raposa voltar.

Meia hora depois seu celular vibrou com a chegada de várias mensagens seguidas e deixando o lápis de lado ela pegou o pegou novamente.

Aquela noite parecia estar sendo até o auge da popularidade dela.

As primeiras mensagens vinham da parte da representante de classe Kanae Aiha.

Hongo-san me contou sobre a reunião de vocês.

Mas mesmo que passem o dia todo na biblioteca não poderão terminar tudo, e também há tarefas que não poderão fazer lá.

Como representante de classe é minha obrigação ajudá-las, vamos nos reunir na minha casa amanhã, faremos um ultimo esforço nesses dois últimos dias e a noite entre eles.

Só precisa responder se não puder vir.

As outras mensagens vinham de Kaoru:

Eu contei sobre nosso problema para a representante, e ela gentilmente se ofereceu para nos ajudar, então vamos, eu você e Aoi-chan amanhã para a casa dela.

A representante é mesmo demais!

E havia uma porção de carinhas sorridentes no final.

Dessa vez Yukari não respondeu de imediato, a representante de turma havia dito que seriam dois dias e uma noite, então ela precisava da permissão de seus pais antes de confirmar.

Ela olhou as horas, passava um pouco das 21h, logo a casa de banhos seria fechada e o jantar posto na mesa, Yukari fechou o caderno e saiu do quarto para ajudar a arrumar a mesa.

—Será que eu poderia...

Começou a dizer em meio ao jantar, e de repente a atenção voltou-se completamente para ela, exceto pela avó cuja concentração estava toda em tirar “discretamente” as cenouras cortadas em forma de flor de seu prato e, quando ninguém estava olhando — como agora — ela furtivamente as jogava no prato do filho.

Yukari engoliu em seco e recomeçou.

—Será que eu poderia dormir na casa de uma amiga amanhã?

O pai olhou-a duramente, o tipo de olhar que fazia Yukari querer atirar-se ao chão curvando-se inúmeras vezes implorando por perdão, mesmo sem ter feito nada.

—Dormir na casa de uma amiga? — ele disse — Achei que tivesse dito que estaria usando esses últimos dias de férias para terminar suas tarefas e não para  ficar passeando.

—Mas é exatamente isso. — Yukari tentou soar confiante, tentou. — Eu, Kaoru e mais uma amiga estamos indo à casa da representante de turma, e ela vai nos ajudar.

O olhar do pai tornou-se ainda mais duro.

—Quer dizer que além de ter agido de maneira totalmente irresponsável deixando seus deveres para a última hora, agora sequer é capaz de resolvê-los por si própria e está incomodando a sua representante de classe para isso?

—Eu... — uma gota de suor escorreu por detrás da orelha e pela lateral do pescoço — Não acho que seja um incomodo, ela mesma nos convidou...

—Bem, é claro que ela convidou, ela certamente é uma garota responsável e, como representante de turma, é obrigação dela cuidar dos colegas.

A esposa tocou-lhe o antebraço.

—Daisuke...

—No entanto seria ruim para essa garota se alguém se saísse mal por pura irresponsabilidade justo quando está sob os cuidados dela. — ele continuou — Então é melhor que vá, mas preste atenção Yukari, nem sempre você poderá depender dos outros, precisa aprender a ter mais responsabilidade.

—Sim pai. — murmurou.

Tendo finalmente se livrado de todas as cenouras, a avó notou a neta comendo cabisbaixa e calada, e mais do que depressa pegou a orelha do filho entre os hashis e a puxou.

—Daisuke! — sibilou — Por que está sendo tão rígido com a menina? Ela já desperdiça toda a sua juventude trabalhando feito uma escrava na casa de banhos, deixe-a aproveitar ao menos um pouco! Só porque você já nasceu velho não quer dizer que tem que roubar a juventude dos outros também!

—Mamãe! — Chiharu exclamou chocada.

Mas a mais velha a dispensou com um movimento impaciente da mão.

—O que há de mal a menina passar o dia na casa de uma colega?

—Na verdade dois dias e uma noite... — Yukari acrescentou.

A avó fez como se não a escutasse.

—E além do mais ela está indo lá para estudar, do que você está reclamando?! — com um movimento irritado ela finalmente largou a orelha do filho e se pôs a comer — Vá, minha filha, vá, não ligue para esse teu pai ranzinza, ele tem o péssimo temperamento do avô.

Carrancudo Daisuke nada disse, era o patriarca daquela família e ainda levava broncas da mãe... Foi quando olhou para seu prato e, confuso, percebeu que havia muito mais cenouras que antes.

...

Passava das três da manhã, Yukari dormia a sono alto quando algo caiu sobre si, o rosto afundou-se no travesseiro e ela começou a sufocar.

Debatendo-se ouviu a raposa dizer:

—Yukari você está dormindo agora? Está? Eu queria que bebesse comigo.

Ele estava deitado em cima dela, ele estava literalmente deitado em cima dela!

Debaixo de Gintsune a garota começou a se debater.

—Eu tentei beber com aquele camaradinha lá na pousada, na casa de banhos, mas ele fugiu de mim, ele sempre foge, eu não quis ir atrás porque não queria assustá-lo, seria ruim se ele se assustasse e fugisse, vocês iriam falir e eu teria que arranjar outro lugar para ficar e isso seria muito incomodo...

Finalmente Yukari conseguiu agarrar um chumaço do cabelo dele e, enrolando-o bem firme na mão, puxou-o com toda força para que saísse de cima de si.

—Uou! — exclamou desequilibrando-se e caindo para o lado, mas ainda assim de alguma forma não derrubando o saquê que carregava. — Está tentando me deixar careca?

Riu apoiando-se sobre um cotovelo.

Yukari ergueu o rosto, furiosa.

—E você?! Quer matar-me asfixiada?!

—Matá-la? Claro que não, os humanos é que são frágeis demais. — despreocupado ele tomou um gole de saquê.

De repente Yukari percebeu que estava deitada em sua cama lado a lado com um homem — raposa, que seja! — e surpresa rolou e caiu no chão.

Gintsune arrastou-se para a beirada da cama e olhou-a.

—O que houve?

—Nada. — respondeu ainda jogada no chão.

—Mas então, você quer beber comigo? — ele girou a taça de saquê. — Você vai beber comigo, não vai Yukari?

—Claro que não. — ela girou e sentou-se no chão — Eu sou menor de idade.

Gintsune estalou a língua.

—Que sem graça você, Yukari. — reclamou.

—Saia logo da minha cama. — Yukari levantou-se — Está chegando agora?

—Estou. — ele sorriu levantando-se e saltando para o ar — E eu tive uns encontros muito divertidos, sabe? Acho que foram umas sete mulheres e dois ou três homens ao longo do dia... — mas então fez uma cara pensativa e levou a mão livre ao ombro — As mulheres ficaram bem ousadas, não é? A última até...

—Por favor, poupe-me de suas histórias devassas. — ela o interrompeu deitando-se na cama e cobrindo-se até acima da cabeça bem quando ele já abaixava o ombro do quimono.

—Que chata você é Yukari. — ele reclamou emburrado.

E tirou de dentro do quimono uma garrafa de saquê com a qual voltou a encher a própria taça.

—E da onde você tirou esse saquê? — perguntou de debaixo das cobertas antes que ele resolvesse lhe contar a estória de uma forma ou de outra, como sempre fazia.

—O saquê? Eu achei na cozinha lá em baixo.

De repente Yukari sentou-se.

—Espere! Então esse saquê é do meu pai...!

Mas a raposa já havia sumido.


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Notas finais do capítulo

Gintsune acabou não indo embora afinal, por quanto tempo vocês acham que ele ficará na cidade? Mas será que ele realmente vai embora algum dia? kkkkk



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