A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 30
29: A corte do dragão.


Notas iniciais do capítulo

Eu ando tentando "maneirar" nas minhas notas iniciais e finais porque 1- logo elas serão excluídas do site e 2- tenho quase certeza que ninguém lê isso aqui kkkkk
Mas como podem ver, estou fracassando grandemente nesse propósito -_-'

GLOSSÁRIO:

Abura-Sumashi: literalmente “espremedor de óleo”.

Coroa kanmuri: um tipo de chapéu japonês geralmente consistindo de seda preta revestida de laca coberta com uma flâmula vertical. Foi o chapéu padrão usado por homens adultos na corte imperial japonesa, incluindo cortesãos, aristocratas e o imperador, desde o período Heian até a Restauração Meiji.

Dodomeki: “Demônio dos cem olhos”.

Dorotabo: Monge do campo de arroz lamacento.

Grou: Grou Japonês é um grou da Ásia Oriental.

Hanetsuki: um jogo tradicional japonês, semelhante aos jogos de raquete como o badminton, mas sem rede, jogado com uma raquete retangular de madeira chamada hagoita e uma peteca de cores vivas.

Hone-onna: literalmente “mulher osso”.

Koto: O koto é um instrumento musical de cordas dedilhadas, composto de uma caixa de ressonância com diversas cordas, semelhante a uma grande cítara, possui cerca de 1,80m. Atualmente é o mais popular dentre os instrumentos musicais tradicionais japoneses.

Nurikabe: “Parede de gesso”.

Sokutai: é uma roupa tradicional japonesa usada apenas por cortesãos , aristocratas e pelo imperador na corte imperial japonesa . 

Taka-onna: literalmente “mulher alta”.

Okuri-okami: lobo que escolta.

Umibozu: literalmente “monge do mar”.



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Às vezes Mayu imaginava como ela seria se fosse um youkai e agora, diante da mulher espelho, finalmente sabia.

—Surpresos? Mas posso lhes garantir que essa é minha aparência verdadeira.  — disse-lhes a outra Mayu — Mas não é bom que a olhem por muito tempo, vocês poderiam começar a ter sentimentos obscuros, devido ao meu histórico. — E recolocou sua máscara. — Os sentimentos e pensamentos sobre você foram o que me trouxeram a vida, honorável esposa, é quase como se fossemos parentes, não concorda? Mas nunca pensei que a encontraria nesse mundo, especialmente tanto tempo depois, minha senhora pesarosa assistiu seu corpo definhar lentamente enquanto sua irmãzinha se mantinha jovem e bela na memória de todos, mas se ela tivesse alguma ideia de que não era apenas nas lembranças que a bela irmã preservava sua beleza… ah, ela certamente teria cortado a própria garganta, e o ressentimento a teria tornado em uma de nós.

Satoshi abraçou Mayu protetoramente, ele não gostava nada do que estava ouvindo ali, e Akira, parecendo seguir a mesma linha de raciocínio do pai, semicerrou os olhos.

—Por que nos contou isso? Quer que confiemos em você? Você nasceu dos sentimentos obscuros da sua senhora por nossa mãe, então agora irá tentar vingá-la?

A ungaikyo olhou-o em silêncio por um momento, inclinando seu rosto de lado.

—Talvez em um passado distante, mas não agora. — admitiu. — Eu nasci da inveja e do rancor, então sempre que encontrava alguém, especialmente mulheres, com um rosto jovem e bonito eu atacava com minhas garras sem titubear… mas isso já faz muito tempo. Essas são terras tranqüilas, agora sirvo ao meu mestre e ele não é alguém que permita ou tolere a violência indiscriminada. — ela colocou suas mãos sobre o tatame, com as pontas dos dedos encostando-se e inclinou-se até encostar a máscara no chão — No entanto entenderei perfeitamente se preferirem trocar suas acomodações e serem servidos por outro, afinal a bela e preciosa senhora precisa ser protegida, não é mesmo?

O maxilar de Satoshi apertou-se, mas antes que pudesse responder àquele tom petulante e veladamente irônico da tsukumogami, palmas foram ouvidas do lado de fora do quarto.

—Perdoe-nos a intromissão, honoráveis convidados. — disse a voz de Botan — Mas já é hora de começarem a se prepararem para o banquete.

A porta de correr foi afastada para o lado, revelando Botan e Ni Juu Hachi, sentados sobre os calcanhares os aguardando do lado de fora.

Mayu arqueou as sobrancelhas.

—Agora?

—Os últimos preparativos estão quase completos, o mestre será o anfitrião e deseja ter seus convidados á mesa. — informou-os. — Oh, os meninos estão aqui também, isso é bom, temos de nos apressar.

—Mas já é madrugada! — Mayu reclamou.

Botan e Ni Juu Hachi a olharam em silêncio por um longo momento, como se não compreendessem sobre o que ela estava falando.

Mayu suspirou, a compreensão de tempo dos youkais era realmente terrível em todos os aspectos! Então sem mais opções eles foram levados para serem lavados e vestidos para o grande banquete — e somente por um milagre Mayu não adormeceu e se afogou na banheira —, dessa vez eles foram levados a um salão diferente daquele onde faziam suas refeições quando não optavam por fazê-las em seus próprios aposentos, guiados por Kanji-dono e acompanhados por vários de seus assistentes, bem como Botan e a noppera-bo, eles foram levados por uma infinidade de corredores e pavilhões até alcançarem um corredor longo e iluminado por esferas espectrais muito semelhantes àquelas que haviam em sua “cidade natal” ou àquelas produzidas pela deusa oni, no entanto, essas brilhavam em tons de verde jade e dourado, ao final do corredor estava um par de portas de madeira maciça com um imenso dragão dourado entalhado em ouro nelas, que abriram-se assim que aproximaram-se, mas somente Kanji-dono atravessou-as junto com eles.

Com duas vezes o tamanho do salão anterior, este fazia aquele parecer quase modesto, reluzindo em ouro desde o teto até as bordas dos tatames, com dragões esculpidos enroscando-se nos lintéis e frisos que pareciam quase criar vida ao refletirem a luz das esferas espectrais que também flutuavam por ali, localizado em uma alcova estava um estrado com dois suportes para braços e recoberto de almofadas vermelhas e douradas, persianas de junco com enormes pendões vermelhos decoravam a parede logo atrás.

Duas dúzias de youkais em estado de euforia enchiam o lugar, sentados em uma ampla forma de meia lua usando seus melhores trajes, Mayu nunca vira a maioria deles, com exceção do instrutor de esgrima, sentado a um canto envolvido no que parecia ser uma discussão com uma Ame-onna ao seu lado, mas o estrado e os lugares mais próximos a ele estavam vazios, foi par lá que a bakenekos parada junto à porta os guiou, ela era uma das gatas que havia atendido Satoshi e os garotos no dia de sua chegada, mas hoje parecia especialmente mais comedida.

Kanji-dono ocupou a almofada à direita do estrado enquanto Satoshi, Mayu, Akira e Akihiko foram instruídos a se sentarem respectivamente nas almofadas à esquerda, a gata mal havia retornado ao seu posto inicial junto à porta quando, quase de uma só vez, todas as vozes no salão se calaram.

Inicialmente Mayu não entendeu o porquê, até que seus ouvidos captaram não muito distante dali sinos de cobre chacoalhando-se dentro de uma bola metálica, como os sinos tocados em um templo após um pedido aos deuses.

Quando as bakenekos abriram as portas todos no salão se curvaram imediatamente, Mayu e os filhos os imitaram, já Satoshi teve um pouco mais de dificuldade com isso, pois estava com Akio atado junto ao peito, sorte a dele o mais novo não ter o temperamento do primogênito ou ele teria acabado com aquele grampo cravado no peito ou na jugular.

Os primeiros passos do recém chegado ecoaram pelo salão e de repente aqueles pareciam ser os únicos sons no mundo, pois inclusive as respirações foram suspensas e até mesmo o tempo pareceu passar mais vagarosamente, enquanto calmamente o recém chegado atravessava o salão até chegar ao estrado e se acomodar ali.

—Ergam-se meus amigos! — disse uma voz jovial — É bom estar de volta!

Como se o tempo voltasse a correr, os youkais se ergueram sorrindo e prestando suas saudações de boas vindas ao mestre recém chegado, mas foi a voz de Kanji-dono que ressoou acima de todas as outras, embora ele não tenha erguido-a:

—É um grande prazer tê-lo novamente conosco mestre.

Apoiando os braços sobre o suporte o mestre voltou-se sorridente para o intendente, enquanto brincava distraidamente com um leque cerimonial entre suas mãos, seu rosto era jovem e bonito, com o nariz reto, sobrancelhas arqueadas e bochechas altas, ele tinha olhos de fênix: retos e arqueados nos cantos esternos. De coloração negra tais como os cabelos longos e lisos soltos por debaixo de uma coroa kanmuri que desciam até o final de suas costas… ou pelo menos pareciam negros a princípio, mas sempre que a luz se refletia neles, eles pareciam tornar-se verdes escuros, usava um sokutai púrpura e seu cinto e as bainhas de suas roupas estavam ricamente bordadas em vermelho e fios de outro dando vida a mais dragões.

Afinal o que ele era? Satoshi olhava-o desconcertado, o mestre daquele castelo exalava uma energia muito mais poderosa de tudo o que ele já conhecera antes.

—O umibozu estava realmente muito agitado dessa vez. — disse o mestre com tom leve — Mas a princesa lhe mandou lembranças, Kanji.

As faces de Kanji-dono coraram, a cor acentuando-se pelo tom de seu cabelo, e por um momento ele permitiu-se sorrir.

—Fico honrado, meu senhor.

Acenando afirmativamente o grande mestre ergueu seu leque cerimonial e gritou com voz grave:

—E!

Dezenas de criadas irromperam com bandejas de comidas, as bakenekos estavam entre elas, e também Botan e outros espíritos das flores, assim como um quarteto de noppera-bos, entre elas aquela que costumava atendê-los e tomar conta de Akio, e até algumas crianças carregando jarros de água e garrafas de saquê.

O salão retornou à vida e os youkais voltaram a conversarem animadamente entre si enquanto comiam, de maneira quase selvagem, alguém gritou uma saudação “ao mestre!” e outros gritaram e grunhiram suas saudações em resposta.

E então o mestre voltou-se pela primeira vez para “seus convidados” à sua esquerda e seu sorriso instantaneamente desapareceu e foi substituído por uma expressão de genuína surpresa.

 —Esses são eles? — perguntou ao seu intendente sem desviar o olhar deles ou sequer piscar.

É claro que estava surpreso, eles não eram os seus aguardados convidados afinal, eram apenas um grupo de penetras naquele opulento castelo — não que não tenham tentando explicar o mal entendido uma dezena de vezes antes de darem-se por vencidos e “seguir com o fluxo das coisas”.

—São, meu senhor. — Kanji-dono respondeu sem parecer dar-se conta da surpresa de seu mestre.

—Ah sim, é claro. — ele piscou e riu desconcertado — Queiram perdoar-me pela minha perplexidade, caros amigos.

—Senhor! — Kanji-dono exclamou chocado.

Afinal era inconcebível que uma criatura “tão superior” pudesse pedir perdão a alguém.

—Pelo contrário, nós é que pedimos perdão. — Satoshi apressou-se a dizer, inclinando a cabeça. — Nunca foi nossa intenção tomar o lugar de seus aguardados convidados.

—Tomaram o lugar deles? — repetiu surpreso, e então olhou a volta como se procurasse por alguém antes de voltar-se para Kanji-dono novamente — Kanji, não são esses meus convidados?

—São eles. — Kanjo-dono reafirmou. — Os honoráveis convidados chegaram dois dias após sua partida.

—Tentamos explicar o mal entendido, mas não nos deram ouvidos. — Mayu argumentou.

—Mal entendido? — repetiu com os olhos fixos nela, na verdade agora lhe parecia que aquele tempo todo fora somente a ela que ele estivera encarando. — Vocês não vieram desde as terras dos onis a sul daqui? Não são amigos de Ohika-chan?

Hika…?

—Hikari-san? — Satoshi quis confirmar — Sim, mas como sabe sobre isso?

A mulher sentada ao lado de Kanji-dono emitiu um grito fino e agudo quando a menina que a servia derrubou-lhe vinho de arroz sobre as roupas, mas então lançou um olhar envergonhado ao mestre e, por fim, acabou por simplesmente tomar o lenço das mãos da menina e dispensá-la enquanto fazia o melhor possível para secar-se.

—Porque foi ela mesma que me falou sobre vocês, é óbvio! — o mestre estendeu a mão à Kanji-dono que, imediatamente, tirou um papel de carta de dentro da manga e entregou-lhe para que pudesse ler diante de seus convidados: — “Alguns amigos meus estão indo em direção às suas terras, eles provavelmente chegarão antes que a lua vire novamente, são cinco deles, uma família como nenhuma outra nesse mundo. Pela estima que me tem, faça-me o favor de acolhê-los”. Foi o que ela disse. Se forem vocês aqui, então não houve engano algum. — sorriu-lhes entregando a carta a Satoshi para que ele a lê-se com seus próprios olhos, e então a repassasse à esposa e aos filhos — Geralmente ela só é capaz de prever o próprio futuro, a menos que lhe peçam diretamente por uma visão, então não sei como, mas parece que de alguma forma Ohika-chan anda a rastreá-los!

Arregalando os olhos Mayu automaticamente levou a mão aos cabelos ao mesmo tempo em que Akihiko agarrava uma das próprias asas.

—Mas se somos os seus convidados, por que ficou tão perplexo ao nos ver? — Akira perguntou de forma tão indiscreta e repentina que recebeu uma cotovelada da mãe.

—Ah, lamento muito por minha indiscrição. — o mestre sorriu constrangido, Kanji-dono voltou a repreendê-lo, mas ele seguiu imperturbável: — É só que o rosto da dama pareceu-me tão surpreendentemente familiar que fiquei abismado, são praticamente duas conchas que se combinam.

—Refere-se à ungaikyo que nos serve em nossos aposentos? — Mayu indagou.

Kanji-dono arregalou os olhos ao ouvir aquilo, mas tratou de disfarçar sua reação o quanto antes.

 

 

 

As mulheres sem rosto que antes serviam os convidados retornaram ao salão carregando instrumentos de corda e percussão e começaram a tocar, e o professor de esgrima — já visivelmente embriagado aquela altura — ergueu seu copo no alto gritando para que tocassem mais alto.

—Então estão alocados no quarto de Oma-chan, sim, é a ela que me refiro. — assentiu — Certamente ela também ficou surpresa, não é de seu feitio tirar a máscara diante de qualquer um.

—Mas não é o rosto de mamãe que se parece com o dela, é o dela que se parece com o de mamãe! — declarou Akihiko partindo ao meio uma pata de caranguejo aranha entre as mãos.

Agora que a história de “convidados honoráveis” havia sido esclarecida eles haviam relaxado o suficiente para comer, o que era ótimo, pois estavam famintos e cada um dos garotos era capaz de comer em uma única refeição três vezes mais do que a mãe conseguiria comer durante um dia inteiro… na verdade esse era um traço comum à maioria dos youkais, já que as criadas não paravam de correr de um lado para o outro, servindo novas doses de saque, trazendo e retirando pratos.

O mestre balançou a cabeça lentamente de um lado para o outro, com um sorriso pairando nos lábios.

—Isso seria impossível, a menos que… — foi lentamente parando de falar, conforme seus olhos focavam-se novamente no rosto de Mayu, a expressão surpresa retornou-lhe — Então você é a Mayu real que foi levada? Oma-chan disse-me que herdou seu nome e aparência da original, mas como é possível? Tornou-se uma de nós…? Não, não é isso. — seus olhos estavam novamente vidrados em Mayu, e então lentamente percorreram dela para Satoshi e novamente para ela. — Oh, já entendi. Que interessante! Realmente fiquei curioso com a passagem da carta de Ohika-chan que dizia “uma família como nenhuma outra”, não é incomum ver meio youkais nessa região então não podia ser isso… porém jamais pude imaginar que ainda poderia haver uma humana nesse mundo! É fantástico, realmente! Kanji lembre-me de escrever a Ohika-chan mais tarde.

—Sim, meu senhor.

—Agora já sei que a dama é a Senhora Mayu. Seria prudente apresentar-me também: Eu me chamo Ryosuke.

—Satoshi. — Satoshi inclinou a cabeça — Hã… Mayu, como o senhor já sabe, e nossos filhos: Akira, Akihiko e Akio.

Indicou cada um dos garotos.

—Encantado. Onde se esconderam durante tanto tempo?

—Em um aglomerado selvagem aos pés de uma montanha. — Satoshi respondeu servindo-se de uma dose de saquê.

—E o que os fez abandonar esse lugar e partir para as andanças? — o mestre perguntou tão envolvido no assunto que parecia ter-se esquecido de comer.

—Segurança. — Satoshi respondeu. — Entre outras coisas.

—Entendo, é compreensível. — Ryosuke-sama lançou mais um olhar de relance à Mayu — A terra dos onis é bastante protegida, e Ohika-chan parece ter-se afeiçoado a vocês, no entanto é de se imaginar que eles já tenham problemas o suficiente, mas podem ficar aqui pelo tempo que desejarem, são meus convidados, é claro.

—É muito gentil de sua parte, senhor. — Mayu agradeceu — Mas a verdade é que também estamos procurando por um amigo nosso que desapareceu no verão passado.

—Lamento muito saber disso.

—Ele é uma raposa prateada. — afirmou Akira — Geralmente atende como “Gintsune”.

—Uma raposa é? — Ryosuke-sama passou a mão sobre o queixo, pensativamente — Raposas são seres independentes e poderosos, além de terem certa tendência à desordem e ao vandalismo, portanto lamento dizer, mas temo que não irão encontrar nenhuma em minhas terras, no entanto ouvi alguns relatos de travessuras nas proximidades, muitas delas atribuídas a raposas, começaram… quando foi Kanji?

—No início do inverno passado, meu senhor.

—Isso mesmo. Pode ser que alguma delas seja prateada. É a pelagem mais comum entre as raposas afinal. Mas preciso alertá-los: mesmo que as procurem, pode ser que isso se revele uma busca infrutífera. — lamentou-se suspirando — Eu mesmo já as procurei, devido aos transtornos que causam, embora nunca tenham feito nada de muito grave, mas nunca encontrei ninguém, apesar de obviamente haver alguém ali… em outras palavras, a raposa que está ali é uma feiticeira poderosa capaz de se ocultar até mesmo de mim, e ela só se revela a quem for de seu interesse.

Gintsune de fato tinha lá seus truques, mas ainda assim aquilo não se parecia em nada com ele, no entanto, Satoshi mostrou-se cego a esse fato:

—Então o senhor sabe a região onde elas estão. Certo?

—Sim, eu sei aproximadamente, mas…

—Perfeito! Poderia levar-me até lá? Ou ao menos indicar-me em um mapa?

—Claro, mas estou dizendo-lhe, se as raposas ali não quiserem serem encontradas, elas não serão, mesmo que leve uma centena de  dias buscando-as. — ele olhou para Mayu e tamborilou com o leque cerimonial sobre as pernas — Gostaria de um conselho?

—É claro. — Satoshi concordou ansioso.

—Quando for procurar as raposas, leve a sua senhora convosco. — finalmente lembrando-se de que havia uma bandeja de comida ainda intocada diante de si, Ryosuke-sama deixou o leque cerimonial de lado e comeu um punhado de arroz.

Satoshi empertigou-se surpreso.

—Por quê?

—Raposas são criaturas invariavelmente curiosas, meio youkais são bem comuns nessas terras, como eu já lhes disse, portanto não acho que levar seus filhos chamaria a atenção delas, mas a visão de uma humana genuína depois de tantos anos… ah, isso certamente as faria pular bem diante dos seus olhos. Então poderia confirmar se alguma delas é o seu amigo desaparecido, ou ao menos perguntar-lhes se sabem alguma coisa a respeito dele.

Aquela altura quatro das bakenekos já haviam se sentado no colo de convidados do banquete dando-lhes de comer e beber diretamente na boca, outras duas dançavam em meio ao salão com as saias dos quimonos levantadas deixando suas pernas à mostra e completamente esquecidas de seus deveres, os convidados do banquete estavam todos se embebedando e rindo cada vez mais alto, e quando uma das bakenekos puxou para dançar a Ame-onna, que antes discutia com o instrutor de esgrima, e as duas escorregaram no chão com a água que escorria de seus cabelos e roupas, as gargalhadas se tornaram ainda mais estrondosas.

Aquilo estava rapidamente se tornando uma farra desordenada… do jeito que os youkais gostavam.

Ryosuke-sama achou graça quando Mayu arrancou uma taça de saquê das mãos de Akira e, pouco depois do amanhecer, quando um grupo de convidados começou um jogo perigoso de arremessar punhais, ela pediu licença para retirar-se junto com o bebê — que inacreditavelmente dormiu o tempo todo — e Kanji-dono acenou para que Botan se aproximasse e os acompanhasse de volta aos seus aposentos.

Estava tão exausta que dormiu pela manhã inteira e não chegou a ver quando Satoshi e os garotos regressaram, mas aquela folia toda no salão ainda perdurou por outras nove noites e dez dias inteiros… e somente após isso é que Satoshi resolveu sair do castelo e recomeçar sua caça a raposas novamente, mas acabou optando por não seguir o conselho de Ryosuke-sama, e deixar Mayu no castelo.

—Tem certeza disso? — ela reclamou vendo-o amarrar as sandálias.

—A raposa que está lá pode ser Gintsune, e isso seria ótimo, vou socá-lo por ser um cretino e desaparecer dessa forma, depois pegar meu chapéu de volta, mas pode também não ser e isso poderia ser perigoso. E se for hostil?

Aquela resposta não a confortou, e Mayu sentou-se sobre os calcanhares irritadamente.

—Então vai se por em risco sozinho?!

—Não foi o que eu disse.

—Foi exatamente o que disse!

Satoshi suspirou.

—Ouça… Ryosuke-sama disse que as raposas ocultas lá nunca se demonstraram hostis até agora, não é? Então não há o que se preocupar no que diz respeito a mim, eu só… — ele passou a mão suavemente por sua bochecha — Não sei que reação elas poderiam ter se vissem uma humana.

Mayu sorriu de lado pondo a mão sobre a de Satoshi.

—Você é tão egoísta.

Declarou inclinando-se para beijá-lo nos lábios.

—Eu também te amo. — ele sorriu ao afastar-se e então lhe beijar a testa suavemente.

Infelizmente o instrutor de esgrima havia sido um dos últimos a deixar o salão — ou melhor, ser arrastado bêbado e inconsciente como lhe disse Botan — portanto ele não estava em condições de dar aulas naquele dia, de forma que hoje Mayu estava passeando pelos jardins junto a Botan e a Noppera-bo, ouvindo histórias sobre o banquete.

—Kanji-dono ficou tão furioso que não se sabia o que era sua cara e o que eram seus cabelos, de tão vermelho, e o mestre se engasgou tentando não rir até que saiu macarrão por seu nariz. — Botan contou-lhe entre risadas. — Parece que o mestre constantemente se esquece de quem ele é, e a sua posição.

—Isso foi antes ou depois de um dos convidados acabarem com os cabelos em chamas e as mulheres sem rosto correrem para apagar o incêndio jogando-lhe álcool? — perguntou com um sorriso contido.

Ao seu lado a mulher sem rosto ficou com a região que deveria corresponder às bochechas completamente vermelha.

—Oh, foi muito antes. — Botan gesticulou com a mão — Quando aquele velho bêbado pegou fogo, o mestre já não estava mais nas comemorações, ele nunca fica mais que três dias, sabe? Sempre diz a primeira coisa que lhe vem à cabeça para poder se retirar, e trata-se de desculpas tão tolas, coisas como “preciso contar as estrelas no céu”, na verdade foi uma surpresa quando ele próprio não se ofereceu para acompanhá-la de volta aos seus aposentos, pois essa seria a desculpa perfeita para se retirar e não voltar mais…

Um chiado atrás delas chamou a atenção de Mayu, mas quando ela virou-se viu apenas alguns arbustos se mexendo, intrigada, estava prestes a perguntar quem estava ali, quando Botan exclamou ao seu lado:

—Mestre! Bom dia!

Ela e a mulher sem rosto curvaram-se respeitosamente.

Ryosuke-sama estava parado sobre uma ponte em arco, vestindo roupas de algodão grosseiro cor cinza chumbo, simples e desgastadas, com os cabelos torcidos em um nó descuidado à altura da nuca, ele passava uma imagem tão diferente da rica e poderosa com a qual se apresentou durante o banquete que, por um segundo, Mayu quase não o reconheceu.

Aproximando as mãos fechadas em concha do rosto, Ryosuke-Sama murmurou algumas palavras ali, antes de erguê-las e abri-las no ar, deixando alguma pequena criatura branca sair voando, só então ele voltou-se sorrindo para elas.

—Minhas senhoras, eu estava mandando uma mensagem para Ohika-chan, avisando-a que seus amigos chegaram em segurança, mas ela provavelmente já sabe disso. — comentou tranquilamente — Estão apreciando um passeio pelos jardins?

Sob a luz do sol, seus cabelos refletiam em tons indistintos entre verde escuro e verde jade, e seus olhos haviam tornado-se claros e esverdeados com um estranho brilho por trás, como se fossem feitos de veneno.

—São muito agradáveis, Ryosuke-sama. — respondeu educada.

—Ah, por favor, me chame de Ryo. — ele pediu aproximando-se.

—Mestre!

Botan exclamou chocada, fazendo-o sorrir.

—Todos os meus companheiros aqui, como a senhora pode ver, são bastante formais e excessivamente gratos a mim, por isso curvam-se, chamam-me “mestre” e enfiam-me em roupas pesadas, quentes e perfumadas, mesmo que eu diga que está tudo bem se não fizerem nada disso.

—Claro que não está! O senhor salvou vário de nós e nos mantêm seguros, lhes devemos nossa devoção e respeito. — Botan argumentou seriamente com a noppera-bo concordando efusivamente ao seu lado.

Ryosuke-Sama piscou de forma brincalhona para Mayu, como quem dizia “está vendo só?”.

—Esse é o pequeno terceiro filho? — ele estendeu as mãos para a mulher sem rosto, que lhe entregou o bebê sem relutância, algo que nunca fazia, exceto com Mayu e Satoshi. — Eu não tive a chance de dar uma boa olhada nele durante o banquete, é um menino bonito. — olhou a volta — Onde estão os outros dois?

—Explorando, voando e jogando por aí. — Mayu sorriu — O professor de esgrima está um pouco indisposto hoje, então estão aproveitando a folga para se distrair.

—É normal que os meninos queiram explorar. — Ryosuke-sama devolveu o bebê a Mayu — Kanji me contou que seu marido voltou a caçar raposas hoje, mas pelo que estou vendo ele não ouviu meus conselhos.

Porque Satoshi era tão cabeça dura quanto uma rocha, Mayu forçou um sorriso.

—Ele se preocupou que elas pudessem se hostis.

—Provavelmente não, mas eu o entendo, é um homem cauteloso e estou honrado que confie a nós a sua segurança. — ocultou as mãos nas mangas — Mas Kanji também me contou que, desde que vocês chegaram, ele tem sido o único a explorar além dos muros do castelo, é verdade? — Quando Mayu deu de ombros, ele assentiu — Ouça, eu estava indo agora à cidade, tenho algumas pendências por lá, por que não me acompanha? Sim, vá e troque essas roupas por algo mais confortável, eu conheço uma loja que vende um chá ótimo.

Mayu recuou surpresa, arregalando os olhos sem saber o que dizer.

—Não é necessário, está tudo b…

Mas sem sequer escutá-la ele voltou-se para as youkais:

—Botan, Haru, ajudem-na com isso, por favor. E localizem os meninos, tenho certeza que eles gostarão de vir também. Estarei esperando-os no portão principal.

De repente um redemoinho de vento ergueu-se aos seus pés, e quando se desfez Ryosuke-Sama já havia partido.

—Às vezes o mestre é mais menino do que homem.

Botan comentou bem humorada enquanto a mulher sem rosto guiava Mayu, com uma mão em suas costas, pelo caminho de volta, sem lhe dar muita escolha.

—Eu não sabia que seu nome era Haru. — comentou para a mulher sem rosto, que se limitou a assentir.

—Há quatro noppera-bo no castelo, nenhuma delas tinha nome, então o mestre as nomeou “Haru”, “Natsu”, “Aki” e “Fuyu”, embora elas sejam musicistas muito talentosas e toquem nos banquetes, geralmente atuam como cozinheiras e lavadeiras aqui no castelo, mas Haru sempre foi ótima com crianças. — Botan contou-lhe.

A boa notícia é que Mayu pôde se livrar daquelas roupas requintadas. Numa coisa Ryosuke-Sama tinha razão: elas eram pesadas, quentes e perfumadas demais. Por outro lado as roupas simples com as quais foi vestida, não contavam com nenhum tipo de cauda que protegesse seus longos cabelos do atrito com o solo, de forma que eles precisaram ser penteados e presos à moda shimada, o que foi uma ótima desculpa para Botan adorná-los com grampos e uma fivela de peônias, embora não tenha conseguido convencê-la a se maquiar.

—Isso me traz lembranças. — comentou tocando os cabelos bem arrumados enquanto observava seu reflexo no espelho, lembrando-se de certo festival humano ao qual foi acompanhada de uma raposa e um tengu em tempos antigos…

—Era assim que se portava entre os humanos? — Botan perguntou interessada.

—De forma alguma. — a ungaikyo respondeu, espiando-as de dentro do espelho, substituindo o reflexo de Mayu pela imagem de sua máscara.

—Honorável esposa, não vai precisar de sua máscara aqui, a cidade é segura. — Botan pôs a mão sobre a sua quando ela estendeu-a para pegar a máscara que Haru entregava-lhe. — Ninguém vai atacá-la, especialmente com o mestre ao seu lado, não há o que temer.

—Entendo, mas me sinto mais confortável assim. — ela sorriu-lhe e colocou a máscara — Já faz muito tempo que humanos não são vistos nesse mundo.

Da mesma forma também não conseguiram convencer seus filhos a deixarem suas máscaras para trás, e tampouco suas espadas, mas ainda assim eles estavam inegavelmente radiantes quando acompanharam a mãe até o portão principal, onde encontraram Ryosuke-sama os aguardando com um grande chapéu de palha na mão, seus acompanhantes haviam sido dispensados.

—Eu trouxe isso para protegê-la senhora, mas vejo que não é necessário…

—Eu agradeço sua atenção.  — aceitou cortesmente o chapéu e, quando o colocou, um véu caiu-lhe até abaixo dos joelhos, ocultando-a juntamente com Akio, amarrado às suas costas, o grampo de Botan havia sido tirado temporariamente das mãos dele por segurança.

—Aonde vamos? — Akihiko perguntou ansioso. — Poderemos voar?

—Não vejo por que não, eu preferiria que não se afastassem demais, mas não há como se perderem. — Ryosuke-sama assentiu. — E tomem cuidado com essas espadas, vocês certamente sabem como usá-las, mas eu não gostaria de ter ninguém empalado acidentalmente dentre os meus.

—Não vamos nos afastar, precisamos cuidar de mamãe e do bebê. — Akira jurou solene.

Mas seus olhos seguiam frenéticos para todos os lados, como se tentassem capturar de uma só vez tudo do que haviam sido privados no momento de sua chegada.

—Que meninos tão devotados, certamente a senhora é uma mãe orgulhosa. — comentou voltando-se para Mayu — Senhora eu pensei que poderíamos caminhar um pouco, mas se preferir posso pedir que lhe tragam uma montaria, ou também tenho dúzias de liteiras e carruagens, tenho inclusive uma carruagem aberta que vai achar bastante interessante, ela…

Mayu ergueu a mão.             

—Apenas caminhar está bem.

—Compreendo.

Quando ele indicou-lhe com um gesto que caminhasse ao seu lado, os dois garotos voaram, fazendo a mãe perdê-los de vista, embora vez por outra pudesse ver suas sombras circundando-os.

Ryosuke-Sama havia dito-lhe que tinha “algumas pendências” para resolver na cidade, mas aos olhos de Mayu tudo pareceu deliberadamente com um simples passeio: ele levou-os a um boticário, um artesão de máscaras, um forjador de espadas, um fabricante de quimonos, uma casa de chás, uma gigantesca hospedaria, uma casa de banhos… e a cada lugar que iam era sempre a mesma coisa: Ryosuke-Sama era recebido com grande entusiasmo, fosse por homens, mulheres, velhos ou jovens — um grupo de crianças menores chegou até mesmo a correr aos gritos e derrubá-lo fazendo a mãe rir envergonhada enquanto tirava os pequenos de cima dele —, sendo sempre muito hospitaleiros eles os convidavam a entrar, comer e beber, Ryosuke-sama lhes falava sobre trivialidades de sua recente viagem ao litoral… e o povo, por sua vez, lhe contavam sobre as duas taka-onnas que brigaram violentamente no meio da rua uns tempos atrás, a loja de tecidos de uma hone-onna que havia se incendiado, o dorotabo que arrumou confusão com um grupo de koro-pok-gurus… e ao fim nunca os deixavam ir embora sem levarem consigo um presente.

—Os habitantes são muito generosos. — Ryosuke-Sama comentou enquanto se dirigiam ao último destino deles nos limiares da cidade, estavam todos carregados de obentos e embrulhos contendo quimonos e obis novos, pentes, kanzashis, máscaras, sandálias… — Lamento por fazê-los carregarem também, mas às vezes mal consigo andar com os braços tão carregados.

Uma pesada trouxa estava amarrada à parte de trás de seu pescoço, outros duas pendiam de cada mão, o nó em seus cabelos haviam se desfeito e agora eles caiam-lhe livres sobre os ombros e costas.

—Eles não precisavam ter-nos dado tudo isso. — comentou tentando não parecer ingrata, enquanto ajeitava melhor o embrulho que tinha nos braços.

—Isso é o que sempre digo a eles, e ainda há mais por vir, pode acreditar. — Ryosuke-sama balançou a cabeça. — Poderia esperar um pouco, por favor?

Quando ele deixou os embrulhos no chão, Mayu pensou que queria prender os cabelos, mas ao invés disso Ryosuke-sama retirou de dentro do quimono um pedaço de pergaminhos com estranhos símbolos pintados em naquim, lambeu toda a sua extremidade e habilmente dobrou-o ao meio entre as palmas unidas com o lado onde os símbolos estavam pintados para dentro.

—O que está fazendo? — Akihiko perguntou pousando junto ao irmão diante de Ryosuke-sama.

—Um truque de mágica — respondeu erguendo o pergaminho acima da cabeça e sacudindo-o no ar.

Os símbolos pintados no pergaminho desprenderam-se do papel e dançaram no ar, crescendo e tomando forma até se tornarem cinco criaturas humanóides altas e esguias que, por um instante, fizeram Mayu recuar, pois pareciam-se bastante com o tsukumogami que a atacara naquela noite a qual agora parecia ter-se passado tanto tempo atrás… mas aquele era branco, e estes cinco eram negros.

—Levem nossas bagagens de volta ao castelo. — Ryosuke-sama ordenou às cinco criaturas.

Inclinando as cabeças, as criaturas silenciosamente tomaram a maior parte dos embrulhos das mãos de todos, até que confundiram Akio com um pacote também, e tentaram livrar Mayu de “seu peso” também.

—Oh não, não, não, isso é um bebê, não uma trouxa! — protestou recuando e desviando-se curvada para frente com o chapéu oscilando em sua cabeça, enquanto Akio ria às suas costas, como se estivesse se divertindo com a situação.

Os garotos se puseram entre ela e as criaturas, que continuaram a tentar rodeá-los para se aproximarem, embora nenhum de seus movimentos denotasse qualquer agressividade.

—Tudo bem, isso basta. — Ryosuke-Sama sorriu erguendo as mãos num gesto amigável, ao que as criaturas se detiveram e, inclinando suas cabeças com assentimento, foram embora com o que já tinham, e Mayu exalou um suspiro de alívio. — São meus shikigamis, não há com o que se preocupar, eles são inofensivos… embora bem pouco inteligentes, lamento dizer. — Ryosuke-Sama explicou-se pondo a mão em seu ombro — Vamos continuar?

Quando Mayu anuiu, Akira e Akihiko abriram suas asas e saltaram de volta para os céus.

Certa vez, enquanto passava por aquelas terras, Ryosuke-sama salvou um grou que estava sob ataque, ele lhe contou enquanto andava, o grou estava bastante ferido e ele não tinha certeza se sobreviveria, mas ficou para cuidar dele, e durante esse meio tempo acabou ajudando, cuidando e salvando outros youkais.

—Meu coração é compassível, entende? — justificou-se.

Youkais, em geral, são criaturas bastante gratas quando alguém lhes salva a vida e muitos daqueles youkais permaneceram na região, fosse por gratidão a Ryosuke-sama ou por sua proteção, outros tantos começaram a migrar para aquela região em busca de sua proteção, e outros vinham espontaneamente para jurar-lhe lealdade por simples admiração… quando Ryosuke-sama deu por si, eles estavam lhe construindo um castelo.

—E então como eu poderia partir? — perguntou retoricamente á Mayu, com as mãos ocultas em suas mangas enquanto caminhavam — Eles necessitavam de mim aqui, e aqui permaneci.

—E quanto ao grou?

—Ele passa muito bem. — Ryosuke-sama anuiu — Trata-se de Kanji. — apontou adiante — Chegamos.

Fosse por terra, água ou ar, alguém estava sempre rondando o perímetro, por isso era muito difícil entrar ou sair daquelas terras sem ser percebido, Ryosuke-sama explicou-lhe, diante deles um par de imensas portas se abriam dando acesso à floresta, com dois guardas de sentinela; um deles era um dodomeki, com o corpo coberto de olhos, que estava descalço e nu da cintura para cima, o outro era escuro como fumaça e tinha traços indistintos, como se Mayu estivesse vendo-o através de um denso nevoeiro, exceto pelos olhos, incandescentes como carvão em brasa, e ambos se ajoelharam ao vê-los — na verdade o dodomeki se ajoelhou, enquanto seu companheiro desfez-se em fumaça e solidificou-se novamente já de joelhos.

 

 

 

 

 

 

 

—Mestre. — disseram.

—Levantem-se companheiros. — Ryosuke-sama disse-lhes, erguendo a mão numa saudação amigável. — Podem relaxar.

E assim eles o fizeram, apoiando-se em sua lança o dodomeki comentou:

—Já estávamos nos perguntando quando o senhor apareceria por aqui, mestre. — seus olhos se moviam de maneira desconcertante, todos ao mesmo tempo e em várias direções, mas parte deles estava fixada nela — E quem é essa? Uma lembrancinha da sua ultima viagem?

—Por que ela está se escondendo dessa forma? — perguntou seu companheiro, muito embora Mayu não conseguisse distinguir boca alguma se movendo — Aposto que é uma belezinha.

A forma como ambos falavam e riam fez Mayu mexer-se desconfortável, puxando mais as roupas contra o corpo, Ryosuke-sama pigarreou.

—Não, ela é convidada em meu castelo e…

—E o mestre alocou a senhora em seus próprios aposentos? — questionou enenra. — Para deixá-la confortável, é claro.

As risadas dos guardas tornaram-se quase indecentes, e Mayu agradeceu por estar oculta sob sua máscara e o véu do chapéu e eles não poderem vê-la ruborizando.

—Ela está junto com os filhos e o marido. — Ryosuke-sama salientou.

Foi quando Akira e Akihiko pousaram cada um de um lado seu, mas os dois guardas não lhes deram muita atenção.

—Bem, e esses devem ser os filhos, mas não estou vendo nenhum marido por perto.

O sorriso do dodomeki despertou uma careta em seus filhos.

—Papai está na floresta. — Akihiko respondeu bravo.

—Está? Muita gente vem e vai da floresta. — o dodomeki estalou a língua — Oi, o Shigeru não tem esposa e nem filhos, ou tem?

—Não, não tem. — respondeu o enenra. — Devem ser filhos daquele cara que estava com seu irmão uns dias atrás, ele estava ocultando as asas, mas era um tengu sem sombra de dúvida.

—Ah, verdade. — o dodomeki estalou os dedos — Ele passou por aqui hoje também, mas estava só, e ainda não voltou… nem todos que entram na floresta saem tão rápido quanto gostariam, sabia disso? Mas quem diria que ele seria ousado ao ponto de deixar sua solitária esposinha com nosso mestre…

—“Nem todos que entram na floresta saem tão rápido quanto gostariam”. — Ryosuke-sama interrompeu-o, dando um passo a frente — Pode-me falar mais sobre isso, Izumi?

—É claro, mestre. — concordou o dodomeki, Izumi.

Ao que parecia, desde o final da primavera, vários youkais que entraram na floresta só conseguiram sair dela muitos dias mais tarde, outros voltavam quase no mesmo instante em que entraram, bastante confusos, pois juravam que haviam seguido em linha reta, então como poderia já estar de volta? Mas o principal é que nenhum deles se dava conta de quanto tempo realmente havia se passado, youkais têm uma péssima noção de tempo, mas aquilo já era um absurdo.

Poucos dias atrás, uma velha havia encontrado o caminho de volta e estava furiosa, o okuri-okami deveria tê-la escoltado por parte do caminho, mas ao invés disso ele desaparecera sem deixar vestígios, assim como todos os bens dela, e ela passara muitas e muitas primaveras perdida naquela floresta… mas ela não havia passado nem mesmo duas horas ali.

—E o okuri-okami só retornou ontem, mestre, ele perdeu-se na floresta! Pode imaginar uma coisa dessas? — o enenra questionou abismado.

—Foram raposas? — Mayu arfou.

—Raposas? — Izumi repetiu — Seu marido também perguntou isso, senhora… — de repente ele parou e, de uma só vez, seus olhos focaram-se unicamente nos garotos e então se voltaram repentinamente para ela, num ato ainda mais bizarro e desconfortável do que já era observar todos os seus olhos se movendo em direções diferentes — Esses meninos são meio youkais…? Mas se o pai era aquele tengu então a senhora…

—Não pode ser. — espantou-se o enenra — Mestre, onde encontrou uma coisa dessas?

—Nossa mãe não é “coisa” alguma! — protestou Akira.

—Uma humana nesse mundo tantos anos depois de todos terem desaparecido…!

Izumi estendia lentamente uma mão, com um olho arregalado de curiosidade espiando em sua palma, em direção a Mayu, quando Ryosuke-sama o deteve, segurando-lhe o pulso.

—Izumi, onde estão seus modos?

—Claro, perdoe-me mestre! — ele recuou com todos os olhos arregalados — Eu fiquei surpreso, Misaki não me disse nada sobre isso!

Ryosuke-sama anuiu voltando-se para eles novamente.

—É melhor retornamos agora. — disse-lhes — Eu pretendia levá-los para almoçar em um de meus restaurantes favoritos, mas… é melhor irmos direto para o castelo. Pressinto que as coisas ficarão bem agitadas por aqui.

“Agitadas” acabou revelando-se apenas um pequeno eufemismo, quando Gintsune andava pelas ruas os youkais o temiam e afastavam-se instintivamente, mas com Ryosuke-sama era justamente o oposto: eles o cercavam, implorando sua atenção e estendendo as mãos para tocá-lo… Mayu só compreendeu que Ryosuke-sama não era o alvo quando ele passou o braço sobre seus ombros e a puxou para mais perto de si, estendendo a mão livre à frente pedindo que se afastassem.

Mas eles continuavam cercando-os, queriam vê-la, tocar em seus cabelos, roupas, pele… exatamente como fora nos primeiros dias no castelo, mas cem vezes pior, quando o chapéu foi arrancado de sua cabeça Mayu sentiu seus pés deixarem o chão repentinamente e a máscara também caiu de seu rosto.

—Mamãe, a senhora está bem? — Akihiko perguntou segurando-a por sob as axilas.

—Tome cuidado com seu irmão! — respondeu olhando-o espantada.

Mas ela não estava totalmente fora de alcance ainda, muitos youkais eram altos, ou capazes de se esticar ou voar também, eles estavam-na cercando-a novamente quando Mayu avistou Akira levar a mão ao cabo da espada… e de repente Ryosuke-Sama levou dois dedos aos lábios e emitiu um assovio alto e agudo que varreu todo o perímetro e, por alguns instantes, pareceram paralisar a todos no tempo até que ele bradasse para que parassem com aquela loucura imediatamente.

—Aquilo me surpreendeu. — Mayu ofegou com as mãos no peito quando sentiu o chão de volta sob seus pés, já por detrás das muralhas do castelo.

—Lamento muito por isso. — Ryosuke-sama desculpou-se com um sorriso envergonhado. — Mas garanto que ninguém ali tinha intenção de fazer-lhe mal.

—Eu sei disso, mas surpreendeu-me. — ela sorriu tremula e, à suas costas, Akio começou a choramingar com fome — Muito obrigada pelo passeio, meu senhor, mas vou me retirar agora.

Despediu-se se curvando e afastou-se com os filhos ao seu encalce.

Poucas horas mais tarde, enquanto abanava com um leque seu caçula adormecido, Mayu ouviu passos pesados e apressados do lado de fora, e ergueu a cabeça a tempo de ver as portas de correr quase serem arrancadas.

—O que foi que aconteceu hoje na cidade?! — Satoshi perguntou com os olhos arregalados.

—Sh. — indicou o bebê adormecido, e então sorriu sem jeito, como se pedindo desculpas: — Parece que o fato de haver uma humana hospedada aqui já é conhecido.

—Não, não isso! — ele entrou apressadamente e colocou-se de joelhos junto a si, pegando-lhe a mão livre entre as suas — Que história é essa de que “o mestre tem uma nova linda e inestimável esposa humana”?!

Mayu arregalou os olhos, baixando a mão com o leque.

—O que?!

—É somente disso que se fala na cidade!

Ela sacudiu a cabeça.

—Mas que confusão!

Satoshi engoliu em seco.

—Mas saiu com Ryosuke-sama hoje, não foi? E se ele a estivesse cortejando, e não percebeu?

—Oh, por favor! — Mayu puxou sua mão de volta — Os meninos estavam conosco o tempo todo, e como eu não perceberia uma coisa dessas?!

—Você esteve muito tempo entre criaturas que a viam simplesmente com desprezo. — Satoshi encolheu os ombros — Pode já ter esquecido, mas é uma bela mulher.

—Francamente! — girou os olhos, retomando sua tarefa de abanar o filho — Não é nada disso.

—Eu bem que notei que durante o banquete ele não parava de encará-la!

—Porque sou idêntica a Oma-san!

Satoshi olhou em volta, franzindo o cenho.

—Se ele não a estava cortejando, o que são todos esses presentes?

—Não são presentes de Ryosuke-sama, são dos habitantes, a cada lugar que íamos, insistiam para que eu aceitasse.

 —O que?! — voltou-se para ela com os olhos arregalados — É exatamente disso que eu estou falando! Ele estava-a apresentando como sua esposa, e você nem se deu conta!

Mayu olhou-o aborrecida.

—Pare com isso, como Ryosuke-sama poderia apresentar-me como esposa dele, se ele sabe que sou sua?!

—Apenas um motivo para ele vir aqui à noite e cortar minha garganta!

Um grunhido de indignação veio do espelho.

—Isso não o mataria. — Mayu girou os olhos com desdém.

—Esse não é o ponto!

—Se está assim tão preocupado. — suspirou concentrando-se apenas em Akio — Por que na próxima vez em que for caçar raposas não me leva com você?

Aparentemente Satoshi não estava assim tão preocupado em perder sua esposa, ou então ele simplesmente se importava mais com seu irmão raposa do que com ela, já que no dia seguinte retornou à floresta sem ela, pois quando Mayu acordou, ele já havia partido… e o chapéu que ela perdera durante a confusão do dia anterior estava diante da porta, mas Satoshi negou saber qualquer coisa sobre aquilo quando retornou ao anoitecer.

Conformada, ela retomou sua rotina anterior: pela manhã treinava junto a seus filhos e o instrutor — já recuperado da ressaca — e pela tarde passava o tempo com suas damas, mas o castelo precisou ser fechado ao público de fora, pois praticamente a cidade inteira queria entrar ali agora para dar uma espiada “na humana do castelo”, e agora os filhos seguiam-na a cada canto que ia, como um par de sombras insistentes.

No decorrer dos dias, a cada nova manhã, um presente inusitado surgia diante da porta de seu quarto: um obi, uma fita de cabelo, flores silvestres, incensos…

Satoshi dizia que nada daquilo estava ali quando ele saia e insistia que era Ryosuke-sama a cortejando, portanto ela deveria deixar aquelas coisa exatamente onde as encontrava, pois as aceitando só estaria incentivando-o… mas Mayu estava irritada com o marido e sua teimosia, e num ato de rebeldia aceitava cada presente que amanhecia diante de sua porta, mesmo porque afora as poucas vezes em que Ryosuke-Sama os convidava para compartilharem suas refeições — durante as quais Akira e Akihiko faziam questão de sentar entre ambos para mantê-lo o mais distante possível dela, e embora negassem Mayu sabia que havia um dedo de Satoshi naquilo —, ela pouco o via, exceto por um ou outro vislumbre aqui e ali passeando pelos jardins ou andando pelos corredores, acompanhado de Kanji-dono com seus infinitos ajudantes e papeladas — apesar de que era mais comum vê-lo a esgueirar-se para evitar Kanji-dono e suas papeladas — e freqüentemente Mayu sentia como se houvesse alguém a observando, mas ela nunca estava só, seus filhos e suas damas cercavam-na o tempo todo e nenhum deles pareceu dar-se conta de nada anormal, de forma que ela preferiu manter-se quieta… até o décimo segundo dia: Ela estava sentada em uma das pontes dos jardins, havia tirado o uchikake e erguido as saias do quimono de uma maneira que poderia ser considerada deselegante, da mesma forma que costumava fazer quando era criança, e estava com os pés enfiados na água enquanto Haru ensinava a ela e a Botan como fazerem balões de papel, Akira e Akihiko estavam brincando de hanetsuki ali perto quando, pelo canto dos olhos, Mayu achou ter visto um reflexo mover-se na água.

—Senhora? — Botan a chamou — O que foi?

—Não, nada… — ela voltou sua atenção para o balão de papel ainda inacabado entre as mãos e hesitou — Não… na verdade, acho que há alguém me seguindo… talvez. Tenho tido essa impressão há alguns dias.

Haru e Botan a encararam fixamente por alguns instantes — mesmo que Haru não tivesse olhos para encarar.

—Está falando de Yuri-chan?

—Yuri? — repetiu desconcertada.

—É a garotinha? — Akihiko perguntou saltando para trás com os olhos fixos no céu para rebater a bola.

—Ela realmente acha que não a notamos se esgueirando atrás de nós? — Akira saltou e rebateu de volta para o irmão, fazendo Akio, atado ao seu peito, rir alegremente.

—Todos vocês já a tinham notado?! — Mayu olhou-os chocada.

—Bom… sim, mas Yuri é… — Botan fez uma careta.

—É só uma pirralha. — Akira sorriu vitorioso quando o irmão errou a rebatida — Você conhece as regras!

Akihiko bufou e sentou-se de cara fechada na grama, enquanto o irmão mais velho se aproximava com o pincel em riste pingando tinta, pronto para rabiscar-lhe a cara.

—Yuri-chan é inofensiva. — Botan garantiu-lhe, enquanto Haru concordava — É só uma menininha.

—Mas ela está me seguindo?

—Sim… desde o final do banquete, pelo menos.

—Por quê?

—Talvez tenha gostado da senhora? — Botan inclinou a cabeça de lado — Yuri-chan é muito tímida…

—O quanto… acham que ela gostou de mim? — Mayu perguntou passando a mão no queixo.

Yuri era a mesma garotinha que havia derrubado vinho de arroz na mulher sentada ao lado de Kanji-dono durante o banquete. Uma menina pequena que aparentava estar em torno de cinco anos de idade, vestia um quimono multicolorido de estampa floral, tinha cabelos lisos e escuros na altura da cintura e um par de chifres com quase quinze centímetros saindo de suas têmporas.

Depois que Satoshi saiu, ela não demorou a aparecer diante da porta do quarto, ficou parada ali por um longo momento, mordendo o lábio inferior e remexendo as mãos nervosamente, até tomar coragem para abrir a porta vagarosamente e espiar ali dentro, e viu através das cortinas de seda brancas semitransparentes que cercavam o leito a silhueta adormecida da senhora, ela deixou algo no chão e recuou fechando a porta cuidadosamente, após o que, como um coelhinho assustado, virou-se pronta para fugir, mas esbarrou em alguém e caiu sentada no chão.

—As flores que você me deixou eram muito bonitas. — Mayu comentou gentilmente estendendo-lhe a mão. Arregalando os olhos com espanto Yuri olhou da mulher parada diante de si para a porta fechada atrás de si, Mayu sorriu compreensiva. — Eu me levantei mais cedo hoje, e pedi para Oma-san deitar-se em meus futons por um tempo, estava esperando por você Yuri-chan.

Apavorada, Yuri apontou a si mesma.

—A-a m-mim? — sussurrou.

Mayu se ajoelhou para ter os olhos na mesma altura dos olhos da menina.

—A fita para os cabelos era muito bonita. — elogiou — E Botan me contou que foi você mesma quem plantou aquelas flores, ela me disse também que você cuida de um pequeno jardim de ervas aqui no castelo, é verdade? — Yuri-chan engoliu em seco e confirmou lentamente com a cabeça, ainda sorrindo Mayu lhe estendeu a mão novamente — Gosta de doces Yuri-chan?

Sorrindo Yuri confirmou com a cabeça e aceitou a mão que Mayu lhe estendia.

Naquele dia Satoshi regressou um pouco mais cedo do que o costume, e ao entrar no quarto encontrou a ungaikyo segurando o espelho enquanto Mayu se admirava nele segurando algo diante do pescoço.

—Isso são pérolas? — arqueou uma sobrancelha fechando a porta.

Inclinando a cabeça, a ungaikyo deixou o espelho no chão e retornou para dentro do objeto, Mayu virou-se sorrindo radiante.

—São lindas, não é?

—É mais um dos presentes misteriosos que aparecem aqui toda manhã?

—Sim, mas ouça…

—Então Ryosuke-Sama está realmente cortejando-a! — ele tirou o colar de pérolas de suas mãos — Você não vê? Ele esteve no litoral e agora você recebe pérolas…!

—Não, não, calma! — Mayu ergueu as mãos — Quem estava trazendo os presentes é uma garotinha, ela…

—Então ele não os traz pessoalmente. — Satoshi apoiou-se sobre um joelho pegando-lhe as mãos — Isso já era de se esperar, mas mesmo que ele mande uma de suas servas em seu lugar, isso não significa…

—Satoshi! — Mayu libertou suas mãos e cobriu-lhe os lábios com as pontas dos dedos — O nome dela é Yuri-chan, e tudo o que queria era ouvir sobre Hikari-san.

—A deusazinha? — Satoshi piscou — Por quê?

Mayu suspirou.

—Yuri-chan é uma garotinha hannya, é claro que queria ouvir sobre a deusa oni, porém nunca se atreveu a perguntar diretamente a Ryosuke-sama, então ouviu no banquete que nós a conhecemos, mas é tímida demais e tanto você quanto os garotos são assustadores para ela. — deu de ombros. — Ela vinha aqui todos os dias, desistia no último segundo, deixava seu presente e fugia.

—Ah… — Satoshi piscou — Ah.

—E agora, eu acho que você deveria se desculpar com Ryosuke-sama. — Mayu virou-se e pegou o espelho do chão para recolocá-lo no suporte — Ele foi muito generoso nos hospedando aqui e cuidando de nós.

Além disso, havia olhos e ouvidos por todo canto naquele castelo…

—Então foi isso o que aconteceu? — Ryosuke-Sama sorriu dedilhando lentamente o koto[1], quando Satoshi lhe contou a história na manhã seguinte em seu escritório — Achei mesmo que seus filhos estavam um pouco ariscos comigo, eu fiquei pensando que eles achavam que eu tinha posto a mãe deles em risco e estavam bravos. — sorriu dedilhando mais algumas notas — Mas você é admirável Satoshi-san, se eu desconfiasse que alguém estivesse cortejando minha amada, eu o devoraria.

—Pensei que fosse um pacifista. — comentou incrédulo.

—Uma coisa é ser pacifista, outra é não proteger o que nos é valioso. — Ryosuke-Sama fez uma careta ao errar a nota — Agora… eu sei que ainda não se passou uma centena de dias, mas já fez algum progresso em sua busca? — Os ombros de Satoshi caíram e ele suspirou longamente. — Entendo… — mais uma nota errada despertou uma nova careta em Ryosuke-sama, e ele deixou o instrumento de lado — Se eu não fosse quem sou, Natsu já teriam admitido que sou uma causa perdida há muito tempo e desistido das lições de música. Ouça Satoshi-san, longe de mim querer intrometer-me em seu casamento, mas… não acha que às vezes não vale a pena persisti tanto?

—Há raposas naquele lugar!

Ryosuke-Sama suspirou, recostando as costas à parede.

—Certa vez conheci alguém que dizia quase a mesma coisa, mas ele estava em busca de sereias.

—Por quê?

—Ele estava apaixonado por uma humana. — Ryosuke deu de ombros — Mas ele não era altruísta como você, ele queria tê-la ao seu lado para sempre, mas… não podia abrir mão de sua expectativa de vida para isso, então decidiu que capturaria uma sereia. Você conhece a lenda, Satoshi-san? Aquele que bebe do sangue de uma sereia tem sua vida estendida, e aquele que come de sua carne torna-se imortal… ela implorou-lhe que não a deixasse, mas ele queria tê-la consigo para sempre, não suportaria vê-la morrer, então partiu. “Tem uma sereia nesse lugar”, sempre dizia enquanto mergulhava nos mais profundos oceanos, tão obcecado em sua busca que não se deu conta do tempo passando…

—E… e então? — Satoshi engoliu em seco.

—Um dia ele ouviu uma voz, pode ser que tenha sido apenas sua imaginação, mas a ouviu claramente chamando por ele, e saiu daquelas profundezas escuras para ir ao encontro dela, ele não havia encontrado sereia alguma, mas precisava dizer a ela que não a esquecera, que ainda estava procurando… porém era tarde demais. — os ombros de Ryosuke-sama caíram desanimadamente — Somente os ossos de sua amada o aguardavam, ela havia falecido mais de meio século antes, após tê-lo esperado por toda a sua vida.

Satoshi levantou-se de repente.

—Uma floresta não é um oceano! — reclamou ofendido — E Mayu não se tornará em pó enquanto me aguarda!

Quando ele deixou o escritório daquela maneira turbulenta, Ryosuke suspirou e voltou seu olhar cansado para o koto ao seu lado novamente.

—Acho que é melhor continuar praticando. — murmurou.

Uma centena de dias ou um milhar parece que nada pararia Satoshi até ele ter certeza que a raposa oculta entre aquelas árvores não era seu amigo desaparecido, às vezes a persistência obsessiva que parecia inerente aos youkais era realmente uma maldição… mas, assim como ocorrera na vila dos onis anteriormente, aos poucos a família começou a se adaptar àquele novo ambiente também: com o passar do tempo os garotos cansados de voar e explorar apenas no castelo começaram a voar para além das muralhas, geralmente acompanhando alguém do castelo, para fazer compras ou algo do tipo, mas às vezes iam sozinhos, Mayu, por sua vez, não voltou a deixar o castelo após aquela primeira experiência acompanhada de Ryosuke-sama, mas ainda assim ela conseguia “arranjar motivos para fazer todos se descabelarem e ser uma fonte de dores de cabeça”, como dizia sua mãe muito tempo atrás e, certo dia, Botan quase teve um ataque do coração quando a encontrou com roupas de camponesa encardidas, cabelos bagunçados e terra incrustada debaixo das unhas.

—Honorável esposa! — exclamou horrorizada ao finalmente encontrá-la. — O mestre convidou-os para jantar essa noite, e olhe seu estado! Onde a senhora esteve?

—Você está falando exatamente igual à minha antiga ama, Botan. — Mayu sorriu avaliando o estado das próprias roupas — Não estou tão ruim assim, eu só estava ajudando Yuri-chan no jardim de ervas dela.

Na verdade “jardim de ervas” era apenas uma maneira modesta de se referir ao pequeno recanto, pois ele assemelhava-se mais a um bosque em miniatura abrigando uma comunidade inteira de koro-pok-gurus entre suas folhagens, pois sendo todos tão pequeninos, a cidade era perigosa demais para eles… por mais pacifica que fosse durante a maior parte do tempo.

—Ajudando-a ou brincando de guerra de lama?! — Botan agarrou-lhe o pulso — A senhora precisa de um banho já!

Espere só até ela ver o estado em que Akio estava…

—Botan acalme-se, não é pra tanto. — Mayu riu — Ouça, por que não para de tratar-me como sua senhora um pouco?

Botan cambaleou parando confusa antes de voltar-se para ela.

—Perdão?

Mayu pegou as mãos dela entre as suas

—Afinal nós duas somos iguais, certo? Ambas fomos abrigadas aqui por Ryosuke-Sama quando não tínhamos mais para onde ir, então sejamos amigas, venha tomar banho comigo e…!

—Eu não posso! — Botan afastou suas mãos com brusquidão, e então a olhou culpada. — Sinto muito, honorável esposa, mas uma coisa como essa… seria impossível!

Ela afastou-se correndo.

—A senhora continua surpreendentemente ingênua, mesmo após tantos séculos, irmãzinha. — Mayu virou-se ao ouvir o tom condescendente da ungaikyo. — A senhora não percebeu ainda, mas Botan é um pouco mais do que aparenta.

Aquela era a primeira vez que via a youkai fora de seus aposentos… na verdade era a primeira vez que a via de pé também.

Uma dama deve estar sempre recatadamente recolhida em seus aposentos e nunca se levantar. Ainda podia ouvir a voz de sua ama no fundo de sua mente. E nas poucas vezes em que precisar alcançar algo fora de seu alcance, ela deve mover-se de joelhos.

Elas não eram tão parecidas afinal: seus cabelos brancos só lhe alcançavam até pouco depois do joelho, exatamente como os de Mayu costumavam ser na época em que fugira com Satoshi, Oma era uma imagem espelhada e perfeita da dama que Mayu se recusara a ser.

—O que quer dizer? — perguntou confusa.

A youkai de cabelos brancos esfregou levemente a palma da mão ao longo de seu braço, e então esfregou os dedos uns contra os outros vendo os torrões de terra se esfarelar e desprenderem dali.

—É melhor eu levá-la logo para ir tomar aquele banho. — comentou entediada, passando por ela sem lhe dar resposta alguma — Ah, e essa bola de sujeira amarrada em suas costas também, suponho que seja seu filho, mas no estado em que está duvido que inclusive o próprio pai fosse capaz de reconhecê-lo agora. E não espere que tomemos banho juntas.

Mayu girou os olhos e seguiu-a.

Quanto a Satoshi, ele seguia dia após dia embrenhando-se cada vez mais profundamente naquela floresta a procura de raposas, mas nunca deixou de retornar para sua família quando o anoitecer se aproximava, certa vez ele encontrou-se com um Abura-Sumashi preso numa clareira sem conseguir sair, e achou que finalmente estivesse prestes a encontrar às tais raposas…! Mas acabou sendo apenas a pegadinha de um nurikabe e aquele dia revelou-se tão infrutífero quanto os outros.

—Cara, sem querer ofender, mas já pensou na possibilidade de que, na verdade, você é um sujeito bem entediante? — Izumi, o dodomeki que servia como sentinela naquele portão da cidade, comentou-lhe certa vez.

—Por que diz isso? — Satoshi perguntou de volta.

Naquele dia seu parceiro enenra não estava por perto — ou podia até estar, ele era literalmente feito de fumaça, então era fácil passar despercebido —, mas o okuri-okami dormia ali próximo sobre a muralha.

—Bem. — Izumi apoiou-se sobre sua lança. — Praticamente ninguém consegue atravessar essa floresta sem ser acossado pelo menos uma vez pelas raposas, mas você? Você entra lá todos os dias e elas simplesmente o ignoram! Isso só pode querer dizer que você é um sujeito muito entediante, não acha?

Claro que poderia ter-lhe dito que se ele era uma criatura entediante o mesmo poderia ser dito do mestre deles, porque como o próprio Ryosuke-sama afirmara, por mais que quase diariamente lhe chegassem relados de roubos e pegadinhas atribuídos a raposas e até um ou outro avistamento, ele próprio nunca fora capaz de encontrar ninguém, pois as raposas ali estavam obviamente o evitando, mas preferiu deixar quieto, pessoalmente Satoshi achava Misaki, o irmão de Izumi que costumava atuar como sentinela no portão principal do castelo, um sujeito muito mais simpático.

Mas talvez todos tivessem razão… Satoshi parou olhando a volta, a época das chuvas já se esgotara e as cigarras haviam se calado, mas ele sabia que não demoraria para as folhas das árvores começassem a se tornarem douradas, marrons e vermelhas e então a cair, será que já haviam se passado os cem dias sobre os quais Ryosuke-Sama comentara? Ou talvez até ultrapassado? Ele suspirou esfregando a parte de trás do pescoço.

Odiava admitir isso, mas talvez todos estivessem certos e ele estivesse realmente apenas perdendo tempo ali, vai ver que Satoshi havia se precipitado afinal e eles não haviam ido ao norte o bastante e eles não encontraram o tal alguém que poderia lhes falar daquele bandido ardiloso, mas Mayu tinha razão: se Gintsune realmente estivesse naquela região, ele teria vindo correndo e saltado sobre Satoshi assim que sentisse sua presença nas proximidades.

—Argh! Eu nem sei por que ele desapareceu! — esfregou a cabeça furiosamente, bagunçando os cabelos.

Era hora de irem embora, já haviam perdido tempo demais ali, sim, tinham que seguir em frente e… Satoshi parou ao ouvir as risadas e ergueu a cabeça, uma criança estava sentada entre os galhos de uma árvore, parcialmente encoberto pela folhagem, estava descalço e vestido com um quimono verde esfarrapado, longos cabelos negros caiam-lhe trançados até o final das costas, mas o rosto estava em grande parte encoberto por sombras provenientes de um imenso chapéu de palha em sua cabeça.

Ainda assim Satoshi ainda era capaz de ver claramente o sorriso matreiro que ele lhe direcionava, e de repente a expressão confusa do tengu foi substituída por uma de completo espanto quando ele reconheceu quem é que estava sentado ali:

—Gintsune?!

*.*.*.*

Yukari nunca havia percebido como sua casa era barulhenta, até aquela noite em que trouxe Gintsune e sua irmã ilicitamente para dentro.

Ele havia sugerido que ela pudesse entrar antes e abrir a janela do quarto para eles, mas sua voz estava arrastada, mal conseguia manter os olhos abertos, e tinha um andar cambaleante, a única coisa que ainda parecia firme em si eram os braços em volta da irmã desacordada, e depois de quase ter caído das escadas por duas vezes, Yukari não se sentiu inclinada a acatar aquela sugestão, de forma que os empurrou de qualquer jeito pela porta da frente.

A porta fez mais barulho do que deveria. Os degraus rangeram tanto que era como se estivessem tentando compor uma sinfonia — e Yukari nunca os ouvira ranger antes. A porta de seu quarto emperrou e ela precisou sacudi-la para desprendê-la. Tudo parecia conspirar para que fossem pegos.

Ali dentro o relógio digital sobre sua mesa indicava 2h17min. Onde ela estava com a cabeça?!

—Coloque a sua irmã na minha cama por enquanto, eu vou pegar um par de futons para vocês. — afirmou, embora não tivesse plena certeza de que um par caberia em seu quarto… mas não podia deixá-los dormindo debaixo de sua cama como Gintsune sempre fazia, não naquele estado. — Eu volto logo.

Gintsune concordou com uma balançar instável de cabeça, e curvou-se para depositar a irmã na cama, mas o movimento o fez cambalear e quase cair por cima dela e ele precisou apoiar-se com o braço para evitar, fazendo-o se retrair e gemer, pois havia se apoiado com o braço ferido.

—Você está bem?!

Ela correu até ele e ajudou-o a se levantar, puxando-lhe o braço por cima dos ombros para que se apoiasse nela.

—Estou bem, pode ir. — garantiu com um sorriso tremulo, deitando a cabeça em seu ombro enquanto se sentavam na beira da cama — Eu só… preciso descansar um pouco.

Engolindo em seco, Yukari levantou-se cuidadosamente enquanto ajudava-o a se deitar ao lado da irmã, fechando os olhos Gintsune deu um suspiro de alívio e encolheu-se enquanto lentamente abandonava sua forma humana e assumia a animal.

Parece que apenas um futon seria necessário, mas primeiro havia um assunto mais imediato para tratar: Gintsune havia deixado um rastro de sua passagem por boa parte da casa, pois ele estivera descalço durante todo aquele tempo então suas pegadas enlameadas — com sangue em algumas — formavam uma trilha desde antes da porta de entrada diretamente até seu quarto.

E havia os machucados de Gintsune, parte de seus pelos estava chamuscada, havia uma crosta de sangue seco em volta de um corte pouco abaixo de seu olho direito, a pata dianteira direita estava queimada, e ele estivera mancando durante a caminhada até ali… Yukari não tinha nenhum medicamento em seu quarto, mas havia uma maleta de primeiros socorros no banheiro de forma que, naquele dia, o amanhecer encontrou o futon que trouxera para o quarto ainda intocado, enquanto ela própria estava sentada no chão ao lado da cama, tratando dos ferimentos de Gintsune.


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Notas finais do capítulo

É provável que ninguém vá ler essas notas, mas não posso evitar, sou louca por curiosidades kkkkkk
Acho que se um dia eu escrevesse um livro, mais de 20 páginas do final seriam apenas de glossário kkkkk
... Talvez eu tenha um problema O.O'

CURIOSIDADES DO JAPÃO:

O simbolismo do pássaro Grou Japonês;
Esta espécie, cujas penas são brancas e possui uma coroa vermelha no topo da cabeça é um dos símbolos mais tradicionais do Japão, considerado tesouro nacional. Os japoneses acreditam que o grou é uma ave sagrada que simboliza paz e vida longa. Elas também simbolizam o amor conjugal e a fidelidade, porque essas aves são monogâmicas, ou seja, depois que um casal de grous se une, só a morte os separa.

BESTIÁRIO:

Abura-Sumashi: Uma espécie rara de youkai que habita as regiões montanhosas da cidade de Amakusa, descritos como pequenos seres humanóides com uma cabeça enorme e semelhante a uma batata e vestindo uma capa de palha.

Dodomeki: É um youkai japonês que é retratado como mulheres humanas que são amaldiçoadas por terem braços compridos cobertos com centenas de olhos de pássaro devido ao hábito de roubar dinheiro.

Dorotabo: É uma espécie de youkai vingativo que habita em arrozais de situação precária. Geralmente descrita como uma criatura humanóide coberta de lama, com um olho no meio da testa e três dedos em cada mão.

Enenra: é um youkai, ou monstro japonês, composto de fumaça e escuridão.

Hone-onna: Como seu nome sugere, sua verdadeira forma é a de uma mulher esquelética, ela atrai homens para roubar sua força vital.

Koro-pok-gurus: é uma raça de pequenos homens, ágeis e habilidosos na pesca.

Nurikabe: Ele é descrito como uma parede que impede os aventureiros de viajar a noite (mas durante o período edo artistas começaram a ilustrá-lo como uma criatura entre um animal fantástico e grotesco e uma parede bípede branca e lisa). Ele consegue se estender e fazer com que quem tente passar por ele caminhe sem sair do lugar, a menos que de meia-volta. 

Shikigami: São espíritos familiares conjurados com os mais diversos propósitos.

Taka-onna: É um youkai feminino que possui a habilidade de esticar seu corpo. Atingindo alturas incríveis.

Okuri-okami: Dito assombrar passagens nas montanhas, estradas florestas e outros locais similares durante a noite. Ele segue viajantes solitários a uma certa distância, se o viajante tropeçar o okuri-okami o ataca e o despedaça. Ser perseguido por um okuri-okami é uma benção e uma maldição, pois se o viajante tropeçar e cair será atacado pelo youkai, por outro lado, essas criaturas são tão ferozes que enquanto seguem uma pessoa, nenhum outro animal ou youkai irá atacar, de forma que a pessoa estará segura desde que se mantenha de pé. Mas se a pessoa que tropeçou, fingir que fez de propósito e se acomodar no chão, o okuri-okami irá pensar que ela está apenas descansando e aguardará pacientemente até que levante e continue a viajem, se a pessoa sair em segurança das montanhas, ela deve virar-se e gritar “obrigado por me seguir”.

Umibozu: ”. Umibōzu aparecem em noites calmas e silenciosas, quando não há nenhum sinal de qualquer coisa fora do comum. De repente, sem qualquer aviso, as ondas e o tempo se agitam furiosamente, e uma terrível tempestade se forma. Como se fosse uma grande onda, Umibozu emerge do oceano. Elevando-se a dez metros acima da superfície da água, a
sombria criatura inclina sua gigante cabeça em direção aos marinheiros, os olhando fixamente de forma tenebrosa, e desse inesperado encontro, poucos escapam.



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