A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 27
26: O desabrochar da camélia.


Notas iniciais do capítulo

Hoje é o aniversário de 2 anos de Gintsune ♥
Esse Hiato acabou demorando um pouquinho mais do que pensei devido a alguns imprevistos que acabaram se seguindo uns aos outros -_-'
Mas eu já fiquei muito mais tempo do que isso sem postar em outras histórias que nem estavam em hiatos O.O'
Ainda não sei se já estarei voltando com a força total, mas só queria dizer que estou viva e não os abandonei. Ok?

GLOSSÁRIO:

Anko: pasta doce feita de feijão.

Era Shouwa: Período entre os anos de 1926 a 1989.

Getas: Sandálias tradicionais de madeira.

Hoshi no Tama: “Esfera estelar”.

Miai: casamento arranjado.

Onee-san ou nee-san: Irmã.

Onii-chan e Onii-san: Irmão.



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As lendas diziam que alguns youkais quando voavam pelo céu podiam disfarçar-se como nuvens, ou mesmo eram tão poderosos que podiam inclusive passar-se por uma segunda lua no céu, Yukari não tinha idéia de com o que Gintsune e ela se pareciam naquele momento enquanto voavam, ou se a raposa havia sequer se preocupado em forjar algum tipo de disfarce e, na verdade, enquanto estava ali montada sobre o pescoço da imensa fera prateada mantendo os olhos firmemente fechados e agarrando-se com todas as forças aos seus pelos para não ser soprada para longe, essa era a última coisa que lhe passava pela cabeça.

As orelhas de Gintsune moveram-se e giraram para trás quando ouviu a garota em suas costas gritar algo, mas a força do vento levou suas palavras para longe e impediu-o de escutá-la.

—O que? — questionou.

Ela voltou a falar, ou na verdade gritar, mas além de tudo tinha o rosto completamente enterrado entre seus pelos e ele mal foi capaz de conseguir captar a palavra “avó” em algum lugar da frase.

—Nós já estamos chegando. — limitou-se a responder.

Ele precisava prestar atenção, do contrário Yukari bem poderia acabar saindo voando sem que ele sequer percebesse.

Pousar sobre o hospital, ou próximo demais a ele seria um tanto quanto complicado, mas Higanbana tinha noites escuras e pacatas como somente uma pequena cidade de interior tinha capacidade de ter, além de que era cheia de campos de flores e bosques, e o que não faltava ali eram lugares onde até mesmo uma raposa gigante pudesse pousar em segredo.

—Segure-se, vamos descer. — avisou.

Não soube exatamente se ela chegou a responder-lhe algo, mas a sentiu repuxar seus pelos quando se encolheu um pouco mais em suas costas enquanto ele dava meia volta e diminuía a altitude até embrenhar-se por entre as copas das árvores e desaparecer ali, fazendo toda uma revoada de pássaros fugirem voando assustados.

—Você pode descer agora. — avisou deitando-se cuidadosamente sobre a grama.

Yukari levou um longo momento até começar a se mover, suas pernas e costas estavam rijas e os dedos pareciam correias de couro, mas a raposa esperou pacientemente enquanto lentamente a garota erguia-se e passava a perna por cima de seu pescoço, mas ainda enquanto tentava descer acabou atrapalhando-se com sua bolsa de viagem e caindo sentada no chão com um breve grunhido.

Ela era realmente completamente inábil fisicamente, não é mesmo? Suspirou retornando a forma humana e estendendo-lhe a mão esquerda, a qual levava em volta do pulso o cintilante aro prateado, na intenção de ajudá-la a levantar.

—Você está bem?

—O que aconteceu com minha avó? — ela perguntou de volta, aceitando sua ajuda para levantar, provavelmente aquilo era tudo o que vinha dizendo na última meia hora.

Gintsune hesitou.

—Houve um pequeno tremor de terra… — começou lentamente.

Yukari assentiu, apertando sua mão apreensivamente.

—Nós o sentimos da estrada. — confirmou.

Soltando-a, Gintsune guardou as mãos nos bolsos.

—Então você sabe que não foi grande coisa… foi coisa pequena. — ele desviou o olhar — Mas… sua avó estava subindo as escadas, ela… se desequilibrou, caiu e bateu a cabeça. — engoliu em seco — Perdeu algum sangue também. — E com “algum” ele queria dizer bastante… — Ela está internada no hospital aqui perto agora, os médicos fizeram uma transfusão e eu esperei um pouco, mas… Tsubaki continua sem acordar.

Ele não podia olhá-la, o Binbougami havia tocado-o, e mesmo que Gintsune houvesse se purificado e rezado por proteção, e se sua “pequena dose de azar” houvesse simplesmente se refletido? Afinal raposas podiam ser criaturas de sorte, mas não os seres humanos… e agora a avó de Yukari estava hospitalizada.

Com os olhos avermelhados e sem dizer uma palavra, Yukari apertou a alça de sua bolsa e virou-se já pronta a sair correndo dali, quando ele a deteve, segurando-a pelo braço.

—Espere!

—Preciso ir ver minha avó! — ela tentou puxar o braço de volta.

—Sim claro, por isso fui buscá-la… — soltou-a lentamente — Mas antes, não é melhor mudar essas roupas?

Indicou a yukata de tecido fino da pousada com a qual Yukari estivera dormindo até menos de uma hora atrás, e então apontou com o polegar por cima do ombro para algumas árvores atrás das quais ela poderia se trocar.

Yukari era uma mentirosa terrível, mas explicações precisaram ser dadas quando ela apareceu no hospital, e ela não podia simplesmente dizer que chegara até ali voando nas costas de uma raposa voadora.

—Quando ligaram para avisar sobre o que aconteceu eu fiquei tão nervosa que simplesmente não havia mais como ficar lá, então o professor Haruna pegou comigo o último trem da noite até a cidade vizinha e de lá pegamos um táxi para cá. — ouviu-se dizendo espontaneamente de alguma forma, quase como se as palavras houvessem sido sussurradas em seu ouvido.

Isso era ruim, pensou imediatamente depois, ela seria descoberta num piscar de olhos, pois não havia professor algum ali a acompanhando… seu pai passou a mão pelo rosto cansado, essa era a primeira vez que ele descia a colina da pousada em mais de um ano e meio — a última vez fora quando ele fora à sua formatura do ginásio.

—Eu avisei Chiharu para não ligar… — resmungou.

Sua mãe não havia ligado, ela seria pega, Yukari estava tão tensa que suas mãos começaram a tremer, mas ela poderia dar explicações sobre suas explicações mais tarde, sua avó era o importante agora.

—E quanto à vovó?

—Ela caiu das escadas e bateu a cabeça. — contou-lhe, exatamente como Gintsune já havia feito antes — Também perdeu uma quantidade considerável de sangue e por isso foi trazida para cá já inconsciente na ambulância, levou sete pontos e fez uma ressonância também, para avaliação de danos.

Yukari já vira o pai trabalhando por dias a fio, envolvido com suas papeladas pela madrugada adentro por incontáveis vezes, mas ainda assim a última vez em que o vira com uma aparência tão esgotada fora somente quando seu avô viera a óbito.

Angustiada Yukari segurou a mão livre do pai.

—Eu posso ir vê-la?

O pai desviou o olhar para o copo de café, já gelado, que segurava em sua outra mão.

—Você não devia ter vindo Yuki, não há nada que possa fazer aqui e não pode ir vê-la agora… — resmungou. — O coma foi declarado uma hora atrás.

Em… coma?

Em algum momento, Yukari não soube quando exatamente, seu pai levantou-se para ir falar com um médico — ou pegar outro copo de café, sinceramente ela não fazia ideia — e outra pessoa, quase que imediatamente, ocupou seu lugar, sentando-se silenciosamente ao seu lado.

Pelos cantos de seus olhos pôde captar o cintilar de um aro prateado em torno do pulso do recém-chegado, mas não lhe deu importância.

—Desculpe por ter invadido sua mente agora há pouco. — Gintsune falou após o que pareceu um longo momento em silêncio.

Mas sua voz soou diferente do que o de costume, e ainda assim estranhamente familiar… Yukari ergueu os olhos lentamente, seus cabelos haviam se tornando curtos e castanhos claro, o corpo um pouco menor e mais delgado, vestia-se de maneira social com uma camisa branca de botões, calças cinza e sapatos escuros, enquanto olhava-a culpado por trás de um par de óculos com armação dourada já descascando nos cantos. Piscando atordoada Yukari deu-se conta de que ele havia mimetizado a aparência do professor Haruna.

—Você invadiu minha mente? — murmurou.

Por isso sentia-se tão letárgica? Ou ela estava em choque?

—Só por um momento. — ele confessou com os ombros caídos ajeitando os óculos — Você é terrível mentindo Yukari, iria dar com a língua nos dentes, então eu…

—Ah sim, então foi isso. — assentiu — Obrigada.

Ok. Ela definitivamente não estava no seu estado natural, mas também pudera. Gintsune bagunçou os cabelos impacientemente, tentando pensar no que fazer.

—Você gostaria de um doce, Yukari? — tentou oferecer ponto a mão no bolso — Ah, mas não se preocupe, ele não é roubado, eu ganhei quando…

—Não quero doce algum. — ela recusou cabisbaixa.

Hospitais humanos estavam sem dúvidas no top 10 de lugares que Gintsune mais detestava visitar, esses lugares estavam sempre cheios de humanos que estavam doentes, ou feridos, ou morrendo, ou preocupados com seus entes queridos, e tudo isso era um prato cheio para aquelas coisas, transformando-os em verdadeiros antros.

Apoiando distraidamente o antebraço sobre o encosto da cadeira de Yukari, Gintsune lançou por cima dos óculos um olhar furioso a algumas daquelas criaturas asquerosas que tentavam se aproximar e moveu os lábios pronunciando silenciosamente “Sumam daqui”, fazendo-os debandarem-se no mesmo instante. Yukari já estava preocupada o bastante, ela não precisava de mais ajuda para isso.

Retirando a mão do bolso ele tentou mudar a abordagem:

—Eu tenho certeza que eles vão cuidar muito bem da sua avó aqui, digo, eu estive dando uma olhada por aí e é bastante impressionante como os humanos evoluíram na medicina em tão pouco tempo, humanos realmente cuidam um dos outros, não é mesmo? Quer dizer, para nós youkais já é raro o bastante que haja um ou outro curandeiro, mas é praticamente impossível que um lugar como esse pudesse existir no meu mundo, youkais em geral seguem a regra de “cada um por si”, entende Yukari? E mesmo que nós não adoeçamos com frequência, fraturas e membros arrancados, por outro lado, são coisas praticamente do cotidiano lá, especialmente entre as raças mais beligerantes… os tengus, por exemplo! Aqueles lá estão sempre espancando e cortando uns aos outros, os filhotes aprendem desde cedo a recolocar no lugar membros que foram deslocados, sabia? E os mais novos são espancados constantemente ah, mas nunca choram! Eu mesmo nunca vi o meu irmão tengu chorar, mesmo ele sendo o tengu mais gentil que já conheci, e olha que o conheço desde que ele era filhote, se bem que ele sempre foi bastante ingênuo. — deu uma risada curta — naquela época eu fazia-me passar por filhote para conseguir aproximar-me mais facilmente dele quando, na verdade, eu tinha mais que cinco vezes de sua idade e estava mais próximo da minha terceira cauda do que ele da maior idade, e o tolo demorou praticamente quatro anos para descobrir a minha farsa…!

—Olhe, eu sei o que está tentando fazer, mas… apenas pare. — Yukari o interrompeu parecendo exausta. — Por favor, não me entenda mal Gintsune, eu sou grata por ter ido buscar-me e trazer-me até aqui, mas… você não pode compreender como me sinto agora, humanos são seres frágeis, você está sempre dizendo isso, não é? Mas realmente compreende o que significa? Minha avó bateu a cabeça, isso com certeza não é nada para alguém como você, mas nós não sabemos se ela abrirá os olhos novamente.

A fragilidade humana, não é mesmo…? Em silêncio Gintsune ergueu o rosto fechando os olhos e respirando fundo.

—Ouça meu querido, raposas são mestras da ilusão, modificar nossas formas ou a de objetos, manipular mentes e até o ambiente ao nosso redor, tudo isso é simples demais para nós, mas ainda assim é preciso praticar. — lembrava-se de sua mãe explicando-lhe calidamente.

Ela sempre fora a mais paciente das mentoras, embora com seu jeito leviano de agir ninguém pudesse imaginar que ela realmente tivesse muitas coisas para ensinar… afinal raposas eram mestras da ilusão.

Mas Gintsune nunca foi o melhor dos alunos, afinal desde filhote ele havia sido agitado e muitas das vezes acabava por não ter disposição alguma para ficar quieto a aprender.

—Ah mamãe, eu já sei como fazer um homem entupir-se de barro e jurar que está se deleitando com anko. — reclamou o juvenil Gintsune balançando-se para frente e para trás de forma impaciente — Por que eu não pude ir com o pai?

—Por que você é meu precioso e pequeno filhote. — sua mãe estendeu-lhe a mão até tocar-lhe o rosto carinhosamente. — E transformar pedras em ouro e barro em doce, são meros truques que até um tanuki pode realizar, eu estaria profundamente decepcionada se nem ao menos isso você conseguisse fazer.

A mãe segurava uma máscara de raposa branca diante dos olhos, mas Gintsune sabia pelo seu tom de voz que ela estava sorrindo-lhe de forma zombeteira e condescendente naquele momento, ele empurrou sua mão para longe insatisfeito e, cheio das arrogantes certezas da juventude, colocou-se de pé e cruzou os braços teimando:

—Eu já estou pronto para conhecer uma cidade humana!

Por trás da máscara a risada de sua mãe tilintou suave e refrescante como um sino dos ventos.

—Ah sim, você está? — questionou-lhe jocosamente — Então me responda meu doce filhote, você já é capaz de fazer um humano perder-se dentro de sua própria casa e nunca encontrar a saída? Ou ainda isolá-la do mundo de tal forma que nenhum som de seu interior alcance o exterior ou vice-versa? Ou, melhor ainda: Separá-la completamente da realidade! — quando Gintsune hesitou em sua convicção, a mãe baixou a máscara de raposa repousando-a sobre o colo e encarando-o com seus penetrantes olhos dourados — Façamos um acordo então: faça-me um desses feitiços, se conseguir permitirei que vá agora mesmo atrás de seu pai na cidade.

Gintsune olhou-a de forma desconfiada, descruzando os braços lentamente.

—E qual é a pegadinha?

—Não há pegadinha alguma. — ela encolheu os ombros — Se diz que já está pronto para ir à cidade misturar-se com humanos então com certeza pode fazer um feitiço como esse, e se realmente puder então isso significa que eu o estive subestimando, agora vá em frente e isole completamente essa clareira do resto da realidade, crie seu próprio mundo e não deixe que nada mais exista nele a não ser você e eu.

Era óbvio que ela estava o manipulando, sua mãe era uma mentora paciente… e bastante ardilosa também, contrariado Gintsune virou o rosto.

—E como se supõe que eu deva fazer algo assim? — perguntou dando-se por vencido.

Pois mesmo que ela estivesse apenas manipulando-o, sua mãe continuava a ser uma mulher de palavra, então bastava que Gintsune pudesse criar sua própria realidade e ele estaria livre para conhecer uma cidade humana!

Quando um coelho desapareceu em meio à névoa e o canto dos pássaros diminuiu até cessar por completo, Gintsune achou que havia ganhado aquele acordo e sorriu convencido enquanto a mãe olhava a volta.

—Oh sim, tudo parece muito bem até agora… — ela murmurou escorregando delicadamente a mão para dentro da manga e puxando dali um tubo de bambu — Que acha então de pormos esse mundo à prova…?

Não foi necessário dizer mais nada, pois o sorriso orgulhoso de Gintsune desmanchou-se quando ambos viraram a cabeça ao ouvirem passos que se aproximavam, seu encanto era tão fraco que sua irmã quebrou-o sem nem dar-se conta, surgindo por detrás das árvores cobrindo nariz e boca com a ponta da manga, enquanto os pássaros voltavam a cantar nas árvores, e uma cobra deslizava pela grama, próxima aos seus pés.

—Papai está cheirando novamente àquele detestável odor de morte. — avisou-os. — E coberto de sangue.

—Ah céus, ele é tão travesso, não é mesmo? Eu lhe disse que não devorasse humanos se pudesse evitar! Quem sabe eu não deva puni-lo? — sua mãe riu maliciosa, guardando o tubo de bambu de volta na manga e levantou-se segurando a máscara diante do rosto.

Gintsune ergueu os braços para proteger o rosto quando a mãe ergueu uma forte cortina de ar ao transformar-se numa raposa negra e levantar vôo dali, ansiosa para ir encontrar com o amado.

—O que vocês estavam fazendo? — a irmã aproximou-se baixando os olhos do céu para ele.

Àquela altura ela já era quase uma mulher feita, assumindo sua menor e mais fofa forma animal Gintsune saltou para seus braços sem avisar e encolheu-se emburrado ali.

—Estava tentando convencer a mãe de que já estou pronto para conhecer uma cidade humana. — confessou.

—Realmente não entendo que interesse tão grande você e a mãe tem de se misturarem àquelas criaturas. — a irmã acomodou-o melhor nos braços — E o que estavam praticando?

—A separação da realidade.

A irmã ponderou por um instante.

—Esse é um bom feitiço…

—É mesmo? — Gintsune ergueu a cabeça.

A volta deles o céu tornou-se vermelho como se o sol estivesse se ponto, mesmo que ainda fosse inicio de tarde, o canto dos pássaros morreu, e até mesmo o vento cessou, sua irmã acenou afirmativa.

—Sei que a maioria das raposas usa isso como forma de infernizar alguns humanos ou youkais menores, mas para mim esse é um espaço tranquilizador onde posso estar em paz… — ela coçou-lhe delicadamente debaixo do queixo e baixou os olhos em sua direção — Ouça, To-chan, humanos são seres baixos e asquerosos, então mesmo que tu e a mãe gostem deles… nunca se deixe baixar ao mesmo nível. Está bem?

Ah… o que diria sua irmã, se o visse agora, trazendo uma humana para seu mundo particular?

Quando ele voltou a abrir os olhos, os dois estavam sozinhos na sala de espera daquele hospital e nem um mísero ruído se era ouvido, pois naquele momento somente ele e Yukari é que existia naquele seu pequeno “mundo de raposa”.

Ao seu lado Yukari olhava lentamente em volta com os lábios entreabertos, até que seus olhos se detiveram nele.

—O que fez com as pessoas?

—A elas nada. — garantiu se permitindo relaxar o suficiente para desfazer-se do rosto de Kakeru — Só achei que você precisava de um pouco mais de tranquilidade.

—É como o que você fez na sala de aula, quando inalou acidentalmente fumaça de cedro no festival escolar. — ela comentou.

—Sim, naquela vez eu também deixei a passagem livre para que você adentrasse o meu mundo. — confirmou.

De repente Yukari colocou-se de pé com um salto.

—Mas não posso estar aqui! — exclamou sobressaltada — Tenho de voltar, e se minha avó…?!

—Youkais não são tão invulneráveis quanto você pensa. — ele a interrompeu deitando a cabeça para trás e fechando os olhos. — É verdade o que você disse: um golpe na cabeça não significa nada para a maioria de nós. — deu uma risada curta e seca abrindo os olhos novamente — Francamente alguns poderiam perder a cabeça e isso não significaria nada ou então, no mínimo, simplesmente voltariam à vida no momento em que tivesse a cabeça devolvida, mas essa não é uma regra universal, pois para alguns a vida definitivamente não é mais que um sopro: nascem, crescem e morrem no espaço de um único dia. Se um kappa está longe da água e abaixa sua cabeça ele pode perecer.

—Só que você não é um desses que perece em um único dia, e muito menos é um kappa, é uma raposa e vive centenas de anos. — ela sentou-se pesadamente ao seu lado novamente.

—Também somos todos extremamente predispostos à corrupção, para decair basta um passo em falso e nem sempre é possível purificar-se para voltar ao que era antes. — ele continuou, como se ela não houvesse falado nada — Seres puros demais são especialmente suscetíveis, eles são tão bons que sucumbem e se corrompem quando o mundo os trai, por isso meus pais sempre me orientaram a manter o equilíbrio.

Yukari sacudiu a cabeça.

—Eu não entendo para que está dizendo tudo isso! — irritou-se — Pare de tentar me confundir e distrair quando estou tão preocupada com vovó!

—E há ainda a questão do nome. — prosseguiu calmamente — Humanos tratam seus nomes levianamente e os entregam a qualquer um, mas para os youkais, seres provenientes de um mundo sobrenatural, as regras são diferentes, nossos nomes são tesouros e maldições, o nome pode libertar e aprisionar, apesar de que também é possível prender o nome dos humanos. Minha mãe não possuía um nome, eu já lhe disse isso, não é mesmo? E então um humano a nomeou e a escravizou. — deu de ombros — Mas para além de tudo isso raposas também possuem suas próprias fraquezas, nossas caudas, por exemplo.

Yukari franziu o cenho.

—Suas caudas? Do que está falando?

—Normalmente quanto mais antigo, mais poderoso um youkai se torna, isso é de conhecimento comum, e isso também é verdade para as raposas, quanto mais velha uma raposa se torna, mais caudas ela ganha, e quanto mais caudas mais poder. — ele gesticulou em círculos com a mão, Yukari concordou — Mas o nascimento das caudas também é um fardo enorme.

—O que quer dizer com fardo?

Gintsune suspirou longamente como se só o fato de pensar em todo aquele processo penoso já o deixasse exausto.

—Kyuubis são criaturas extremamente raras, sabia Yukari? Eu mesmo nunca vi nenhuma, e isso é porque a maioria de nós não sobrevive há tantas caudas, apesar de que isso não é propriamente um segredo de nossa raça, também não é algo que saímos divulgando aos quatro ventos, mas o nascimento e crescimento das caudas é um processo extremamente penoso.

—Extremamente? — ela repetiu — Extremamente quanto?

—Excruciante. — ele calou-se por um momento, com o olhar fixo no teto — O nascimento de cada cauda é um processo longo, excruciante e exaustivo, ao ponto que perdemos o controle sobre nós mesmos e nos tornamos seres completamente instáveis, ah, e sabe aqueles tais “anos do Binbougami” que vocês têm por aqui? Aqueles desastres nada têm haver com o deus da pobreza, são apenas o resultado das caudas da raposa selada crescendo, mas duvido que ela faça de propósito, porque se tivesse poder para causar tudo isso propositalmente ela já teria escapado há bastante tempo… aquela é uma prisão muito mais cruel do que parece. Eu mesmo, por exemplo, tenho quatro caudas agora, o que significa que já sobrevivi ao nascimento de três caudas, mas não há garantia alguma de que eu vá sobreviver a uma quinta.

Por um longo tempo Yukari ficou quieta torcendo o tecido da saia por entre os dedos, embora Gintsune não fosse capaz de dizer com certeza quanto tempo havia se passado no mundo real, e quando voltou a falar ele acreditou que seria para perguntar sobre a avó mais uma vez, mas ao invés disso o que ela disse foi:

—Eu não fazia ideia.

—No meu mundo quase ninguém faz também, então é óbvio que nesse mundo muito menos, é provável que o tengu e sua família tenham alguma noção a respeito disso, já que eu desapareci durante todo o período de crescimento das minhas duas últimas caudas sem dizer uma palavra sequer, mas eu nunca mencionei nada abertamente, então... — deu de ombros.

Ela franziu o cenho.

—Não disse aos seus amigos, mas está me dizendo tais coisas agora.

—Nem me pergunte o porquê, ok? — ele endireitou-se na cadeira, descartando suas futuras perguntas com um aceno da mão — Ah! E tem mais uma coisa.

Yukari havia começado a perguntar do que mais ele queria falar, mas emudeceu quando Gintsune simplesmente levou a mão direita ao peito e começou a pressionar suas garras ali, arregalando os olhos com um ofegar surpreso quando o a mão penetrou até a altura do punho dentro de seu peito.

—O que você está…?!

Gintsune curvou-se para frente com um gemido doloroso, ele sentiu algo gelado escorrer pela lateral de seu pescoço e todo o corpo pulsar repetidamente em protesto quando começou a puxá-la para fora.

Parou ofegante por um momento, apoiando a mão sobre o joelho enquanto na outra a segurava: uma luminosa e cálida esfera que brilhava em tons de prateado e azul. Engoliu em seco, recuperando-se aos poucos.

—Você sabe o que é isso Yukari?

Emudecida e chocada para além da compreensão, a garota limitou-se a balançar a cabeça lentamente, ainda com seus olhos arregalados, Gintsune sorriu de lado e estendeu-lhe a esfera que pegou quase sem se dar conta, surpreendendo-a, pois diferente do que a aparência sugeria aquela esfera na verdade tinha uma composição sólida.

—Tem certeza? Certamente já deve ter ouvido falar dela pelas lendas, mas tudo bem, vou lhe explicar mesmo assim, essa é minha Hoshi no Tama, em outras palavras: minha própria vida — relaxando contra o encosto da cadeira novamente, ele jogou a cabeça para trás — Diferente dos animais e dos humanos, nós youkais não possuímos uma coisa chamada “alma” Yukari, mas alguns de nós possuem algo tão precioso quanto, e nós raposas possuímos isso. — indicou a esfera luminosa em suas mãos — É o cerne de todo o meu poder e de minha existência, algo muito mais valioso e perigoso até que meu próprio nome, eu sei que as lendas dizem que nós costumamos carregar isso em nossas bocas ou até junto a nossas caudas, mas isso é um absurdo sem tamanho, por que carregaríamos algo dessa magnitude de maneira tão exposta? Eu, pelo menos, não sou arrogante a ponto de arriscar-me dessa maneira… ou pelo menos nunca fui até hoje, por isso que sempre a levei comigo em meu peito. — fez uma pausa — Meus pais me nomearam, então é óbvio que eles e minha irmã têm posse de meu nome, mas essa é a primeira vez que de fato estou expondo minha Hoshi no Tama, nesse momento você tem literalmente minha vida em suas mãos, Yukari, enquanto você a tiver eu sou incapaz de afastar-me por um longo período de você, a menos que eu queira morrer, e você poderia ordenar-me qualquer coisa e eu não teria outra escolha se não a de obedecê-la cegamente, se me dissesse que te protegesse o faria com a minha vida, se me dissesse para morrer o faria, se me dissesse para salvar sua avó daria minha própria essência vital e a transformaria num ser praticamente imortal. — declarou e então ergueu as mãos abrindo-as e fechando-as lentamente diante de si, como se as estivesse vendo pela primeira vez agora — É estranho… sentir-me tão frágil e vulnerável assim… isso que é ser humano?

Deitou a cabeça de lado para olhá-la, mas Yukari estava paralisada com tamanho poder em suas mãos, ela virou a cabeça mecanicamente em sua direção.

—Será que poderia pegá-la de volta agora, por favor? — perguntou tensa.

Devolve-la ao seu lugar de origem foi muito mais fácil que retirá-la, e a Hoshi no Tama deslizou calidamente em seu peito até tornar-se um só com ele, Gintsune suspirou aliviado, ao seu lado Yukari também fez o mesmo.

—Uma vez quando eu tinha doze anos uma cliente pediu-me para segurar seu filho por um segundo, era um bebezinho recém-nascido, pequeno e frágil. — contou-lhe com a mão sobre o peito, ainda se recompondo — Nunca pensei que chegaria o dia em que eu ficaria tão apavorada novamente.

Gintsune fez uma careta.

—Oi! Você está comparando ter em suas mãos a minha valiosa Hoshi-no-Tama, com a sensação de segurar um bebê humano?! — protestou.

Pousando as mãos sobre o colo ela o olhou seriamente.

—Bem, porque era uma vida que eu estava segurando, não é mesmo? Ambos eram frágeis e cálidos, então simplesmente não vejo a diferença.

Gintsune olhou-a em choque por alguns segundos antes de, repentinamente, cair na gargalhada.

—Acho que você é a humana mais peculiar que já conheci em toda a minha vida Yukari! — declarou ainda rindo.

E continuou rindo até que sua risada fosse, naturalmente, morrendo aos poucos, fazendo assim com que um longo momento de silêncio se seguisse.

—Sinto muito pelo que disse antes. — ela murmurou — Mas pode levar-me de volta agora?

—É claro. — respondeu tranquilamente fechando os olhos.

As pessoas e os sons ressurgiram lentamente à sua volta conforme o rosto de Gintsune tornava-se novamente o do professor Haruna, e ali estava o seu pai vindo com mais um copo de café em sua direção, mas ele parou quando o viu.

—Professor. — cumprimentou.

Ao seu lado Gintsune ergueu a cabeça.

—Shibuya-san. — cumprimentou formalmente.

Seu pai girou o copo de café na mão.

—Lamento muito pelo incômodo causado por minha filha…

—Não foi nada. — Gintsune ergueu a mão — A vovó Shibuya é muito amada, o senhor sabe, e como ela está agora?

Seu pai passou a mão pelos cabelos e, de uma maneira bastante exausta, explicou que os médicos a tinham posto sobre observação, embora não tenha citado nada sobre a possibilidade de ela não voltar a acordar que Yukari havia lhe dito, provavelmente era um assunto apenas para a família.

—Professor, perdoe-me por incomodar lhe com mais esse favor, mas poderia acompanhar minha filha até em casa? — Yukari tentou protestar, mas o pai não a deixou falar, não havia nada que ela pudesse fazer pela avó ali afinal — Poderá dormir gratuitamente em um quarto na pousada, é claro.

Gintsune aceitou acompanhar Yukari até em casa, mas recusou o quarto na pousada, explicando que preferia passar a noite em sua própria casa antes de ter que retornar para o acampamento e “seus outros alunos”, na manhã seguinte.

—Tsubaki com certeza ficará bem. — Ele garantiu a ela enquanto o táxi que o deixara na entrada da pousada fazia seu caminho de retorno para descer a ladeira de volta à estrada e ela nem sequer reclamou por ele obviamente ter pagado o taxista com dinheiro falso — Aquela mulher é determinada demais para ser derrotada por uma quedinha de nada.

—Sim, você está certo. — ela ajeitou melhor a bolsa de viagem sobre o ombro — Obrigada por tudo Gintsune.

E lentamente começou a afastar-se em direção a pousada de sua família, mas quando se virou para olhar novamente, alguns poucos passos depois, a raposa não estava mais lá.

Para Gintsune coisas como invadir mentes humanas ou se manifestar em seus sonhos eram coisas tão simples quanto, como diziam os humanos, “brincadeira de criança”, mas ainda assim já fazia muito tempo que ele não fazia algo como aquilo pelo bem de alguém e não unicamente como forma de diversão.

Isso era culpa daquele tengu idiota, ele e a esposa é que o haviam amolecido desse jeito!

—Gintsune-sama. — ainda se lembrava da garota o chamando temerosa naquela noite, com os finos braços em volta de seu pescoço — Tem certeza que deveríamos mesmo estar fazendo isso? Meu marido…

—É o culpado por te deixar sozinha. — ele a interrompeu saltando por entre os galhos das árvores — E também não precisa saber de nada sobre isso.

—Não gosto de esconder coisas deles.

—Então contamos quando ele voltar. — deu de ombros.

—Mas… e se alguém nos vir? Eu sei que disse que sentia falta de minha família, mas acontece que foi escolha minha fugir, se eu simplesmente voltasse agora…

—Apenas confie em mim. — pediu pousando no chão e agachando-se para que ela pudesse descer — Cuidado onde pisa.

Avisou, mas a garota ainda permaneceu bem agarrada ao seu braço quando avistou a propriedade de sua família ao longe e arquejou aterrorizada.

—O que é isso?! — exclamou — Por que há tantos deles aqui?

Gintsune arqueou uma sobrancelha.

—Eles sempre estiveram aqui, você é que não podia vê-los, essa escória sempre está por toda parte. — afirmou — Bem, é claro que você pode vê-los agora, esteve por mais de um ano imersa em nosso mundo e, além disso, ainda possui consigo a força vital do tengu.

Embora não fosse tão normal assim que houvesse tantos daquela escória cercando uma única residência humana, mas ele propositalmente deixou de dizer isso, pois provavelmente à razão para o aumento do acumulo daquelas criaturas asquerosas era o pesar deixado em sua família por seu desaparecimento.

—Entendo, eu realmente já não pertenço mais a esse mundo, não é? — ela sorriu tristemente.

—Pode ser. — Gintsune evolveu sua cintura com um dos braços e a puxou para si, surpreendendo-a — Você pode sentir uma sensação engraçada agora.

Avisou usando a mão livre para pegar a dela, ainda surpresa a esposa do tengu tentou dizer alguma coisa, mas ficou desorientada quando Gintsune de repente usou a mão que segurava a sua para girá-la no ar.

—Gintsune-Sama, o que você está…?! — ela calou-se surpresa quando se deparou consigo mesma ainda nos braços dele, agora desfalecida.

—Você queria ver sua família, não é? — ele sorriu-lhe depositando o corpo cuidadosamente no chão. — Então o que acha de visitarmos os sonhos de alguns deles?

—O que você fez?

—Separei seu espírito do corpo, truque legal, não é? — riu.

—Estou morta? — perguntou assustada.

—Claro que não. — levantou-se lhe estendendo a mão, ele mesmo também fazendo parte do plano espiritual agora, embora não tenha deixado nenhum corpo físico para trás. — Então vamos?

—Mas… — ela aceitou sua mão hesitantemente — E quanto aos youkais?

—É apenas ralé. — assegurou levando-a pela mão — Mas não faça contato visual, eles podem ser realmente irritantes.

Aquela foi apenas a primeira noite de décadas de visitas esporádicas até a esposa do tengu finalmente aceitar de uma vez por todas que aquele mundo já não era mais o seu, e Gintsune achou que aquele seu truque em particular havia se aposentado da “carreira de caridade”, mas ali estava ele entrando no quarto de hospital de Tsubaki.

—Isso não vai ser nada bom para a minha reputação. — comentou de braços cruzados ao lado da cama. — Como posso ser um cretino egoísta se continuo a fazer essas boas ações?

Girou os olhos assumindo sua forma animal, porém ao invés de possuir patas traseiras dessa vez sua metade inferior consistia apenas em uma longa cauda fantasmagórica, e assim ele sobrevoou Tsubaki em círculos por duas vezes logo antes de mergulhar e entrar em sua cabeça.

Por trás das formas enevoadas e desbotadas Gintsune tinha a clara impressão de já conhecer aquela rua.

Aquela árvore estava bem menor, a casa de chás era amarela e não verde, e ali havia uma quitanda ao invés de uma farmácia, mas não lhe restava dúvidas, ele estava passeando pelas ruas do centro comercial de Higanbana… embora nunca o tivesse visto tão vazio e silencioso durante o dia, nem mesmo no verão… ali era dia, não era?

Ergueu a cabeça para olhar o céu pintado com um pálido tom de azul uniforme sem nuvens e nem sol, como uma pintura gasta e desbotada, foi quando ouviu vozes alteradas e ali perto a porta de uma das lojas abriu-se bruscamente, era a única que, entre todas as lojas daquela rua, tinha uma cor viva e definida: a loja de quimonos da família de Kaoru-chan.

Um jovem de talvez vinte e poucos anos saiu tempestuosamente dali carregando uma mala numa das mãos e com a outra enfiando um chapéu na cabeça.

—Tatsuki! — uma voz masculina o chamou de dentro da loja em tom furioso — Se sair por essa porta esqueça-se de que é meu filho!

Aos poucos, vultos fantasmagóricos e sem rosto, feitos de névoa branca começavam a se reunir em volta de Gintsune, eles pareciam assistir a cena junto a ele e cochichavam entre si, mas, apesar de sua excelente audição, suas vozes não passavam de murmúrios incompreensíveis aos seus ouvidos.

O jovem — Tatsuki — virou-se cerrando o maxilar tão fortemente que poderia quebrar os dentes.

—Pois então ade…!

—Onii-chan! — uma voz infantil e estridente o interrompeu.

Largando a mala Tatsuki caiu sobre um joelho a abriu os braços para receber com um abraço apertado uma criança de nove, talvez dez anos de idade no máximo, uma menina magricela de tranças que se agarrou chorosamente a ele enquanto lhe implorava que ficasse.

—Eu sinto muito, Tsun-Tsun, mas eu tenho de ir agora. — Tatsuki murmurou aos ouvidos da garotinha enquanto afagava seus cabelos, mas sua voz soou nítida como se ele estivesse logo ao lado de Gintsune — Eu vou te escrever sempre que puder, você vai me escrever Tsun-Tsun?

—Eu vou! Eu vou onii-chan! — a menina mais chorou do que falou.

E gritou desconsolada quando uma mão veio da escuridão e a puxou para dentro da loja novamente.

—Largue-o Tsubaki e deixe-o ir logo! Ele já não é mais nosso irmão!

Quando a porta da loja se fechou novamente todos os fantasmas de neblina e inclusive o próprio Tatsuki desapareceram.

Gintsune olhou a volta, a loja de quimonos da família Hongo continuava a ser a única nítida e completamente sólida naquela rua, então foi ali que ele entrou.

—Seja bem vindo. — uma adolescente usando tranças e quimono o cumprimentou por detrás de um balcão assim que o sino acima da porta anunciou a sua chegada.

Gintsune parou estático quando a viu. Yukari. Foi seu pensamento mais imediato.

Mas aquela garota não era Yukari, e aos poucos ele começou a se dar conta das sutis diferenças que as faziam pessoas completamente diferentes: aquela garota não tinha as orelhas propriamente grandes, no entanto as de Yukari eram menores e mais arredondadas, o formato do rosto também estava errado, Yukari tinha o rosto de formato oval como o da mãe enquanto aquela moça tinha o queixo levemente mais carregando, emprestando-lhe ao seu rosto uma forma mais quadrada, e a cor dos cabelos e dos olhos também estavam errados, Yukari tinha ambos em um profundo tom de castanho escuro, mas os daquela garota eram completamente negros tanto que lhe era praticamente impossível diferenciar as pupilas da íris e as madeixas pareciam ter reflexos em tom azulado.

Tsubaki. Deu-se conta de repente. Ele não estava no mundo real, estava dentro dos sonhos de Tsubaki, é claro que aquela era ela, assim como a garotinha de antes também era.

Mas quem poderia culpá-lo pela confusão? Quase meio século as separava e ainda assim Yukari e a avó compartilhavam praticamente o mesmo penteado e figurino, ele bem que tinha dito que ela se vestia como alguém da era Shouwa! Isso Gintsune não deixaria Yukari esquecer jamais.

—Senhor cliente? — a jovem Tsubaki o chamou novamente — Posso ajudá-lo em alguma coisa?

Ela não parecia estranhar em nada suas roupas fora de época, e tampouco a coloração de seus cabelos, ou as orelhas e cauda de raposa, é claro… pois afinal em sonhos tudo fazia sentido, por mais ilógico que fosse.

—Olá Tsubaki. — ele sorriu dando um passo a frente — Na verdade eu gostaria de uma yukata nova, algo simples de tecido leve, acontece que acabei pondo fogo na última.

Tsubaki levantou-se sorrindo e aproximou-se, foi quando Gintsune notou mais uma diferença marcante: Quando de pé ao seu lado o topo da cabeça de Yukari podia muito bem chegar à altura da ponta de seu nariz, já Tsubaki precisaria de alguma sorte — e talvez a ajuda de um par de getas — só para alcançar a altura de seus ombros.

—Talvez possamos encontrar algo que seja do seu agrado. — ela sugeriu docilmente enquanto se dirigia a algumas prateleiras no canto da loja.

Gintsune a seguiu, e já estava prestes a sugerir calmamente que talvez ela gostasse de sair daquela loja um pouco e, quem sabe, acordar, quando uma sombra negra começou a acumular-se entre os dois, até se condensar e se solidificar na forma de um homem com cabelos negros azeviche e constituição atarracada que também vestia quimono e agarrou o braço de Tsubaki, puxando-a e virando-a para si.

—Tsubaki! — o homem rosnou baixo com uma voz áspera. — O que é isso que encontrei em seu quarto?

Ele estava segurando um maço de papéis na outra mão, os olhos de Tsubaki moveram-se nervosamente do maço de folhas para o rosto do homem, até que se fixaram em seus próprios pés.

—É apenas o script para a peça que minha turma encenará no festival escolar. — respondeu baixo e sem erguer o olhar.

—Pensa em participar de uma baboseira dessas?

O homem não chegou a erguer o tom de voz, mas ainda assim a jovem Tsubaki pareceu tentar encolher-se para longe dele, porém ele a tinha firmemente presa em seu aperto, torcendo os lábios Gintsune avançou um passo em direção aos dois.

—Você está exagerando, agora solt…

Mas quando tentou agarrar o ombro do sujeito sua mão simplesmente atravessou-o e, por um segundo, a loja e todo o resto, com exceção dele próprio e de Tsubaki, se desfez em neblina, para logo em seguida voltar a se solidificar.

Tsubaki nada percebeu.

—É apenas uma peça para o festival escolar, Tatsuemon-onii-san. — murmurou para seus pés.

Irmão! O homem parecia ter quase idade o bastante para ser o pai!

—E quanto às suas obrigações? — o irmão exigiu saber — Quando pensava em arranjar tempo para esse seu capricho?

Uma gota de suor escorreu pela lateral do pescoço de Tsubaki e sumiu dentro da gola de seu quimono.

—É apenas um p-papel pequeno, e-eu pensei que t-tavez…

O irmão a soltou bruscamente.

—Nosso pai saberá sobre isso.

Afirmou ameaçadoramente virando-se e deixando-a ali sem dar-se conta da existência de Gintsune.

Paralisada no mesmo lugar, Tsubaki torcia as mãos nervosamente na altura do peito, mas bem no momento em que Gintsune tentou aproximar-se novamente para dizer-lhe que estava tudo bem e que eles deveriam sair dali agora, a garota saiu correndo repentinamente para os fundos da loja, sumindo através de uma porta.

—Espere! — chamou-a inutilmente — Não vá por aí…!

No cômodo seguinte o som das cigarras era praticamente ensurdecedor.

Gintsune parou surpreso por um segundo, no centro de uma sala de estar desbotada, Tsubaki sentava-se usando suas tranças e vestindo uma blusa azul de alças finas e uma saia que pouco lhe ultrapassava os joelhos — outro figurino que ele tinha certeza de já ter visto a neta usando — enquanto escrevia concentradamente algo numa folha de caderno.

—Essa é uma carta para Suki-kun?

Uma voz feminina perguntou por sob o som das cigarras, ao mesmo tempo em que a forma fantasmagórica de uma mulher com cabelos cortados curtos estilo chanel materializava-se se sentando ao lado de Tsubaki, sobressaltando-a.

—Ah… É você Mika-nee-chan, pensei que fosse… — ela levou a mão ao peito suspirando aliviada, e então sorriu docilmente — Sim, ele e Maria estão esperando um bebê.

Por um segundo o rosto da mulher mais velha turvou-se, e então ela baixou os olhos, alisando a barriga brevemente.

—Suki-kun deve estar feliz. — comentou — Eu sei que Tatsuemon também esperava que eu lhe desse filhos…

Mais do que depressa Tsubaki largou suas cartas por escrever e agarrou as mãos da cunhada.

—Eu sei que você e o onii-san terão filhos logo! — garantiu confiante.

—Será mesmo? — Mika duvidou melancólica — Já faz quase sete anos que nos casamos e…

—Tsubaki!

A voz grave que invadiu o sonho calou o som das cigarras e fez toda a cena estremecer, sombras se espalharam pelo cenário e de repente o ar tornou-se muito mais pesado ali enquanto Tsubaki escondia rapidamente suas cartas por sob as saias, Mika desaparecia e, em seu lugar um homem, de cabelos grisalhos sentava-se diante de si do outro lado da mesa.

—Dentre poucos dias você completará dezoito anos Tsubaki, e terminará o colégio em pouco mais de meio ano também.

Ele tinha um corpo atarracado como Tatsuemon, e bastante diferente de Tatsuki e da própria Tsubaki que eram de constituição esquia e delicada, mas seu rosto era quadrado, tal como dos três irmãos, os olhos eram bastante pequenos, mas ainda era possível ver ali o mesmo profundo tom de negro dos olhos de Tsubaki e dos irmãos, os cantos de sua boca estavam tão repuxados para baixo que Gintsune se perguntou se alguma vez ele já havia sorrido na vida.

As rugas e os cabelos brancos o faziam parecer ter idade o suficiente para ser o avô dela, mas levando Tatsuemon em conta era mais provável que fosse o pai.

—Sim, senhor. — Tsubaki respondeu baixinho, com os olhos fixos no tampo da mesa.

O pai acenou severamente antes de prosseguir:

—Por isso penso que já é chegada à hora de você assumir suas responsabilidades.

—Minhas… responsabilidades, senhor? — Tsubaki hesitou. — Eu cuido da loja todos os dias, deixei de entrar no clube de jardinagem durante o colegial apenas para me dedicar a…

—Não fez mais do que sua obrigação. — o pai a cortou bruscamente. — Mas agora já é hora de arcar com suas responsabilidades, você agora já é uma mulher feita, portanto é hora de assumir seu lugar na sociedade. — fez uma pausa, olhando-a severamente, como se testasse se a filha seria capaz de desafiá-lo, mas Tsubaki sequer se moveu, na verdade até mesmo sua respiração parecia ter sido suspensa. — Shibuya Takane anda a procura de uma noiva para seu herdeiro.

Tsubaki engasgou-se, e pela primeira vez ela demonstrou alguma reação, erguendo seus olhos repletos de terror.

—Noiva…? Casar-me?! Pai, eu ainda tenho apenas dezessete anos!

—Você já tem praticamente dezoito. — o pai a corrigiu desalmado.

A garota estava agora tão apavorada que as palavras saíram atropelando-se de sua boca:

—Mas… o senhor disse Shibuya? Aqueles da pousada na colina? Todos sabem que nessa cidade os Shibuya estão amaldiçoados! Dizem que Takane-san deu fim aos próprios tios para reaver sua herança…!

O pai da garota calou-a socando a mesa, e fazendo toda a sala tremer… Gintsune olhou a volta, aqueles tipos de reações só podiam significar que Tsubaki, aquela que agora era uma senhora tão sagaz e confiante, houvera convivido completamente aterrorizada pela imagem do pai durante sua juventude.

—Tsubaki, eu fundei essa loja de quimonos junto aos meus pais. Os Shibuya já são uma família antiga em Higanbana possuem uma prospera pousada e para nós, meros comerciantes recém-chegados de quimonos, um contrato com eles seria mais do que proveitoso.

—Um contrato. — a voz dela tremeu — Eu não passo disso para o senhor, meu pai? Um contrato?

Pelo visto as coisas não haviam mudado muito desde a época em que a esposa do tengu vivia entre humanos até a época de Tsubaki.

—Você é minha filha, e até que se case e se torne responsabilidade de outro, fará o que eu mandar.

A Tsubaki que Gintsune conhecia teria protestado, batido na mesa e se mostrado insubmissa, mas… aquela jovem garota limitou-se a baixar a cabeça e ficar em silêncio.

O cenário voltou a se transformar.

Tudo se desvaneceu em neblina e quando voltou a se reformar estava no que parecia ser a sala privativa de um restaurante tradicional, Tsubaki havia trocado as tranças por um coque bem elaborado e as roupas informais por um quimono formal.

Ela estava sentada em meio a um casal, o homem era seu pai e a mulher, visivelmente mais nova que ele, devia ser a mãe dela, do outro lado da mesa estava um par de homens que poderiam perfeitamente ser o “antes” e o “depois” um do outro, por sua incrível semelhança apesar da óbvia diferença de idade.

—Tsubaki é sempre muito calma, ela está habituada a quimonos e tem muita experiência com atendimento ao cliente. — dizia seu pai.

Os dois homens a olhavam atentamente, mas em nenhum momento Tsubaki ergueu os olhos, não até que se sobressaltou quando o homem mais jovem dirigiu-se diretamente a ela:

—Hongo… não, Tsubaki-chan, qual a sua bebida favorita?

Por meio milésimo de segundo os olhos de Tsubaki se arregalaram em pânico e ela ficou sem voz, mas logo seu pai adiantou-se:

—Chá! — bradou — Tsubaki está se aprimorando na cerimônia do chá também, é claro!

O home que era a versão mais velha franziu o cenho.

—Só está se aprimorando agora? — criticou — Nessa idade já…

—Tsubaki-chan. — o mais jovem chamou-a novamente, com a voz transbordando em gentileza — Você tem algum passatempo? Algo que goste de fazer?

Sua mãe segurou-lhe a mão por baixo da mesa.

—Sua costura é primorosa. — contou-lhes.

—Flores. — Tsubaki respondeu timidamente.

—Sim, flores! — seu pai exclamou energeticamente — Tsubaki faz os mais belos arranjos florais!

Gintsune sentiu o mundo pesar e comprimir-se a sua volta, mas mesmo se não tivesse sentido, a expressão de horror no rosto da jovem Tsubaki já lhe dizia tudo: ela obviamente nunca havia feito um arranjo sequer, seu interesse pelas flores se resumia à jardinagem. E o homem à sua frente também deve ter percebido a mesma coisa.

—Meu pai. — ele pigarreou — Penso que seria bom se Tsubaki-chan e eu pudéssemos ter alguns momentos a sós para nos conhecermos. — quando sua versão mais velha anuiu em concordância, ele colocou-se de pé e estendeu cortesmente a mão em direção à Tsubaki — Tsubaki-chan gostaria de tomar um pouco de ar fresco comigo?

Acenando timidamente a jovem aceitou a mão que lhe era estendida e levantou-se.

O casal nem sequer se deu conta da existência de Gintsune parado ali, e quando eles se foram, a sala privada e todos os restantes ali deixaram de existir, desfazendo-se em simples neblina.

Quando o espaço começou a se reconstituir a sua volta, Gintsune reconheceu o jardim da pousada, embora estivesse diferente de certa forma, pois não havia flores em canto algum, e virando-se ele avistou um casal junto no caramanchão às margens do outro lado do lago de carpas.

O homem vestia-se em trajes marrons, de paletó e chapéu á moda ocidental, mas a moça, pequenina e de cabelos negro azeviche caindo por sobre um ombro, era uma perfeita yamato nadeshiko em seu quimono com estampas de flores de camélia.

—Tsubaki… nosso noivado vai fazer dois anos, não é verdade? — disse o homem.

—Já tem dois anos. — ela o corrigiu sorrindo.

—É verdade, você acaba de completar vinte. — ele concordou — E quanto a mim, dentro de mais dois aniversários estarei mais próximo dos trinta do que dos vinte. Por isso meu pai já está a pressionar-me com o assunto do casamento, ele insiste que esse compromisso estar a se demorar tempo demais, mas também é por mim mesmo, Tsubaki, também estou ansioso pelo nosso casamento… e quanto a você?

—Eu… — ela hesitou.

O avô de Yukari — não havia como aquele homem ser outra pessoa — pegou a mão de Tsubaki entre as suas.

—É realmente um desejo seu aceitar-me como seu marido? — perguntou-lhe — Sei bem que foi trazida a esse acordo forçada por seus pais, por isso agora quero que me diga a sua vontade Tsubaki, gostaria de casar-se comigo?

—Eu…

—Caso queira recusar-me não tema, eu assumirei toda a responsabilidade e certamente ninguém a julgará, sei bem o que muitos dizem a respeito de meu pai nessa cidade…

Soltando-se de suas mãos, dessa vez foi Tsubaki a interrompê-lo, dando um passo a frente e envolvendo seu rosto com as mãos para puxá-lo em sua direção e beijá-lo.

—Estarei honrada em tornar-me sua esposa, Yukito. — assegurou-lhe.

Sorrindo o homem envolveu-a pela cintura e inclinou-se para beijá-la mais uma vez… mas acabou desvanecendo-se em neblina.

Deixada sozinha para trás Tsubaki suspirou e desceu lentamente do caramanchão e começou a afastar-se, mas a cada passo seu, seus cabelos e vestes iam se desbotando lentamente, e flores começaram a brotar e desabrochar por vários cantos do jardim, até que a velha senhora de cabelos grisalhos que Gintsune conhecera se sentou sozinha usando yukata branca como um fantasma para admirar seu jardim, a raposa decidiu então ir até ela e sentar-se ao seu lado.

Havia uma caixa de madeira laqueada entre eles.

—Eu plantei cada uma das flores desse jardim, como um tributo ao deus das flores. — Tsubaki comentou, embora Gintsune não soubesse se ela estava falando com ele ou consigo mesma. — Foi um agradecimento por ele ter-nos protegido em mais um “ano do binbougami”, mas ainda assim meu sogro ficou bem irritado comigo, “um jardim não deve ter flores”, ele sempre dizia, mas Yukito… ele sorria-me ternamente e trazia-me mudas de flores, suas favoritas eram as camélias.

Acenando afirmativo, Gintsune estava prestes a dizer qualquer comentário quando se surpreendeu com vozes exaltadas que vinham detrás de si, de dentro da pousada.

—É apenas o onii-chan discutindo com Tatsuemon e papai novamente. — uma Tsubaki novamente criança e de tranças lhe explicou, balançando as pernas para frente e para trás, ainda admirando o jardim — O onii-chan não quer passar o resto da vida aqui nessa cidade pequena vendendo quimonos, por isso ele não se dá bem com o papai e com o Tatsuemon-onii-san, e estão sempre brigando. Mas sempre que mamãe tenta intervir papai a manda se calar, porque eles não são filhos dela, então ela não tem que se intrometer. — a pequena Tsubaki o olhou com seus grandes olhos negros — Por isso que eu sempre espero aqui fora.

—É uma situação complicada. — comentou afinal — E quanto a você Tsubaki, não quer sair daqui?

Tsubaki olhou hesitante para sua mão estendida, mas esse momento só durou alguns meros segundos, pois logo em seguida as vozes dentro da pousada voltaram a se elevar furiosamente:

—Tatsuki! Se sair por essa porta esqueça-se de que é meu filho!

Ao ouvir aquilo Tsubaki se pôs de pé com um salto.

—O onii-chan está partindo! Ele vai abandonar-me aqui com eles! — percebeu angustiada.

—Tsubaki! — Gintsune chamou-a repentinamente agarrando seu pulso, antes que ela pudesse correr novamente para dentro e repetir mais uma vez aquele ciclo infinito. — Tsubaki. — chamou gentilmente — Já é tarde demais, você não pode mais alcançá-lo.

A pequena Tsubaki lançou lhe um olhar ferido e cheio de mágoa, mas justo quando Gintsune achou que ela tentaria fugir novamente a menina desistiu e ele soltou-a lentamente.

—Eu fui a única filha do segundo casamento de meu pai, Tatsuemon e Tatsuki compartilhavam a mesma mãe e tinham idades muito mais próximas também, mas sempre foi comigo que Tatsuki-onii-chan foi mais próximo… e mesmo assim ele abandonou-me aqui.— confessou voltando a se sentar, agora já uma adolescente, enquanto pegava a caixa de madeira e a colocava sobre o colo abrindo-a, mostrando-lhe dúzias e mais dúzias de cartas guardadas ali — Escrevi inúmeras vezes ao onii-chan para que me levasse com ele, mesmo que não quisesse voltar para me buscar, bastaria que me aceitasse e eu iria até ele… mas o onii-chan sempre se esquivou. Mesmo assim eu decidi por mim mesma que iria embora de qualquer forma.

—E o que aconteceu? — perguntou curioso.

Tsubaki deu de ombros.

—Eu tomei a decisão e comecei a juntar algum dinheiro, mas não consegui reunir coragem o suficiente, e ainda estava tentando reuni-la quando meu pai surgiu diante de mim com a história do miai. — seus cabelos estavam começando a ficar grisalhos novamente, e ela voltava a ser a mesma Tsubaki com a qual Gintsune já estava familiarizado, ao mesmo tempo em que as flores do jardim desabrochavam e se tornavam todas em higanbanas — Gin-kun, você sabe qual a semelhança entre meu irmão Tatsuemon, meu marido Yukito e meu filho Daisuke? — quando Gintsune balançou a cabeça a velha senhora riu — Todos eles são apaixonados por essa cidade, tenho a impressão de que eles não abandonariam Higanbana nem mesmo se ela queimasse até as cinzas.

—É uma cidade bonita.

—De fato é. — ela concordou — Essa é uma flor muito bonita que você tem no cabelo.

—Acha? — sorriu de lado. — Não passa de uma bugiganga de plástico barato é claro, mas, e não conte isso a ninguém, é um tesouro meu.

Tsubaki sorriu-lhe de maneira cúmplice.

—Então vou lhe contar um segredo também. — confidenciou-lhe — Quando me apaixonei por Yukito, acabei dando meu coração a essa cidade também. E agora veja: Yukito se foi e eu permaneço aqui, aqui nasci aqui cresci e aqui morrerei.

—Opa! Humanos tem vida curta, mas ao precisamos apressar as coisas!

Gintsune se sobressaltou com suas palavras, fazendo Tsubaki rir.

—Não se preocupe Gin-kun, não estou com pressa alguma. — garantiu — Minha neta Yukari, lembra um pouco de mim mesma quando era mais nova, sabe? Pergunto-me se ela acabará partindo como Tatsuki ou por fim acabará encontrando algo que a faça querer ficar… — De repente ela lhe lançou um olhar preocupado. — Você pretende levar minha neta, Gin-kun?

Gintsune arqueou as sobrancelhas, momentaneamente surpreso com aquela pergunta, antes de sorrir e responder calmamente:

—Tsubaki, a senhora é uma humana muito perspicaz, mas lamento desapontá-la porque sua neta e eu não temos nem de longe esse tipo de relação.

—Oh, é mesmo?

Ela o olhou de uma maneira tão cética que Gintsune não conseguiu fazer outra coisa a não ser jogar a cabeça para trás e gargalhar sonoramente.

—E também é incrivelmente teimosa! — comentou logo antes de tornar-se sério novamente. — Mas realmente não pretendo levar Yukari a lugar algum, é melhor para ela que escolha os próprios caminhos.

Vovó Tsubaki anuiu.

—Eu penso o mesmo.

Ficaram assim algum tempo em silêncio, sentados lado a lado admirando aquele jardim, até que Gintsune voltasse a falar:

—É um belo jardim. — comentou.

—Obrigada. — ela respondeu.

Seu tempo ali já estava se esgotando.

—Mas lá fora está um lindo dia também.

Os olhos de Tsubaki praticamente se fecharam quando ela sorriu-lhe.

—Essa flor no seu cabelo realmente é muito bonita. — elogiou-o novamente.

Gintsune sorriu de lado pegando-lhe uma das mãos enquanto passava a outra em seus cabelos grisalhos.

—Não posso dá-la a você, mas já que gostou tanto dela, o que acha de fazermos um acordo? — ele inclinou-se para frente e beijou-lhe a testa carinhosamente, quando voltou a se afastar estava de pé ao lado da cama da adormecida vovó Tsubaki, do lado de fora do hospital o dia já raiava — A senhora pode ficar com ele por enquanto, mas é melhor que desperte o quanto antes para que me devolva logo, vovó.

Quando o primeiro raio de sol entrou naquele quarto a raposa desapareceu.

As pálpebras de Tsubaki tremeram, em sua mão havia uma delicada presilha cor de rosa em formato de flor.

Sua mãe amava aos humanos, ela sempre os descrevia como as criaturas mais imprevisíveis da face da Terra, e que reagiam das mais diferentes maneiras às situações mais adversas e, como sempre, ela estava certa.

O chefe da família Shibuya, o mesmo que jamais se afastava de sua amada pousada e que ordenara à filha que retornasse para casa porque não havia nada que ela pudesse fazer pela avó no hospital, não havia retornado para casa desde que subira naquela ambulância mais de vinte e quatro horas atrás, — mesmo que os médicos lhe garantissem que ele poderia ir, pois ligariam para informar de qualquer mudança no quadro clínico —, de forma que foi sua esposa, aquela mulher sempre tão compassível e sem presença alguma, quem tomou as rédeas do negócio em sua ausência.

Estava cheia de preocupação e extremamente exausta, com certeza não havia dormido nem por um minuto na noite passada, isso estava visível em cada um de seus traços faciais, mas não se permitiria desmoronar, e bravamente seguiu servindo aos preciosos hospedes na pousada com uma expressão serena enquanto Yukari permanecia na recepção, apesar de não conseguir controlar suas expressões tão bem quanto à mãe… Seus olhos estão vermelhos. Ele pensou consigo mesmo enquanto pousava sobre o balcão com sua forma animal e olhava-a de perto se aproveitando do fato de que ela não podia percebê-lo no plano espiritual, mas não era capaz de dizer se era por ter estado chorando ou por estar segurando o choro até então.

Gintsune sabia que ambas levavam os celulares escondidos nos obis, mas foi o telefone do escritório aquele que começou a tocar e fez com que Yukari, em sua ânsia por receber noticias, abandonasse seu posto sem cerimônia alguma e corresse para atendê-lo.

Gintsune não a seguiu, mas agora em sua forma humana, embora ainda no plano espiritual, esperou pacientemente escorado com os braços cruzados ao lado da porta por longos minutos até que Yukari irrompeu dali como um furacão.

—Mamãe! — ela gritou correndo escadas acima — Mamãe é a vovó! Ela acordou! Papai disse que ela está bem…!

Ele sabia, Tsubaki era sem dúvida uma humana persistente, Gintsune sorriu consigo mesmo fazendo um movimento para sair dali quando se deparou com o Zashiki Warashi bem diante de si e arqueou as sobrancelhas com expressão surpresa, aquele camaradinha o evitava — ao mesmo tempo em que o vigiava periodicamente — a todo custo, e nunca aparecia assim de forma tão deliberada na sua frente.

Experimentou então dar um passo para o lado e gesticular com a mão, na intenção de lhe dar passagem para passar, mas o pequeno Zashiki Warashi continuou ali parado com o semblante contraído e todo o corpo tenso como se juntasse em si uma grande dose de coragem, Gintsune hesitou, será que deveria tentar dizer algo? Mas e se o assustasse? Tudo o que menos precisava agora era que aquele camaradinha saísse em debandada da pousada.

Por fim acabou pigarreando.

—Tem alguma coisa que queira…?

Calou-se quando o Zashiki Warashi abruptamente enfiou a mão na manga e puxou dali o seu tão precioso kiseru perdido, o qual estendeu em sua direção com ambas às mãos enquanto inclinava a cabeça humildemente.

—Então estava com você. — murmurou reflexivo, pegando cuidadosamente seu kiseru de volta e o pressionando contra o peito com um suspiro aliviado.

Afastando-se um passo para trás e sentando-se sobre os calcanhares o Zashiki Warashi pôs as mãos estendidas no chão, com as pontas dos dedos médios se encostando um ao outro e então se curvou profundamente, até que sua testa também estivesse apoiada no chão. E pela primeira vez Gintsune pôde ouvir a voz daquele pequenino espírito da boa sorte:

—Muito obrigado pelo que fez Raposa-sama, de minha parte você tem agora toda a minha gratidão.

E lá se ia toda a sua reputação.

 


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Notas finais do capítulo

Eu estava tentando economizar e me desapegar das notas iniciais e finais porque brevemente elas serão retiradas do site, mas é... ainda não consegui. ^^'

CURIOSIDADES DO JAPÃO:

Casamentos arranjados na sociedade Japonesa:
O Miai, ou casamento arranjado, tem uma longa tradição no Japão, principalmente na Era Meiji. O Nakoudo (intermediador do casamento entre as duas famílias) fazia um levantamento do passado da família do noivo e da noiva e do status social (o do noivo deveria ser superior ou equivalente ao da noiva).
Embora tivesse a permissão de se conhecer antes do casamento, o casal deveria acatar a vontade dos pais. Após a Segunda Guerra, o Código Civil estabeleceu o casamento como escolha individual, mas somente a partir do final dos anos 60 que os chamados "casamentos por amor" se institucionalizaram. Apesar disso os miais são praticados ainda hoje no Japão, embora cada vez mais raramente.

Família Japonesa:
Antigamente ao casar-se um mulher deveria cortar laços com sua família para assim integrar-se inteiramente à família do marido, sendo “adotada” como filha pelos sogros e “irmã” pelos cunhados, assim, atualmente faz parte da tradição japonesa ser tratado como filho(a) pelos pais dos cônjuge, e irmão(a) pelos irmãos de ambos os lados.

Yamato Nadeshiko: Se refere à "mulher idealizada", é como os japoneses se referem a uma mulher com atributos que são considerados tradicionalmente desejáveis na perspectiva dos homens da sociedade; geralmente atribuído a pessoas com educação tradicional. 

BESTIÁRIO:

Kappa: Um youkai aquático de altura próxima a de uma criança de dez anos, com uma carapaça de tartaruga nas costas e cujo poder provém de uma fonte de água armazenada em sua cabeça, se um kappa se curvar e derramar essa água ele perde seus poderes e, em alguns casos, a vida.

Tanuki: Espécie de youkai guaxinim capaz de criar ilusões e mudar de forma.

OBS:
O mito das raposas:
Nesse capítulo eu tomei alguma liberdade poética e fiz pequenas modificações nas lendas a respeito de raposas do Japão, pois não há em lugar algum (nenhum que eu tenha encontrado pelo menos) uma citação ao crescimento das caudas das raposas serem um processo penoso para elas e, como o próprio Gintsune mencionou, nos mitos as raposas geralmente carregam suas hoshi no tama junto de suas caudas ou na boca.



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