A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 12
11: Batatas assadas no fogo de raposa.


Notas iniciais do capítulo

Glossário:

Itadakimasu: expressão japonesa sem tradução para o português, dita antes das refeições.

Jinbei: são roupas mais confortáveis e casuais, tipicamente usadas no verão a vestimenta lembra um pijama ou roupão. São comuns em festivais de verão, mas de fato podem também ser usados como pijamas, roupas para se ficar em casa ou ir até lugares próximos (como lojas de conveniência etc).

Tsubaki: Flor de Camélia.

Yunomi: Tradicional xícara de chá japonesa.

P.S: Caso haja alguma palavra que não compreendam por favor avisem-me.



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Os olhos de Yukari arregalaram-se, e ela puxou a respiração de tal forma que pensou que explodiria quando não conseguiu gritar com o susto por causa da mão a tapar-lhe a boca, o que provavelmente também a impediu de botar o coração para fora.

Ao menos nos três primeiros segundos, até que ela deu-se conta de que ambos flutuavam.

Com as tranças flutuando em volta de sua cabeça uma indescritível sensação de leveza apoderou-se de seu ser, levando-a a pensar se não seria essa a sensação que tinham os astronautas quando entravam em gravidade zero, e estava tão distraída com todas aquelas sensações que quase não se lembrou de admirar a paisagem a sua volta até que a raposa suavemente pousou sobre o teto da pousada, dali podia-se ver toda a cidade ― e era linda, mesmo durante a noite ―, mas mal a ponta de seu pé tocou o telhado da pousada e ele voltou a saltar, dando a ela uma vista ainda mais ampla de Higanbana, e Yukari arregalou os olhos diante de tal visão.

Até que ela sumiu por detrás do prédio da pousada quando a raposa pousou no jardim interno no centro da construção e, por fim, colocou-a no chão.

Com as pernas bambas Yukari cambaleou para frente e agarrou-se ao quimono da raposa para não cair.

―Oras Yukari eu sei que sou irresistível, mas não a trouxe aqui para isso.

Ele riu soltando suas mãos dele e se afastando em direção ao caramanchão, deixando-a cair de joelhos.

―Estúpido. ― resmungou ― Para que me trouxe aqui afinal? 

Cerrou os dentes sentindo calafrios na espinha, aquele jinbei[i] definitivamente não era adequado para estar do lado de fora numa madrugada de outono.

―Para comer batatas doces assadas. ― a raposa respondeu.

Quando Yukari avistou o brilho de chamas azuis vindo do centro do caramanchão ela levantou-se e correndo aos tropeços gritou:

―Apague isso! Quer botar fogo em tudo?!

―Assim você me ofende Yukari, não vou por fogo em nada, só estou assando batatas. ― ele respondeu calmamente agachado próximo ás grades do caramanchão, de costas para ela e o lago de carpas ― Que tipo de youkai de fogo eu seria se não tivesse controle sobre minhas próprias chamas?

Ela parou ofegante e com o coração acelerado agarrando-se às grades vendo as chamas que aquele louco ascendera bem no centro do caramanchão sem qualquer delimitação de pedras que impedisse as chamas de se alastrarem... Mas enquanto ela olhava o fogo azul continuava queimando obedientemente no centro da construção, sem se alastrar ou precisar de qualquer combustível para continuar a queimar, nem mesmo soltava fumaça.

―Como... Como isso é possível? ― pegou-se balbuciando.

―Isso é fogo de raposa, não o compare a um fogo ordinário qualquer. ― a raposa sorriu arrogantemente agachada do outro lado das chamas com o rosto apoiado numa mão ― Ei, ei, Yukari, você sabia que humanos têm uma constituição realmente frágil? Bem, é claro que deve saber, você é uma afinal, mas eu já vi muitos que caíram doentes por mais de uma quinzena até só de pegar um ventinho desses... É melhor se acomodar logo aqui perto. Minhas chamas não vão te queimar, eu prometo, mas te aquecerão.

Yukari enrijeceu quando mais uma corrente de ar a açoitou, parecendo gelá-la até os ossos e, mesmo relutante, subiu os degraus e adentrou na construção, rodeando cuidadosamente as flamas até colocar-se ao lado da raposa e sentar-se ali, assim ao menor sinal de perigo ela só precisaria saltar sobre a murada direto para o lago de carpas...

―Você é muito desconfiada Yukari. ― a raposa comentou como se lesse seus pensamentos, sobressaltando-a. ― Vamos coma uma batata.

E dizendo isso enfiou a mão nua em meia às chamas ― tomando cuidado para, com a outra mão, segurar a ponta da manga do quimono para que não encostasse nas labaredas.

Yukari arregalou os olhos.

―Cui...!

A raposa a olhou inocente e confusa.

―O que?

―Nada. ― Yukari enrubesceu, ele produzia chamas, é claro que não se queimava!

―Tudo bem então. ― encolheu os ombros ― Aqui, pegue, mas cuidado para não se queimar, está quente.

E estava mesmo.

A batata pulou de uma mão para outra de Yukari, enquanto a garota soprava afobada até que o tubérculo finalmente esfriasse o bastante para que ela pudesse segurá-lo corretamente, que sorte que a noite estava fria.

―Você assou errado. ― avisou observando a batata enegrecida em mãos e ainda soprando para esfriá-la, embora com mais calma agora. ― Deveria tê-la enrolado em papel alumínio.

―Papel o que? ― ele a olhou, e então balançou a cabeça ― Ao menos experimente antes de reclamar, sua ranzinza.

Disse tomando a batata de suas mãos e então a partindo em duas ficando com uma das metades para si e devolvendo a outra a ela, enquanto dava uma mordida em sua própria metade.

Yukari franziu o cenho, mas decidiu experimentar.

―Itadakimasu[ii] ― ela mastigou... E engoliu. ― Está bom.

Admitiu relutante.

―Mas é claro que está! ― ele respondeu arrogante dando mais uma mordida.

―Onde você arranjou essas batatas afinal? ― Yukari girou os olhos, a raposa a olhou e piscou travessamente, Yukari cerrou os olhos e engoliu mais um pedaço ― Você roubou não foi?

Risonha a raposa encolheu os ombros.

―Eu peguei por aí. ― deu mais uma mordida em sua metade de batata assada.

―Então você roubou.

Ela o censurou com um suspiro balançando a cabeça, e então olhou para sua própria metade de batata assada já meio comida, seria errado comer algo roubado, mas também seria errado desperdiçar comida, resolveu comendo mais um pedaço.

―Mas sabe de uma coisa? ― ele perguntou comendo o ultimo pedaço de batata assada que tinha em mãos e enfiando novamente as mãos nas chamas, novamente segurando cuidadosamente a manga do quimono com a outra mão, para catar de lá mais uma batata.

Yukari o olhou.

―O que? ― engoliu.

Partindo também aquela segunda batata ao meio a raposa começou a dizer:

―Eu nunca dei a nenhuma humana batatas assadas em fogo de raposa, então não tenho ideia de que tipo de efeito colateral isso pode ter...

Yukari arregalou os olhos, e assustada engasgou-se com a batata ainda na garganta e curvou-se para frente tossindo e batendo no próprio peito.

―Eu só estou brincando, só estou brincando! ― a raposa riu dando tapinhas em suas costas até que ela se recompôs ― Não vai te acontecer nada, não há nenhum efeito colateral... Eu acho.

Disse com um sorriso.

Ele queria matá-la! Ele definitivamente queria matá-la!

―Vamos não me olhe assim, não tem risco, eu juro! Pode comer!

Segurando a respiração Yukari pousou a batata cuidadosamente sobre o colo.

―Você estava falando sério sobre aqueles efeitos colaterais?

Ele comeu pensativo.

―Realmente não sei... ― respondeu ― Eu apenas assei as batatas em fogo de raposa para você, não é como se eu tivesse te dado meu sangue ou parte de minha própria essência... A verdade é que eu não costumo me apresentar como raposa para muitos humanos, entende? Muito menos fazer amizade com eles, então você pode entender porque nunca tive muitas chances de testar quais seriam os possíveis efeitos colaterais que um experimento assim poderia causar... ― Yukari girou os olhos ao som da palavra “amizade”, mas não teceu nenhum comentário a respeito ― Pelo menos nunca aconteceu nada com aquela menina preciosa... ― mas virando o rosto para o lado oposto e passando a mão sobre o queixo resmungou consigo mesmo: ― Mas eu acho que não podemos considerar aquela garota como uma humana normal há muito tempo...

―Espere, espere. ― Yukari ergueu a mão ― Que “menina preciosa”?

―Hum? ― ele virou-se novamente para ela, como se houvesse se lembrado naquele instante de sua presença ali bem ao seu lado depois de ter esquecido-a momentaneamente ― Ah sim, se me lembro bem por aqui vocês devem conhecê-la como “a irmã do exterminador”, e você deve se lembrar dela também: A “princesa cuja beleza despertou até mesmo a inveja de uma raposa”. Há! Pura lorota!

Sorriu consigo mesmo balançando a cabeça e Yukari o olhou lembrando-se como, pouco depois de terem se conhecido, ele comentara sobre o quanto a lenda da Raposa de Higanbana estava errada, primeiro porque o exterminador capturara a raposa errada, e segundo porque não fora por inveja que a irmã do exterminador fora levada e sim por amor.

―Mas... A princesa era realmente tão bonita quanto diz a lenda? ― perguntou genuinamente curiosa.

Afinal tratava-se da princesa cuja beleza lendária fora capaz de cativar até mesmo àquela raposa narcisista que parecia ― de todas as formas possíveis ―, completamente incapaz de enxergar beleza em qualquer coisa além de si próprio.

Mas então, para a sua decepção, a raposa respondeu:

―Bonita? Hum... Talvez ela seja um pouco mais acima da média do que os padrões humanos estão acostumados, só isso. ― encolheu os ombros acabando com a primeira metade de sua segunda batata assada e logo passando para a outra ― Ah, e na verdade ela não é princesa alguma, apenas a filha de um damyo, embora fosse a filha favorita é verdade.

―Ah. ― murmurou desapontada brincando com a metade meia comida de batata assada em suas mãos.

―O que houve? ― a raposa perguntou de boca cheia, mas pelo menos teve a decência de engolir antes de continuar ― Parece meio desapontada.

―É que na verdade eu estava esperando por uma resposta diferente. ― admitiu com uma careta, embora sem levantar o rosto.

―Ah claro, me desculpe por estragar suas fantasias de criança então! ― ele desculpou-se com alegre falsidade.

Yukari suspirou impaciente.

―Então você assava batatas para ela? ― retomou o assunto.

―Ah sim! ― concordou ― Juntava folhas secas no quintal e as queimava para fazer a fogueira, não que minhas chamas precisem de algo para queimar, mas é mais divertido assim!

Ele lambeu os dedos ao terminar a segunda batata e estendeu a mão chamas adentro para pegar uma terceira, quantas ele havia roubado afinal?!

―E sequestrava-a do quarto no meio da noite para fazê-la acompanhá-lo também?

―Eu nem precisava! ― contou animado ― Eu mal ascendia o fogo e ela já saia correndo de casa dizendo que eu ainda ia incendiar alguma coisa, aquela garota sempre me trata como criança, age como se eu fosse um simples filhote inexperiente e bagunceiro, há! Dá para imaginar?

―Na verdade consigo imaginar isso perfeitamente bem.

Ele distraiu-se de sua comida apenas por tempo o suficiente para mostrar-lhe a língua ― numa atitude perfeitamente infantil ― antes de voltar a comer.

―Por outro lado ela também adora provocar-me. ― disse com a boca cheia. ― Mas acho que é justo, afinal eu também a infernizo sempre que posso.

―Você continua falando dela no presente. ― Yukari estranhou.

A raposa bateu as mãos uma na outra para limpá-las.

―E de que forma eu deveria falar dela?

―No passado, eu acho.

―Hum? ― ele parou a meio caminho de pegar outra batata assada ― Por quê?

Yukari ergueu as sobrancelhas, e desconcertada não soube o que dizer, afinal ela não era insensível e seria cruel de sua parte enfatizar para a raposa que aquela garota ― provavelmente a única que ele já amara ― por quem causara toda aquela confusão... Estava morta há muito tempo.

―Afinal não é como se ela tivesse morrido nem nada assim ― distraidamente ele tirou outra batata do fogo.

―Como é?! ― Yukari piscou. ― Ela não morreu?!

―Não. ― respondeu olhando-a com curiosidade enquanto comia ― Por que você achou que ela tinha morrido?

―Por quê?! Porque a história da raposa de Higanbana é bem antiga, a irmã do exterminador deve ter desaparecido há pelo menos...!

―Duzentos anos. ― ele respondeu engolindo ― Faz duzentos anos que aquela garota abandonou o mundo humano, posso dizer isso somente pelo crescimento de minhas caudas.

―Duzentos anos! ― Yukari exclamou ― Ser humano algum vive tanto tempo assim...!

Ela hesitou. Talvez a irmã do exterminador não fosse humana, afinal havia muita coisa errada na lenda da Raposa de Higanbana, por que isso também não?

―Ela é humana. ― a raposa declarou como se lesse seus pensamentos ― Mas acho que já faz algum tempo que ela não pode mais ser considerada uma “humana normal”...

―Se ela é realmente humana como pode estar viva há tanto tempo? ― deixou-se levar pela curiosidade.

―E ainda está bem mais conservada do que você imagina. ― a raposa piscou.

Yukari arqueou as sobrancelhas.

―Como?

Terminando de comer a raposa limpou novamente as mãos uma na outra.

―Acontece que aquela criança recebeu sobre si uma dádiva pela qual muitos humanos ao longo da história já cobiçaram e mataram tentando conseguir.

―Você está me enrolando, não está? ― Yukari cerrou os olhos.

―Claro que não! ― a raposa riu esticando o braço e pegando as chamas na palma de sua mão ― Eu me refiro à força vital de um youkai.

―A força vital… de um youkai? ― balbuciou incrédula.

―Eu te disse que ela foi levada por amor, não disse? ― ele sorriu languidamente observando a bola flamejante na sua palma, até que fechou a mão e a extinguiu, e só então voltou a olhá-la ― O amor é capaz de nos levar a fazer loucuras e coisas realmente idiotas, isso serve tanto para youkais quanto para humanos, de fato um youkai pode amar tanto a um ser humano que pode até mesmo dar a ele parte de sua própria essência vital, abrindo mão assim de alguns preciosos anos de vida seus e presenteando o humano com uma longevidade prolongada de forma imensurável.

E pensar... Que uma raposa tão egoísta e egocêntrica quanto àquela, realmente seria capaz de um ato como aquele simplesmente por amor, e ainda mais por amor a uma humana, no fundo de seu ser Yukari sentiu-se, de alguma forma, tocada com aquilo.

―Oi! Você está chorando?!― ele se assustou.

―Não é nada. ― Yukari secou a lágrima do canto do olho direito antes que ela caísse propriamente ― É só que é tão bonito...

―Ah, isso. ― ele sorriu ― Bem, realmente minha beleza pode ser demais para alguns humanos, não há como se acostumar, tudo bem pode admirar-me e chore o quanto quiser, eu sei o quão emocionante pode ser estar diante de um ser tão esplêndido quanto eu...

―Não isso. ― Yukari irritou-se, francamente, como ele pudera mesmo ter sido capaz de amar algo além de si mesmo? ― É que você realmente deve amar muito à princesa.

―Hã? Ah sim, claro que a amo. ― ele levantou-se se espreguiçando, esticando os braços para o alto ― Como eu disse, ela é alguém muito preciosa.

Yukari estava encantada com aquilo, isso era tão bonito... Não, espere um pouco, era errado, muito errado, mas afinal o que é que ele tinha na cabeça?!

―Se você a ama tanto quanto diz por que continua saindo com esse monte de pessoas por aí? ― o censurou.

―Mas o que uma coisa pode ter haver com a outra? ― perguntou tirando o cachimbo de cabo longo de dentro da manga e dando uma tragada.

―Cretino!

―Oi! Por que está ficando irritada agora? ― ele surpreendeu-se, mas então de repente compreendeu o que se passava ali e com uma risadinha explicou ― Ah, não, eu a amo, mas não desse jeito. Por Inari, Yukari você realmente achou que eu seria tolo o bastante para me apaixonar por uma humana e jogar por suas regras? E ainda mais para abrir mão de preciosos anos da minha vida por ela?

―Como assim? ― Yukari piscou ― Não se apaixonou?

―Óbvio que não. ― riu dando mais uma baforada no cachimbo.

―Mas disse que ela foi levada por amor!

―E foi.

―Disse que o exterminador pegou a raposa errada!

―Com certeza que pegou. ― deu uma risadinha.

―Deu-me a entender que era você a raposa que ele procurava!

―E era ― sorriu.

―Está me confundindo de propósito!

―Com certeza que estou! ― gargalhou ― Mas tudo bem, tudo bem, eu vou te explicar tudo, de qualquer forma isso já está perdendo a graça mesmo. ― foi o que ele disse, mas o sorriso em sua cara mostrava justamente o contrário. ― Ouça, séculos atrás um jovem tengu visitou o mundo humano pela primeira vez, este tengu me era muito querido, como um irmão, e por isso eu fiz questão de avisar a ele que não se aproximasse demais nem se envolvesse com humanos e nunca, sob hipótese nenhuma, desse seu nome a um humano, só que ele, como o bom idiota que é, não apenas aproximou-se e falou com uma criança humana como também ficou absolutamente fascinado por ela, já que era a primeira humana de verdade que ele via em sua vida, e tão fascinado ficou que esperou por toda uma década para revê-la, só que quando eles se reencontraram ela já não era mais uma menininha, porque vocês humanos nascem, crescem e morrem com uma velocidade absurda, e os dois acabaram se apaixonando.― suspirou ― Um completo idiota, relacionamentos entre youkais e humanos quase nunca acabam bem, por isso é que são um tabu para ambas as espécies, mas em fim, como já era de esperar, porque a sua espécie é realmente muito frágil e efêmera, a humana acabou adoecendo e ele, para não deixá-la morrer, deu a ela parte de sua própria vida, depois disso os dois fugiram juntos e ela abandonou o mundo humano ao lado dele. Pode imaginar? ― descrente ele balançou a cabeça levando o cachimbo aos lábios ― Eu disse a ele que tomasse cuidado com os humanos e ele não só deu seu nome a uma como de brinde também deu parte de sua vida e a levou para nosso mundo. Eu tive altos instintos assassinos nesse dia, que amigo mais estúpido eu tenho!

Apoiando-se na murada do caramanchão ele jogou a cabeça para trás soltando a fumaça para o alto.

―E aqueles dois deram sorte, porque eu costumava ser um andarilho, mas naquela época tinha decidido parar por uns tempos e... Só descansar, porque sem mim ali para protegê-los eles certamente teriam sido mortos, não que a minha decisão de ficar tenha tido qualquer coisa haver com eles, e hoje os dois estão casados e têm dois filhos meio youkais ― a raposa virou-se e afastou-se, saindo do caramanchão ― De qualquer forma, depois de ouvir tudo isso você pode dizer que eu realmente tive alguma escolha além de amá-la? Afinal ela é a amada de meu estúpido irmão tengu. ― e com uma risada completou ― Mas se eu tivesse feito algo imbecil como me apaixonar por ela, então com certeza que ele nunca me perdoaria!

Ainda absorvendo tudo o que tinha ouvido Yukari ficou sentada ali por mais um momento, raposas sempre foram conhecidas em lendas por seus truques de ilusões e suas pegadinhas e romances com humanos, mas aqueles que eram verdadeiramente conhecido entre os youkais por roubar humanos ― especialmente mulheres e crianças ― eram os tengus.

De repente a garota levantou-se e correu atrás da raposa.

―Oi! Oi! Espera um pouco! Se o que me disse é mesmo verdade porque é que o irmão da princesa procurou por uma raposa e não por um tengu?!

Tirando o cachimbo da boca a raposa a olhou por cima do ombro.

―Isso é porque às vezes aquela garota ficava solitária naquele mundo monstruoso, e quando isso acontecia, ela começava a sentir muita falta de sua família... ― ele fez uma pausa, levando novamente o cachimbo aos lábios ― Mas ela tinha fugido de casa e se casado com um youkai, então não tinha jeito de ela poder visitá-los, mas eu odiava vê-la daquele jeito, porque você sabe, eu a amo, então às vezes a levava para visitar os sonhos de seus familiares. ― encolheu os ombros ― Só que eu não sabia que o irmão menor dela era... Um pouco mais sensível que o normal, então sempre que ele sonhava com a irmã ele também se sentia cercado por todos os lados pela energia de uma raposa, com certeza foi isso que o levou a acreditar que tinha sido uma raposa que lhe roubara a irmã. Pois é, isso é o que ganhamos quando somos bonzinhos.

Encolheu os ombros girando o cachimbo entre os dedos e, logo depois, o guardando dentro da manga do quimono, Yukari o olhou, não estava acostumada aquele lado da raposa que parecia amar e que realmente se importava com alguém além de si mesmo.

―Mas e quanto à raposa de Higanbana?

―Ah, quem sabe? Deve ter cruzado o caminho do exterminador por acaso, e talvez tenha matado uma ou outra mulher humana por aí que nada tinha haver com a irmã do exterminador, mas acabou havendo um mal entendido aí... De qualquer jeito isso evitou que nossos caminhos se cruzassem, então foi melhor para mim. ― ele a olhou ― Ah! Vai comer isso?

Ele apontou a meia batata assada parcialmente comida que ela nem sequer percebera que ainda estava segurando.

―Não, pode ficar.

E aí estava novamente, a mesma raposa mesquinha e egoísta de sempre.

―Ei Yukari, que flores são aquelas?

Perguntou virando-se e se aproximando de um arbusto enquanto comia.

―São camélias. ― Yukari respondeu o acompanhando, abraçando a si mesma numa falha tentativa de proteger-se do frio.

―É estranho. ― ele comentou agachando-se próximo ao arbusto, cujas flores estavam desabrochando um pouco mais cedo naquele ano ― Um jardim com flores.[iii]

―Foi minha avó quem plantou as flores. ― respondeu. ― Com exceção dos lírios aranhas, porque não importa quantas vezes os tiremos, eles simplesmente continuam a brotar.

Na verdade aquele jardim tinha um histórico tão antigo quanto à própria pousada, mas no começo era em sua maior parte um jardim zem[iv], até que no fim da década de dez, depois da primeira Guerra Mundial, o jardineiro Nakamura Yamato, marido de Nakamura Ume a segunda proprietária da pousada ― e única mulher a já a ter herdado ― recém retornado da guerra o transformou num jardim de chá, supostamente como uma forma de terapia e de esquecer-se dos horrores da guerra, lembrando a si mesmo de que ainda havia beleza naquele mundo, mas somente décadas mais tarde é que o jardim viria a receber algumas flores, quando a avó de Yukari as plantou ali em 1992 durante o segundo Ano do Bibougami, mesmo sendo apenas uma simples nora da família na época, para conseguir a proteção do deus das flores.

―Hum... Mas e quanto a essa cerejeira aqui? ― ele perguntou levantando-se e saltando para o lado da árvore.

―A cerejeira já estava aqui mesmo antes da pousada.

E em mais de um século aquilo fora a única coisa que nunca mudara.

―Hum... ― fez tocando o tronco da árvore e erguendo os olhos para sua copa de folhas alaranjadas ― Estou vendo...

―Meu pai diz que devemos sempre respeitar e tratar cuidadosamente esta árvore, e o pai dele também dizia isso, e o pai do pai dele também. ― comentou se aproximado, tinha a sensação de que só se mantendo em movimento é que ela evitaria congelar até a morte. ― Porque é apenas graças a essa cerejeira que a pousada existe.

Ainda com a mão sobre o tronco da cerejeira a raposa a olhou.

―O que quer dizer?

Yukari parou ao seu lado, também erguendo os olhos para a copa de folhas alaranjadas da árvore.

―É apenas uma história antiga, uma lenda...

“Diz-se que certa vez, um homem muito rico decidiu que construiria sua mansão aqui nesta colina, de onde poderia ter uma bela vista de toda a região, porém havia essa bela árvore aqui que todos os anos dava maravilhosas flores, e seus empregados perguntaram o que deveriam fazer com a árvore, talvez replantá-la?”

“Apenas a derrubem”

“Foi o que o homem disse, mas naquela noite ele foi visitado em sonhos por uma bela mulher de olhos incandescentes, e essa mulher suplicou a ele que não derrubasse aquela árvore, pois ela era seu lar desde muito tempo, porém o homem não lhe deu atenção, afinal era apenas uma árvore e aquela mulher podia muito bem arranjar outra árvore qualquer para morar.”

“Mas, por mais que tentassem os machados nunca conseguiam alcançar o tronco da cerejeira, suas lâminas desviavam-se, agiam como se não quisessem machucar a árvore, acidentes começaram a acontecer por toda a parte e noite após noite a mulher de olhos incandescentes visitava ao homem em seus sonhos e suplicava para que lhe poupasse sua árvore, até que um dia o homem perdeu a paciência e decidiu ele mesmo derrubar a cerejeira, estas terras lhe pertenciam afinal! E se ele quisesse por aquela árvore abaixo, então ele poria!”

“Ele sacudiu o machado bem alto para que todos o vissem e então o cravou no tronco da árvore! E ali o machado ficou. O homem praguejou e puxou e puxou, mas a lâmina estava simplesmente presa, ele continuou a puxar e puxar até que, de repente, gritou alto, berrando de dor quando uma corrente elétrica o atingiu, saindo direto do tronco da árvore, atravessando pelo cabo do machado e grudando suas mãos ali, e continuou gritando e gritando até que caiu morto no chão.”

“E ao olharem para o alto viram ali a bela dama sentada sobre os galhos da cerejeira encarando-os com furiosos olhos incandescentes.”

“Nesta árvore ninguém tocará!”

“Ela bradou, e desde então ninguém nunca mais ousou perturbar aquela árvore, para não provocar a fúria da Dama da Cerejeira que nela mora.”

―O que foi? ― Yukari perguntou ao ver a raposa dar uma risadinha cobrindo os lábios com a ponta da manga do quimono.

―Oh não, não é nada. ― respondeu, ainda sorrindo por detrás da manga ― Apenas lembrei-me de alguém a quem amo muito, isso parece exatamente o tipo de coisa que ela faria, exceto pela parte de dirigir a palavra á humanos, é claro, mas matar um para proteger uma árvore... Isso é bem o tipo de coisa que ela certamente faria. Ela sempre amou as flores, entende? Sempre foi tão delicada e gentil...

Olhando-o de forma estranha Yukari afastou-se um passo para trás.

―Mas eu não entendi. O que é que essa história tem haver com a pousada da sua família? Porque é graças à árvore que ela está aqui?

―Depois do incidente com a Dama da Cerejeira essas terras foram consideradas amaldiçoadas e abandonadas por décadas... ― começou a falar, ainda olhando-o de forma estranha ― Ninguém queria ter posse desse terreno, ou mesmo chegar perto dele, até que um dia um jovem chamado Kobayashi Jouchiro as ganhou numa aposta e mesmo sendo chamado de louco por todos ele decidiu construir aqui uma pousada, mas preservou onde estava a cerejeira... Diz-se que todos os dias dezenas de pessoas vinham de longe só para alugar um quarto aqui e ter a chance de ver a Dama da Cerejeira que só aparecia durante a noite sob o luar adormecida nos galhos.

―Ah... Entendi. ― ele guardou as mãos dentro das mangas do quimono, e olhou para a árvore de cima a baixo ― Mas não tem nada aqui.

―É claro que não. ― Yukari abraçou-se um pouco mais forte tentando conter um tremor de frio. ― Aquele homem, se é que ele existiu, provavelmente foi morto por um raio ou coisa assim, mas o povo é supersticioso demais e meu ancestral tirou proveito disso. E isso é tudo.

―Entendi. ― ele cobriu a boca com a ponta da manga ― Não acha que é um pouco cética demais para alguém que fala diariamente com um youkai raposa?

―Tanto faz. ― Yukari encolheu os ombros.

Mas logo em seguida ela curvou-se para frente cobrindo o rosto com as mãos ao espirrar, a raposa arqueou as sobrancelhas.

―Bem! Acho que já é hora de te levar de volta! ― afirmou ― É o mínimo que posso fazer para compensá-la por ter comido as batatas assadas comigo.

Mesmo que ele na verdade a tivesse sequestrado até lá e ela não tivesse comido nem meia batata.

Mas assim que ele deu um passo adiante, disposto a carregá-la novamente, Yukari o impediu estendendo uma mão e agarrando a parte da frente de seu quimono, ainda curvada para frente com uma mão sobre o rosto cobrindo o nariz e a boca para prevenir-se de um segundo espirro.

―Não. ― negou ― Levar-me de volta para o quarto depois de ter-me arrancado da cama e me mantido aqui fora no meio da madrugada não é nada mais que sua obrigação! Se eu ficar doente em pleno dia esportivo por sua causa, vai precisar de bem mais que isso para compensar-me.

Inclinando a cabeça de lado e segurando a mão que lhe agarrava o quimono a raposa perguntou:

―Então o que quer de mim?

...

Yukari comprimiu os lábios e cruzou os braços, tamborilando impaciente com os dedos, onde ele estava?!

“Então o que quer de mim?”, fora o que ele lhe perguntara na noite passada e ela, ainda segurando firmemente a parte da frente de seu quimono com a mão dele sobre a sua, respondera:

―Quero que me ajude a treinar para o dia esportivo.

A verdade é que não fora apenas a representante a ficar impressionada com as habilidades atléticas daquela raposa.

―Quer que eu a ajude a treinar? ― repetira e sorrindo concordara: ― Tudo bem, por mim não tem problema.

―Ótimo. ― Yukari puxou a mão. ― Então amanhã à tarde depois da escola, vou pedir uma folga ao meu pai e nos encontramos no pátio posterior.

―Ah... ― o sorriso dele foi diminuindo até sumir ― Amanhã à tarde?

―Sim ― Yukari arqueou as sobrancelhas, juntando as mãos na altura das coxas ― Algum problema?

―Não, é que... ― ele guardou as mãos dentro das mangas ― É uma pena, amanhã à tarde eu ia encontrar-me com Eno-chan.

―Quem é? ― franziu o cenho.

―Ah, você não a conhece. ― ele virou o rosto de lado, acenando displicente com a mão ― Ela é uma fotografa, está na cidade a turismo, conheci-a uns dias atrás e ela, compreensivelmente, ficou completamente deslumbrada pela minha estonteante aparência e achou que seria uma boa ideia fotografar-me ao entardecer nos campos de flores, parece que a minha presença ajudaria a embelezar ainda mais a paisagem.

Ele era tão irritante!

―Bem, então se você não pode... ― Yukari lhe deu as costas já se afastando.

―Espere, espere! Só espere um pouco Yukari! ― ele a deteve, segurando-a pelo ombro ―Eu disse que te ajudaria a treinar, não disse? Além do mais eu estou te devendo essa!

Yukari o olhou por cima do ombro.

―Então ainda vai me ajudar?

―Mas é claro! ― concordou de prontidão, porém logo depois suspirou ― Mas é uma pena, Eno-chan vai embora da cidade logo depois de amanhã.

E agora onde ele estava?!

Yukari o estava esperando há mais de meia hora e nada!

Mas a culpa fora sua mesma, afinal que tolice essa sua de ter acreditado na palavra de uma raposa... Irritada Yukari girou nos calcanhares e voltou para casa, abriu a porta lateral para entrar, e havia acabado de tirar os sapatos quando pensou ter ouvido vozes e parou o que fazia, apurando os ouvidos para ter certeza.

―... Criança muito séria! ― ouviu sua avó dizer ― Assim como o pai!

―Crianças não deviam ser tão sérias assim.

Seus olhos se arregalaram quando ouviu a voz da raposa responder, e mais do que depressa Yukari correu para a cozinha, quase tropeçando nos próprios pés para chegar lá e abriu a porta de correr empurrando-a com tal força que quase a arrancou, assustando aos dois indivíduos presentes ali dentro, a combinação mais estranha de todas: Sua avó e a raposa sentados a mesa da cozinha conversando enquanto bebiam chá tranquilamente.

A raposa ergueu uma mão.

―Yo.

Yukari apontou.

―O que você faz aqui?!

A raposa olhou da yunomi[v] de chá que tinha em mãos para ela.

―Hum... Bebendo chá?

―Yukari, que grosseria! ― sua avó a repreendeu ― Se convida um amigo seu até aqui não deveria deixá-lo esperando dessa forma.

Yukari piscou.

―Como é? Amigo? Esperando?

―Que cruel. ― a raposa fez beicinho ― Não foi você mesma que me pediu para vir ajudá-la a treinar hoje?

Naquele dia ele havia optado por usar as roupas que tinha roubado no distrito comercial e tinha os cabelos escuros compondo o seu “disfarce humano”.

―O pobre rapaz está te esperando há mais de uma hora. ― sua avó balançou a cabeça ― Eu o encontrei no pátio lá fora, a princípio pensei que fosse um hospede, embora aquela seja uma área restrita a funcionários e familiares... Mas ele me disse que estava esperando você.

―E aí a senhora simplesmente convidou-o para entrar e tomar chá?! ― assustou-se Yukari.

―Bem, é claro.

―Mas era um estranho!

―Mas ele disse que era amigo seu. ― sua avó sorveu um gole de chá, como se tivesse toda a razão do mundo.

―Vovó!

― Estamos em Higanbana, Yuki e, diferente do que o nome e as histórias que contamos para atrair turistas sugerem, nada de assustador, sinistro ou remotamente perigoso nunca acontece aqui, é uma das vantagens de se morar no interior.

―Ainda assim...!

―Vamos, vamos Yukari, não se zangue com sua avó, ela é uma senhora muito simpática. ― apaziguou a raposa sorridente, e virando-se novamente para a avó de Yukari disse ― Então... Vovó “Tsubaki”, como as flores de camélia[vi] no jardim lá fora?

―Ah! Já viu meu jardim? ― ela animou-se.

―Sem dúvida. ― ele concordou sorridente, mas não disse nenhuma palavra sobre ter achado o jardim estranho ― Mas a senhora estava me falando sobre a Yukari quando criança, vovó Shibuya.

―Ah sim, é verdade. ― sua avó apoiou o rosto de lado sobre a mão ― Mas não precisa me chamar de vovó Shibuya, sabe? Pode me chamar de Tsubaki-san se quiser.

―Vovó! ― escandalizou-se Yukari.

―Está vendo só? Sempre tão séria... ― sua avó a dispensou com um aceno de mão.

―E tão ranzinza! ― a raposa acrescentou ― Eu sempre digo a ela que vai ficar grisalha e enrugada, mas ela não me escuta!

Yukari correu para agarrar-lhe o braço e puxar a raposa de seu lugar.

―Tudo bem, já chega! ― interveio ― Vai me ajudar a treinar ou não?!

―Hã? Ah sim, tudo bem. ― ele tomou seu último gole de chá e saiu ― Foi bom conhecê-la vovó Tsubaki!

―Claro foi um prazer. ― sua avó acenou amigavelmente, mas quando Yukari virou-se para segui-lo o seu tom mudou completamente ― Yukari.

Apreensiva com o tom sério, tão raramente usado por sua avó, Yukari virou-se.

―Sim?

―Ele é muito bonito e parece ser muito agradável também, mas você tem apenas dezesseis anos. ― afirmou seriamente.

Os olhos de Yukari se arregalaram.

―O que? Não...! Vovó...! Não é isso! ― negou ― Quero dizer ele deve ser pelo menos dez anos mais velho que eu! Impossível!

E com “pelo menos dez anos”, Yukari queria dizer definitivamente uns mil.

―Hum... É claro. ― sua avó concordou, mas não parecia nada convencida.

―Eu posso ir?

―É claro.

Mais do que depressa a garota correu dali e quase trombou com a raposa do lado de fora de casa.

―Então sua avó me acha bonito? ― ele sorriu convencido.

Yukari o empurrou.

―Estava escutando?! ― zangou-se.

―Não é minha culpa, eu escuto muita coisa. ― ele encolheu os ombros. ― Eu tenho uma audição consideravelmente apurada, sabia disso?

―Que seja, você vai me ajudar ou não? ― ela passou por ele.

―Já disse que sim, por que continua me perguntando? ― ele perguntou a seguindo ― Mas quer que eu a ajude com o que? Você me disse para ajudá-la, mas ainda não me disse o que exatamente vai fazer no dia.

Yukari abaixou-se para pegar um par de cordas no chão e virou-se as mostrando à raposa.

―Corda dupla. ― ela entregou uma das pontas das cordas para a raposa enquanto amarrava a outra ponta num poste de varal ali perto ― Você só tem que bater as cordas pra mim.

―Uma pergunta.

―O que? ― ela o olhou.

―Por que você está usando o uniforme de ginástica da escola?

―É mais prático usar calças para pular corda do que saias ou quimonos. ― respondeu, e ao notar que ele ainda não havia compreendido virou o rosto para o outro lado e bufou ― Me desculpe se não possuo outras roupas além de saias e quimonos!

―Yukari... Você realmente se veste como uma velha. ― ele disse num misto de decepção e pena.

Ela o fuzilou com os olhos.

―Eu não preciso ouvir isso de um velhaco com mais de mil anos de idade!

―Só que eu não tenho mil anos. ― ele encolheu os ombros e começou a bater as cordas.

Yukari firmou os pés e esperou pela chance de pular... E passados três minutos ela ainda continuava esperando.

―Oi... Você vai pular ou não? ― ele suspirou impaciente.

―Espere! Eu estou esperando o momento certo!

―O momento certo já passou umas setenta vezes. ― reclamou olhando para o alto. ― É só pular.

―Eu vou pular...! Agora...! Não...! Agora...! Não...! Por que você parou de bater as cordas?

―Você não ia pular! ­― ele riu diante de sua cara contrariada ― Por que não tenta agora com as cordas paradas? Deve ser mais fácil!

―Eu vou chutar você! ― ameaçou ― Realmente vou!

―Tudo bem, tudo bem. ― ele rendeu-se, erguendo as mãos e deixando as cordas caírem. ― Olhe... Não seria mais prático se houvesse mais alguém para bater as cordas? ― perguntou se abaixando para juntar as cordas ― Não que isso vá ajudar na sua inépcia. Você é horrível.

―Imbecil. ― Yukari cruzou os braços. ― E para sua informação é por sua culpa que eu não posso pedir ajuda a nenhuma das minhas amigas.

Ainda agachado a raposa olhou para cima.

―Como é? Minha culpa?

―Sim.

―E por quê? ― ele levantou-se segurando as duas cordas numa mão só.

―Porque com você aqui eu não me atrevo a chamar minhas amigas aqui e expô-las ainda mais a você e, depois da última vez, também não me atrevo a ir a casa de nenhuma delas, sob o risco de ser seguida por você!

―Hum... Você ainda está pensando naquilo? ― ele coçou o ouvido com a ponta do mindinho. ― Mas se o caso é esse então é fácil de resolver.

―Eu não vou chamar nenhuma delas aqui!

―Não... Eu não estava pensando exatamente nisso.

E, como numa miragem, sua imagem duplicou-se quando uma segunda raposa semi transparente surgiu por suas costas e Yukari piscou, achando estar vendo dobrado, mas isso fez apenas a segunda raposa tornar-se mais sólida ainda ao invés de desaparecer, até que pareceu tornar-se tão real quanto o verdadeiro.

―Isso resolve o problema.

Disseram as duas raposas ao mesmo tempo, fazendo Yukari cambalear um passo sentindo-se desorientada, enquanto uma delas se dirigia às pontas das cordas que ainda estavam amarradas no poste do varal para desamarrá-las de lá.

―Como você... Vocês? Fez isso?

―Truque simples de raposa, se eu quiser posso criar uma assim. ― a raposa da esquerda, que Yukari julgou ser a original, estalou os dedos ― Agora venha, vamos tentar de novo.

―Acho melhor você começar do meio dessa vez, ao invés de tentar pular para dentro com as cordas já batendo. ― sugeriu a cópia à direita.

―Isso é muito desconcertante. ― reclamou posicionando-se entre os dois.

―Ah, você se acostuma. ― garantiram as raposas.

Certo, ela duvidava muito disso, mas antes que pudesse dizer o que pensava as cordas já começaram a girar.

...

Mas não levou muito tempo para chegarem à conclusão de que o treino havia sido completamente miserável, pois depois de apenas uma hora Yukari já estava completamente sem fôlego e se ela havia conseguido pular mesmo que apenas sete pulos seguidos sem tropeçar isso já fora muito!

―Francamente, você é completamente incompetente. ― disse a raposa parada acima de si estalando a língua, Yukari só não sabia dizer se se tratava do original ou da cópia. ― Sua avó deve ter mais fôlego que você.

―Cale-se. ― silvou por entre os dentes, ainda de quatro no chão, tentando recuperar o fôlego.

―Desculpe, é que estou um pouco surpreso, como consegue passar o dia inteiro correndo na pousada e servindo os hóspedes sem parar, mas perde o fôlego com uma simples corda dupla que nem sequer pulou direito? ― ele agachou-se ao seu lado, apoiando o queixo sobre a mão ― E por que escolheu pular corda dupla se é claramente incompetente para isso?

Yukari sentou-se e jogou a cabeça para trás soltando todo o fôlego de uma só vez.

―Foi coisa da representante. ― respondeu.

Ele a olhou.

―A representante?

Yukari concordou.

―Corda dupla é uma das modalidades unissex do Dia Esportivo, mas são precisos no mínimo três alunos para formar um time e quando a representante questionou na sala ninguém quis levantar a mão então ela apontou e disse “Hongo, Shibuya, vocês estão na minha equipe”. ― suspirou lamentosamente ― Francamente eu preferia apenas assistir ao Dia Esportivo, mas a representante não aceita um “não” como resposta.

―Ser amiga da representante nem sempre é uma vantagem, é?

A raposa levantou-se com uma risadinha e estendeu-lhe a mão, e Yukari aceitou sua ajuda com mais um suspiro de cansaço.

―Ei, ei, que tal se fizermos diferente dessa vez e ao invés de você pular, eu pular para que você possa ver como se faz? ― ele juntou as palmas das mãos animadamente.

Yukari o olhou de forma desconfiada.

―Quer que eu o veja pular?

―Claro! Claro! ― ele a puxou até a sua posição inicial.

A cintilante pulseira prateada que ele usava no pulso parecia ser feita de um desconhecido, mas rígido, material, porém quando ele colocou o dedo por detrás dela e a puxou a pulseira tornou-se maleável e elástica, e a intensidade se seu brilho também aumentou enquanto ele a usava como um elástico para amarrar os cabelos num rabo de cavalo alto.

―Do que essa pulseira...? ― ela começou a perguntar.

―Certo! Certo! Vamos começar agora! ― ele saltitou de volta para a posição em que ela estava antes.

―Pode bater as cordas? ― a cópia perguntou do outro lado ― Então, um, dois...

Com um suspiro resignado Yukari começou a girar as cordas

Mas ele era insuportavelmente perfeito!

E isso era tudo o que Yukari conseguia pensar enquanto via a raposa pular as cordas, saltitando alegremente de um pé para o outro sem nunca vacilar ou errar e até brincava fazendo gracinhas.

E o maldito nem sequer suava!

―80! 90! 91! ― ele contava alegremente.

―Será que você pode parar de ser tão perfeito? ― reclamou finalmente, já completamente frustrada.

Em resposta ele jogou a cabeça para o alto com uma gargalhada.

―Por que não pede para as folhas pararem de cair no outono e as flores não desabrocharem na primavera? ― debochou sem parar de pular ― E 111!

Finalizou a contagem saltando para longe e deixando-a ali, a sua frente o clone perdeu materialidade tornando-se novamente uma figura semitransparente bidimensional, que se dobrou no ar como uma folha de papel e então simplesmente desapareceu tal qual uma miragem que nunca esteve ali antes, as pontas das cordas que ele segurava antes caíram inofensivas no chão.

Tentando não ficar muito impressionada com aquilo ― afinal, supostamente já deveria estar acostumada ― Yukari limitou-se a girar os olhos e virando a cabeça chamou:

―Oi! Seu vadio! Vai continuar a ajudar-me ou não?

A raposa havia se deitado no chão a alguns metros dali, e erguendo um braço no ar ele acenou para ela sem lhe dar a mínima atenção ao responder:

―Esqueça! Você é causa perdida!

Contrariada a garota de tranças deixou as cordas de lado e marchou em sua direção, disposta a puxá-lo de volta pela orelha, mas quando já se aproximava ele comentou:

―Sinta só isso Yukari! Não é um cheiro agradável?

Pega desprevenida Yukari parou, tentando sentir o aroma ao qual ele se referia.

―Que cheiro? ― perguntou por fim, quando não pôde identificar nada.

―O vento! ― ele fechou os olhos, inspirando profundamente ― Cheira como outono!

―Que besteira. ― discordou ― Não sinto cheiro algum.

―Pois eu sinto. ― ele reafirmou, inspirando profundamente mais uma vez e sorriu consigo mesmo.

Yukari bem que gostaria de saber qual era o cheiro do outono, mas visto que isso era impossível ela limitou-se a agachar-se, abraçando os próprios joelhos com um braço enquanto a outra mão cutucava-lhe o topo da cabeça.

―Falando assim você realmente parece um velhaco sabia? Quantos anos você realmente tem afinal?

Ele abriu os olhos, sorrindo ao piscar para ela e responder:

―Menos da metade do que você pensa.

―Ei, sobre as batatas assadas de ontem à noite. ― Yukari lembrou-se subitamente, cerrando os olhos ― Você as roubou do clube de jardinagem do colégio, não foi?

Yukari não sabia muito sobre o assunto, apenas ouvira por alto no colégio que algo acontecera à horta do clube de jardinagem, parece que algum animal havia atacado uma parte dela ou coisa assim.

Um animal... Claro.

―Opa! Acabou a hora do descanso! ― a raposa levantou-se com um salto ― É melhor voltarmos a treinar logo! Vem tempestade aí!

Disse afastando-se rapidamente dela, Yukari levantou-se e correu atrás dele.

―Espere um pouco aí! Você não me respondeu! ― reclamou ― E de que tempestade está falando?! O céu está limpo!

―Vem tempestade aí! ― ele reafirmou, dando a volta para esquivar-se dela.

―Mentiroso! ― Yukari esbravejou, sacudindo o punho no ar.


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Notas finais do capítulo

Curiosidades do Japão:
Os jardins zem são um tipo de jardim japonês dedicado a meditação e contemplação, composto principalmente por areia e pedras ele praticamente não possui vegetação alguma.
Os jardins orientais, comumente chamados “Jardins japoneses” (apesar de terem surgido na China) mais antigos tradicionalmente não possuem flores, pois elas eram consideradas fúteis, concentrando-se assim principalmente no verde, atualmente muitos jardins japoneses possuem flores, porém sempre com discrição e sem chamar atenção, mas Gintsune viveu numa época onde ainda não havia flores nos jardins.



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