A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 10
09: Aquilo que as raposas temem.


Notas iniciais do capítulo

Primeiro capítulo do ano, então feliz ano novo e obrigado por voltarem.
E obrigada a NortheastOtome1087 por vir me acompanhando até aqui.
Mas será que é apenas ela que está aqui? Se houver mais leitores, que por favor se manifestem... Mesmo que seja para dizer apenas um Olá.

GLOSSÁRIO:

Futon: Tipo de colchão enrolável feito para se por em pisos tipo tatame. É formado por um shikibuton (inferior) e um kakebuton (acolchoado grosso).

Shinigami: Do japonês “Shi” (morte) e “gami” (deus), literalmente “deus da morte”.



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Uma chuva de pétalas.

Dezenas, não, centenas delas caindo lentamente vindas ao que parecia do nada, caindo sobre a mulher de longos cabelos prateados e lábios vermelhos carmim que parada de pé no centro do circulo de luz prateada mantinha o rosto voltado para o alto e os olhos perfeitamente fechados, tentando apenas sentir a sensação das pétalas caindo sobre si.

Mas não sentia.

As pétalas que caiam sobre si, surgiam do nada e desapareciam antes mesmo de tocar ao chão, e a mulher inspirou profundamente tentando sentir, ao menos, uma sombra do perfume que devia estar ali, impregnando todo o ar.

Mas não estava.

Não havia qualquer rastro do perfume das flores, e abrindo os olhos ela estendeu a mão e observou uma pétala desaparecer antes de tocar-lhe a palma.

Isso porque não havia pétalas ali, era tudo apenas uma ilusão criada por ela.

Ainda assim, enquanto olhava aquelas pétalas caírem um tênue sorriso marcou seus lábios, mesmo que fossem somente uma ilusão criada por ela, logo mais elas seriam reais.

Pois ele viria para libertá-la.

***

Naquela noite Yukari havia sido dispensada dos trabalhos noturnos na pousada, o que foi bom, sempre era bom receber uma folga, e geralmente quando tinha algum tempo livre ela gostava de navegar na internet que era, basicamente, a sua única janela com o mundo exterior, o seu único meio de ver além daquela cidadezinha minúscula onde ela estava presa desde o seu nascimento.

Mas não dessa vez, dessa vez Yukari não buscava na internet pelo que havia além de Higanbana e sim por uma forma de se livrar da raposa.

Dessa vez ele havia ido longe demais.

—Yukari, beba isso em meu lugar! — disse a raposa surgindo ás suas costas e deixando uma caixinha de leite ao seu lado — As meninas disseram que é costume beber uma dessas depois do banho, mas é nojento! Eca!

Ela ouviu o rangido do colchão, que indicava que a raposa havia se jogado em sua cama, o abusado!

—Ei, o que você está fazendo aí?

—Buscando formas de exorcizar uma raposa. — respondeu impassível.

—Mas por que você procuraria algo assim? — ele perguntou despreocupadamente.

Sem conseguir mais se conter Yukari girou a cadeira para encará-lo de frente.

—Porque você tomou banho com minhas amigas! — exclamou raivosa.

A raposa estava deitada de lado em sua cama com o rosto apoiado sobre um punho fechado.

—Ora, por que você está tão zangada? Eu a convidei para vir junto.

Dois pontos vermelhos entraram em erupção nas bochechas de Yukari.

—Pervertido!

A raposa franziu o cenho.

—Você fica me chamando de pervertido, mas eu ainda não entendi o porquê.

—Você tomou banho com minhas amigas! — acusou. — No balneário feminino! Junto com outras mulheres!

—E daí? — ele arqueou uma sobrancelha — Não há nada demais em garotas tomarem banho juntas...

—Só que você não é uma garota!

Olhando-a com um misto de pena e paciência a raposa disse lentamente, como se quisesse ter certeza de que ela seria capaz de compreender:

—Bom, não agora. — fez uma pausa, como que para ela absorver suas palavras e então continuou — Mas talvez você tenha notado que eu estava um pouco diferente naquela hora? Digo, eu entendo que sou extremamente belo, mas você não pode se deixar fascinar sempre por isso Yukari e ficar desatenta para os pequenos detalhes... Naquela ocasião eu estava menor, sabe? E também tinha um par de s...

—Você assumir uma forma feminina não te torna uma mulher! — Yukari o interrompeu completamente rubra, se de vergonha ou de raiva nem ela mesma sabia dizer.

Sentando-se com as pernas cruzadas em posição de lótus e as mãos sobre os pés a raposa a olhou com uma absurda curiosidade.

—Ora. Claro que torna. — disse simplesmente.

—Não! Não torna!

E de repente teve uma pequena sensação de dejavú, pois era exatamente a mesma discussão que tivera com ele noite passada na terma feminina.

A raposa inclinou a cabeça de lado.

—Yukari. — chamou — Se eu me pareço com uma mulher, sinto como uma mulher e penso como uma mulher... O que me falta para ser uma mulher?

—Você não pensa nem sente como uma mulher de jeito algum! — ela retorquiu. — Você só usa aquela aparência feminina para se divertir, tirar proveito e manipular os outros!

Ele encolheu os ombros.

—É verdade que é bem mais fácil escapar da limpeza de classe e das outras tarefas quando se é uma garota fofa. — admitiu. — Mas ainda assim minhas transformações não são simples ilusões Yukari, elas são verdadeiras, eu poderia até engravidar se quisesse...

Yukari arregalou os olhos.

—Mentiroso! — acusou.

—Não estou mentindo. — negou calmamente — Até onde eu sei, a minha mãe pode até ser a mãe da minha irmã tanto quanto pode ser o pai, e o mesmo vale para o meu pai. — encolheu os ombros — Coisas como feminino e masculinho são um pouco mais complicadas quando se é um youkai raposa.

De repente percebendo que ele a estava enrolando Yukari sacudiu a cabeça:

—Mas hoje usou essa forma para tomar banho com minhas amigas!

—É, usei. — ele a olhou — Como eu já disse, não há nada demais em garotas tomarem banho juntas...

—Você não é uma garota.

—Eu não entendo porque você está tão zangada. — suspirou — Tire esses pensamentos sujos da cabeça, você pensa que eu apenas tirei proveito para ver as garotas sem roupa, mas eu só queria companhia... De qualquer forma. — corrigi-se rapidamente — Eu não tenho necessidade de usar truques para ver coisas assim, porque eu faria isso... — disse isso enquanto, diante dos olhos de Yukari, seu corpo transformava-se novamente para uma versão feminina, e afastando levemente um lado da parte de cima do quimono completou: — Quando eu tenho um corpo muito mais atraente que o de qualquer humana?

—S-seu...!

—Além disso. — ele continuou, voltando a forma masculina — Eu não tenho o menor interesse em você ou qualquer uma de suas amigas. Então fique tranquila.

Yukari franziu o cenho.

—Você está dizendo esse monte de coisas aí, mas se esquece que já me deixou até com calos nos ouvidos de tanto me obrigar a escutar sobre as suas aventuras com mulheres diversas todas as noites?

Franzindo o cenho ele a olhou por alguns segundos, como se não compreendesse o que um assunto tinha haver com o outro, e então levando uma mão aos cabelos soltou um longo e pesado suspiro ao perguntar:

—Você está achando que eu não posso ser uma mulher porque tenho interesses em mulheres, é isso? — perguntou — Se é assim, seguindo pela sua linha de raciocínio, eu também não posso ser considerado um homem e tomar banho do lado masculino?

—Por que não?! — Yukari surpreendeu-se.

A raposa a encarou.

—Parece que você se esqueceu, ou então simplesmente se obrigou a ignorar, mas eu também te conto sobre minhas aventuras com homens, porque também tenho interesse neles. — revelou e, encolhendo os ombros, prosseguiu — Sejam mulheres, homens, ou o que for nada disso me importa, desde que chame minha atenção.

Dessa vez Yukari não corou, nem se zangou se ofendeu ou demonstrou qualquer outro tipo de emoção, apenas deu as costas à raposa, girando a cadeira com o rosto impassível.

—Bem, agora acho que entendo melhor você. — disse.

—Entende? — ele alegrou-se.

Geralmente Gintsune não se importava muito com o que os outros pensavam dele — até porque se se importasse uma de suas maiores diversões não seria justamente irritar e provocar os outros —, mas o mundo humano era de uma solidão quase opressiva e Yukari era sua única companhia ali, porém ela não seria de uma companhia muito boa se não o compreendesse, ao menos um pouco, embora ele não ligasse que ela se irritasse com ele, afinal o tengu e sua esposa estavam sempre se irritando com ele, e era até mais divertido assim.

 —Sim. — Yukari respondeu inexpressiva — Você é simplesmente um pervertido.

Ela ouviu os pés da raposa pousando com um baque no chão e já esperava que ele viesse para próximo de si incomodá-la, mas ao invés disso a raposa foi até a janela e abriu-a.

—O que está fazendo? — perguntou retomando sua pesquisa na internet.

Talvez fazer um exorcismo por si mesma fosse muito complicado, e até perigoso, quem  sabe ela não devesse ir a algum templo comprar um amuleto?

Seu pai havia sido terminantemente contra a visita de um exorcista, mas alguns amuletos não fariam mal algum...

—Estou indo embora. — a raposa lhe respondeu.

—Por quê?! — perguntou virando-se surpresa.

Geralmente era muito mais difícil fazê-lo ir embora, e quase nunca por vontade própria.

A raposa olhou-a com uma expressão tão séria que a assustou, Yukari não o conhecia há muito tempo, mas ele parecia sempre tão descontraído e despreocupado que ela nunca imaginara que ele seria capaz de fazer uma expressão com aquela.

—Você claramente está mais rabugenta hoje do que o de costume. — ele respondeu, embora fosse óbvio que ele é quem estava realmente zangado ali, fazendo até mesmo Yukari imaginar se havia dito algo de errado para irritá-lo daquela forma — Mas não se preocupe, eu já estou indo!

Ele colocou o pé sobre o batente da janela.

Yukari encolheu os ombros.

—Faça como quiser. — ela virou-se novamente para seu computador, afinal não era como se ela quisesse que ele ficasse em seu quarto.

Os latidos de um cão foram ouvidos do lado de fora.

Yukari esperou que a raposa fosse embora, mas ele ficou onde estava.

—Não disse que ia embora? — ela perguntou, se ele estava esperando que ela lhe pedisse para ficar iria se decepcionar.

Mas a raposa continuou parada.

—Oi! — Chamou-o irritada, se fosse para ir que fosse logo! Mas se fosse para ficar, ao menos fechasse a janela! Mas quando Yukari virou-se o viu completamente pálido, praticamente paralisado com os olhos arregalados e quase sem respirar, a garota franziu o cenho — Ei... Você está bem...?

Novamente o cão latiu do lado de fora e mais rápido do que os olhos de Yukari puderam registrar a raposa como um borrão branco virou-se e correu para sua cama, jogando-se ali na forma animal onde se deitou sobre a cauda, ocultando-a totalmente sob o corpo, e escondeu a cabeça debaixo do travesseiro.

—Não vá pulando na minha cama desse jeito! — ela reclamou se levantando — Você não me disse que iria embora? — mas, quando a raposa não respondeu, ela começou a perceber que havia algo errado — Oi? O que houve? — quando o tocou ela percebeu que ele tremia, seus olhos se arregalaram e, surpresa, retirou a mão rapidamente — O que você tem? O que aconteceu?

Do lado de fora o cão voltou a latir, parecia que estava se afastando — talvez perseguindo algo, ou simplesmente fazendo barulho nem motivo — e um tremor, como um espasmo pareceu tomar conta de todo o corpo da raposa, os olhos de Yukari voltaram a se arregalar.

—Está com medo do cachorro lá fora! — deu-se conta — As raposas temem aos cães!

—Apenas cala-te e anda rápido para fechar a janela! — ele gritou com a voz abafada pelo travesseiro.

Sem saber o porquê, talvez tenha sido o pânico na voz dele, Yukari apressou-se a obedecer, como se também temesse que a qualquer momento um cão demônio fosse saltar pela janela para dentro de seu quarto.

—Pronto! Já fechei! Já fechei! — disse e, depois de parar para respirar um pouco para se acalmar, tentou acalmá-lo também — Sabe, animais são proibidos na pousada para não incomodar os hóspedes, e não é comum cães subirem até aqui, ele com certeza só estava de passagem, então não há porque ter medo...— a raposa nem se mexeu, aproximando-se Yukari continuou falando — Ouça, eu acho que ele já foi... Você está me ouvindo?

Quando o tocou a raposa afastou-se para o canto quase como se fosse atravessar a parede — coisa que ela sabia que ele era capaz de fazer se quisesse — encolhendo-se e olhando-a com olhos arregalados de terror.

Yukari suspirou.

—Acho... Acho que você pode ficar aqui hoje. — cedeu por fim — Mas só essa noite está bem?!

Porém ela mal havia alcançado a porta quando um punho fechou-se em volta de seu pulso.

—Aonde você vai? — ele perguntou a segurando, de volta a sua forma humana, mas ainda com a mesma expressão aterrorizada no rosto.

—Vou buscar um futon para você, aqui é uma pousada, sempre temos muitos sobrando. — explicou pacientemente.

Ter um homem dormindo em seu quarto já ia além de qualquer limite, mas ainda por cima que os dois dormissem juntos na mesma cama, era...!

—Vai lá fora?!  — ele alarmou-se.

—Eu volto logo.

Prometeu soltando-se, sem saber dizer se o pânico da raposa era mais por ela estar “se arriscando” a ir lá fora ou por ser deixado só, provavelmente era a segunda opção.

Ele era, afinal, egoísta demais para se importar com alguém além de si mesmo.

—O futon já está pronto. — ela avisou, quando terminou de arrumar o futon ao lado da cama, mas a raposa, que tinha estado escondido e encolhido numa bola sob as cobertas durante todo o tempo nem pareceu ouvi-la. — Oi! — chamou — Oi!

A bola de cobertas encolheu-se ainda mais, Yukari suspirou impaciente.

—Tudo bem. — disse por fim — Eu fico no futon.

...

Da mesma forma que acontecia todas as manhãs, os jovens estavam se dirigindo à escola, e quando Ayaka Shiori juntou-se a eles ninguém deu atenção, era só mais uma aluna indo ao colégio afinal, e não havia nada de estranho nisso, mas o que ninguém reparou... É que ela havia vindo de um beco sem saída.

Mas e daí? E se tivessem percebido? Não era como se ela houvesse simplesmente se materializado do nada no meio daquele beco sem saída... Mas era exatamente o que tinha feito.

Fosse a curtas ou longas distâncias, Gintsune sempre se movia pelo plano astral, voando para onde quer que fosse e então, passando de um plano para o outro ao chegar, e assim se materializando num piscar de olhos.

Bem mais rápido e menos cansativo do que simplesmente caminhar por aí.

—Ayakashi-chan! Bom dia!

Uma garota o chamou quando Gintsune parou em seu armário para trocar os sapatos, seu nome era... Minori! Isso! Minori Himari! Himari-chan!

Era sempre tão difícil memorizar o nome e o rosto de tantos humanos... Principalmente quando Gintsune não tinha interesse algum neles.

—Ah, bom dia Himari-chan. — cumprimentou sorrindo dando um leve aceno com a cabeça, ao mesmo tempo em que abria seu armário...

Só para que, pelo menos, meia dúzia de cartas caísse dali.

Ignorando-as Gintsune retirou os chinelos de dentro do armário e começou a tirar os sapatos.

—Ah! Que maldade Ayakashi-chan! — Himari-chan reclamou.

Guardando os sapatos no armário Gintsune a olhou.

—O que?

—Todas essas são cartas de amor? Declarações? — a garota perguntou apontando as cartas amontoadas aos seus pés, algumas sobre as quais ele até mesmo pisava em cima.

—Parece que sim. — respondeu calçando os chinelos. — São poucas hoje... Parece que vim cedo demais.

—E você nem mesmo liga para elas! — Himari-chan acusou.

—Eu tinha que trocar meus sapatos.  — afirmou inocentemente, fechando a porta do armário.

E só então se abaixando para recolher as cartas do chão.

—Que cruel Ayakashi-chan!

—Ora, vamos Himari-chan, eu estou juntando tudo, não estou?

—Ainda assim, você é tão sortuda! — ela reclamou.

Gintsune sorriu, sorte? Oh não, aquilo não tinha nada haver com sorte.

Ele era belo, independente da forma que assumisse ele ainda continuava sendo belo, e os humanos eram tão fáceis, viam um rosto bonito e já acreditavam estarem apaixonados, e Gintsune era tão belo, como alguém poderia não se apaixonar por ele?

—Acho que sim. — concordou caminhando ao lado de Himari-chan — Mas você também é muito fofa, Himari-chan, aposto que tem vários admiradores.

A garota corou.

—N-na verdade não. — admitiu. — Mas você parece bem popular, não é? Quantas cartas já recebeu?

—Eu... Hum... — ele folheou os envelopes contando-os — Trinta e um.

—Trinta e um! — Himari-chan arfou.

—Essa semana.

—Mas hoje ainda é terça-feira!

—E deve haver mais delas na hora da saída. — riu.

E ele nem estava contando com as declarações feitas pessoalmente.

—Que sortuda!

—Bom dia meninas.  — Nishitake Keita as cumprimentou quando Gintsune colocou a bolsa sobre sua mesa no lugar ao lado.

—Bom dia.  — Himari-chan sorriu.

—Bom dia Keita-kun. — Gintsune sorriu sentando-se.

Foi quando ouviu uma pequena comoção, vinda de uma dupla de garotas que, junto às janelas, davam gritinhos animados e uma delas, Shizuka-chan, virou-se acenando.

—Himari, venha! — chamou.

—O que está acontecendo ali? — Gintsune perguntou a Keita-kun quando Himari-chan se afastou.

Apoiando o rosto numa mão o garoto respondeu de forma meio aborrecida:

—Provavelmente estão olhando o clube de atletismo de novo.

—O clube de atletismo?

—É. — bufou — Eles têm treinado desde cedo, e também até mais tarde por causa do dia esportivo na semana que vem.

—Dia esportivo? — Gintsune piscou — Que dia esportivo?

—Na semana que vem... Teremos o dia dos esportes, e as turmas vão competir umas com as outras... — foi deixando de falar lentamente, ao perceber que Gintsune não tinha a menor ideia do que ele falava — Não falamos de outra coisa já há duas semanas, mais ou menos...

—E por que eu não soube de nada? — perguntou arqueando as sobrancelhas com surpresa.

Keita-kun o olhou por alguns segundos antes de responder hesitante.

—Bem... Você sempre foge das reuniões depois da aula, nunca aparece no seu dia de limpeza, é constantemente expulsa da sala ou dorme, e quase não assiste nenhuma aula... Digo. — pigarreou — Provavelmente ninguém te disse nada porque não percebemos que você não sabia, não que tenhamos a esquecido! É só que... Que...!

Gintsune controlou-se para não rir do desconcerto do garoto.

—Eu entendo.

—Provavelmente é tarde demais para entrar numa equipe agora, mas talvez se você falar com a representante ou o professor Haruna, já que ele é nosso professor conselheiro talvez ele possa...!

—Certo, obrigada, então talvez eu faça isso. — concordou já se afastando.

De qualquer forma ele não tinha nenhum tipo de interesse nesse tipo de evento tedioso humano, na verdade no momento toda aquela agitação das meninas na janela parecia-lhe muito mais interessante.

—É Saykis-senpai! Saykis-senpai vai correr! — uma delas alvoroçou-se.

—Quem é Saykis-senpai? — perguntou intrometendo-se entre elas.

—Ah, Ayakashi-chan, você é nova na escola por isso ainda não o conhece. — Shizuka-chan respondeu, e apontando para o campo de atletismo completou: — Pode-se dizer que Saykis-senpai é a estrela do clube de atletismo.

Gintsune dirigiu seu olhar ao campo de atletismo, lá embaixo alguns humanos faziam uma série de alongamentos.

—Parece que Saikis-senpai é bom em praticamente qualquer tipo de esporte! — Emi-chan, na ponta, desatou a falar.

—E durante todo o ano passado, quando ele entrou como calouro do primeiro ano, ele ficou em primeiro lugar no ranking da escola! — completou Shizuka-chan, à esquerda de Gintsune.

—Ah, eu ouvi falar disso. — Himari-chan, que estava á sua direita, concordou — Parece que ele só saiu do primeiro lugar esse ano, quando a nova turma de calouros entrou no colégio, nossa representante o desbancou.

—Oh, a representante é mesmo incrível! — admirou-se Shizuka-chan.

—Mas ele recuperou o posto nas avaliações seguintes. — completou a outra garota — E agora estão todos esperando para ver quem vai conseguir o primeiro lugar nestas avaliações.

Gintsune olhou e olhou, mas entre os humanos que agora se dispunham em fila um ao lado do outro se pondo em posição para correr, não parecia haver nenhum que se destacasse tanto assim.

—Qual deles é Saykis-senpai? — perguntou por fim.

—Ali. O segundo da direita para esquerda. — Himari-chan lhe indicou.

Foi dada a largada.

A princípio nenhum dos humanos pareceu se destacar.

Com sete segundos de corrida Saykis-senpai já tomava à dianteira, com onze segundos alguém a quem as garotas se referiam como “o capitão do clube” o alcançou, eles disputaram ombro a ombro por alguns segundos, e as meninas se agitaram e deram gritinhos ao seu redor, ainda ficaram naquela disputa por mais algum tempo e, por uma ou duas vezes algum outro membro do clube chegava a se aproximar, mas nunca realmente os alcançava.

No fim Saykis-senpai ganhou, e as garotas vibraram.

Gintsune tinha a impressão de que elas vibrariam fosse quem fosse que ganhasse a corrida.

—Saykis-senpai, é mesmo incrível, não é Ayakashi-chan? — Himari-chan lhe perguntou.

—Por outro lado há aqueles boatos sobre ele. — disse Shizuka-chan, antes que Gintsune pudesse responder.

—Ah sim, aqueles boatos... — murmurou Emi-chan — De que Saykis-senpai costuma ser visto naquela loja fofa de doces?

—Sim, e também... — Himari-chan se calou.

Gintsune a olhou.

—O que? — perguntou curioso

—Bem... — Himari-chan puxou-o pelo braço e sussurrou os tais boatos em seu ouvido.

As sobrancelhas de Gintsune arquearam-se.

—E estes são os boatos?

—Sim, chocante não é? — Himari-chan olhava-o com uma expressão de “dá pra acreditar?!”.

Gintsune nada respondeu, apenas observou mais um pouco o clube de atletismo, na verdade para ele não havia nada de “chocante” naquilo. Sem dúvida as noções humanas eram muito mutáveis, pois até pouco tempo atrás era perfeitamente normal um homem ser atraído por outros homens.

—O que estão fazendo aí, meninas? Olhando os senpais? — a representante perguntou se aproximando por trás.

—Sim, exatamente isso. — Emi-chan respondeu com uma risadinha, e de repente virando-se para as garotas afirmou: — Ei, não seria incrível se a representante e Saykis-senpai formassem um casal?

E Shizuka-chan, que estava entre Gintsune e a garota na ponta bateu palmas de forma animada.

—Seria incrível! — concordou.

—Afinal Saykis-senpai e a representante são incríveis! — concordou Himari-chan — Tenho certeza que juntos eles...

—Ora, meninas parem com isso. — a representante desconversou.

—Isso mesmo. — concordou Gintsune, ainda com os olhos fixos no clube de atletismo que, ao que parecia, estava terminando o treino. — Até porque os boatos são verdadeiros.

As quatro garotas, incluindo a representante de classe, o olharam surpresas por alguns segundos, e então, de repente Shizuka-chan agarrou seu braço.

—Como assim Ayakashi-chan? Você já o conhecia? — perguntou ávida.

—Não.

—Então...! — Emi-chan juntou-se a Shizuka-chan — Você viu alguma coisa?

—É mais ou menos isso. — sorriu.

—O que? — Himari-chan colocou a mão em seu outro ombro — Nos conte Ayakashi-chan! Conte-nos!

Gintsune sorriu, divertindo com toda aquela atenção, e levando um dedo aos lábios piscou.

—Pode-se dizer que é um sexto sentido.

Yukari ouviu as reclamações das meninas no momento em que chegou a sala, havia três delas junto às janelas, todas reclamando e rindo divertidas ao redor da raposa, com a representante a observá-las de perto.

—Vamos, Ayakashi-chan, nos diga! — elas diziam.

—Eu já disse! — a raposa respondeu rindo — É apenas um sexto sentindo meu!

E com isso as meninas reclamaram e riram ainda mais, puxando-o de um lado para o outro e “pressionando-o” a contar a verdade.

—Ayakashi-chan é bem popular, não é? — Kaoru lhe perguntou reparando para onde ela olhava, parando ao seu lado ao entrar na sala.

—Ah sim, bem popular... — concordou.

A raposa parecia exatamente como sempre, brincava e ria normalmente com as meninas e, principalmente, em nada lembrava àquele surto de pânico inesperado da noite passada, quando se transformou numa bola de pelos debaixo das cobertas da cama dela e recusou-se a sair de lá.

E parecia tão bem e normal que a noite passada quase parecia um sonho, e talvez Yukari realmente tivesse acreditado que fora apenas um sonho, não fosse pelos eventos dessa manhã... Naquela manhã ela acordara no futon, porque a raposa apossara-se de sua cama, mas mais do que isso, havia algum tipo de peso sobre seus ombros, e algo se entrelaçara às suas pernas.

Ao abrir os olhos ela percebera que o tal “peso” sobre seus ombros não era nada mais, nada menos, que o braço da raposa a abraçá-la, que também tinha uma das pernas entrelaçadas ás suas enquanto dormia ao seu lado, gritando surpresa ela soltou-se e rolou para o lado.

—O que houve? — ele perguntou erguendo-se sonolento sobre os cotovelos — Por que está tão barulhenta tão cedo?

—Como por quê?! — sentada a quase um metro e meio de distância Yukari agarrava-se ao travesseiro — Como ousa deitar no meu futon sem permissão e dormir abraçado a mim?! Isso é assedio!

—Mais quanta reclamação! — ele bocejou se sentando — Francamente, Yukari, de todas as pessoas com quem já dormir nenhuma reclamou como você antes!

Ele desapareceu antes que o travesseiro que Yukari jogou o atingisse na cara.

É claro que depois daquilo não havia motivos para se preocupar.

Ainda assim ela sentiu-se um pouco aliviada em ver que ele realmente estava bem...  E Yukari só podia ser uma idiota por isso.

—... Com certeza, muito popular...

Repetiu cerrando os olhos ao perceber a representante pondo a mão sobre um dos ombros da raposa para aproximar-se e dizer algo, ao que a raposa acenou agradecendo e afastou-se em direção á porta dos fundos... Onde um garoto estava a sua espera. 

—Bem, bem, já chega. — foi o que a representante disse, e pondo uma mão sobre um dos ombros de Gintsune aproximou-se para dizer — Ayaka tem alguém querendo falar com você.

—Ah, verdade? — sorriu — Muito obrigada então.

Quem a esperava era, até onde ele sabia, um cara que Gintsune nunca havia visto na vida, mas que a primeira vista não parecia ter nada de interessante.

Ainda assim ele sorriu docilmente e disse:

—Pois não? Em que posso ajudar?

—Ah... Olá. Eu sou Kishimoto Takane do terceiro ano, sala dois.

—É um prazer conhecê-lo, Takane-kun. — cumprimentou.

—Bem, sim... Hum... Faz algum tempo que eu lhe enviei uma... Uma... Declaração. — engoliu em seco — Disse que estaria esperando pela sua resposta perto da quadra de esportes depois da aula, mas...

—Oh sinto muito por não ter aparecido! — respondeu com ar completamente inocente, cobrindo os lábios com as pontas dos dedos, já imaginando aonde aquilo iria dar — Mas é que recebo tantas cartas de declaração por dia... Elas simplesmente se embaralharam todas e eu não tenho tempo para lê-las...

—Sim, claro, eu imaginei. — ele pigarreou. — Por isso eu vim até aqui, para dizer-lhe pessoalmente que eu g...

—Então vamos sair.

O garoto piscou.

—O que?

—Vamos sair. — repetiu. — Me leve para comer alguma coisa... Talvez algo doce?

Sorriu gentilmente.

O garoto — qual era mesmo o seu nome? — piscou surpreso.

—Sim. — respondeu desconcertado, mas logo se recuperou — Então posso esperá-la na saída?

—É claro. — concordou.

Seria bom se ele o chamasse, porque o mais certo era que até a hora da saída já houvesse se esquecido de seu rosto.

—Então até a saída. — ele curvou-se levemente.

—Sim claro, até.

Não havia nada de interessante nele á primeira vista, mas Gintsune jamais recusava a chance de comer de graça.

Apesar de que sempre comia de graça, riu consigo mesmo.

—Ayakashi-chan. — Kaouru-chan, que vinha saindo pela porta da frente da sala, juntamente com Yukari, a chamou acenando — Temos aula de artes agora, você vem?

—Sim, é claro!

Respondeu se aproximando, e sorrindo para Yukari, que respondeu com uma careta de desgosto.

—Você já tem seu material? — ela perguntou.

—Oh, não, parece que vou precisar ser a modelo de novo. — respondeu inocentemente.

A aula de artes era uma das poucas aulas da qual Gintsune não era constantemente expulso, porém, desde que começara a frequentar a escola ele nem sequer se preocupara em arranjar qualquer tipo de material para a aula, e assim, sem ter com o que desenhar... Só lhe restava posar de modelo.

Imagine só, que grande sacrifício esse.

Yukari cerrou ainda mais os olhos para ele, Gintsune já a havia avisado que se continuasse fazendo caretas daquele jeito ia ganhar rugas muito cedo, mas ela insistia em continuar ignorando-o.

—Então vamos Ayakashi-chan? — Kaoru-chan chamou virando-se e afastando-se com Yukari.

—Sim, c...

—Olhe só para ela, fingindo-se de toda inocente.  — parou ao ouvir o comentário mordaz.

—Exatamente, ela diz que se esquece de arranjar o material da aula, mas na verdade só está querendo chamar atenção...

—E o jeito como ela manipula os garotos!

—É asqueroso!

—Sim!

Gintsune girou nos calcanhares e dirigiu-se a um par de garotas que fofocava próximas à porta dos fundos.

—E tem mais, eu ouvi dizer que ela sai com qualquer garoto que... — dizia uma delas.

—Oras, e se for verdade? — perguntou postando-se frente a elas, com as mãos nos quadris — E se eu gostar de chamar atenção? E se eu manipulo os garotos ou saio com montes deles? — jogou os cabelos para trás — Vocês só estão com inveja porque eu posso fazer esse tipo de coisa, diferente de vocês feiosas.

As garotas recuaram espantadas, mas então uma delas fez menção de avançar.

—O que você está dizendo, sua...!

—E o que é isso na cara de vocês? — Gintsune continuou em seu ataque — São cílios postiços, sabem que isso é contra as regras de vestimenta da escola, não sabem?

—I-isso...! — elas tentaram se defender

Demonstrando um sorriso malicioso Gintsune cobriu os lábios com as pontas dos dedos.

—Ir tão longe assim somente para parecer um pouco mais bonita, é tão repug... Oh, professor!

De repente esquecendo-se delas Gintsune passou correndo por entre as garotas, quase as derrubando, só para alcançar o professor Haruna que passava no fundo do corredor e se virou sorrindo ao ouvir o chamado.

—Olá, bom dia Ayaka-chan.

—Bom dia, professor. — sorriu. — Como tem passado?

—Muito bem, obrigado. — por um momento os olhos dele recaíram sobre o pulso de Gintsune, onde entrevia-se por debaixo da manga um fino aro prateado — Ayaka-chan, essa pulseira... Ela é um item fora das regras de vestimenta da escola.

De repente com os olhos arregalados Gintsune agarrou o pulso junto ao peito.

—Isto...! Isto é algo de grande valor para mim! Foi-me dado por alguém que amo muito! — afirmou.

O professor acenou.

—Eu entendo, mas ainda assim deveria retirar antes que algum professor veja e confisque.

—Professor. — riu, ainda sem largar o próprio pulso — O senhor é um professor.

O professor piscou-lhe levando um dedo aos lábios, indicando que faria segredo sobre aquilo, mas de repente ficando sério acrescentou:

—Ayaka-chan, eu andei ouvindo algumas reclamações sobre você na sala dos professores.

—Ah, é mesmo? — respondeu inocentemente, escondendo as mãos atrás das costas.

—Sim, ao que parece você anda dormindo nas aulas, sendo desrespeitosa, se distraindo e distraindo aos seus colegas também... — ele a olhava como se não pudesse acreditar que realmente estava falando dela — Nem consigo acreditar que é de você que estou falando. — disse — Em minha aula você sempre teve um comportamento exemplar.

A aula de matemática, do professor Haruna, era a única outra aula, além da aula de artes, onde Gintsune se comportava.

—Eu entendo. — continuou o professor — Que você nunca veio a uma escola antes, e talvez esteja tendo problemas para se adaptar aqui, Ayaka-chan, mas se realmente estiver tendo algum tipo de problema deveria vir falar comigo, sou o professor conselheiro de sua classe afinal.

—Professor como sabe que essa é minha primeira vez numa escola? — desviou-se do assunto — Por acaso andou pesquisando sobre mim, é isso?

—Na verdade eu ouvi uma ou duas coisinhas sobre você nos corredores...

—Ah sim, entendo. — sorriu.

É claro que ele ouvira, pois muitas das vezes em que Gintsune era posto para fora da sala ele aproveitava-se da oportunidade para adentrar o plano astral e, através dele, ir atrás do professor, pelo qual o seguia e “soprava” palavras sobre Ayaka Shiori, de forma que ele nunca podia deixar de ouvir ou “pensar” em Ayaka Shiori.

—É realmente uma sorte ter um professor que se preocupe tanto com seus alunos. — elogiou.

—Bem, então prometa que irá se comportar a partir de agora. — ele tocou o topo de sua cabeça — Você não tem aula agora?

—Ah, sim! É verdade! — lembrou-se, fingindo surpresa e rapidamente se afastando dali — Até depois, professor.

O professor acenou.

—Até.

Ele chegou atrasado à aula de artes, não que se importasse com a pontualidade, e assim que chegou um trio de garotos veio falar consigo.

—Ayakashi-chan, você já tem seu material? — um deles perguntou, talvez... Kijima Tenji-kun...?

—Não. — respondeu sorridente, doce e inocente — Parece que hoje terei que modelar também...

—A aula de hoje será feita em duplas. — a professora avisou de algum lugar de trás dos garotos — Sentem-se um de frente ao outro e desenhem ao seu parceiro.

—Ora, mas que inconveniente. — disse, registrando levemente pelo canto dos olhos aquelas duas garotas de antes sorrirem diabolicamente — Será que alguém teria algum material para me emprestar?

No segundo seguinte as duas desapareceram até mesmo de sua visão periférica, pois de um momento para o outro Gintsune foi cercado por dúzias de meninos, e até algumas meninas, oferecendo-lhe papéis, pranchetas, lápis, borrachas, réguas, e até mesmo pincéis e tinta o que o fez rir por dentro, de tamanhão exagero.

—Muito obrigada, pessoal, vocês são tão gentis. — agradecer instantes mais tarde, já com os braços cheios de materiais — Agora com quem eu farei dupla?

Suas palavras foram intencionais para causar uma contenda, todos ali brigando por si, disputando o direito exclusivo de admirá-lo e desenhá-lo, a professora gritava “ordem” e “silêncio”, mas ninguém parecia ouvi-la, mas antes que as coisas pudessem ficar realmente interessantes uma mão esticou-se pelo tumulto e agarrou seu braço.

—Eu faço dupla com você. — Yukari pronunciou-se, e puxando-o disse: — Vamos!

—Ora Yukari, eu sabia que mesmo você não era imune aos encantos de meu rosto. — riu-se deixando ser arrastado.

—Apenas cale-se e sente-se aí! — ela respondeu brusca e ranzinza.

Gintsune riu mais um pouco antes de sentar-se numa cadeira de frente para Yukari com “seu” material.

—Certifique-se de me desenhar bem bonito. — pediu ao que a garota de tranças bufou.

—Só fique quieto e desenhe. — respondeu se preparando.

Um pouco mais atrás dela, Kaouru-chan parou no meio da sala, segurando seu material olhando-as com ar completamente perdido, Gintsune inclinou-se em direção à Yukari quando a percebeu ali.

—Mas tem certeza que está mesmo tudo bem em fazer dupla comigo? Kaoru-chan...

—Vai ficar bem. — Yukari o cortou.

Atrás dela a representante de classe se aproximou de Kaoru-chan e pôs a mão em seu ombro.

—Hongo. — chamou — Faça dupla com a Nishiwake.

E indicou com o polegar Aoi-chan, sentada um pouco mais distante, de frente a uma cadeira vazia.

—Mas representante, é você quem sempre...!

—Eu arranjo uma dupla fácil. — a representante a interrompeu — Vai logo.

Quando Kaoru-chan acenou agradecendo e se afastou a representante lançou um olhar de dúvida ás costas de Yukari, mas então simplesmente balançou a cabeça e se afastou.

***

No final de uma pequena e desértica ruazinha poeirenta estava uma minúscula casa com formato de caixote, de onde saiu, através do buraco para fumaça no teto, um gato malhado marrom e este gato era para todos os efeitos um simples gato comum, exceto pelas caudas, as caudas eram uma vez e meia o tamanho de seu corpo, e havia duas delas.

O nekomata — gato monstro de duas caudas — andou calma e preguiçosamente pelo telhado, até pular da ponta, dando duas cambalhotas no ar e pousando na rua poeirenta de pé sobre as duas patas traseiras, e ainda sobre duas patas, tal qual um humano, o gato virou-se e observou a casa vazia a sua frente, as caudas balançaram-se juntas de um lado para o outro espanando o chão ao seu redor, mas o que olhava a casa agora não era mais um gato, e sim, sobre todos os aspectos, — a exceção das caudas, e da cabeça, que continuava a ser uma cabeça felina — uma mulher usando um desbotado quimono verde, com cabelos presos num coque baixo à altura da nuca.

—Keh! Ainda a espera que teu dono retorne, gata de rua?

Tama cerrou os olhos ao ouvir a risada debochada e virou-se para encarar, do outro lado da rua, a obesa e repugnante mulher sapo sentada com seu cachimbo nojento na varanda da casa em frente.

—Pode esquecer gata! — disse a sapa em sua direção — Não a necessidades de cuidar desta casa aos pedaços, aquela raposa lá não volta mais! Na certa que foi embora ou então devorado por algo maior! Keh!

—É melhor calar-se velha bruxa. — respondeu por fim — Antes que eu arranque esta tua língua asquerosa e a estrangule com ela.

A sapa inflou-se com o desafio.

—Você quer tentar a sorte gata?

—Gintsune-Sama voltará. — declarou erguendo o queixo — E se disser mais uma palavra contra ele, bruxa nojenta, rasgo teu estômago e puxo para fora todas as suas tripas. Fui clara?

A sapa inflou-se ofendida até quase parecer que explodiria, mas Tama sustentou seu olhar, e no fim a sapa acabou levantando-se e recuando para dentro de casa, resmungando que aquilo era perda de tempo.

Tama deveria ter acabado com aquela velha asquerosa ali e agora, mas só daquela vez deixou passar, embora simplesmente não conseguisse compreender como Gintsune-Sama conseguia se submeter a morar em tão asquerosa vizinhança.

Muito tempo atrás Tama possuíra um nome diferente, mas isto mudara quando conhecera a Gintsune-Sama, ele era belo e gentil e dera aquele nome a ela, por isso este era seu nome agora, não importava que nome tivesse tido antes, e ele dissera a ela que sairia para caçar, por isso ela sabia que ele voltaria.

—Um quimono por uma garrafa de saquê e dois pares de sandália?! Estás louco!

Tama girou a cabeça ao ouvir a audaciosa e inconfundível voz, assim que saiu para a rua principal, a poucos metros dali, a humana protegida de Gintsune-Sama se envolvia no que parecia uma acalorada discussão com um youkai touro.

No passado às vezes alguns youkais estranhos faziam coisas daquele tipo, adotavam humanos como seus bichinhos de estimação, geralmente terminava com eles sendo devorados, se não pelo próprio youkai que o “adotara” então por outro maior e mais forte, mas Gintsune-Sama fora além disso, ele pegara sob sua tutela não apenas uma humana, como também um tengu desgarrado e as duas aberrações frutos daquela união.

—Louco?! — o touro bufou — Louca está você querendo dar-me somente uma mísera garrafa de saquê por dois bons quimonos!

Aqueles touros estúpidos podiam ser lentos em entender, mas eram rápidos em se enfurecer, e toda a proteção de Gintsune-Sama deixara aquela misera humana por demais atrevida e convencida para o seu próprio bem.

—Acontece que este aqui não é apenas um mísero saquê. — a humana sacudiu a garrafa de saquê em frente ao rosto bovino, como se não tivesse amor a sua própria e insignificante vida e quisesse enfurecê-lo ainda mais — É um legítimo saquê da vila dos tengus! É da melhor qualidade! Quantas vezes tu acha que um tipo como tu será capaz de conseguir um desses? Eu ainda estou cobrando barato pedindo só dois quimonos por tudo isso!

As narinas do touro inflaram-se e tremeram provavelmente prestes a atravessar e dilacerar a humana com seus chifres, e Tama podia não gostar de humanos — exceto como parte da refeição talvez — mas aquela humana era particularmente preciosa para Gintsune-Sama.

—Dê os quimonos a ela, estúpido. — ordenou se aproximando, e pegando um dos quimonos cerrou os olhos — Estas coisas não valem uma garrafa de saquê da vila tengu, está tentando roubá-la? Dê a ele três pares de sandálias de palha por eles, e já é mais do que merece.

—Como ousa, sua...! — o touro começou a reclamar, mas um olhar de Tama bastou para fazê-lo calar-se amuado.

Tama jogou os dois quimonos dentro da cesta da mulher e afastou-se dali.

—Oi! Tama! Oi!

Tama trincou os dentes, mas parou e esperou cruzando os braços até que a humana se aproximasse.

—Lá atrás, eu queria dizer, obrigada...

—Onde estão Satoshi e as aberra... Seus filhos?

Mayu arqueou as sobrancelhas.

—Satoshi está buscando lenha, na montanha, e os meninos estão nos campos de arroz. — respondeu.

Em um mundo como aquele o dinheiro não valia de muita coisa, a vida ali era comunitária, plantações eram cultivadas fora dos limites da cidade e todos tinham que cuidar delas, quem não contribuía nas plantações não comia, e ainda assim só recebia uma porção pré-determinada, o mesmo valia para todas as outras necessidades ali, comida, madeira... E o que mais fosse preciso.

E se você precisasse de mais do que fosse oferecido na sua porção, bem, havia outro meios de conseguir, você podia matar e roubar por elas, ou podia plantar no quintal de casa.

As demais coisas como roupas, calçados e etc. precisavam ser produzidas por você mesmo, e o que você mesmo não produzisse podia trocar com alguém — ou matar e roubar por eles, francamente ali não fazia muita diferença.

Ou você podia simplesmente viver como Gintsune: sendo o mais poderoso entre todos e vivendo do medo absoluto que fazia com que todos o servissem.

Tama cerrou os olhos.

—Então está sozinha na cidade?

—Bem... Sim, mas...

—Escute aqui mulher. — Tama agarrou ao braço de Mayu tão rápido que a humana arfou, e prendeu a respiração quando a felina aproximou-se de seu ouvido, com os bigodes roçando sua bochecha — Este pode não ser o melhor momento para ficar só na cidade.

Mayu engoliu em seco.

—Do que está falando?

Tama afastou-se, mas não largou seu braço.

—Você e sua família só estiveram seguros este tempo todo porque Gintsune-Sama estava aqui para olhar por vocês, mas agora Gintsune-Sama está fora caçando, e a maioria dos yokais aqui é estúpida o bastante para pensar que ele se foi de uma vez e atacar.

Mayu estremeceu.

—Então você acha que...

—Que se eu fosse você não ficaria dando sopa tão facilmente. — Tama respondeu com desprezo, soltando-a e passando por ela — Vamos embora, vou te escoltar até sua casa.

Tentando não demonstrar o claro medo que sentia através de seus olhos arregalados Mayu se apressou a segui-la.

—Obrigada...!

—Não me entenda mal. — Tama respondeu tornando-se um gato enquanto esgueirava-se e desviava-se por entre o tumulto da rua — Eu só não quero presenciar o banho de sangue que seria quando Gintsune-Sama voltasse e descobrisse que aconteceu alguma coisa a vocês, eu gosto de sangue, mas não gostaria de ver Gintsune-Sama irritado.

—Eu entendo...! — Mayu arfou, não era tão fácil caminhar por ali sozinha quanto era quando estava ao lado de Gintsune — Mas ainda assim obrigada...!

Acompanhar Tama também não era uma tarefa fácil, a nekomata esgueirava-se pela multidão, sumindo e aparecendo a todo o momento e se não fosse pelo fato de Mayu já conhecer o caminho ela certamente teria se perdido numa das dezenas de vezes que perdeu as duas caudas de Tama de vista.

Mas, por fim, ela chegou.

—Bem, está em casa, não digo que está segura, mas está em casa. — Tama declarou quando a deixou no portão de casa — E vou levar o saquê comigo.

Afirmou puxando a garrafa de dentro da cesta de Mayu.

—O que?!

—O que? É verdade que não quero ver Gintsune-Sama irritado, mas você não achou mesmo que eu lhe prestaria esse serviço de graça achou? — respondeu deixando-a ali e dando um longo gole no saquê enquanto se afastava — Francamente, não acredito que aquele tengu foi estúpido o suficiente para deixá-la sozinha na cidade numa hora dessas, e ainda mais no estado em que se encontra.

Mayu franziu o cenho.

—No estado em que...? Tama! Tama do que está falando? — chamou, mas se a nekomata a ouviu, ignorou-a completamente.

Ainda sem entender Mayu virou-se e entrou.

“No estado em que se encontra”, o que ela quis dizer com isso? No estado em que...?  

De repente, ela paralisou e a cesta caiu de suas mãos e rolou aos seus pés.

***

Já passava das 18h quando Yukari suspirou cansada arrastando-se escadas acima até o topo da colina onde ficava situada a Pousada e Casa de Banhos Shibuya — embora, sejamos francos, aquilo estava muito mais para um rochedo do que para uma colina propriamente dita.

—Yuki-chan!

Yukari parou e virou-se ao ouvir o chamado, Naoko-senpai vinha subindo as escadas logo atrás dela, Yukari curvou-se.

—Naoko-senpai. Não está chegando um pouco tarde?

—Ah sim, mas não se preocupe, eu liguei avisando ao senhor Shibuya que me atrasaria hoje. — respondeu calma.

Naoko-senpai era uma empregada “de resto de ano” da pousada Shibuya que trabalhava em meio expediente ali, desde a primavera passada, ela era uma linda garota colegial um ano mais velha que Yukari, de olhos castanhos e longos cabelos negros, que hoje estavam presos no alto de cada lado da cabeça, e que também aparentava ser bem popular.

—Isso é bom, sabe que meu pai é bem rígido Naoko-senpai. — Yukari concordou.

—O que é isso Yuki-chan? Chamando-me de senpai de novo! Eu já disse, chame-me “Naoko” ou se não conseguir “Naoko-chan” já está bom! — Naoko-chan reclamou beliscando sua bochecha — Eu já disse, estou apenas um ano acima de você e nem sequer estudamos na mesma escola! Se for para alguém chamar alguém de senpai aqui então que seja eu, afinal você tem muito mais anos de experiência trabalhando na pousada do que eu.

—Mas isso é só porque esses são os negócios de minha família! — Yukari defendeu-se — É óbvio que...!

—Ora parem de complicar tanto e chamem-se pelos nomes de uma vez! Não é mais fácil assim?

Yukari e Naoko-chan olharam surpresas para o alto, de onde a reclamação viera, e depararam-se ali com a raposa inclinada sobre a murada fumando cachimbo, usando seu quimono azul, com o imenso chapéu de palha pendurado atrás do pescoço, disfarçada de humano com os cabelos enegrecidos.

—São lindas as cores do outono não são? — ele suspirou com ar satisfeito — Embora ainda estejamos longe de apreciar suas cores em sua plenitude, essa época do ano sempre me deixa nostálgico.

—Oh! Sinto muito não o notamos aí! — Naoko-chan desculpou-se se apressando a terminar de subir as escadas e curva-se ao lado da raposa — É um hospede da pousada?

—Um hospede? — ele a olhou e rindo respondeu: — Sim, eu sou.

—Bem, então será um prazer tê-lo conosco, espero que aproveite bem sua estádia.

—Ah sim, obrigado, é o que pretendo... — ele esticou a mão e tocou o cabelo de Naoko-chan,deixando-lhe uma das mechas escorrer por entre seus dedos — Que cabelo bonito você tem, acho que é a primeira vez que vejo alguém com um cabelo tão comprido desde que cheguei aqui.

—Muito... Muito obrigada senhor. — Naoko-chan agradeceu encabulada — Também tem um cabelo muito belo, senhor...

—Gin.

—Muito obrigada, Gin-san, é um prazer tê-lo conosco. — Naoko-chan voltou a se curvar — Mas sinto muito, preciso ir agora ou vão reclamar de meu atraso.

Despediu-se logo antes de sair correndo.

Quando a raposa voltou a olhar para Yukari ele cerrou os olhos.

—O que houve Yukari? Por que está com essa cara feia? Sente algo a incomodando?

—Eu estou bem, obrigada! — bufou terminando de subir as escadas.

A verdade é que estava cansada, estressada e irritada, mas nada fora do normal para quem estava escondendo, contra a vontade, uma raposa dentro de casa.

—Está um pouco tarde para você chegar a casa, não? — ele perguntou, casualmente soprando a fumaça do cachimbo.

Aborrecida Yukari pretendia ignorá-lo, mas quando fez menção de passar direto sem responder ele a deteve com uma mão em seu ombro.

—Por acaso estava treinando para o dia do esporte na semana que vem? — perguntou-lhe ao pé do ouvido.

Quando ele afastou-se e voltou a se recostar a murada, Yukari virou-se.

—É. Eu sei. — respondeu perante sua expressão de choque, e dando mais uma tragada no cachimbo continuou — Caramba, Yukari, eu frequento a escola também, achou mesmo que eu não ia saber? Mas não se preocupe. — ele jogou a cabeça para trás e soltou à fumaça — Eu não tenho o menor interesse em participar desse evento.

—Não tem? — Yukari franziu o cenho.

—Não.

—Por quê? É porque você é velho e fuma?

—Minha idade não tem nada haver com isso, que mania vocês duas têm de me chamar de velho. — ele acenou com descaso com a mão que segurava o cachimbo, mal percebendo o franzir de sobrancelha de Yukari que não compreendeu a quem ele se referia — E logo se vê que você não sabe de nada mesmo, não é Yukari? Nós youkais somos diferentes de qualquer criatura terrena que possa conhecer, a idade não nos enfraquece, ela nos fortalece: quando mais idade mais poder. Bem, geralmente é assim, nós temos lá nossas exceções.

—Então é porque você fuma?

Com o cachimbo entre os lábios foi a vez de Gintsune franzir o cenho.

—E isso o que teria haver?

—Bem, o hálito é alterado devido à irritação na gengiva causada pela fumaça. Além disso, pessoas que fumam estão mais predispostos a ter caries, não sentem bem o sabor dos alimentos devido a alteração que ocorre nas papilas gustativas e ainda tem maior chance de ter câncer de boca. Os tecidos dos pulmões são extremamente afetados pelo consumo de cigarros. Eles perdem a elasticidade e o órgão, pouco a pouco, vai sendo destruído. Quando uma pessoa que fuma faz um exame de raio-X, é possível ver uma vasta área escura no pulmão: a chapa preta. O câncer de pulmão é um dos principais motivos de morte de fumantes, mas o cigarro também mata por bronquite, enfisema e câncer em outros órgãos como a garganta e a boca. A nicotina, ao ser aspirada, cai na corrente sanguínea e migra para todos os órgãos. Quando ela chega no fígado é metabolizada e pode danificar esse órgão também, podendo resultar no desenvolvimento do câncer de fígado. Muitas substâncias tóxicas do cigarro acabam sendo direcionadas também para o estômago. Nesse órgão já foram encontrados até elementos como o alcatrão contaminado com DDT – um pesticida altamente perigoso que causa danos graves ao sistema nervoso. Como consequência do consumo, a pessoa pode chegar a sentir náuseas, ter gastrite, úlceras e até mesmo câncer. Também dificulta a distribuição de oxigênio pelo organismo e isso pode afetar o cérebro. Além disso, pode ocorrer à compressão dos vasos sanguíneos e o aumento da pressão arterial, o que pode resultar em derrame cerebral. A espessura dos vasos sanguíneos diminui devido à ação da nicotina. O monóxido de carbono reduz a concentração de oxigênio no sangue. Como resultado disso a pessoa pode apresentar problemas circulatórios graves como tromboses (entupimento de vasos), aneurismas (dilatação de vasos sanguíneos que favorece os derrames), varizes e tromboangeíte obliterante, que pode resultar, em casos graves, na amputação de membros... E graças à ação da nicotina, o corpo absorve mais colesterol, sofre com o aumento da pressão arterial e com o aumento da frequência cardíaca, o que aumenta o risco de infartos.

Ele fumava calmamente enquanto ouvia de forma paciente, e quando ela terminou ele soltou a fumaça por entre os lábios e com um olhar curioso perguntou:

—Fumar causa mesmo tudo isso?

—Causa.

—Entendi. — ele deu mais uma longa tragada — Ao que tudo indica vocês humanos têm algum tipo de inexplicável desejo incontrolável e mórbido de autodestruição. — riu brevemente — Acho que é algo que vocês têm em comum conosco, quem diria, não é?

—Esse não é o ponto, o ponto é...

—Eu sou imune.

—O que? — piscou.

—Sou imune. — repetiu, e gesticulando com o cachimbo prosseguiu: — Todas essas coisas que citou que são causadas pelo fumo, e das quais eu não cheguei a entender nem mesmo um terço, eu sou imune, posso fumar por séculos, aliais, eu venho fumando há séculos, e nenhum desses males nunca me afligirá, porque todos os youkais, desde até mesmo o mais reles de nós, são imunes a qualquer male humano.

—Isso é sério? — perguntou incrédula.

—Claro que sim. — ele voltou a tragar.

—Bem, então por que não vai participar do evento esportivo?! — ela perguntou claramente confusa.

Afinal aquela raposa intrometida gostava de se meter em todos os lugares, a casa de banho, as termas, o quarto dela, a escola dela, a casa de banho com suas amigas — era um milagre que ainda não houvesse tentado se meter no vestiário enquanto as garotas se trocavam antes da Ed. Física! — e Yukari não conseguia ver motivo para ele não querer se meter também no festival esportivo.

—Porque é maçante. — ele respondeu.

—Maçante?! — perguntou ofendida.

Porque ter o seu festival esportivo chamado de “maçante” por alguém que se distraia até com uma simples proteção de tela de bolhas no celular era bem ofensivo.

—É, porque todas as atividades nele são ridículas e sem sentindo. — ele explicou girando os olhos. — Atletismo, por exemplo, os humanos só ficam lá correndo em círculos, sem chegar a lugar algum qual a graça nisso? Qual o propósito? Parecem até aqueles roedores que vi na internet, correndo em suas rodinhas sem sair do lugar.

—Quando você aprendeu a acessar a internet? — ela perguntou surpresa, afinal, até pouco tempo atrás, ele mal sabia o que era um número de celular!

—E quanto ao kendô? — ele continuou, ignorando sua pergunta — Na minha época os humanos pegavam em espadas para a guerra, mas pelo que li agora as guerras humanas são travadas de forma muito mais destrutivas e menos honrosas, mata-se seu inimigo sem sequer ver-lhe o rosto, mata-se milhares deles de uma só vez até, embora ainda não tenha compreendido claramente como isso pode ser possível para meros humanos... Ainda assim, em tempos como esses qual a necessidade de pegarem em espadas? E de madeira ainda!

O engraçado, é que ele parecia realmente curioso a esse respeito e parecia de verdade, esperar por uma resposta dela.

—O kendô é uma das formas de mantermos nossos velhos costumes, estamos mais modernos agora, mas não podemos nos esquecer de quem somos. — respondeu, lembrando-se de que o clube de kendô alardeara qualquer coisa parecida no inicio do ano, quando estava à procura de novos integrantes para o clube.

—Certo tudo bem, mas e quanto àquele tal esporte... Beisebol? — ele perguntou, parecendo aceitar a resposta dela e passar para o próximo tópico — É um bando de humanos correndo atrás de uma bola e batendo com um pedaço de pau nela. Completamente ilógico e sem propósito! — ele quase parecia alarmado enquanto falava — E futebol e basquete? São as mesmas coisas! Só que sem o pedaço de pau. Eu posso entender o sentindo de que tais atividades, como correr sem sentido uns atrás dos outros, possa ser divertido por algum tempo, claro, sempre brincava com os filhos do tengu, mas dedicar tanto tempo assim? Formar clubes e montar um festival para isso! E ainda dedicar um dia inteiro para homenagear!

Ele balançou a cabeça incrédulo, levando novamente o cachimbo aos lábios.

—Praticar esportes ajuda a se manter saudável e ter o corpo em forma. — respondeu, embora ela mesma não tivesse interesse em praticar nenhum esporte em particular — O Japão preocupa-se com a qualidade de vida, uma alimentação balanceada e a prática frequente de esportes ajudam.

—Há! Viu só? Completamente sem sentindo!

Exclamou triunfante, apontando com o cachimbo para ela.

Yukari piscou.

—Mas se eu acabo de dizer...

—Praticam esportes para preservar seus corpos. — ele a interrompeu — Mas é inútil, não importa o quanto tentem suas vidas continuarão a ser efêmeras e os corpos se enfraquecerão e apodrecerão numa lamentável velocidade.

—Bom, também é pela competição! — Yukari retrucou já aborrecida, pondo as mãos nos quadris e determinada a ganhar aquela batalha, fosse ela qual fosse — É muito satisfatório esforçar-se por algo e conseguir se tornar o melhor naquilo! E também os prêmios...!

—Você disse prêmios?!

Aquela palavra chamou sua atenção de tal forma que ele desencostou-se da murada com um pulo no mesmo instante em que orelhas brancas de raposa surgiam no alto de sua cabeça.

—Não! Não disse! — Yukari negou recuando com olhos arregalados.

—Disse! — ele apontou para ela com o cachimbo, com as orelhas já desaparecidas do topo de sua cabeça — Não negue!

—Não disse! — ela voltou a negar, virando-se e fugindo correndo dali.

Gintsune riu consigo mesmo ao vê-la fugir, sacudindo o cachimbo de cabo longo uma vez em frente ao rosto e transformando-o num leque, que criaturas complicadas eram os humanos!

Yukari sempre estava demonstrava o seu descontentamento com a presença dele e não disfarçava o quanto gostaria de vê-lo longe, mas tão logo ele demonstrava-se desinteressado sobre algum evento ela praticamente começava a discursar sobre todos os pontos positivos e toda a diversão que ele perderia!

Ainda rindo por detrás do leque ele balançou a cabeça, francamente não dava para entender!

E então repentinamente sério, e vendo-se sozinho ali, ele ergueu a mão livre, a mesma com a qual havia tocado o ombro de Yukari pouco antes e que mantivera firmemente fechada desde então, e abriu-a.

Ali estava uma criaturinha repugnante, com cinco tentáculos que davam a ele um formato estrelado, tinha uma suja cor arroxeada — como um hematoma — e no centro um olho injetado e amarelo, cheio de veias, que se mexia nervosamente olhando para todos os lados, e quando se focou em Gintsune a criatura emitiu um guincho estrangulado e saltou tentando desesperadamente escapar, mas com um movimento rápido de mão a raposa a capturou novamente segurando-a com a ponta dos dedos por um tentáculo, havia uma boca do outro lado, com duas línguas que se esticavam e balançavam-se para fora.

Yukari não a notara, mas aquela criatura nojenta estivera em seu ombro.

—Oras, então quer dizer que você estava grudado em Yukari alimentando-se dela? — perguntou por detrás do leque, erguendo a criatura até a altura do rosto, com expressão enojada.

Aquela criatura tão repugnante era um youkai da mais baixa categoria, invisíveis a olhos humanos comuns, aqueles youkais parecia ser os únicos cuja existência parecia continuar a ser abundante no mundo humano — ao contrário do mundo youkai onde não havia um exemplar sequer — era uma reles criatura formada a partir de emoções humanas, quase sempre negativas e, geralmente, coletivas que não apenas se alimentava como também acentuava essas mesmas emoções, era um encosto uma sanguessuga, geralmente fracos demais para causar qualquer coisa além de um pouco de estresse, mas que por vezes podiam ser a causa até mesmo de suicídios, supostamente dando origem a Shinigamis, ou ao menos era o que dizia uma antiga lenda: Quando um ser humano era possuído por um youkai e levado por este youkai a cometer suicídio ele acabava se tornando um shinigami na vida após a morte. Mas Gintsune nunca havia encontrado com um pessoalmente para perguntar.

Eles eram atraídos por humanos com emoções negativas tais como, raiva, rancor, tristeza ou simplesmente estresse, ou que tivessem algum tipo de ligação mais próxima ao mundo espiritual.

E levando em consideração o quanto Yukari era sempre tão ranzinza era apenas natural pensar que ela atraísse aquele tipo de coisa como um sinalizador ambulante, mas este não era o caso. Desde que ele chegara ali, Yukari nunca atraíra sobre si qualquer tipo de escória repugnante como aquela, sendo assim a única explicação era a recente ligação, ainda que indireta, dela com o mundo espiritual através dele, era a proximidade dela com ele que atraía aquelas criaturas que, por sua vez, aumentavam nela o seu, já natural, estresse, e que eram irracionais e estúpidas demais para compreender que se deviam manter distância de uma raposa, também deviam manter distância de uma humana que andasse em companhia de uma!

—Eu sinto muito por isso, mas aquela garota já é estressada e ranzinza demais por si mesma, ela não precisa de ajuda para isso... Você entende, não entende? É apenas a cadeia alimentar. — disse por detrás do leque para a desesperada criatura que guinchava enlouquecida e tentava a todo custo escapar de suas garras, Gintsune franziu o cenho — Ora, mas o que estou dizendo? É óbvio que você não entende, é apenas escória.

Fechou o leque num movimento abrupto, mostrando o sorriso cruel que se escondia por detrás dele, e baixou-o ao mesmo tempo em que inclinava a cabeça para trás, já abrindo a boca e erguendo a desesperada criatura que guinchava e tentava escapar loucamente.

Quando ele a devorou, numa só abocanhada, um filete de algo espesso e negro, semelhante a sangue, escorreu pelo canto de seus lábios que ele limpou com a ponta da língua, guardando o leque dentro da manga e virando-se para inclinar-se novamente sobre a murada.

—A paisagem de outono é realmente linda. — comentou.

***

Sentada no centro do circulo de luz prateada ainda em meio à chuva de pétalas que caia infinitamente ao seu redor a mulher cujas longas madeixas prateadas espalhavam-se a abriam-se em leque no chão ás suas costas aproximou delicadamente os dedos da linha de luz que a circundava, com as pontas chegando tão próximas que quase podia senti-la.

Um tênue sorriso desabrochou em seus lábios, e ela afinal tocou a cintilante linha prateada.

Sob aquele toque o circulo cintilou ainda mais e suas pontas se soltaram, revertendo de tamanho ao seu redor não apenas em comprimento como também em espessura até que o que estivesse sob seus dedos bem a sua frente fosse nada mais do que um tênue fio com pouco mais que um metro de comprimento, porém tão finíssimo que se não fosse o seu cintilar natural em meio aquela escuridão tornar-se-ia quase impossível vê-lo.

Brincando com o fio entre os dedos a mulher o levou ao peito, baixando a cabeça como se, silenciosamente, rezasse em meio àquela solitária chuva de pétalas.


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Notas finais do capítulo

CURIOSIDADES DO JAPÃO:

Medo de cães:
Na cultura popular japonesa é comum a crença de que youkais raposas (e outras criaturas sobrenaturais) temem aos cães, por eles serem retratados comumente como guardiões, por isso também é comum por pequenas imagens de cães no quarto de uma criança recém nascida para afastar os maus espíritos.

Armário para sapatos:
No Japão existe a tradição de que se devem tirar os sapatos ao entrar em casa, este hábito é mantido até mesmo na escola, onde os alunos deixam seus sapatos em armários individuais e os trocam por sapatilhas especiais para serem usadas exclusivamente dentro do colégio.

Dia dos esportes:
Na segunda segunda-feira de outubro comemora-se no Japão o “Dia dos esportes”, um dia dedicado a prática esportiva, e é comum que escolas organizarem dias inteiros de gincanas esportivas para comemorá-lo.



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