A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 1
00: Uma história de amor proibido.


Notas iniciais do capítulo

Bem, e aqui estamos nós, o primeiro capítulo de uma nova história!!!
Espero que gostem, e, por favor, não se assustem de cara já com o tamanho do capítulo, essa história possuirá capítulos mensalmente, então eu decidi compensar o tempo de espera com tamanho... Além disso, não sei escrever pouco kkkkk :D

Glossário:
Youkai: termo genérico para designar todas as formas de entidades e de criaturas sobrenaturais.
Yunomi: xícara de chá japonesa.

P.S: caso haja alguma palavra que não compreendam avisem-me.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/776602/chapter/1

Japão ― 205° ano da Era Tokugawa.(i)

Mayu era uma jovem de rara beleza.

Desde muito jovem a pequena Mayu já demonstrava uma extrema beleza, com uma pele branca, tão clara quanto as das damas da corte do imperador, diziam, um rosto delicado com uma boca pequena e sobrancelhas escuras, grossas e arqueadas, como as antenas de uma mariposa, e mãos delicadas que nunca haviam erguido nada mais pesado do que uma yunomi de chá, como se ela fosse parte de  alguma pintura que alguém idealizara, tamanha era sua beleza que chegava quase a ser sobrenatural.

Essa beleza, porém, só trouxe problemas à pequena menina, ela era a terceira filha, a frente dela havia ainda um irmão — o herdeiro — e uma irmã mais velha, atrás dela havia outros quatro, sendo três irmãs e, por ultimo, um irmão — então com dois anos — no entanto nenhuma de suas irmãs chegava sequer perto de sua fascinante beleza, e ela era, portanto, a mais querida entre todos os filhos, a joia mais preciosa do pai, o que sempre a tornava alvo da inveja das irmãs.

O pai, ainda por cima, tornou-se temeroso a tal ponto que ficou paranóico, sempre achando que alguém viria, pulando de qualquer sombra talvez, para levar embora sua pequena e preciosa joia.

Ela era tão bela afinal, quem não gostaria de tê-la para si?

Assim, para protegê-la, antes que a pequena Mayu pudesse completar seu sétimo ano de vida o pai arranjou-lhe um casamento.

O noivo era uns seis ou sete anos mais velho e vinha de uma das famílias mais importantes do circulo social do pai.

Claro que ele não daria sua pequena Mayu assim tão cedo, mas um noivado já serviria de alguma proteção, principalmente sendo o noivo de uma família tão importante.

Isso, porém, não foi o bastante, e a pequena Mayu passou a viver sob constante vigília.

E tão sufocante era essa vigília que a menina, sempre que podia, fugia de suas sentinelas.

Ela nunca ia muito longe, claro, mas havia na propriedade de seu pai uma densa floresta, que sua ama sempre a avisava para não ir, porque lá haviam youkais que se alimentava da carne de criancinhas, e era para essa floresta que Mayu  sempre fugia.

A despeito do que sua ama sempre lhe contava, e do que acreditavam todas as outras pessoas, Mayu não acreditava em youkais, e tampouco que havia algum escondido naquela floresta para devorá-la.

Essa autoconfiança talvez se devesse a superproteção que seu pai tivera para com ela durante toda a vida: crescendo sempre tão protegida Mayu agora acreditava, inocentemente, que nada era capaz de feri-la.

Ela amava aquela floresta, o cheiro de verde, de madeira e de terra molhada, era inebriante, e encobria até mesmo o cheira de ameixeira branca do incenso com o qual sempre perfumavam suas roupas e que ela já estava começando a odiar, lá dentro ela não precisava andar sempre de cabeça baixa, com as mãos postas sobre as coxas uma sobre a outra e andar em passinhos miúdos com os pés voltados um para o outro, sempre mantendo um respeitoso silêncio, como era digno da filha de um grande senhor, ao invés disso era livre até para levantar o quimono até os joelhos e correr se quisesse!

Foi com essa cega confiança e obstinação que certa vez, aos nove anos de idade, a menina se embrenhou tão profundamente na mata que não conseguiu encontrar o caminho de volta.

Desolada ela parou a beira de um rio com velozes corredeiras e se pôs a chorar, esfregando os olhos e soluçando, até que ouviu uma voz vinda sussurrante por entre as árvores erguendo-se acima do som das águas, mas nem tanto:

—Por que está chorando, garotinha?

Mayu assustou-se, virou-se com um sobressalto, atrás dela, porém, não havia nada além de árvores.

—Tem alguém? — ela soluçou — Tem alguém aí?

—Estou aqui. — respondeu a voz, e Mayu não soube como não o havia visto antes, pois ele usava um chapéu triangular de palha e tão ridículo e grande que era impossível não ver, na verdade, aquele chapéu era tão imenso e ridículo que a simples visão dele fez a menina rir — O que foi? — o homem do chapéu pareceu confuso — Por que está rindo agora? Eu ouvi choro, então achei que estava perdida, mas agora está rindo!

Mayu não sabia, e tampouco o estranho, mas aquele encontro mudaria suas vidas.

Mayu fungou, esfregando o rosto uma última vez.

—Eu me perdi.

—Se perdeu? Mas estava rindo.

—Porque seu chapéu é engraçado.

—Ah é? Sim, suponho que sim. — ele tocou a ponta do chapéu — Mas de onde você é garotinha? Só pode ser daquela casa grande que há aqui por perto.

—Sim! — confirmou já animada — É de lá que eu venho!

—Que sorte então! Porque não está muito longe, basta seguir por ali!

O homem apontou o caminho sem sequer sair de detrás das árvores, parecia até que tinha medo da pequena Mayu.

Mayu olhou para as árvores e achou-as assustadoras. Recuou. O homem do chapéu ridículo alarmou-se:

—Cuidado aí garotinha! Cuidado! Mais um passo e a correnteza te leva!

—Não posso voltar sozinha. — ela soluçou já prestes a chorar novamente. — Vou me perder!

O homem ficou quieto por algum tempo, um longo tempo na verdade, e então se moveu saindo de entre as árvores, a despeito de seu chapéu tão espalhafatoso, ele usava roupas simples de viagem feitas de algodão como a dos mercadores que traziam incensos e lindos tecidos para sua mãe, suas calças marrons e a camisa verde escura e parecia misturar-se às árvores, nos pés tinha sandálias da madeira.

Ele lhe estendeu a mão.

—Quer que eu te leve então?

O chapéu era tão grande que ela não podia ver-lhe o rosto, mas o cabelo escuro estava amarrado à altura da nuca e cai-lhe sobre um ombro, que tipo de homem usava o cabelo daquele jeito?

Podia muito bem ele ser algum tipo de bandido.

Mayu, no entanto, não se atentou a isso, porque estava tão feliz de encontrar alguém que a ajudasse que, sem pensar duas vezes, lançou-se a segurar a mão do estranho.

—Vai me levar para casa?

O homem concordou fazendo o chapéu oscilar em sua cabeça e voltou a apontar.

—Basta seguir por aquele caminho ali.

Durante todo o caminho o homem não largou da mão de Mayu e seguiu conversando com ela, fazendo a criança esquecer-se do medo de estar perdida, ele tinha uma mão estranha, ela pensou, era firme e grande como a mãos do pai e do irmão de Mayu, mas também era lisa e macia, assim como as mãos de seu pai e de seu irmão, Mayu sempre achou que apenas homens nobres dados aos livros tivessem essas mãos, coisa que ele não parecia ser, e que outros homens, como os soldados da casa e os aldeões que viviam além dos muros da propriedade, teriam as mãos ásperas e calejadas, como as mãos das servas de baixo escalão da casa, ou até mais, mas pelo visto estava enganada, ela quase não percebeu quando ambos chegaram aos limiares da floresta.

—Olha lá a tua casa, garotinha! — ele apontou — E parece que estão te procurando!

Com um grito extasiado a menina largou a mão de seu salvador e correu para casa.

Lá todos os empregados a procuravam preocupadíssimos, o pai, o irmão lhe contou mais tarde, havia colocado todos para procurá-la sem descanso, estavam todos desesperados, a ama chorou de alivio quando a viu, o que, é claro, não a impediu de lhe dar uma bela surra de vara nas pernas depois, mas nenhum golpe no rosto é claro, porque o rosto de Mayu era precioso demais para ser ferido.

Porém, tão logo se passaram os dias necessários para que Mayu pudesse andar sem sentir dor, a menina voltou a escapar e, como era de se esperar, fugiu para a floresta.

Dessa vez, no entanto, ela não fugiu simplesmente por fugir, mas porque queria ver novamente aquele homem que a ajudara.

Queria agradecer a ele.

Pois percebera que, em sua alegria de ter voltado para casa, esquecera-se de agradecer a seu salvador.

E para agradecer-lhe levou-lhe bolinhos, e assim lá foi ela para o rio, dessa vez, porém, foi mais esperta e, com uma faca da cozinha, marcou todas as árvores durante o caminho até o rio.

Porém, ao chegar lá, não havia ninguém.

—Você está aí? — ela gritou para um lado e para o outro — Ooooooi?

Um segundo depois veio a resposta:

—Psiu, garotinha! Não grite! — ali estava ele mais uma vez, escondido por detrás das árvores com seu chapéu enorme e ridículo — Quer que algo te encontre e te devore?

Mayu sorriu.

—Eu vim agradecer! — afirmou — E te trouxe bolinhos!

—Que gentileza a sua. — ele agradeceu de forma débil, sem sair detrás das árvores — Mas acontece que eu não devo comer esse tipo de coisa... — foi parando de falar conforme via a cara de choro que Mayu já fazia — M-mas já que você teve todo o trabalho de trazê-los até aqui, talvez eu coma um ou dois!

O rosto de Mayu iluminou-se com um sorriso.

Assim ele sentou-se numa pedra a beira do rio, com Mayu sentada em outra logo a sua frente e, com grande resignação e esforço, se pôs a comer os bolinhos, vez por outra o vento soprava ao seu favor e ela podia sentir o perfume que ele exalava, era como se ele cheirasse a mais verde do que a própria floresta, um perfume muito agradável, bem diferente de seu enjoativo incenso de flores brancas de ameixeira, mas onde aquele homem poderia ter conseguido perfumar as roupas daquele jeito? Ele não parecia do tipo que tinha grandes propriedades e servos para perfumarem suas roupas.

Passou-se um longo tempo até que o estranho terminasse de comer, o sol já ia bem alto no céu e agora o próprio estômago de Mayu roncava.

E mais uma eternidade pareceu passar até que o homem voltou a falar:

—Mas por que voltou aqui afinal, garotinha? Não te lembra de que te perdestes da última vez?

—Dessa vez eu marquei o caminho! — respondeu toda orgulhosa — E não me chame mais de garotinha, meu nome é Mayu, você pode me chamar de Mayu-chan!

—Mayu-chan. — o estranho concordou, mas não fez qualquer menção de apresentar-se — Mayu-chan será que posso te pedir um favor?

—Mas é claro! — concordou de imediato.

Era o mínimo que podia fazer.

—Então, por favor, pequena Mayu-chan, não volte mais a esta floresta.

Nesse momento algo dentro de Mayu pareceu quebrar-se.

Ela já havia levado diversos sermões e até surras por continuar constantemente a fugir, mas nada provocou nela tamanho efeito quanto o pedido daquele estranho.

Ela não sabia por que se sentira daquela forma, mas nem mesmo a surra de vara que levou da ama ao retornar para casa doeu-lhe tanto.

E assim, por longos e solitários anos, Mayu não retornou àquela floresta.

No entanto, naquele dia a casa estava uma bagunça, sua irmã mais velha estava de visita e os filhos dela, juntamente com os filhos do irmão estavam enlouquecendo a todos, correndo alucinados de um lado para o outro da casa, puxando os rabos dos cavalos e fazendo tudo que é tipo de travessura, ainda por cima, a irmã de Mayu e a esposa do irmão se odiavam e, como se não bastasse, ambas odiavam Mayu — por “pura inveja” dizia sempre sua ama, por Mayu ser tão bela.

Ah, se pudesse Mayu já teria pegado uma tesoura e desfigurado o próprio rosto, uma cicatriz em seu rosto com certeza arruinaria com toda a sua beleza e poria logo um fim a toda aquela “inveja” por parte das mulheres para com ela.

No entanto faltava-lhe coragem, se Mayu desfigurasse o próprio rosto, que futuro ela teria então? Pois com certeza que seu noivo desfaria de vez o noivado com ela!

O noivo de Mayu, a propósito, estava retardando o quanto podia aquele casamento, seu pai estava muito irritado com isso, é claro, afinal Mayu já tinha dezenove anos e estava em pleno desabrochar, o ápice de sua beleza, quanto mais tempo ele pretendia fazer Mayu esperar?  E ele nem sequer se dispunha a marcar a data!

O pior de tudo era que enquanto Mayu não casasse suas irmãs menores — que já haviam chegado à idade de se casar, ou ao menos de estarem comprometidas, tendo então 16 e 15 anos — também não poderiam se casar.

No entanto Mayu suspeitava que seu pai não estava sendo tão insistente quanto poderia ser, ou quanto fazia parecer, e isso porque ele ainda hesitava muito em abrir mão de sua preciosa garotinha.

Mas a mãe e a ama de Mayu, essas sim estavam extremamente revoltadas com a situação.

—Parece até que esse rapaz não quer se casar! — dizia a ama.

Mas que tipo de homem não iria querer se casar com Mayu?

Se o pai não a criasse tão escondida como a criava, lamentava-se sua mãe, de certeza que choveriam propostas de casamento a ela, e então elas não teriam que depender daquele noivo indeciso.

Mas isto também era em parte culpa do pai de Mayu, que tanto se apressara em fazer um noivado cedo demais para a garota, que só se importara com o prestigio que a família do noivo teria, e pouco ligara para que tipo de pessoa seria o noivo. Certa vez Mayu por acaso escutara alguns criados comentando sobre seu noivo, dizia-se que ele preferia homens a mulheres, e por isso estava postergando tanto ao casamento, talvez sequer se casasse, e quando Mayu contou isso à mãe recebeu uma bofetada na cara como jamais recebera antes, e a ordem expressa de nunca mais repetir aquelas palavras.

Os dedos da mãe ficaram perfeitamente marcados na alva bochecha de Mayu para o horror de seu pai.

Mas Mayu não tinha raiva da mãe, ela sabia que a mãe estava se sentido muito pressionada com o casamento que nunca chegava, ela apenas se descontrolou um pouco com a possibilidade de ele realmente não chegar, até porque um homem não gostar de mulheres não era razão para não se casar, Mayu não gostava de enguia, mas as comia quando lhe eram servidas, então ela imaginava que fosse a mesma coisa, e sua ama sempre dizia que embora um homem precisasse se casar para gerar seus próprios herdeiros não era certo que ele nutrisse por uma esposa algo mais que respeito, pois nutrir sentimentos de qualquer outro tipo só os tornaria fracos e delicados como as próprias mulheres, perigo esse que eles não corriam com outros homens. (ii)

E foi fugindo de toda essa bagunça, que a jovem Mayu escapuliu mais uma vez, como já não fazia há anos, para o interior daquela floresta na propriedade de seu pai.

E ela surpreendeu-se ao ver que o caminho que havia marcado tantos anos antes ainda estava bem vívido nas árvores, nenhuma das marcas sequer havia sido cobertas por trepadeiras ou coisas assim.

Nada, porém, podia surpreendê-la mais do que o que ela encontrou a beira do rio: lá estava o estranho que a ajudara anos atrás.

O chapéu enorme e ridículo ainda estava em sua cabeça, não havia erro, era ele mesmo!

Estava sentado numa pedra a beira do rio, a mesma onde ele estivera sentado para comer seus bolinhos, jogando outras pequenas pedras para dentro d’água, jogava uma atrás da outra, de forma rítmica e entediada.

Espiando-o por detrás das árvores Mayu de repente deu-se conta de que ambos haviam trocado de lugar, agora era ele a estar na beira do rio e ela a espiar de entre as árvores.

Não se lembrava de ter feito qualquer som, mas deve ter feito, pois de repente o homem virou-se, quase assustado, e viu-a ali.

Mas não disse nada.

Ao invés disso foi Mayu a primeira a falar:

—É você mesmo?

O estranho levantou-se, de seu rosto a única coisa que se podia ver eram os lábios, e eles estavam sorrindo.

—O que está fazendo escondida aí? Vem, vem pra cá, pequena Mayu-chan!

Era ele! Era ele mesmo!

E assim Mayu passou a retornar todos os dias, apenas para vê-lo, para falar com ele, e tamanha era sua felicidade que de inicio não notou, mas logo aquilo se tornou um fato que não podia mais passar despercebido: mesmo que ela não lhe pudesse ver o rosto e apesar dos anos que se tinham passado o estranho não parecera envelhecer um dia sequer.

Antes, quando criança, ela julgava que ele devia ter, pelo menos, o dobro de sua idade, isto é, cerca de dezoito anos, talvez um pouco mais, mas agora eles pareciam ter praticamente a mesma idade.

Por vezes ela esteve tentada a perguntar a ele sobre aquilo, mas acabou recuando no ultimo momento, talvez com medo da resposta.

Afinal quem era ele? E por que morava na beira do rio?

Era sempre muito interessante e intrigante conversar com ele, pois ao mesmo tempo que ela e o estranho pareciam ter  quase a mesma idade, ele também parecia conhecer muito pouco do mundo, como se, assim como ela, houvesse crescido durante sua vida toda protegido em um aprisionamento sufocante, mas não só isso, ele também desconhecia as coisas mais básicas da vida, como o porquê de mulheres terem de aprender a costurar e homens não, e porque eram as mulheres as obrigadas a cuidar das crianças.

Ele ensinou a Mayu como fazer um chapéu de palha e ela mostrou-lhe como se fazia uma cerimônia do chá — embora devesse admitir que não era muito graciosa quanto a isso.

Foi assim, que dias e semanas se passaram, com Mayu saindo escondida sempre que podia, para se encontrar com aquele desconhecido à beira do rio.

E assim se seguiu até que alguém — Mayu nunca soube quem — os descobriu, e foi correndo contar a seu pai.

Foi um completo escândalo!

Mayu quase caiu em desgraça, e o casamento teve que ser apressado de uma vez, antes que boatos se espalhassem.

Pela segunda vez em sua vida, Mayu recebeu uma bofetada da mãe, e sua ama chorava e chorava desconsoladamente, sempre soubera que aquela floresta era ruim, ela dizia, e sempre dissera para que Mayu se mantivesse longe dela, mas a menina nunca a escutara e agora olha o que tinha lhe acontecido!

Mayu chorou e quis dizer que era inocente, mas não pôde, ela era culpada afinal, pois por quase seis semanas saíra escondida de casa e pior, para encontrar-se com um homem!

Ela passara horas e mais horas de dias a fio conversando a sós com um homem, um completo estranho que sequer fazia parte de sua família.

Uma completa desgraça.

O pai de Mayu enviou batedores até a floresta, para capturar o tal homem, e Mayu chorou por isso também, até que seus olhos tornaram-se tão inchados que ela mal podia abri-los.

Porém o casamento foi marcado para dali a um mês, e a vigilância de Mayu foi triplicada, tudo para que ela não voltasse a sair.

Desolada Mayu trancou-se no próprio quarto, e ali ficou por dias, recusando-se a comer até que estivesse doente demais até mesmo para levantar e nem mesmo um copo de água não conseguia mais assentar-se em seu estômago.

Um médico precisou ser chamado.

Mayu era uma jovem forte e cheia de vida, era impossível que em tão pouco tempo tivesse ficado tão debilitada daquela forma, e essa também fora a opinião do médico, segundo ele algo estava roubando suas forças, sugando pouco a pouco toda a sua energia vital.

Mayu havia caído no feitiço de um youkai.

O feitiço de um youkai!

Mais uma vez a ama de Mayu se pôs a chorar desconsolada, ela sempre soubera! Sempre soubera que algo como aquilo aconteceria! E avisara a menina sobre a floresta e os youkais que nela se escondiam, mas a menina era teimosa e nunca a ouvira.

O médico receitou algumas ervas e sopas, para restabelecer as energias de Mayu e aquecer-lhe o sangue, mas nada adiantava, e a cada dia a jovem tornava-se mais e mais fraca.

O mais assustador era que, mesmo em sua doença, ela não perdia por completo a sua beleza, exibindo no que parecia ser o seu leito de morte uma assustadora e cadavérica beleza.

Foi assim que, certa noite, em meio a um sonho febril, Mayu recebeu a visita daquele desconhecido da beira do rio.  

—Mayu — ele a chamou tão suavemente que foi quase como se a brisa sussurrasse seu nome — Mayu, abra os olhos, por favor. Eu te suplico que abra teus olhos.

Ela podia senti-lo passando delicadamente uma mão macia por seus cabelos e segurando sua frágil e gelada mão.

Seria um sonho?

Abrir os olhos demandou um enorme uso de esforço e força de vontade da menina.

E ali estava ele, o rosto pairando bem acima do seu e, ainda assim oculto por seu tão familiar, mas não menos hilário, chapéu.

Aquilo não era um sonho.

—Você veio. — sussurrou por entre lábios ressecados, cada palavra exigindo de si seus últimos sopros remanescentes de vida — Como entrou aqui?

Já havia sido ruim o bastante que eles houvessem se encontrado as escondidas durante tanto tempo, se alguém soubesse que agora eles estavam a sós à noite no quarto dela, seria uma vergonha da qual a família jamais poderia se recuperar.

Mas Mayu não se importava com nada disso, ela estava feliz demais por poder vê-lo.

Ele, no entanto, parecia não escutá-la, alisava seus cabelos com demasiado cuidado enquanto murmurava lamentoso:

—Como isso pôde acontecer? Como eu pude deixar isso acontecer? Eles me avisaram, ele me avisou, me avisou para não chegar perto demais dos humanos, especialmente das mulheres. — balançou a cabeça com tanto vigor que Mayu chegou a pensar que o chapéu sairia voando — Relacionamentos entre humanos e youkais são um tabu! Sempre foram e sempre serão!

—Então você não é humano. — ela murmurou, devia estar apavorada, mas não estava — Então é verdade? Você lançou um feitiço sobre mim? Está roubando minha força vital?

Estranhamente isso trazia alivio a ela, agora tudo fazia sentido, porque ele estava sempre à beira do rio, porque parecia não ter envelhecido um dia sequer em todos aqueles anos e porque estava ali, mesmo que há dias os batedores de seu pai andassem caçando-o na floresta, e fez borbulhar em sua garganta um riso amargo, justo ela que nunca — nem mesmo quando menininha — acreditara em tais criaturas sobrenaturais, conhecera um sem perceber, ainda na infância, e agora estava tendo sua vida roubada por ele, mas ela estava fraca demais e o riso morreu antes que sequer tomasse forma completa.

—Eu nunca faria algo assim com você! — ele parecia sinceramente estupefato com isso, e talvez até um pouco ofendido.

Saber que não era ele o seu algoz trouxe a Mayu um alivio tão intenso que ela até mesmo sorriu, porém o sorriso foi tão tênue que logo depois ela não soube se realmente sorriu ou apenas pensou em fazê-lo.

—Então é outro youkai que está roubando minha vida? — balbuciou.

—Como se eu fosse permitir que alguém fizesse mal a você! — ele respondeu com a voz inflada de fúria, um segundo depois, voltou a baixar o tom de voz — Ninguém está roubando sua força vital.

—Então o que é que eu tenho?

Ele demorou-se alguns segundos antes de responder, e a mão que passeava em seus cabelos deslizou suavemente pela lateral de seu rosto.

—Tu não entendes, não é mesmo doce criança? O que tens é paixão, estas doentes de amor, porque tu te apaixonastes por mim. — disse melancólico, mas a fala, por alguma razão, agora estava se arrastando — Primeiro ficastes doente de preocupação quando pensastes que os batedores de teu pai podiam apanhar-me, e depois foi perdendo a tua vitalidade conforme passava os dias sem ver-me, por isso relacionamentos assim são sempre tabus.

Fracamente ela apertou sua mão.

—Mas você está aqui agora, e está bem. — mas mesmo enquanto dizia isso ela percebia que havia algo de errado nele, talvez fosse o jeito arrastado como suas palavras começavam a soar, ou a forma como ele tentava controlar a respiração, mas, ainda assim, não conseguisse esconder o quanto ela estava tornando-se difícil para ele — Isso não devia me fazer melhorar?

—Ah se fosse tão fácil! Mas não é! — ele lamuriou-se afastando a mão de seu rosto e agora usando as duas mãos para segurar a sua, beijando seus dedos gelados e quase sem vida, os lábios dele, ela percebeu, eram macios, mas estavam quase tão gelados quanto ela própria.

—É por isso que você também parece doente? Está doente de amor?

No entanto, para o seu desalento, ele balançou a cabeça de um lado a outro, lentamente.

—Se fosse isso, eu te digo que a morte já teria se abatido sobre mim há muito tempo, mas não é assim que as coisas funcionam, por isso que estas relações são um tabu, este amor está roubando sua vida, mas o meu mal é outro, é esta casa.

—Esta casa?

—A civilização, na verdade. — ele respondeu — Sou das montanhas, e quanto mais próximo da civilização mais fraco fico, e estando dentro de uma casa... Mas não falemos de mim, pois é tu que importa e tu já perdeste energia vital demais e agora...!

Sua voz foi morrendo aos poucos.

Mas ainda assim Mayu conseguiu compreender o que ele queria dizer.

—Quanto tempo eu tenho? — perguntou.

Mas sua voz soou tão baixa que, por um momento, julgou que ele não a houvesse escutado.

Até que ele respondeu:

—Sinto muito, mas com sorte até o amanhecer.

—Entendo. — ela fechou lentamente os olhos, embora sentisse que, nas condições em que estava, talvez não fosse capaz de abri-los novamente — Ao menos eu fui capaz de te ver uma última vez.

Apesar da morte eminente, ela sentia-se, curiosamente, em paz.

Sua paz, no entanto, foi interrompida quando aquele estranho a apanhou pelos ombros e a sacudiu.

—Tu não podes morrer! — ele ofegou — Não agora! Abra os olhos porque ainda há uma maneira de te salvar!

Ele havia falado aquilo sem pensar, claro.

Os olhos de Mayu pestanejaram, se havia sido difícil abri-los antes dessa vez foi duas vezes mais.

—Há? — sussurrou.

Ele engoliu em seco.

—Sim. — respondeu, mas voltou atrás logo depois — Só que se fizéssemos isso dentre em logo você teria que deixar sua família, teria de vir comigo e nunca mais os veria. — balançou a cabeça, o grande chapéu oscilando — Deve haver outra maneira, não é meu desejo tirá-la de sua família, tem que haver outra maneira, se ao menos tivéssemos mais tempo, então eu poderia buscá-lo, sim, e talvez ele soubesse o que...

Mayu voltou a apertar suas mãos, o aperto, porém, foi ainda mais fraco que da primeira vez e ela achou que ele não houvesse sentido, mas imediatamente após isso ele calou-se, esperando que ela falasse.

—Irei com você. — disse finalmente.

—O que? — ele espantou-se.

—Irei com você. — repetiu — Afinal se estou doente de amor de que adianta curar-me de outra forma se logo depois voltarei a definhar novamente e morrerei? Pois logo estarei casada e meu novo marido me levará daqui, então nunca mais o verei. — balançou a cabeça — E melhor que vá logo de uma vez com você.

—Tem certeza disso? — ele parecia em choque.

—Tenho.

—E virá comigo?

—Irei.

Pela primeira vez desde que o conhecera ele parecia estar, genuinamente, sem palavras.

—M-muito bem então. — gaguejou e ela pensou tê-lo ouvido engolir em seco mais uma vez — Feche os olhos.

Ela o obedeceu.

E o ouviu dizer:

—Dar-te-ei agora um pouco de minha própria essência vital.

Um segundo depois os lábios dele tocaram os seus.

Pouco a pouco ela sentiu que toda a sua vitalidade perdida se reestabelecia enquanto seu corpo se aquecia roubando dele o pouco calor que ele tinha, o pulso acelerou-se, o sangue correu mais rápido e as bochechas ruborizaram-se, o peito subiu e desceu, enchendo-se de vida.

Ela ergueu as mãos, tocou-o nos ombros e o puxou mais para si, ainda que isso fosse completamente proibido eles dois já haviam ultrapassado tantos limites que ela já não se importava mais, apenas queria estar ali, inadvertidamente enchendo-se com a vida dele.

Até que, abruptamente o contato se desfez.

—Isso... Deve ser o bastante. — ele disse, com a voz ainda mais baixa e arrastada do que antes.

Quando Mayu abriu os olhos, não havia ninguém ali.

Na verdade ela teria pensado que tudo não passara de um sonho se não fosse por um detalhe: na manhã seguinte acordara se sentindo melhor do que nunca. Completamente revitalizada.

Foi um choque para todos, e suas irmãs, tanto as mais novas quanto a mais velha — que estava ali para ajudar na casa durante a doença de Mayu — disseram que ela estivera o tempo todo se fingindo de doente para chamara atenção, mas no geral todos ficaram extremamente contentes por sua rápida recuperação.

Seu irmão mais novo chegou inclusive a chorar.

Era uma pena ter que abandoná-los, mas ela havia feito uma promessa e, além disso, queria mais do que tudo ver novamente aquele estranho pelo qual se apaixonara — ainda que nunca houvesse visto seu rosto.

Mas foi somente após quatro dias que ela finalmente conseguiu escapar da casa e correr, como nunca correra antes, para a floresta, a essa altura o caminho já lhe era tão familiar que ela nem sequer precisava mais das marcações nas árvores.

O estranho estava esperando-a sentado a beira do rio, como sempre.

—Então você veio. — ele parecia triste e ao mesmo tempo surpreso. — Já se despediu de sua família?

Mayu hesitou e nada respondeu.

—Na verdade, eu pensei melhor, você não precisa vir comigo agora, posso esperar ainda alguns anos, vinte, ou trinta, tanto faz, quem sabe até setenta? — tais palavras fizeram o coração de Mayu se apertar, o estranho segurou a ponta do chapéu. — Você tomou de mim algumas décadas de vida ontem à noite, sabia?

Mayu ficou horrorizada com aquilo.

—Me perdoe! Não foi minha intenção! Pegue-as de volta!

Mas o estranho balançou a cabeça.

—Mesmo que eu pudesse não faz diferença afinal, o tempo corre diferente para youkais e humanos, nós vivemos centenas de anos, eu mesmo sou considerado ainda muito jovem para minha raça, algumas poucas décadas não irão fazer diferença. Mas o que estou dizendo... É que umas poucas décadas cedidas de minha vida acrescentaram a sua, outras centenas de anos.

—O que exatamente você é? — A voz de Mayu quase não saiu.

—Eu sou um tengu (iii). — e ao notar a falta de resposta dela suspirou lamentoso — Agora estás arrependida, não estás? Sinto muito por ter te enganado durante tanto tempo, tu nunca soubestes que estava confraternizando com tamanha criatura.

—Como você se chama?

—Oh, é verdade, nunca te disse o meu nome, disse? Mas a verdade é que um amigo alertou-me a nunca revelar meu nome a desconhecidos, especialmente humanos, ele próprio não sabe meu nome e tão pouco eu sei o dele, para falar a verdade. — parou, parecendo sentir uma ponta de humor com aquilo — Mas agora tu carregas um pedaço de minha vida contigo, então nada mais justo do que saberes meu nome. Pois bem, eu sou Satoshi.

—Quantas centenas você me deu?

—Uma ou duas? Talvez três ou mais? Francamente não sei, como foi para você, esta também foi a minha primeira vez, mas de certo que teu sobrinho mais novo, que agora mal pode andar, já será avô e talvez até bisavô antes que o primeiro cabelo branco te surja. De qualquer forma o que estou dizendo é que tu ainda podes voltar para a tua família e passar uns bons anos com ela se quiseres, casar-te e ter filhos, mas... Infelizmente terá que deixá-los tão logo eles comecem a perceber que não envelhece da maneira convencional.

Mayu deu um passo decidido à frente.

—Irei com você agora.

Satoshi ergueu a cabeça tão rápido que o chapéu quase caiu.

—Como disse?!

—Irei com você agora. — respondeu — Eu não amo meu futuro marido, e tão pouco ele me ama, sei que isso não é razão o bastante para não nos casarmos, mas a verdade é que quero estar com você, não me importa que seja um tengu, sinto que morreria se ainda tivesse que esperar décadas por isso!

E parou, sorrindo ao perceber a ironia de suas palavras.

Parecendo pensar a mesma coisa, Satoshi suspirou com pesar:

—Escuta-me Mayu, agora que te dei parte de minha vida ela vai te sustentar, nenhuma doença mundana dos humanos poderá te afligir, nem mesmo este “mal de amor” poderá levar-te, ainda que continues me amando ou não.

—Pouco importa, irei com você agora! — Mayu respondeu para o espanto dele, e com passos decididos caminhou até Satoshi e sentou-se a sua frente — Agora, mostre-me seu rosto.

E ele mostrou.

Se fosse sincera, Mayu admitiria que naquele momento ela estava um pouco temerosa com o que veria e talvez até fugisse assustada dependendo do que se escondia debaixo daquele chapéu, mas o que viu estava totalmente além de qualquer coisa que ela pudesse ter imaginado.

Por toda a sua vida ela fora chamada de bela, invejada e amada por isso, mas agora, diante o rosto de Satoshi, ela finalmente deu-se conta de que tudo não passava de ilusão, pois, quando comparada à dele, a sua própria beleza não era nada mais do que mundana.

Não era a toa que ele escondia o rosto, pois tamanha era sua beleza que qualquer um que o visse logo saberia que ele não era humano.

E talvez até o confundisse por uma divindade.

Mas não eram afinal, os tengus, tidos como deuses das montanhas?

—Minha querida Mayu. — ele a chamou, hipnotizando Mayu com cada mínimo movimento — Posso lhe contar uma história?

E assim, contou a Mayu como nascera e crescera em uma vila escondida nas montanhas habitada apenas por tengus, onde — durante a maior parte do ano — era proibida a entrada de qualquer um que não fosse como eles, especialmente mulheres, um amigo que contou muitas sobre o mundo humano a Satoshi encheu-o de vontade de conhecer este mundo, este amigo não era um tengu, mas sim um youkai particulamente cheio de truques de quem eles não conseguiam se livrar, ainda que ele não causasse nenhum grande problema a eles.

Um dia, quando chegou à idade adulta, tendo completado seu primeiro século de vida, Satoshi recebeu permissão para deixar a vila — e a montanha.

Muitos tengus não se arriscavam a ir muito longe, sequer desciam as montanhas, pois quanto mais longe das montanhas, mas fracos se tornavam, mas Satoshi queria conhecer o mundo, seu amigo ofereceu-se para ir com ele, mas ele quis explorar sozinho este novo mundo.

E assim colocou o chapéu de palha sobre a cabeça e desceu a montanha.

Foi assim que a conheceu naquele dia que a encontrou perdida na beira do rio.

Sabia que devia ter voltado para a vila logo, mas acabou vendo-se preso ali, cativado por ela, ela era a primeira humana e a primeira garota de verdade que ele conhecia — daí estar tão assustado no primeiro encontro deles — e talvez justamente por isso não conseguiu se afastar, permitindo-se até mesmo comer da comida humana apenas para vê-la sorrir, ou talvez, desde o principio já fosse algo mais.

—Quando pedi que não voltasse mais à floresta foi porque eu estava de partida e temia que algo lhe ocorresse caso eu não estivesse aqui, algum youkai poderia devorá-la, mandei-a embora, mas não consegui me afastar. — ele confessou — Eu fiquei aqui esperando por seu retorno, ainda que eu mesmo tivesse dito para não voltares, e tanto esperei que até mesmo mantive o caminho desobstruído para ti, garantindo que as marcas que fizestes nas árvores nunca sumisse ou fossem encoberto por plantas.

Então era por isso, ela pensara, era por isso que, em seu quarto, ele havia lhe dito que se sofresse do mal de amor, tal como ela, então já teria perecido há muito tempo: porque desde que ela era uma menina ele a havia amado.

—Se vier comigo, não poderá retornar para tua casa, assim como eu não poderei retornar a minha. — ele lhe estendeu a mão — Mas estaremos sempre juntos.

Mayu pegou sua mão.

E ambos desapareceram floresta adentro.

 Mas, apesar de tudo o que seu agora marido dissera, Satoshi de tempos em tempos retornava ao seu lar, a antiga vila dos tengus onde outros youkais e mulheres não eram permitidos, assim como ela retornava a sua casa ajudada pelo amigo de seu marido, o mesmo que tanto o fascinara a respeito do mundo dos humanos e que o alertara a nunca dizer seu nome, e na calada da noite invadia os sonhos de seus familiares.

Foi assim que soube que seu sumiço matou ao pai de tristeza.

E que, certo dia, o irmão menor partira numa jornada. Uma busca por ela. E jamais retornou.

Porém, o que estava feito estava feito, e Mayu não podia mais voltar atrás, com o passar do tempo, no entanto, todos que ela amava começaram a partir, abandonando o mundo dos vivos, era o ciclo natural da vida, e Mayu finalmente percebeu que não havia mais lugar para ela naquele mundo.

Assim, ela passou a viver permanentemente entre os youkais.

De tempos em tempos seu marido ainda visitava o mundo humano e trazia de lá alguma lembrança para ela, mas isso começou a torna-se cada vez mais difícil até que os humanos tornaram-se inacessíveis até mesmo para o cheio de truques amigo de seu marido.

Ainda assim por vezes ele continuava a sumir, especialmente quando havia alguma tarefa de casa a fazer.

—Satoshi! — Mayu o chamou com o ancinho em mão — Satoshi!

Naquele dia Satoshi havia prometido que limparia as folhas secas do quintal de casa, mas, como sempre, ele desaparecera deixando todo o trabalho para ela, aquela não era a primeira e nem a ultima vez que ele fazia aquilo.

—Mamãe. — Akihiko, seu filho mais novo, a chamou de cima de uma árvore, a mesma que soltava tantas folhas no quintal. — O papai está encrencado?

—Com certeza que ele está! — Quem respondeu foi o filho mais velho de Mayu, Akira, também em cima da árvore, junto com o irmão.

Akihiko aparentava ter em torno de oito ou nove anos, e Akira parecia ter onze ou doze anos, mas a verdade é que Mayu não sabia realmente a idade dos filhos, e é claro, isso é uma vergonha para qualquer mãe, mas ali naquele mundo onde havia dia e noite, mas não sol ou lua, por alguma razão era extremamente difícil marcar a passagem do tempo, Mayu mesma não sabia se estava ali há uns poucos anos ou se algum século já havia se completado.

Tudo o que sabia era que mal parecia ter envelhecido sequer dez anos desde então e que seu primeiro cabelo branco ainda não surgira.

Akihiko e Akira eram hanyous, nem completamente humanos como a mãe, nem completamente youkais com o pai, e ainda eram muito novos para conseguirem ocultar as asas como faziam o pai e os outros tengus — embora Satoshi não tivesse certeza se algum dia eles seriam capazes de fazê-lo, por serem hanyous e não youkais completo.

—Crianças. — Mayu os chamou — Será que podem voar e procurar pelo pai de vocês?

—Não é necessário que mandes as crianças ao meu encalço, pois eis que estou aqui. — Satoshi respondeu chegando ao quintal, com seu chapéu de palha na cabeça.

Mayu virou-se com uma careta.

—Onde ele está?

No entanto, essa não é uma história sobre Mayu e tão pouco sobre seu marido ou filhos.

—De quem está falando? — o recém-chegado, que certamente não era seu marido, tocou a ponta do chapéu de palha.

Do alto da árvore as crianças apenas observavam.

—De meu marido, é claro!

—Como assim? — por debaixo do chapéu ele sorriu — Não estas me vendo aqui?

O recém-chegado certamente usava as mesmas roupas que Satoshi usava pela manhã, além do mesmo chapéu inconfundível de sempre, a voz e o cabelo escuro preso à altura da nuca e jogado sobre um ombro também eram os mesmos.

Mas Mayu sabia: Aquele não era seu marido.

—Não brinque comigo! Onde ele está? — impacientou-se.

—Estou aqui, bem diante de ti. — o recém-chegado insistiu.

 —Gintsune! — Mayu grunhiu.

E num ímpeto de fúria atirou, como uma lança, o ancinho contra o recém-chegado, mas ele desviou-se, agachando com imensa agilidade.

—Como você sabia?

Ele riu levantando-se com as roupas transformando-se em um quimono simples de cor azul escura, amarrado por um obi um tom mais claro, os cabelos escuros crescendo até depois dos quadris e clareando-se até um lustroso tom de prateado.

Quando ele tirou o chapéu um belíssimo rosto se revelou, mas não o rosto de Satoshi.

Mayu cruzou os braços.

—Gintsune, eu já vivo há tempo demais entre vocês para ainda ser pega por seus truques.

—De fato. — Gintsune concordou.

Ele era o amigo de Satoshi que o encantara sobre o mundo humano e que mais tarde levara Mayu até sua antiga casa e a ajudara a invadir os sonhos de seus familiares.

Gintsune, a antiga raposa prateada de múltiplas caudas.

E essa história é sobre ele.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ufa! E finalmente o fim do primeiro capítulo!

E você que chegou até aqui o que achou do começo da história?
Eu pessoalmente não me considero muito boa para escrever o gênero de romance, mas ainda assim achei a história de Mayu e Satoshi tão meiga... E no próximo mês finalmente conheceremos a estrela deste show: o, incomparavelmente belo, youkai raposa Gintsune!

E agora por último... Algumas curiosidades do Japão!!!

[i] A Era Tokugawa, também chamada de Xogunato Tokugawa, foi um período de ditadura militar estabelecido entre os anos de 1603 a 1868, a qual foi governada pelo clã Tokugawa.
[ii] No Japão antigo acreditava-se que um homem que desenvolvia sentimentos afetivos por mulheres, acabava se tornando fraco e delicado como as próprias mulheres, e muitas das vezes os guerreiros acabavam desenvolvendo com seus aprendizes um vinculo de afeto que ultrapassava a relação de “professor/aluno”, no entanto, mesmo que essa fosse uma situação conhecida por todos, nunca se devia falar às claras de tais relações.
[iii] Tengus são Uma espécie de youkai alado que vive nas montanhas, sua aparência pode variar entre duas espécies, a primeira e mais conhecida é a “Daitengu” que possui pele vermelha, orelhas pontiagudas e um longo nariz, já a segunda “Kotengu” possui cabeça de corvo, os tengus muitas vezes são considerados também como deuses/protetores das montanhas.