Noir escrita por Lillac


Capítulo 1
Capítulo único




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Estrelas explodem por baixo das minhas pálpebras quando eu a fecho, supernovas de luz remanescente do exterior, rodopiando a minha volta, puxando-me pelas mãos, e meus pés descalços deslizam sobre a grama salpicada de orvalho, eu sinto calafrios em cada fibra do meu corpo, nas articulações dos meus dedos e em cada ponta do meu ser. Sinto-me vibrando, no interior do meu peito, em um zumbido de um milhão de colmeias.

Não sei quem inventou que a solidão é escura. Na minha essência, ela nunca foi. Minha mente é escura, deitada sob um manto de buracos negros que me consome e me puxa, me atira e me sufoca. Minha fala é escura, fraca e sibilante. Tudo em mim é escuridão, mas a minha sina é colorida, como um arco-íris que consome o céu, que me mergulha em cores, faixas sobre os meus olhos fechados, na minha língua e no meu coração. Tudo ao meu redor balança em cores e eu me sinto sozinho, no meu pequeno buraco de frio e negritude.

O pôr-do-sol é laranja e caloroso e eu vejo o céu dançando em cores vívidas de novo, mas dessa vez, minha boca está fechada e eu respiro fundo. O sulco dos morangos ainda escorre do meio dos dedos dele, onde Will os apertou com força demais na colheita. Minha pele é quente e viva, e eu consigo sentir as gotas de desespero que ainda escorrem por ela — mas nenhuma é tão espessa e pegajosa quando a sensação grudenta das mãos dele no meu rosto.

Tudo passa, e vem, e arranca um pedaço de mim para si. Em torno eu só vejo borrões, figuras repetidas que eu já contei milhões de vezes. Nada disso é novo, nada disso me desperta. Eu afundo, perco o ar. Minha cabeça está girando, eu não escuto mais nada. A solidão tem gosto de pedra, sólida no céu da minha boca, ela fecha minha garganta e me cala com um ossudo dedo levantado, uma intimação de silêncio que eu não ouso descumprir. Quem me escutaria, afinal?

Os gritos são escassos no submundo – o vento os carrega para longe, para os sonhos dos mortais. Para vielas escuras e noites silenciosas no topo de arranha-céus. Eles ecoam nos ouvidos das pessoas que o deixam. E ecoam nos meus. Eu os escuto, abafados, e às vezes me pergunto toda essa ópera de lamúrias não me tem na ponta da caneta de pena, em uma assinatura cursiva que assinei em um pesadelo. O afundo no mar madrepérola, iço velas em uma galé de esperanças destroçadas quando o chão se abre sob os meus pés e eu caio, caio, caio... quem mergulharia por mim?

É frio aqui fora, as nossas respirações condensam quando falamos, e eu esfrego uma mão enluvada na outra. Minha solidão sempre foi quente e abafada, mas o ar gélido morde a minha carne quando ela passa correndo por mim, rindo sonoramente, e se atira em um monte de neve. Eu tento proteger os olhos das partículas de gelo, mas Hazel se balança, decidida a me macular de pontinhos pálidos de felicidade de natal. As luzes refletem nas suas írises douradas, e ela junta um amontoado em uma mão.

Quem afundaria por mim?

 

Há uma cacofonia que chacoalha meus pensamentos – eles ricocheteiam no meu crânio e balançam, mas mal posso ouvir algo por cima do barulho. Tudo se mistura em uma infinidade de saias escarlates e o som austero, estranhamente jovial, dos violinos que pairam nos mezaninos. Ninguém para de falar, e eu tento não pensar muito no modo como a minha cabeça destila o som da voz dela, pescando-a do estrondo como uma agulha em um palheiro:

“Você quer ir embora?”.

Ela está bonita. Sinto que não escuta isso o suficiente, e quero dizer-lhe, mas embora a pedra em minha garganta tenha se desfeito em centenas de caquinhos, eu ainda não consigo. Ao invés disso, seguro o braço de Jason e olho ao redor. Os casais dançam, bebem e conversem, colados, sussurrando. Duas mulheres próximas a nós estão um pouco fora do ritmo da valsa, mas não parece importar para elas, nem para ninguém.

“Nós iríamos, se eu pedisse?”.

Reyna desliza a mão dela até a minha.

“Nós faríamos qualquer coisa por você”.

Eu olho para os meus sapatos lustrosos, e embora ainda não consiga discernir o ritmo muito bem, eu engulo em seco alguns caquinhos. “Eu quero ficar”. O festival acaba no final da noite. Eles merecem.

Reyna e Jason trocam um olhar amigável. Cada um deles segura um braço o meu, e estou sendo arrastado para o canto do salão. É menos iluminado e abafado, mas ainda há casais dançantes a nossa volta.

“Então eu acho que você deveria dançar”.

“Ei!” eu sinto minhas orelhas esquentarem “eu não concordei com isso!”.

Não faço ideia de como dançamos a valsa. Mas quando o fazemos, meus pulmões se inflam de emoções que eu não entendo. Quando tudo termina, estou ofegando e o ar ruge em meus ouvidos.

“Respira fundo” Reyna sussurra. Não está usando seus poderes, mas eu me sinto preenchido de uma força bem-vinda “tudo o que você precisa é respirar. O mergulho acabou, nós estamos aqui”.

Eles mergulhariam por mim, eu penso. E ainda há cacos, e óperas de tragédias, e o mar que entra pelas minhas narinas, mas por enquanto, por enquanto eu estou na superfície.


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Notas finais do capítulo

respirem fundo, vai ficar tudo bem
comentários são apreciados



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