Pauta de Outono escrita por Polaris


Capítulo 1
Capítulo único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/774299/chapter/1

Uma tarde encantadora.

Era assim que ouvia as pessoas descreverem, o que para si era mais uma página em branco. Tinha um livro espesso delas, por sinal. A capa desgastada, suja e maltratada parecia desfazer-se mais um pouco, cada vez que folheavam – em vão – o seu interior. As folhas ressequidas permaneciam intocadas, incapazes de deleitar os leitores confusos e frustrados, não hesitantes em descartar um livro gasto e sem conteúdo.

Com certeza, não havia vestígios de tinta naquelas páginas, sequer uma mancha acidental que justificasse a ruína da sua existência.

Não tinha forças restantes em si, para contrariá-los no seu julgamento prematuro e superficial ao livro, pelo menos não hoje. Quem sabe amanhã. Agora, apenas conseguia acariciar a proteção das suas folhas, com apreço pela sua bravura. Pois mesmo sem coração de tinta, ele protegia uma história visível a poucos, mas partilhada por muitos. Eram páginas que dançavam na leveza do vento, com borrões de água salgada e amarrotadas por emoções que palavras não poderiam descrever. Pigmento algum conseguiria exceder a mestria do Tempo, demarcando em simples e delicados traços, os fragmentos pálidos que contavam toda uma vida.

O livro era pesado.

Sentia-o no peito.

Sentia-o nos ombros.

No seu andar e no esforço fatigante dos pulmões.

O ar transbordava de cores quentes, que aliciavam o paladar e capturavam o olhar de qualquer um. As folhas restolhavam pacificamente, balançando uma última vez antes de se unirem num tapete de amarelos e encarnados, cobrindo o parque que se deliciava com a visão.

Era uma tela tingida de calor, mas não conseguia sentir.

Nem o sol que tocava o horizonte, nem a brisa que embalava os seus cabelos.

Os pardais anunciavam o fim do dia, atarefados no seu caminho a casa, mas não conseguia ouvir.

Nem as cantorias humildes das aves, nem a melodia relaxante da natureza que lhe envolvia.

Ali, num vazio familiar, desejou libertar as próprias folhas ao vento. Que o seu livro se transformasse num piano aos seus pés, cujas teclas permaneceriam mudas, inabaláveis à pressão e à angústia dos seus dedos.

Era um silêncio ensurdecedor e mais ninguém conseguia ouvi-lo.

Um caos que não dormia explodiu em amargura, rasgando pequenos pedaços da sua página. Uma dormência fria consumiu o seu ser, vertendo silenciosamente dos seus olhos. A garganta tremeu-se em um nó e a capa rendeu-se, fechando-se novamente sobre os desgarres do dia.  

Fora uma tarde encantadora.

E não conseguira vê-la.  


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Para os que continuam a tentar.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Pauta de Outono" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.