Pauta de Outono escrita por Polaris
Uma tarde encantadora.
Era assim que ouvia as pessoas descreverem, o que para si era mais uma página em branco. Tinha um livro espesso delas, por sinal. A capa desgastada, suja e maltratada parecia desfazer-se mais um pouco, cada vez que folheavam – em vão – o seu interior. As folhas ressequidas permaneciam intocadas, incapazes de deleitar os leitores confusos e frustrados, não hesitantes em descartar um livro gasto e sem conteúdo.
Com certeza, não havia vestígios de tinta naquelas páginas, sequer uma mancha acidental que justificasse a ruína da sua existência.
Não tinha forças restantes em si, para contrariá-los no seu julgamento prematuro e superficial ao livro, pelo menos não hoje. Quem sabe amanhã. Agora, apenas conseguia acariciar a proteção das suas folhas, com apreço pela sua bravura. Pois mesmo sem coração de tinta, ele protegia uma história visível a poucos, mas partilhada por muitos. Eram páginas que dançavam na leveza do vento, com borrões de água salgada e amarrotadas por emoções que palavras não poderiam descrever. Pigmento algum conseguiria exceder a mestria do Tempo, demarcando em simples e delicados traços, os fragmentos pálidos que contavam toda uma vida.
O livro era pesado.
Sentia-o no peito.
Sentia-o nos ombros.
No seu andar e no esforço fatigante dos pulmões.
O ar transbordava de cores quentes, que aliciavam o paladar e capturavam o olhar de qualquer um. As folhas restolhavam pacificamente, balançando uma última vez antes de se unirem num tapete de amarelos e encarnados, cobrindo o parque que se deliciava com a visão.
Era uma tela tingida de calor, mas não conseguia sentir.
Nem o sol que tocava o horizonte, nem a brisa que embalava os seus cabelos.
Os pardais anunciavam o fim do dia, atarefados no seu caminho a casa, mas não conseguia ouvir.
Nem as cantorias humildes das aves, nem a melodia relaxante da natureza que lhe envolvia.
Ali, num vazio familiar, desejou libertar as próprias folhas ao vento. Que o seu livro se transformasse num piano aos seus pés, cujas teclas permaneceriam mudas, inabaláveis à pressão e à angústia dos seus dedos.
Era um silêncio ensurdecedor e mais ninguém conseguia ouvi-lo.
Um caos que não dormia explodiu em amargura, rasgando pequenos pedaços da sua página. Uma dormência fria consumiu o seu ser, vertendo silenciosamente dos seus olhos. A garganta tremeu-se em um nó e a capa rendeu-se, fechando-se novamente sobre os desgarres do dia.
Fora uma tarde encantadora.
E não conseguira vê-la.
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Para os que continuam a tentar.