Mulher Ao Mar escrita por Caíque Pereira


Capítulo 1
A Bordo




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PRÓLOGO

Anotações da Aretha – Linha do tempo da mamãe

2054

Mamãe tinha um melhor amigo chamado Jack. Ele estava passando as férias aqui em Southampton, mas desapareceu de repente. Mamãe fica sozinha.

2059

Cinco anos se passaram desde que Jack sumiu, mas mamãe não desistiu de encontrá-lo. É quando ela se apaixona pela mamãe Gillian, uma detetive particular que contratou para ajudá-la. Mamãe Gillian recupera sua velha personalidade e elas ficam juntas. É a primeira vez que Mamãe Lizzy sorri em anos – cinco, pra ser mais exata.

2062

Mamães se casam.

2064

Mamãe Lizzy engravida por inseminação artificial (de mim!) e mamãe Gillian sai da investigação de Jack.

2065

Mamães dão à luz uma menina que chamam de Aretha (eu de novo!).

? (Não lembro da data e mamãe Gillian não conversa sobre isso)

Mamães brigam muito, todo dia. Eu e mamãe Gillian vamos morar em seu antigo apartamento. Mamãe Lizzy fica sozinha de novo.

? (Também não lembro, tenho que insistir mais com Gillian)

Lizzy voltou a pesquisar sobre o sumiço de Jack. Ela não atende às ligações de Gillian. Ela não atende às minhas ligações também. Gillian tenta chorar escondida de mim.

2082 – presente

Lizzy não veio à minha formatura do Ensino Médio. Vejo Gillian sair do auditório e telefonar para alguém, provavelmente ela, mas já sabemos que não vai atender. Fico no palco esperando Gillian voltar, ela tem meu anel de formatura. Nunca o usei. Estou sozinha.

14 de abril de 2082 – aproximadamente 17h

Southampton, Hampshire / Reino Unido

— Terapeuta idiota.

Não penso duas vezes: amasso e jogo fora todas as anotações que fiz na consulta daquela tarde chuvosa de terça-feira. A bolinha disforme de papel amarelo se perde entre os objetos dentro da bolsa. “Aretha, preciso que escreva uma linha do tempo começando quando a relação com sua mãe desandou”, argumentou a suposta doutora. Ela parecia ter engolido o roteiro de uma reprise da Oprah, então me reservei ao direito de questionar o diploma emoldurado com macarrão colorido na parede.

Tentei um certo sarcasmo redigindo cada memória como a “Aretha” daquela idade faria, abusando no uso de “Mamães” pelos parágrafos, até no título da cronologia. Torci para que a psicóloga percebesse minha falta de vontade em estar ali e encerrasse a sessão. Me surpreendi quando aconteceu exatamente o contrário: ela achou genial e perguntou sobre meu histórico com a literatura infanto-juvenil.

Gillian ia me pagar. Já tinha desistido de ter uma das famosas conversas de “mãe e filha”, mas me obrigava a falar com alguém sobre Lizzy. Arrasto a palma da mão sobre a pulseira e o celular holográfico surge. Por costume, seleciono o contato “Lizzy” e cai, como sempre, na Caixa Postal depois de inúmeros toques, o barulho sincronizado com os pingos sobre a entrada do consultório.

A chuva aperta no centro comercial de Southampton enquanto eu verificava as ligações perdidas, duas no total: “Mãe” e “Benjamin”. Sorrio quando vejo que ele trocou o nome de seu contato para “Me Beijamin” de novo. Ligo para o namorado primeiro.

— Oi, amor – que saudade daquela voz constantemente rouca. Era como se, a todo momento, Ben tivesse acabado de acordar – Como foi a consulta?

— Tirando o incômodo durante todo o tempo, foi ok.

— Menos mal. Já decidiu se vem para cá no sábado? Sua sogra quer planejar o banquete – Ben morava em Verwood, do outro lado do Parque Nacional New Forest, a quase 30km de distância de Southampton. Nunca fui adepta de relacionamentos à distância, porém, desde que nos formamos no Ensino Médio, essa é a realidade.

— Banquete? Quando ia me contar que vamos casar?

— Talvez você engasgue com uma aliança no primeiro bolo do café da tarde. Talvez.

Rimos juntos, aproveitando aqueles segundos gostosos de silêncio logo após.

— Tô com saudade – seguro o embargo na voz e lembro do abraço dele, viria a calhar nesse tempo. Um vento mais forte corre pela calçada e fecho mais o cachecol no pescoço, voltando uns passos para perto da porta de entrada.

— Então venha, também tô doido pra te ver. Prometo que vamos assistir todos os filmes de faroeste que detesto.

— Vou cobrar isso.

Minha memória fotográfica, às vezes, era um ponto positivo no relaciomento. Bastante negativo para Benjamin e suas promessas impulsivas, mas extremamente útil para mim.

— Cobre da minha mãe, a coleção de filmes é dela – Ele pondera no outro lado da linha. – Se bem que, depois de experimentar os bolos, vai preferir casar com ela. Quer saber? Esquece o banquete, eu vou cozinhar pra você.

Recordo em silêncio do omelete no teto e no par de vezes que chamamos os bombeiros ao apartamento quando Ben estava responsável pela cozinha. Uma comédia trágica em três atos e muito cheiro de queimado.

— Eu vou te encontrar, sem falta. Minha mãe ainda tá naquele congresso de detetives. “Veterinários pela Coroa” ou algo assim.

— “Veteranos da Rainha” – ele adora me corrigir nas raras vezes que está certo.

— Foi o que eu disse. De qualquer forma, fiquei com o carro dela.

— Então já não tem desculpa. Se não vier, vou te buscar com o Borges.

— Mais fácil seu cavalo vir montado em você. Tenho que ir, amor – uma dor de cabeça começa a surgir e automaticamente entendo o porquê: estou atrasada.

Ok, mas promete que vai vir?

Meu coração gelou e não tinha nada a ver com o clima. De alguma forma, tive uma intuição de que faltaria ao encontro com Ben. Não veríamos filmes de faroeste para dublar as partes que decoramos, não daria cenouras frescas ao Borges depois do café da manhã, muito menos provaria os bolos de sua mãe e fingiria procurar a aliança de mentira no recheio. A hora seguia e o atraso só aumentava, o latejar trovejando na minha cabeça.

— Prometo.

14 de abril de 2082 – aproximadamente 17h

Verwood, Dorset / Reino Unido

Os aromas do café pronto e bolo saindo do forno namoram pelo ar quando Benjamin se despede de Aretha e desliga o celular. Ele se levanta para deixar a sala-de-estar, mas, antes, verifica o bolso da calça pela milésima vez, e sente o chaveiro de cavalo que seu pai presenteou sua mãe um dia, e ela lhe deu quando começou a namorar Aretha.

Enquanto o lado materno da família mantinha uma pequena criação de cavalos, o pai de Ben era um artesão de chaveiros por encomenda. O jovem já tentou convencê-lo a aprimorarem juntos o chaveiro de cavalo com alguns gadgets, mas seu pai nunca aceitou. Benjamin era mais ousado nesse sentido, um inventor de mão cheia, e tentava, aos poucos, trazer suas criações tecnológicas para a loja do pai.

De volta ao bolso de sua calça, um objeto faz companhia ao chaveiro. A mão de Ben dedilha a abertura, olhando ao redor do cômodo para confirmar se está realmente sozinho. Ele escorrega de vez a palma para dentro do bolso e, depois de agarrar o que buscava, retira uma caixinha aveludada, agora em destaque entre seus dedos. Ele tem prática em abri-la apenas com um movimento do polegar, revelando o anel de noivado que dará para namorada neste fim da semana. Nenhuma de suas invenções seria tão perfeita quanto os dois juntos.

14 de abril de 2082 – aproximadamente 19h

Universidade de Southampton, Hampshire

— Aretha Bray. É bom finalmente ver o senhor ao vivo.

Aperto a mão do homem miúdo atrás da mesa de madeira, a cadeira prestes a engoli-lo. “Dr. Becergi Ganse – geólogo” brilha em dourado na placa à sua frente. O escritório combina com seu dono recém-chegado à cidade: pequeno e abarrotado de móveis ainda sob plásticos. Espacialmente falando, pareciam impossíveis de caber ali – como a enorme quantidade de tatuagens que Dr. Ganse tinha orgulho em exibir.

— Dr. Ganse, à sua disposição – ele larga minha mão e tomo o lugar à sua frente. Sua careca é lisa apenas de cabelos, adornando um dragão vermelho que sugere se mexer na luz fraca. Ele percebe meus olhos acima da linha dos seus e pigarreia forte – Então, trouxe o que pedi?

— Tudo.

Retiro da bolsa um envelope pardo bastante recheado e lhe entrego. Ele tira com calma cada um dos documentos guardados, cortesia do acervo doméstico de Gillian e sua antiga linha de acesso hackeada ao banco de dados da polícia de Southampton. Se ela não queria que eu visse aquilo, teria pensado em uma senha melhor do que meu aniversário.

— Aqui são relatos de testemunhas no desaparecimento do indivíduo – aponto para os papéis com post-its verdes.

— Jack Daniels.

— Dawson.

— Ah, sim. Desculpe, é esse tempo, me faz confundir nomes. Fiquei em uma ligação de três horas com a equipe de mudança para acertarem meu endereço, eu não lembrava a rua.

Ganse veio de um centro de geologia de Edimburgo, na Escócia, para estudar o fenômeno das safiras de Southampton. Anualmente, por volta do dia 14 de abril, elas eclodem do chão em cavernas e câmaras subterrâneas da região, principalmente perto do mar. Os olhos do especialista nesse tipo de pedra brilham quando para de folhear os documentos.

— Eu sabia...

— O quê? – arregalo os olhos e quase levanto da cadeira acolchoada para ver o que ele observa. Desde que comecei a estudar o sumiço de Jack e seu contexto, quase 30 anos depois que tudo ocorreu, as expectativas de descobrir algo novo eram microscópicas. Gillian foi a melhor detetive particular do sudeste da Inglaterra; Lizzy rodava o mundo atrás de seu paradeiro há anos; a polícia de Southampton e de Wisconsin, nos EUA, investiram recursos além da conta no caso e ninguém – ninguém— obteve sucesso. A investigação de uma garota de 17 anos não tinha chance alguma. Ganse virou o papel para mim.

Le Cœur de la Mer — legendou oralmente a imagem familiar que segurava em minha direção: um colar de base platinada, diamantes formando um coração ao redor de uma grande safira azul – O Coração do Oceano.

Respiro fundo. Aquilo estava longe de ser alguma novidade.

— Sim, é a joia que Jack tentou roubar antes de sumir – aperto com o polegar e o indicador o espaço entre as sobrancelhas, inspiro e expiro novamente. Lembro da linha do tempo que escrevi na terapia, essa era a primeira lembrança. Tinha esquecido como era mais difícil verbalizá-la – Até pesquisei a história dela, é só mais uma daquelas coisas que passa de mão em mão pela história. Era de uma mulher que se suicidou antes de vir pra cidade.

Já revi essa história milhões de vezes, incluindo a gravação de segurança do museu, com direito a Jack correndo em direção à Sala de Joias. Depois disso, o colar foi encontrado no chão do lugar, todavia, nada do homem por trás do quase crime. Ganse também sabe disso tudo, e desperta a velha desconfiança que precede a decepção de não chegar a lugar algum.

— Rose DeWitt Bukater – Ganse lê minhas anotações no verso da fotografia através dos óculos caídos. Faz anos que não vejo um óculos tão de perto, acho que Gillian tinha um que a mãe dela usava para leitura. Depois de lhe presentear com uma lente fixa de autocorreção, ela deu sumiço no objeto – Sabe, estima-se que o fenômeno das safiras em Southampton começou na década de 2060, mas sem data exata.

— Talvez seja pelos desaparecimentos. Muita gente que teve contato com as pedras sumiu pouco tempo depois, aí não dá para saber quando começou exatamente. Tá na pesquisa – apontei mais uma vez para os documentos. Estou orgulhosa do meu trabalho e o geólogo não dá a mínima. Tem até vídeo das câmeras de segurança do museu na noite do roubo, mesmo que tenham registrado somente até o momento em que Jack entra na sala das joias.

— Sim, sim, mas a questão não é essa, srta. Bray. Acho que confirmei uma teoria.

Ganse se levanta de repente e senta ao meu lado, as patas de cachorro tatuadas em seu rosto margeando a expressão, um misto de assombro e frenesi.

— Os olhos de todos os envolvidos nessa pesquisa – é a vez dele de apontar para os papéis sobre a mesa – estão viciados. Onde vocês veem um roubo, eu vejo 14 de abril de 2054: a data do primeiro sumiço do Fenômeno de Southampton.

O quê?! Ouvi minha vida toda essa história e a visão de Ganse está longe da verdade. Jack e Lizzy eram melhores amigos, viviam passando as férias um na casa do outro. Ele a visitou na Páscoa, eles foram até um museu, voltaram para casa e, logo depois, ele desaparece depois de tentar sair com o objeto mais caro da exposição.

Jack é um ladrão.

Me recuso a pensar o contrário, mas a dor de cabeça volta a latejar e dou corda para o doutor continuar a falar e me distrair.

— Isso não faz sentido. As safiras não eclodiam naquela época – no instinto, saco um bloquinho e caneta da bolsa, pronta para anotar qualquer luz que o professor possa jogar sobre o caso. Mesmo que sirva apenas para, depois, se provar algo impossível.

— Por isso mesmo. Um evento geológico dessa precisão precisa de um ponto de início, uma causa – Ganse apelava ao didatismo e fazia desenhos no ar com um dedo – e acredito que o sumiço de Daniels...

— Dawson.

— ...tenha sido esse começo.

Apoio a testa com uma das mãos, o latejar vai sumindo. Os contos do Papai Ganse pareciam prestar só para uma coisa: melhorar minha dor-de-cabeça.

— Digamos que o senhor esteja certo – mesmo que não esteja –, que tipo de coisa poderia ter acontecido no desaparecimento? Para as safiras surgirem todo ano nessa época?

O rosto do doutor se austera. Sua figura pequena se levanta devagar, em silêncio, e vai em direção à janela fechada do outro lado do cômodo. Um chuvisco dá trégua à tempestade que assolou o dia inteiro. Ele olha para fora intensamente, por mais que não dê para enxergar qualquer coisa àquela hora e naquele tempo.

— Eu já vi muitas coisas que preferia não ter que explicar, srta. Bray. Essa é uma delas. A senhorita provavelmente vai me chamar de lunático e ignorar todo o contato que tivemos e as informações que trocamos pela Internet nesse semestre.

A fala de rodeios de Ganse começava a me irritar, mas um ponto não podia negar: fazia sentido. Não Jack ter “apenas” sumido e deixar de ser o ladrão que odiei por todos esses anos mas ser o estopim do surgimento das safiras. Que se dane, preciso entender o que aconteceu.

— Eu quero saber – respondo à pergunta implícita do geólogo. Ele bufa.

— Muito bem. Cientificamente, ao meu ver, só há uma causa plausível presente no sumiço de Dawson com o Fenômeno das Safiras: uma ruptura no espaço-tempo – minha expressão de confusão reage na postura de Ganse, que volta a se sentar ao meu lado sem demora – Veja, eu gosto de pensar no tempo como um anel, e nós só estamos percorrendo a circunferência, sempre em um único sentido – o professor faz um “O” com uma das mãos e gira a ponta de seu indicador ao redor dela – Mas e se pudéssemos sair de um ponto dela e ir para outro, atravessando o vazio no meio do círculo? Não poderíamos quebrar o anel, obviamente, mas a fratura na linha temporal então faria sentido. E digo mais: para criar um rastro magnético desse tamanho, que tira as safiras do solo sempre no mesmo dia de cada ano, o ato de Jack deve ter até criado uma segunda linha temporal.

Nunca fui muito fã de ficção científica, sempre gostei mais dos filmes de faroeste. Lembro de brincar com minhas mães de caçar procurados pela casa quando chegava da escola. A recompensa sempre era deitar depois da hora de dormir. Minha quietude de devaneio estimulou o estudioso a continuar a falar.

— Tem uma teoria que não gostam que eu use muito no campo da geologia, mas deve elucidar alguma coisa – ele acena para mesa de madeira em nossa frente e um painel holográfico surge sobre ela.

— H.G. Wells – tenho a impressão instantânea que nunca vou esquecer como aquelas letras soaram na voz soturna de Ganse, formando um nome escrito no holograma. O conteúdo da tela sumiu e reapareceu, várias capas de livros flutuando uma ao lado da outra. O homem tocou em uma delas, cuja capa cresceu.

Pude ler seu título, seguido de um nó na garganta:

— “A Máquina do Tempo”.


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