Pasha escrita por Nat King


Capítulo 2
Bônus - Parte I


Notas iniciais do capítulo

Bu! o3o

Você moscou e a Nat da Virada chegou com uma atualização rapidinha de Pasha~
Já estava em meus planos trazer alguns momentos envolvendo esse garotinho (e um tantinho de Liliakov, vai...), mas como eu já devia imaginar, o plano inicial fugiu de controle e eu serei obrigada a postar o bônus de réveillon em duas partes kk Não garanto que a próxima seja em breve, mas metade está encaminhado. Eu só não queria deixar nada pendente para esse fim de ano :'D

Como eu imagino que só terei a dona Mileh Diamond de olho nesse trambolho aqui, aproveito para dedicar esse extra como uma lembrancinha extra de fim de ano ♥ Obrigada, mais uma vez, por ser parte da minha vida e ser o motivo pelo qual tenho me esforçado cada vez mais. Espero que em 2020 faça valer sua amizade, Mileh ♥ Estamos aqui sempre tentando ♥

E se você caiu aqui de gaiato, peço desculpas pelo açúcar derramado na mesa. Aqui a gente às vezes (sempre -q) é meio piegas :v

Ah, o capítulo a seguir contém alta quantidade de OCs e referências ao universo de Carabosse, então vou tentar colocar um pequeno guia nas notas finais. Qualquer dúvida, só chamar ♥

Boa leitura!!



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Bônus

Parte I

 

No castelo, Aurora encantava a todos os convidados presentes para seu aniversário de dezesseis anos. Realizando uma entrada alegre e jovial, seus passinhos eram ágeis, cheios da energia que a princesa de olhos verdes expressava através da dança. Amada pelos pais e cortejada pelos príncipes, ela sorria e aceitava cada uma das rosas oferecidas, sendo ela, sem sombra de dúvidas, a mais bela de todas as flores enfeitando o bailado.

Na plateia, todos estavam enfeitiçados por Baranovskaya, comparação um tanto irônica, já que era a personagem de Lilia a primeira a ser enfeitiçada na trama de A Bela Adormecida. Sorrindo para si mesmo ao pensar naquilo, Yakov acompanhava os aplausos, fascinado e orgulhoso por ser esposo daquela mulher incrível. Um pouco inseguro também, mas ninguém precisava saber.

Não demorou muito para Aurora ser presenteada por uma criatura encapuzada que todos sabiam se tratar de Carabosse, a fada má, e sair pelo palco fazendo suas piruetas com a longa agulha em mãos. Não por menos ela perfurou o dedo. A princesa era meio bobinha, também.

Cambaleante, Aurora tentou continuar dançando, mostrar aos pais estar bem, irrelevar o feitiço da agulha, mas já era fatal; o ritmo deixou seus pés em ponta, a palidez tomou o rosto rosado e por fim os joelhos fracos a fizeram cair desmaiada nos braços da rainha.

Que interpretação! Quanto talento! Lilia Baranovskaya não somente era uma das melhores solistas de sua geração, como também possuía talentos cênicos surpreendentes! O que estavam esperando para promovê-la a primeira solista? A primeira bailarina?!

Quem também estava pálido diante da cena, era Yakov. Se ele não estivesse a doze filas de distância do palco — porcaria de ingressos, sempre tão caros! —, não teria quem pudesse segurá-lo para evitar que invadisse o palco. Podia ser exagero de sua parte, ou a distância prejudicando uma avaliação mais apurada, mas ele conhecia o significado de exaustão. Aquela a desmaiar não havia sido Aurora, a princesa amaldiçoada, mas sim sua esposa, Lilia, a bailarina teimosa que não raramente entrava em cena sem uma colher de comida no estômago.

“Você não vai lá, né?”

Ao lado do pai, Margosha tentou discretamente chamá-lo a razão. O intervalo havia sido anunciado e mal as luzes da plateia foram acesas, Yakov já estava em pé, pronto para andar por cima dos assentos em direção ao camarim.

“Claro que eu vou, não viu ela caindo?”

“Faz parte da coreografia, pai…” Margosha queria esconder o rosto dentro do estofado da poltrona. Algumas pessoas já começavam a olhar em direção a Yakov e aquilo matava a adolescente de vergonha. Que mico…

“Aquilo não é coreografia nem no Kirov, nem no Bolshoi.” Decidido, ele se virou para o casal ao lado, forçando passagem. “Com licença.”

“Pai, são só vinte minutos de intervalo!” Margosha insistiu, puxando o pai pela manga do paletó. “Você não vai conseguir chegar até o palco em menos de cinco, e até convencer a te deixarem passar, a pausa já vai ter acabado!”

O semblante de Yakov fechou ainda mais. Ela tinha razão, tsc.

“Eu vou fazer o inferno nesse teatro se Lilia passar mal por culpa deles,” resmungou, voltando a sentar. Aliviada, Margosha riu, deitando a cabeça no ombro do pai.

“Tenho certeza que vai.”

O restante da apresentação não foi muito apreciado por Yakov, mais atento a qualquer mínimo sinal de mal-estar do que ao enredo em si. Se algo abonava sua culpa pelo desinteresse artístico, era ele já conhecer por completo a narrativa encantada e ter guardado na memória toda a sequência que apenas Lilia era capaz de fazer.

O fim do espetáculo veio com a aclamação em pé e montes de flores que não entrariam nem no porta-malas do carro, nem no apartamento em si, não que a própria Lilia quisesse levar algum dos exageradamente grandes arranjos com ela. Segundo a própria bailarina, todo o trabalho para trocar água e fazer a manutenção das flores não valeria o pouco tempo de vida delas em um vaso. Melhor que ficasse enfeitando o teatro.

Afastados aguardando Lilia se aproximar, Yakov e Margosha ficaram observando-a distribuir autógrafos em papéis e sapatilhas, sorrindo para câmeras que disputavam todos os seus ângulos. A peça já estava em cartaz há quase duas semanas e eles continuavam agindo como se fosse novidade.

Se dar conta da dupla a esperando próximo aos bastidores, fez Lilia sorrir pela felicidade que era vê-los e alívio de ter uma desculpa para deixar toda a adulação para trás. Nunca quis tanto ir para casa como naquele dia, ansiosa para ver a geladeira poluindo a visão do que deveria ser apenas uma sala.

“Lilia, estava linda, hoje!” Margosha foi a primeira a se manifestar, antes que Yakov recebesse a esposa com algum tipo de repreensão.

“Obrigada, Margosha…” agradeceu ela, tocando seu rosto gentilmente. A verdade é que seu pai não estava assim tão errado em se preocupar; Lilia parecia sim mais cansada do que o normal, até mesmo um pouco ofegante, e pela maquiagem de palco, parcialmente removida pela rotina exaustiva do programa, era possível ver as olheiras marcadas. “E de você, Yakov, não ganho nenhum elogio?”

Ante à cobrança, mais do que justa, Feltsman baixou um pouco a guarda, a pouca tranquilidade de se render a alguns minutos de paz, visto no olhar orgulhoso.

“Magnífica como sempre.” E o sorriso. Não seu sorriso habitual de deboche, mas algo mais suave, aquela exceção que poucos tinham a chance de ver. “Pronta para irmos?”

“Claro, só deixe eu ir buscar meu agasalho, esqueci no camarim…”

“Vi Romanova indo na mesma direção faz dois minutos.”

A suavidade no rosto de Lilia voltou a trincar de aborrecimento.

“Vamos para casa.”

Com um sorrisinho divertido, Yakov colocou o próprio paletó reformado sobre os ombros da esposa, oferecendo o braço dobrado, aceito com certo alívio. Já era o segundo sinal que ela dava de seu cansaço, mas Margosha ainda não queria dar razão ao pai. Não sabia o que era pior, os discursos de Yakov de “eu não disse?” ou quão irritada ficava Lilia ao ser contrariada. O melhor seria não comentar nada que inflamasse os ânimos de nenhum deles.

Estacionado próximo à entrada estava o carro da família, um Lada de pintura desbotada que fazia o amarelo original perder-se em um tom desmaiado de bege. Yakov volta e meia pensava em mandar pintar a lataria antiga, mas o orçamento sempre o desencorajava.

Contudo, o carro não estava ali sozinho, sendo guardado por Oleg Nikiforov, distraído o suficiente com os livros da faculdade para não perceber Yakov se aproximando.

“Pula pra trás, Nikiforov,” anunciando sua presença, com uma pequena bronca fingida e batidinhas na janela, Feltsman tratou logo de abrir a porta do lado do motorista. Seria muito mais fácil se ele deixasse o rapaz sair do carro primeiro e inclinar o assento para a frente, para dessa forma Oleg se acomodar melhor no banco de trás, do que vê-lo se contorcer pelo vão dos dois bancos dianteiros sem acertar o freio de mão.

Seria mais fácil, mas não seria tão divertido.

“Boa noite a todos,” ele cumprimentou, não muito chateado por ter sido obrigado a fazer todo aquele contorcionismo. “Obrigado mais uma vez por ter me emprestado o carro, Yakov, precisei buscar esses livros na casa de um colega depois que fecharam o rinque.”

“Não estão fechando mais cedo que o normal?” Lilia estranhou, ocupada em soltar o cabelo dos inúmeros grampos cruzados para manter o penteado.

“Não é de hoje que estão boicotando os treinos do Oleg,” observou Margosha, folheando aqueles livros de economia dos quais não entendia nada.

Todos ali sabiam que se existia um nome envolvido naquilo tudo, ele dava-se a Narkissa Smirnova. Seu orgulho ferido ainda sangrava por Oleg ter abandonado a dupla feita com a adolescente, que não tinha ajudado muito ao anunciar publicamente sua saída antes da própria estar ciente sobre isso. Ele até merecia um pouco a represália, desproporcionalmente reforçada pelo apadrinhamento político tido pela garota. Bem, embora o caminho fosse dificultado, até então não estava impedindo as medalhas.

“Vai dormir lá em casa, hoje?”

“Oh não, acho melhor voltar para o dormitório, quero tentar adiantar a cópia do conteúdo desses livros até o retorno das aulas.”

“Copiar o conteúdo de três livros, você consegue acreditar nisso, Lilia?” Yakov sentia-se frustrar com uma situação daquelas. “Pensava que a faculdade cedia o material para os alunos!”

“Esses não são daqui,” confessou ele com um sorriso ordinário. “Mas eu não disse nada.”

Yakov não era a pessoa mais indicada para criticar o garoto por estar buscando no exterior material de consumo. Ele mesmo nas poucas viagens que fez quando competidor e nas ocasiões em que acompanhava seus competidores, dava um jeito de trazer algo ilegal, um chocolate, disco, revista… Mas livro de economia?

“Tanta coisa que você pode importar e escolhe economia estrangeira? Os nossos livros não são bons o bastante?”

“Deixe ele, Yakov, o rapaz está certo em querer um diferencial.”

“Muito obrigado pelo apoio, dona Lilia! A propósito, como foi sua apresentação, hoje? Me parece meio pálida.”

Com um tapa no volante, Yakov celebrou um pouco revoltado sua certeza. Geralmente gostava de ter razão nas coisas, mas naquele momento estava muito bravo por estar certo.

“Eu sabia! Eu sabia, eu não disse para você, Margosha, que Lilia não estava bem? Nós vimos você passando mal naquela cena do desmaio!” A menina decidiu não responder.

“Sabia que o erro tinha sido grosseiro,” Lilia, por outro lado, lamentou pelo erro cênico, suspirando de frustração.

“Lilia, você pelo menos come antes de entrar no palco?”

Os olhos verdes se voltaram para o marido, estreitos pela indignação. Como ele ousava?

“Ninguém faz quase três horas de apresentação sem nada no estômago, Yakov Feltsman, por quem você me toma? Você por acaso se apresentava sem comer? Ou faz seus patinadores entrarem no gelo sem uma refeição?”

No banco de trás, Oleg e Margosha trocaram olhares, antes de fingirem estarem muito atentos ao movimento das ruas.

“Então como você explica aquilo? Você mesma afirmou ter vacilado de verdade!”

Lilia abriu os lábios e puxou o fôlego para rebater, mas desistiu na metade, soprando sua contrariedade no rosto do marido.

“Certo, talvez eu não tenha comido o bastante,” e para evitar que o marido falasse mais alguma reprimenda antes de deixá-la terminar, Lilia ergueu a voz. “mas só porque nada tem parado no meu estômago ultimamente, então é melhor eu ter comido pouco do que ter vomitado uma refeição inteira.”

Os olhos de Oleg e Margosha voltaram a se encontrar, muda compreensão do que estava acontecendo.

“Então vamos levar você ao médico agora mesmo.” Dando sinal, Yakov entrou na esquina mais próxima, seguindo a rota para o hospital regional.

“Que exagero, Yakov!”

“Você que não está conseguindo comer e eu sou o exagerado em me preocupar?”

“Nem deve ser grande coisa, talvez estresse, sabe como eu sempre estou engolindo os desaforos de Romanova!”

“Pelo jeito a única coisa que consegue engolir.” Nikiforov não perdeu a chance de fazer uma piadinha, levando um leve beliscão de Margosha como repreensão.

“Já imaginou se isso se repete? Se você cai e se machuca? Aí sim será obrigada a engolir outro desaforo, porque vão colocar ela no seu lugar! É isso que você quer?”

Yakov estava verdadeiramente preocupado com a saúde da esposa, não existia dúvidas sobre isso; acontece que Lilia era sempre mais preocupada com a concorrência artística do que com o próprio bem estar. Com um suspiro derrotado, ela concordou.

Certo. Mas não hoje.”

“Isso não tem negociação.”

Lilia voltou a se indignar.

“Mas e eles?” Um polegar acusatório apontava para o banco traseiro.

“Ah, eu não me importo, não.” Oleg foi o primeiro a falar, é claro. Sabia ser mais seguro não se meter nas discussões daqueles dois, mas quando o assunto favorecia mais um lado que o outro, independente se essa “vitória” fosse de Lilia ou Yakov, era fácil escolher apoiar o vencedor. E também, ele divertia-se com o pequeno caos. “E você, krochka?”

A filha de Feltsman, por outro lado, só conseguiu pensar naquela provocação dita por aquele risonho cheio de dentes. Krochka, é? Oleg Nikiforov, que grande filho da…

“Eu moro com eles.” Não era como se ela tivesse muita escolha. “E eu vou encher seu próximo figurino de agulhas.”

Oleg não se arrependia de nada.

“Viu? Não restam dúvidas, vamos lá, tenho certeza que vão nos atender rápido, não vão deixar uma das principais solistas do Kirov na fila.”

De fato, o atendimento de Lilia não demorou, com Yakov insistindo em acompanhá-la ainda na triagem, cujo o resultado da baixa pressão da bailarina reforçou ainda mais seu próprio laudo de anemia. Já estava até fazendo a lista mental do que comprar logo no dia seguinte, quando a pergunta da enfermeira pegou tanto ele, quanto Lilia de surpresa:

“Há alguma chance da senhora estar grávida?

Yakov engasgou com a pergunta que nem mesmo tinha sido lhe direcionada, virando o rosto vermelho para o lado da porta. Mesmo dando dor de cabeça para o governo local, o tio-avô de Feltsman ainda era um padre, com pensamentos conservadores a respeito da intimidade de um casal. Responder coisas desse tipo, mesmo para uma profissional, o deixava totalmente constrangido.

“Eu… não sei.”

Lilia não tinha esse tipo de bloqueio, mas a ideia a deixou tão constrangida quanto o marido.

“Quando foi sua última menstruação?”

O rosto de Yakov acendeu e o de Lilia fez o mesmo.

“Eu não lembro.”

Ela não lembrava e não se importava. Sendo bailarina e passando a maior parte do tempo de collant e meia, quanto menos viesse ou durassem suas menstruações, melhor. Não era de fato um problema de saúde, já havia acontecido várias vezes e ela esteve até então muito bem, obrigada.

“Acho que podemos fazer uma coleta de sangue e providenciar um teste de anemia e gravidez, assim já eliminamos as duas suspeitas, que tal? Só aviso que o resultado pode demorar um pouco.”

“Claro.”

“Por favor.”

Pelo constrangimento do casal, a enfermeira se solidarizou.

“Vou passar a sua guia na frente, a senhora já será chamada.”

Não fazendo ideia do que fazer ou falar, resolveram permanecer no corredor até que seus nomes se fizessem ouvir. Deixando a sala, eles deram as mãos.

“Vai ficar tudo bem,” Yakov falou em voz baixa, apertando a mão da esposa.

“Sei disso.”

“Estou falando para mim mesmo.”

E vendo o pavor deformar levemente o cenho de Yakov, Lilia não fez outra coisa se não rir. Que exagero, era óbvio que eles não estavam esperando um filho.

No fim da noite, no entanto, quando a madrugada começava a avançar, eles receberam o resultado dos exames; tanto a gravidez quanto a anemia deram positivo. E Oleg Nikiforov dirigiu de volta para casa.

.:.

Com os olhos fechados, Lilia tentava dormir. Logo daria seu horário e se não pudesse descansar, ficaria indisposta e inchada pelo resto do dia, além de azedar completamente seu humor pelas próximas horas. Agora que tinha mais alguém para cuidar, então, seria um problema se não cuidasse devidamente de sua saúde.

Só havia uma coisa dificultando seu sono…

“Yakov, pare de me encarar.”

Ainda sem abrir os olhos, ela sentiu quando ele se moveu.

“Você também não consegue dormir que eu sei.”

“Mas sou a única de nós dois tentando.”

Voltando a ficar em silêncio, Lilia na verdade não sabia o que falar. O que se diz nesse tipo de situação? Ela não sabia, pois estava apavorada! E não era nem pelo trabalho, tinha muitas colegas que eram mães e isso em nada prejudicou suas carreiras, Lilia só não sabia… Céus, ela não sabia nada!

“Você está com essa testa franzida desde que deitou.”

Insistindo em manter os olhos fechados, ela cobriu a testa com uma das mãos. Sentir um dos braços do marido a alcançando, oferecendo novamente o abraço que em um tropeço emocionado ambos trocaram no hospital, fez borbulhar algo em seu emocional, transbordando em soluços secos. Lilia estava uma bagunça sentimental que mal conseguia chorar e se sentia ridícula por isso.

“Eu me sinto estúpida!”

“Calma, Lilia…” Vê-la tão indignada consigo mesma não deixava Yakov manter a seriedade, rindo com a esposa em seus braços, dividida entre abraçá-lo de volta ou acertá-lo com tapas.

“Pare de rir de mim!” E ela parecia igualmente irritada e sentida pela diversão alheia. “Eu vou pedir o divórcio!”

“Lilia…” Tentando se acalmar, ele voltou a abraçá-la, sentindo-a se acalmar, até um suspiro baixo restar do que parecia um choro. “Eu amo você.”

“Não é hora pra isso.” Yakov riu com fingida dor, tentando olhar para a esposa, rosto escondido em seu peito.

“Assim você parte o meu coração…”

“Coração, você? Deixe-me perguntar para algum dos seus atletas se isso é verdade.” A voz dela já estava mais leve e seu corpo começava a relaxar a tensão carregada desde a noite anterior. "É normal estar assim tão assustado?"

"Acho que sim… eu estou tremendo."

"Yakov, você já criou uma filha."

"Já vai fazer quinze anos."

Ela virou o rosto para cima, os grandes olhos expressando aquela luz confusa, uma dúvida que dificilmente se via refletir neles. A sempre confiante Lilia, de olhar impenetrável não mostrava para qualquer um. 

"Um bebê.” Sussurrou Lilia, um novo tipo de segredo que ela temia sair escorrendo pelas paredes e chegar no Kirov antes que pudesse se manifestar primeiro.

“Um bebê!” Confirmou Yakov, como se tudo aquilo fosse uma novidade também para ele.

Rindo no escuro, não perceberam quando dormiram nos braços um do outro.

.:.

Ver tantos sorrisos de uma só vez em sua direção, não era o tipo de coisa a qual Lilia estava acostumada. Receber aplausos e admiração no palco era totalmente diferente de ser alvo direto da atenção de seus colegas de cena. Não era segredo as disputas internas, fossem elas indiretas ou não, por isso cada exibição de felicidade chamava atenção, pela possibilidade de serem sinceras ou completamente fingidas.

Daquela vez, no entanto, a alegria era mais do que sincera.

"Um bebê!!" Uma das bailarinas sussurrou, a vontade de sair por aí gritando sua empolgação a fazendo saltitar no canto do vestiário.

"Irisa, por favor, se controle!" Sua amiga até tentou contê-la, mas estava igualmente risonha.

"Bem que eu tinha reparado que você estava mais peituda." Dito aquelas palavras, a terceira moça se calou, pouco antes de corrigir-se. "Não que eu fique reparando, droga, você entendeu!"

"Tudo bem, Melita, não se preocupe, eu entendi, sim." Divertindo-se com a reação das amigas, Lilia tentava manter a seriedade. Se deixasse transparecer mais do que aquilo, gente de fora já ia começar a se intrometer e ela queria evitar qualquer tipo de maldição até precisar se afastar.

"Não acredito que nossa Lilia já vai ser mamãe…" Irisa voltou a murmurar, beicinho voltando a crescer. "Ai, eu fico com vontade de engravidar de novo, vou intimar o Lukya."

"Irisa Porkhomova vai ser responsável por povoar todo o deserto da Sibéria." E depois de todas rirem, as atenções voltaram a cair sobre Lilia. "E como seu marido recebeu a notícia?"

"Bem, até agora... Ele disse estar muito feliz e até sorriu."

"Mas ver você sorrindo também é meio assustador, Lilka." Melita falou baixinho. A verdade é que nem elas perdiam a oportunidade de tirar sarro uma da outra

"Ah Lilia, você tem tanta sorte, o Yakov é lindo, bons genes para o bebê."

"Sinya!" Dessa vez foi Irisa quem tentou impedir a amiga de falar alguma coisa.

"E eu estou mentindo? Quantas bailarinas vocês não vêem tentando chamar atenção dele quando o marido da Lilia vem buscá-la depois dos ensaios? Romanova é uma delas."

"Soloviev também."

"O Soloviev é gay?!"

"Mais gay que eu e a Vilena juntas." Riu Melita, para logo choramingar. "Saudades da minha kochetchka…"

"Se é por falta de Vilena, você pode ir lá dar uns beijos na Romanova," zombou Irisa, também conhecida por colocar piadas acima de suas amizades.

"Eu com certeza não queria saber nenhuma dessas informações." Sentando-se no canto do banco comprido, Lilia respirou fundo, sentindo o estômago revirar. "Como assim a Romanova dá em cima do Yakov?!"

"Não se preocupe, ele nunca ligou." Sinya tratou a sensibilidade do assunto como se não fosse nada.

"Ou nunca notou. Tem homem que é tapado assim mesmo, tipo o Lukyan que até hoje me pergunta se eu amo mesmo ele."

"E o que você responde?"

"Às vezes eu o deixo no mistério, não faz bem acostumar mal. Isso vale para as crianças também, viu, Lilia?"

Àquela altura, Baranovskaya não ouvia mais nada.

"Hey, mocinha, estamos aqui por você, viu?" Melita tomou um lugar ao lado da amiga, oferecendo um abraço apertado. "Tenho certeza que a Vilena vai ficar muito feliz, também!"

"Vou ficar feliz pelo quê?"

Próximo ao grupo, Vilena Romanova sorriu para as bailarinas, enquanto puxava os cabelos lisos para trás. O bom humor das três amigas de Lilia murchou em uma expressão chateada e por muito pouco Irisa não bufou como seus filhos costumavam fazer.

"Estávamos falando da nossa Vilena." Sinya rebateu, pouco paciente naquela manhã de domingo. Romanova apenas cantarolou daquele jeito insinuante de quem sabe o que o outro esconde.

"E você, Lilia, vai estar bem para a apresentação de hoje? Parece tão abatida desde ontem…"

Lilia Baranovskaya era uma mulher que orgulhava-se de suas conquistas. Ela tinha orgulho de ser uma das solistas do Kirov, orgulho de sua trajetória até ali, da família formada ao lado do marido e das aulas particulares que costumava ministrar por fora para acrescentar à renda no fim do mês. Mas, especialmente, Lilia orgulhava-se de sua paciência, principal responsável por fazer tudo aquilo acontecer.

Mas Vilena Romanova conseguia perturbar até isso.

"Obrigada pela preocupação, Romanova, mas ficarei bem. Estou grávida, não doente."

Melita virou o rosto para o lado da parede, quase caindo no chão, tentando esconder o riso, enquanto Sinya enfiava o rosto em sua bolsa, em busca das sapatilhas que já estavam calçadas em seus pés enfaixados. Irisa foi a única paralisada entre as duas bailarinas, incapaz de reagir.

"Ah…" Romanova, que por um momento esqueceu estar arrumando os cabelos, voltou a escová-los. "Sério? Parabéns ao casal."

E como se estivesse decidida a terminar o coque longe dali, ela recolheu os pertences e deixou o grupo para trás.

"Gente?" Melita voltou a encarar as amigas, olhos molhados pela força feita ao evitar as risadas. "Vocês também estavam aqui quando a Lilia, a nossa Lilia, nossa estátua de mármore e seriedade, destruiu a Romanova e todos os seus sonhos, ou eu estou sonhando?"

"Se eu for demitida hoje por não conseguir me concentrar em nenhuma sequência, Lilia, quero que saiba que a culpa será toda sua." Declarou Sinya, ainda abalada.

"Eu preciso achar o Lukya agora, não vou aguentar esperar até o intervalo para contar a fofoca!" Deixando as amigas para trás, Irisa saiu correndo em busca do marido. Pelo jeito a bagunça cercando sua maternidade seria maior do que ela estava prevendo.

Mais tarde, durante ensaio e apresentação, Lilia poderia jurar que Dimitri Soloviev não tirava os olhos dela.

.:.

Cada filho era único, dizia a amiga de sua esposa, e talvez nisso ela tivesse razão, tendo três experiências infantis diferentes como embasamento. Se Yakov pudesse ser mais sincero consigo mesmo, ele admitiria não estar assim tão calmo com o novo filho a caminho. As circunstâncias de sua primeira experiência paternal foram totalmente diferentes do convencional; ele havia literalmente acabado com uma criança nos braços em um intervalo de horas, sem desfrutar dos meses antecedentes ao nascimento para se preparar para tamanha responsabilidade. Contudo, lá estava Margosha, crescida e saudável. Saber disso deveria ser incentivo o suficiente para animá-lo com aquele mais novo acréscimo à família, mas só conseguia apavorá-lo.

“Eu não tinha pego dois potes de conserva?” Yakov parou de tirar as poucas compras da sacola trançada assim que percebeu o desfalque. O encarando com uma das sobrancelhas erguidas, Lilia respondeu.

“Devolvi a gôndola antes de irmos pagar, você não lembra?”

“Mas por quê?”

“Porque conserva eu faço em casa?” Lilia até tentou sugerir o óbvio, mas estava claro que Yakov não acompanhava seu raciocínio. “Tudo bem?”

“Não devia ter deixado as conservas no mercado,” murmurou ele, guardando o pouco que tinham comprado.

“Se eu acabei de te dizer que sei fazer…? Yakov, qual o problema?”

Ele respirou de forma audível, ocupando uma das cadeiras. A exaustão emocional já estava começando a pesar em seus joelhos.

Desconfiada do motivo, Lilia se aproximou, tomando a outra cadeira. Queria pegar na mão do marido, oferecer um pouco de sua força, porém Yakov tinha os dedos longe de seu alcance, olhos perdidos em qualquer lugar longe daquele apartamento, longe dela. Ele tinha mesmo essa péssima mania.

“Não leio mentes, Yakov Feltsman, melhor que fale de uma vez.”

Os olhos claros, pálidos pela distância, voltaram a se concentrar no presente. Ele ainda parecia perturbado.

“Quando Margosha chegou, eu tinha menos do que tenho hoje, mas tudo parecia tão mais fácil…”

Ela entendia. Até então, viver como eles viviam, era confortável dentro do possível. Lilia não podia se dizer satisfeita com tudo o que tinha, mas era grata pelo pouco conquistado.

“Sendo sincera, eu também imaginava um cenário diferente.” Percebendo-o atento ao que dizia, ela continuou. “Quando eu pensava em ter um filho com você, seria daqui alguns anos, quando eu de fato tivesse uma posição melhor dentro do Kirov, não dependesse de extras para mantermos as despesas e que pudéssemos ter pelo menos um lugar maior para morar.”

“Ou um carro novo.”

Ambos riram. Terem um teto que não exigia dividi-lo com outra família já era o máximo de luxo que podiam querer em tempos como aquele. Se começassem a esbanjar mais do que aquilo, o governo com certeza viria bater na porta.

“Se pudéssemos desertar…” Yakov cochichou. Não tinha mais ninguém ali além deles, mas nunca se sabia o tamanho das orelhas daquelas paredes.

“Não diga besteiras…” Como se já sentisse a coluna cobrando o peso extra, Lilia recostou-se melhor na cadeira, relaxando minimamente a postura.

“Lembra quando nos conhecemos? A primeira bailarina do Kirov tinha acabado de desertar.”

“Disse certo, a primeira bailarina. Sou somente uma das solistas.”

“A melhor delas.”

“Se fosse a melhor, seria primeira solista.”

“Por que você nunca aceita meus elogios?” Brincou ele, aproximando uma das mãos a da esposa, enfim entrelaçando os dedos finos nos seus. “Se você quiser, Lilia, podemos fazer isso. Por mais que estejam tentando passar a perna em Oleg, o garoto já está com o nome nas Olímpiadas de Inverno de fevereiro, nós não precisamos voltar depois disso.”

Os olhos de Lilia pareceram crescer com a ideia, voltando ao olhar sério rotineiro poucos segundos depois.

“Seria muito óbvio se eu acompanhasse você com um bebê recém nascido. Isso sem falar em Margosha. Tê-la ausente de Leningrado em pleno período escolar apenas para acompanhar o pai em uma competição? Não vamos enganar ninguém.”

Ele reforçou o aperto, tentando consolar a ambos.

“Quem sabe no futuro? Eu não gosto muito dos americanos, também,” desdenhou do plano inicial, fingindo que a ideia nem tinha mais tanta importância. “Podíamos trocar o apartamento por uma datcha.”

“Já pensando na aposentadoria?” riu Lilia, sempre associando o distanciamento de uma cidade turbulenta com seus dias de velhice.

“Um lugar para levar as crianças nos feriados.”

“Desde que tenha banheiro e água encanada.”

“E hortaliças. Eu ia gostar de plantar minha própria horta.”

“Yakov Feltsman, o doberman do gelo, não passa de um labrador, o que diria a concorrência?”

“Ninguém precisa saber da minha vida…” Reclamou ele, estalando a língua. Que ninguém pudesse vê-la olhando para Yakov daquele jeito, mas ah, Lilia amava o marido.

“Irisa disse que vai repassar algumas coisas dos filhos dela pra gente,” com cuidado, ela avisou. Assim como previra antes, Yakov não gostou muito da ideia.

“E depois o quê, criar a criança por nós?”

“É uma gentileza, Yakov… Age como se não fôssemos fazer o mesmo se a situação fosse contrária.”

“É que fica parecendo que não podemos dar conta.” Suspirando, ele se lembrou de uma situação parecida vivida há pouco mais de dez anos. “Saber que atualmente eu estou com minha condição financeira tão restrita quanto ainda era jovem, me frustra. Trabalho mais do que naquela época, viajo, recebo bonificações e ainda assim não resta nada. Devo ser um tipo muito raro de vergonha.”

“Ora, não comece com tanto drama, Yakov!”

“E se eu não puder comprar um berço até o nascimento?”

“Acha que eu ligo pra isso, que o bebê vai ligar? Margosha sequer tinha um, eu lembro de você me falando isso.”

“Crianças perdem roupa muito rápido, vai chegar uma hora que nem sua amiga vai poder mais nos ajudar, e então? O que faremos?”

“Yakov, se acalme!” Lilia estava rindo novamente. “Acho que essa criança tem o pai mais preocupado do mundo!”

“O mundo é preocupante!”

Lilia o observou mais uma vez, compreensiva à sua preocupação. Ela o entendia, certamente o entendia. Ser base para o futuro de alguém era de fato assustador.

“Que tal terminarmos de guardar tudo isso? Pode me ajudar a fazer as conservas depois.”

Rendido a simples resolução momentânea, ele concordou. Eles ainda tinham alguns meses pela frente para se organizarem.

“Acha que Porkhomova aceitaria cuidar das fraldas?”

Lilia se esqueceu de manter a seriedade e riu.

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O calor daquele fim de tarde de julho parecia grudar nas costas de Lilia, mais exausta que o normal depois de um dia de ensaios, o suficiente para decidir encontrar o marido no rinque, ao invés de ir direto para casa. Pelo menos o interior gelado das pistas de treino ajudariam a aliviar o mal estar.

Ver Yakov ministrando aulas para turmas de crianças a deixava nostálgica. O cenário não tinha mudado muito desde que se conheceram, e o que hoje fazia parte da rotina, costumava ser um raro desvio do caminho de casa. Ele nunca a percebia de imediato e assim Lilia preferia — dava tempo de admirá-lo mais. Suas amigas desde aquela época já falavam como os dois formavam um casal perfeito, mesmo que as intenções da bailarina não fossem aquelas. Deve ter sido entre uma aula e outra, distraída com o sorriso encorajador e os elogios sinceros para as turminhas iniciantes, que ela finalmente se deu conta de que queria aquele cenário acrescentado em definitivo em sua vida.

Nossa! De onde todos aqueles pensamentos haviam saído?! Lilia culpava os hormônios.

"Lilka, não tinha te visto aí." E provando que certas coisas nunca mudavam, Yakov a recebeu como sempre. "Tudo bem?" Ele não esperou resposta para pousar a mão em sua testa, buscando qualquer traço de febre.

"Tudo bem, apenas o calor, não estava aguentando. Tudo bem eu ficar por aqui até finalizar seu horário? Eu já liguei para Margosha avisando que me atrasaria um pouco."

"Claro, mas se preferir, tem uma poltrona mais confortável na cabine do painel de controle de som," ele apontou para o espaço, uma sala de pouco tamanho, também usada para guardar todo o entulho desprezado da escola. Se duvidasse, poderiam encontrar algum nome importante da Organização local ali, mas Lilia não faria a piadinha em voz alta.

"Eu gosto da arquibancada, consigo vigiar melhor o trabalho do meu marido."

"Devo me sentir lisonjeado?" Ainda de olho nas crianças patinando ao redor da pista, Yakov apalpou os bolsos, descobrindo alguns copeques. "Compre algum refresco para você na lanchonete da frente. Se quiser comer algo, peça para colocar em meu nome."

"Anda pendurando conta?"

"Só às vezes…"

E as vezes eram quando algum aluno de Feltsman ia à aula sem comer.

Os centavos cedidos garantiu um copo generoso de kvass, sorvido em grandes goles quase em sua totalidade, por Lilia se lembrar de repente da boa educação que a mandava partilhar a bebida com o marido. Na breve caminhada de volta ao centro de treinamento, espiando aqui e acolá, foi que a moça se deu conta;

“Yasha, onde está Nikiforov?”

Torcendo o nariz, ela já imaginou o tipo de resposta.

“Deixou um recado de que não viria e só. Consegue acreditar nesse moleque? Com as competições para começar e as Olimpíadas em vista, abandonar um treinamento assim?”

“Ele treina todos os dias, Yakov, faltar um dia ou outro não tem problema.” Lilia tentou consolá-lo, mas Feltsman não estava muito feliz.

Sem o aluno para ser treinado após as aulas do dia, Yakov dispensou a turma e bateu o ponto mais cedo. Ainda na saída resolveu mimar a esposa um pouco mais, comprando alguns poucos doces na mesma lanchonete em que costumava deixar acumulando poucos rublos. No próximo pagamento cuidaria de pagar pela pendência.

Chegaram ao apartamento não muito tempo depois, reparando com um muito bem apurado sexto sentido que algo estava errado. Muitos cochichinhos e risadas abafadas por detrás da porta trancada para a desconfiança do casal, que tratou de abrir a porta logo para verem o que apenas Margosha e Oleg poderiam estar aprontando.

Cobrindo os lábios com as duas mãos, a filha de Feltsman tentou engolir a risada, mas a missão ficava muito difícil quando ao lado dela, o mais bem sucedido patinador de seu pai não fazia muita questão de disfarçar. O que aqueles dois estavam aprontando?

Foi Oleg que deu o cutucão de aviso, como o sinal de um espetáculo prestes a começar. E de fato, ensaiados como se tivessem combinado aquilo há semanas, ambos se afastaram para lados opostos e com passos gêmeos, para revelar um pequeno, de verniz escuro e muito simples — porém enfeitado de muitos babados — berço.

“O que é isso?” Lilia perguntou, sua voz mais afetada do que ela gostaria. Atrás dela, Yakov não dissera uma só palavra.

“É meu.” Debochado, Nikiforov deu de ombros. “É um presente! Margosha e eu estamos trabalhando nisso aqui o dia todo!”

“Como assim o dia todo, Margosha, você não tinha que comparecer ao ginásio de esportes hoje?!” Aquilo certamente explicava a ausência de Nikiforov, mas não perdoaria jamais a negligência.

“Eu não te falei, Margosha, que eles implicariam com isso? Eu poderia muito bem ter lidado sozinho com o berço, mas você insistiu...”

Com a mão sobre o peito, a garota parecia profundamente ofendida.

“Ele jamais saberia colocar os babados direito! Eu não costurei tudo isso à mão para deixar um Oleg Nikiforov qualquer arruinar tudo com essas mãos grosseiras.”

Mãos grosseiras, ok, nunca mais me peça nada do exterior. Alcançar alguma coisa para você de lugares mais altos, então? Esqueça!

“Ah, pai, não chora!”

Lilia, que estava até então assistindo a tudo incrédula, se virou para ver Yakov vermelho do pescoço para cima, lábios apertados e olhos marejados de tal forma que era impossível ver com clareza o contorno deles. Ela poderia rir, dizer como ele era dramático e sensível, mas a verdade é que o emocional exteriorizado do marido era exatamente o que Lilia estava sentindo. Não demorou muito e ambos estavam chorando, chamando os outros dois jovens para o abraço coletivo. Com muita relutância de fazer parte daquele cenário piegas, eles foram. Estava tudo bem pagar aquele mico de vez em quando, assim decidiu Margosha.

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Se aos quatro meses de gestação, Lilia precisava fazer certo esforço para entrar em um tutu, com cinco, até a mais esguia das mulheres já não pode mais esconder a barriga. Foi assim que, conformada, Lilia continuou trabalhando em um ritmo bem menos acelerado, delegada a papéis de menor destaque e dança, como a mãe de Aurora, que apenas desfilava no palco com um vestido longo e muito armado, ou Carabosse, bem mais interessante, mas em um mesmo longo espalhafatoso que lhe escondia os pés. E o pior de tudo; Lilia era escalada para fazer Carabosse, quando Romanova fazia a Fada Lilás. Ela tinha vontade de mastigar as fitas de suas sapatilhas de ponta quando lembrava disso.

Se por um lado Lilia havia perdido metade de seu trabalho, por outro ela ganhava a responsabilidade de ajudar na avaliação e classificatória de possíveis novos bailarinos do corpo de baile. Ter aquilo em mãos era aterrorizante.

Inúmeras foram as fitas cassete recebidas, mas apenas metade ganhou espaço para uma seletiva presencial. E era nessa seletiva que estava Baranovskaya, lista em mãos e a sensação de enjoo que não teve em cinco meses, vindo de uma só vez.

A preocupação não era apenas com a possibilidade de mais de duzentos bailarinos saírem dali querendo seu corpo esquartejado exposto ao relento, mas porque dentre todos aqueles concorrentes, dos novatos aos mais experientes, estava seu preferido, o bailarino que há tantos anos Lilia conhecia e acompanhava de perto o desenvolvimento; Rurik Zaytsev.

Era engraçado como funcionava aquele mundo fascinante da arte e dança. Tudo envolvia beleza, tudo exigia o belo. Belos giros, belos saltos, belos rostos. E embora a beleza fosse puramente questão de gosto pessoal, muitos haviam dito para o jovem Rurik que ele não era belo o bastante para protagonizar um Lago dos Cisnes.

Claro, porque aparência era tudo o que importava. Tanto fazia se seu parceiro de cena fosse inexpressivo como uma porta.

Lilia, obviamente, era contrária aquele pensamento. A beleza estética um dia murcha e morre, mas a beleza cênica, essa poderia se estender para sempre. Yakov a presenteou certa vez com uma fita da montagem cubana da peça Giselle, protagonizada pela primeira bailarina Alicia Alonso, datando de 1968, onde ela estaria com quarenta e oito anos de idade — havia ainda, inclusive, notícias de que ela se apresentara no ano anterior, quase aos sessenta! E ela nunca usou a beleza ou juventude como muleta para chegar até lá. Era naquilo que Lilia acreditava.

E era pautado nisso que Lilia dava aulas particulares, entre elas, para aquele jovem, que desde os treze via na bailarina, uma mentora. E pensar que aquele rapazinho sardento quase desistira do sonho dos palcos quando aos quinze, um punhado de professores sem alma e coração o humilharam com as desculpas mais fracas. Aquela era a chance que Rurik tanto esperara, a de se provar capaz. Lilia esperava de todo coração que ele pudesse convencer os demais avaliadores, também. Ela o mataria se não o fizesse.

Divididos em grupos, os bailarinos receberam orientações separadas, que não possibilitava que os grupos seguintes se preparassem com antecedência, pegos desprevenidos com pedidos do mais variado tipo. Lilia perguntava-se: por quê? Mas, por outro lado, orgulhava-se com o resultado positivo mostrado por seu preferido, sem nenhum erro ou oscilação grave na avaliação até agora. Não que isso bastasse para o restante do júri se interessar no pobre coitado.

No grupo feminino que sucedeu os homens, exatamente na terceira divisão de bailarinas, uma saltou aos olhos de Baranovskaya, tão alto quanto os próprios pulos que a jovem bailarina podia fazer. Aquela, cujo os traços indicavam que, se a mocinha não fosse estrangeira, sua ascendência certamente não era dali. Um talento, de fato. Uma espiada no número trazido em seu peito e o nome correspondente na lista de avaliação garantiu o que Lilia desconfiava: Okukawa, Minako. 17 anos. Japão. De tão longe! O que aquela jovenzinha guardava para eles?

Se o júri disfarçava seu assombro com o talento de Rurik, Lilia não escondeu o dela com Okukawa. Linda, flexível, suave, embora emburrada, provavelmente pela ansiedade em estar sendo avaliada em um país estranho, por um júri mais estranho ainda. Lilia não a culpava.

Após se cansarem da avaliação individual, resolveram jogar os alunos em duplas aleatórias. Era fácil medir os limites de interação e se o nível de ambos estava a altura quando obrigados a coreografar sem costume prévio. Adiantava a matança de coelhos com uma única cajadada e cortava para mais da metade a chance de muitos ali. Mas agora que estava sendo obrigada a testemunhar aquela silenciosa chacina, Lilia não queria perder dois soldados.

“Número 79 e 147, podem fazer par.”

As duplas estavam sendo jogadas ao acaso; nenhum dos outros avaliadores esperava que Lilia fosse escolher, também. Sendo assim, para disfarçar ter escolhido os jovens Rurik e Minako, ela saiu ditando números que sequer estavam mais na lista, apenas para caso fosse necessário.

E como eles eram lindos.

Claro, lindos dentro do que se espera de recém formados em dança. Lilia certamente não os colocaria na frente de Sinya e seu parceiro usual para um solo, mas eles com certeza ficariam uma gracinha juntos nas grandes valsas de Lago dos Cisnes ou Giselle. E pela cara de seus superiores e colegas de trabalho, era claro que eles também tinham reparado nisso.

“Vocês estão dispensados, por ora. O resultado sairá às cinco horas da tarde.”

Pela expressão de Okukawa, a pobre coitada não tinha entendido uma única palavra. Sequer tinham se esforçado em se fazer entender para qualquer candidato que não fosse nativo ou conhecesse o idioma. Sorte dela Rurik, sempre tão gentil e educado, estar se esforçando para traduzir o aviso geral. Lilia só não o agradecia pessoalmente, pois temia que sua proximidade com Zaytsev o prejudicasse na avaliação final.

 

Horas após o cansativo debate de prós e contras sobre parte dos nomes concorrentes — porque, infelizmente, nem todos concorriam de igual e justa forma — e enfim Lilia fora dispensada da classificação final para que diretores e coreógrafos pudessem decidir a enxuta lista de cinquenta classificados, vinte e cinco bailarinos e vinte e cinco bailarinas, que ao final de um primeiro ano de testes, cairia para quinze. Ou quem sabe nem isso. Baranovskaya, que não era nem de longe a mais tranquila das mulheres, decidiu ficar pelos arredores, até Yakov chegar para acompanhá-la naquela ansiosa espera. Quantas vezes Lilia não fizera o mesmo por ele quando se tratava de seus patinadores?

“Vai ficar esperando pelo resultado junto com os bailarinos?” A voz de Yakov a pegou de surpresa, afastando os pensamentos à deriva.

“Estou mais nervosa que todos eles juntos,” confessou ela, fechando os olhos minimamente assim que sentiu o beijo leve em seus cabelos. Mais um pouco e ela dormiria ali mesmo. Estava extremamente cansada e nem havia realizado aquele teste.

“Posso te levar para dar um passeio enquanto você espera? Acho que seria melhor verificar a classificação quando todos já forem embora.” E como argumento extra, ele ergueu uma sacola de pano que Lilia conhecia bem. “Fiz lanches antes de sair de casa.”

Com as duas mãos, ela pegou o embrulho. Estava convencida.

Com os pés inchados começando a reclamar aquela mudança em seu corpo, sentar no banco estreito do pequeno Lada foi reconfortante. O passeio pelas ruas pouco movimentadas naquele dia, permitiu Lilia admirar o cenário ao redor, enquanto mantinha uma conversa agradável com o marido. Com tanta coisa acontecendo ultimamente em seus respectivos empregos, era gratificante ter uma fuga como aquela. Podia durar para sempre, ela não iria se incomodar. Ou pelo menos enquanto durasse o combustível do carro.

Ao voltarem em direção ao Kirov, Lilia sentiu o coração acelerar, o tipo de sentimento que geralmente só antecedia o pisar no palco em dia de apresentação. Podia ver, passando pelo carro ou um pouco mais distantes, a decepção nos rostos de bailarinos reprovados, olhos inchados, bocas praguejando o teatro… Logicamente, os aprovados não estavam ali, metidos em algum lugar para comemorar, fosse entre amigos ou com a família. Ali só restavam fantasmas de um sonho perdido.

Não era para sempre, é claro que não, mas doía. E enquanto eles não soubessem que aquilo iria passar, continuaria a machucar.

“Então é esse o Kiss and Cry de um bailarino?” Yakov tentou brincar, encorajando a saída do veículo. Em outra situação, Lilia com certeza teria somado à brincadeira. “Vamos lá.”

Juntos ele deixaram o carro, com Lilia andando na frente. Torcia por Rurik desde que o rapaz, tão jovem, falara sobre a ambição pelo Kirov, quem sabe um dia o Bolshoi? E agora, por qualquer que fosse a razão, também se via torcendo por aquela garota japonesa, que não merecia voltar para casa com uma derrota nas costas, não uma provavelmente movida por xenofobia.

Então Lilia enfim alcançou a listagem, rabiscada sem qualquer capricho o nome de todos os cinquenta bailarinos. E para sua eterna felicidade, lá estavam os nomes de suas apostas, seu favorito Rurik Zaytsev e a desconhecida, porém cativante, Minako Okukawa. Lilia estava tão feliz que se deixou sorrir largo, chegando inclusive a sentir uma pontada de alegria.

“Ahá, olha só o seu campeão, aí! Sabia que ele tinha talento, mas a professora também ajuda…” Yakov a parabenizou, mãos carinhosamente envolvendo seus ombros. “Quer ligar para ele quando chegarmos em casa?

“Yasha…?”

“Podemos comprar algo para o rapaz, dentro do possível, claro.”

“Yakov!”

Atento ao chamado de Lilia, Yakov voltou a atenção à esposa, que parecia levemente mais pálida que o normal. Aparentemente acontecia muito com as grávidas, ele só não conseguia se acostumar muito com isso, ainda.

“O que foi? Precisa de algo?”

A mão dela, trêmula e um pouco fria, pegou a dele e pousou direto sobre o pequeno volume escondido sob a camisa de botão e a saia de cintura alta.

A pontada sentida não era de alegria. O bebê finalmente havia chutado.

Naquele dia, não foram apenas os bailarinos que deixaram o Kirov sob risos e lágrimas.

 


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Notas finais do capítulo

E essa foi a primeira parte owo Sim, podem falar, os personagens estão OOC, mas me defendo ATACANDO o pouco material disponível sobre Lilia e Yakov. Já que não sabemos como eles foram em sua juventude, eu posso muito bem moldá-los conforme meu gosto pessoal u-u (né? :B)

Aproveito para dizer que provavelmente vocês não verão o desfecho disso aqui até amanhã :c mas mesmo que eu demore, o bônus completinho vai sair, ok? ♥

Agora vamos às curiosidades! owo

— O capítulo começa no mês de junho.
— Nesse capítulo a história se passa em 1979, União Soviética. Baseado no pano de fundo que eu já tinha criado para os personagens, Lilia tem 27 anos de idade e uma das solistas do Teatro Balé Kirov (atualmente Mariinsky). Existe uma espécie de hierarquia dentro de um grupo de balé. Existem bailarinos de apoio (pois é, nem todos os bailarinos de uma companhia chegam a se apresentar sempre :/), o corpo de baile em si, solistas (que volta e meia pegam, como o próprio nome indica, solos em apresentações), primeiros solistas (que pegam todos os solos :v) e aí sim os primeiros bailarinos. Nem sempre os primeiros bailarinos se apresentam em todas as montagens de uma peça, e nem sempre uma montagem é feita em todo seu esplendor; é por isso que temos aqui Lilia se apresentando como protagonista. No fim, as pessoas são apenas entusiastas dela, porque nem é uma apresentação de grande destaque, é só mais uma peça de cronograma. Sad, but true.
— Se Lilia aqui tem 27 anos, seu marido, Yakov, tem 34. E Margosha, de 14 anos, essa adorável mocinha que apareceu de repente, é filha adotiva dele. Em resumo: ele a adotou quando era um bebê. Enquanto ambos eram um bebê, porque se formos considerar que ele tinha seus dezenove anos de idade na época... xD
— Vilena Romanova aqui é aquela colega de trabalho chata que te quer fora da jogada por razões de inveja e recalque. Todo lugar tem disso e com a Lilia não seria diferente :v
— Lada é um carrinho miudinho, caracterizado por ser uma espécia de jipe compacto. Foi lançado em 1977, então aqui é um modelinho do tipo Niva de segunda mão. Não deveria estar tão judiado, mas se pensar que é um veículo que encara variações climáticas mais pesadas, faz sentido. Curiosidade: já foi importado para o Brasil :3
— Oleg Nikiforov: Sim, é ele, o pai de um dos protagonistas de Yuri on Ice. Deleitem-se com essa porta, aqui com 20 anos de idade e no auge de sua personalidade meio torta. De um jeito inusitado, ele meio que faz parte da família Feltsman :'D
— Krochka significa "migalha de pão", em russo, e é usado para se referir a uma mulher de baixa estatura. Claro, Oleg Nikiforov usa isso para infernizar a filha de Yakov. Essa mania de piadinhas sem noção, Victor tinha que tirar de algum lugar xD
— Narkissa Smirnova: De 18 anos, a mocinha aqui sofre de uma doença muito popular que abrange 90% da população famosa: estrelismo. Mais detalhes sobre essa personagem só na frente do meu advogado Edik Drozdov, em Carabosse u-u (?)
— Sobre Margosha "encher o figurino de Oleg de agulhas", é que ela tem como hobbie costurar ♥
— As amigas de Lilia! A mais animadinha e sem noção foi apresentada: Irisa Porkhomova tem três filhos e geralmente suas amigas tiram sarro dela por ser tão entusiasta assim da maternidade. Ela faz parte do corpo de baile fixo e é casada com Lukyan Porkhomov, também do corpo de baile. Ambos são de Leningrado (atual São Petersburgo). Eles são bem o estereótipo loiro de olho azul que europeu costuma ter xD Ambos têm a idade de Lilia.
Sinya não é uma pessoa de muitos filtros sociais e acaba falando o que não deve sem querer. Ela nasceu em Omsk, Sibéria, mistura de caucasiano com mongoloide (do povo mongol. Pfvr, não confundir com nenhuma "piadinha" de mau gosto). É uma bela moçoila bronzeada de bochecha rosada e olhos puxados como os da família do pai, tendo herdado da mãe moscovita apena os cabelos cacheados. De todas é a mais jovem, com 24 anos.
Melita, de 29 anos, tem esse nome porque eu simplesmente achei o máximo poder dar o nome de um filtro de café para essa pobre coitada. Namora às escondidas Vilena, de 28, (que não é a Romanova xD), outra moça do corpo de baile que atualmente estava escalada em turnê. Ela a chama de kotchetchka, que significa "gatinha". Aww...
— A tal da sacola trançada aqui citada é a avoska, feita de cordas e barbantes. Serve pra tudo, mas principalmente para levar as compras do mercado, já que não se usavam sacolas plásticas na URSS dos anos 70.
— A primeira bailarina desertora do Kirov é Natalia Makarova. Se você está aqui me acompanhando no modo fantasminha, já sabe como eu amo essa mulher ;A;
— As Olimpíadas de Inverno de 1980 aconteceram nos Estados Unidos.
— Datchas são casinhas tradicionais russas, geralmente de madeira e em locais mais afastados, como o campo. Também é normal não terem água encanada, nem privada :D
— Copeque é o centavo do rublo. Para um rublo, você precisa ter cem copeques, assim como para um real, você precisa ter cem centavos. Consegui me fazer entender? :B
— Kvass são bebidas gaseificadas, tipo refrigerantes, porém caseiros, muito populares em épocas quentes. Há produções industriais, mas o caseirinho é sempre a preferência popular xD
— Alicia Alonso (1920-2019) foi a primeira bailarina cubana e um dos principais nomes a desenvolver o método de balé clássico cubano (normalmente usado em países da américa latina) e seguiu ativa no balé por muitos anos. Parcialmente cega desde os 19 anos, ainda aos 60 ela dançava. Há vídeos seus no Youtube :3 É uma das mais belas Giselles e foi uma das grandes divas do balé clássico do século XX.



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