Deathlines escrita por PW, VinnieCamargo, MV


Capítulo 3
Capítulo 02: Heavy Heart


Notas iniciais do capítulo

Escrito por VinnieCamargo



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Jimmy desligou o rádio e Taylor revirou os olhos.

Enquanto guiava para o subúrbio, preso nas caóticas ruas de Nova Orleans, Taylor ouvia a respiração de Jimmy entrecortada. O passageiro abria e fechava a janela sem parar, algo que levava Taylor à loucura, porém naquele dia Taylor não disse nada. Presumiu que as imagens chocantes no píer lembravam o jornalista do acidente que havia mudado sua vida para sempre.

E então o acidente aconteceu justamente no momento que Jimmy parecia pronto para deixar algumas coisas para trás. Se o rapaz tinha um inimigo em sua vida, ele se chamava karma.

— Você acha que foi ataque terrorista, como disseram no rádio? — Taylor perguntou. Encarou o amigo, que não respondeu. — A filha do presidente tava lá... Melanie Watts...

Jimmy não disse nada.

— Hey. Tá tudo bem, Jimmy? — Taylor não tirou os olhos da estrada, perguntando pela terceira vez naquele período de dez minutos. — Quer que eu pare o carro?

Jimmy engoliu em seco, então deu dois tapinhas na mão de Taylor no volante e apontou para frente, indicando para que apenas continuasse dirigindo. Ele estava bem. O motorista então esticou a mão para ligar o rádio novamente, porém Jimmy o encarou sério outra vez.

— Que foi, porra? Vamos até Elmwood no absoluto silêncio? Fale comigo então.

O rapaz no banco do passageiro deu de ombros e encarou o lado de fora outra vez.

— Tô bem. Você tá bem? — A voz de Jimmy veio num sussurro, e Taylor exalou o ar dos pulmões, aliviado com o amigo finalmente quebrando o silêncio. Já fazia mais de meia hora que haviam deixado os arredores do Big Natchez, porém era a primeira vez que o rapaz formulava uma frase inteira.

    — Pior que não sei direito como estou. — Admitiu. Desde que havia entrado no carro, tinha ignorado parte de seus conflitos internos ao considerar os de Jimmy. Decidiu seguir em frente no monólogo mesmo sem roteiro, assim pelo menos quebraria o silêncio pungente que permeava no carro. — Se estou feliz que aquele cara nos tirou do píer? Claro que estou.  

— Também estou feliz. — Jimmy sussurrou de volta, então engoliu em seco, como se ainda titubeasse se deveria falar o que sentia. — Eu já fantasiei sobre isso, sabe?

— Elabore, por favor.

— Eu imagino cenários em que conseguiria de alguma maneira prever aquele acidente da van. — A voz de Jimmy adquiriu um tom sombrio e sincero, que só surgiu poucas vezes na amizade de ambos. Taylor arrepiou-se, mas apenas escutou. — Os avisos de “cuidado” nas placas da estrada. O GPS que ignoramos. Se prestássemos mais atenção, talvez nada daquilo tivesse acontecido. E Kim estaria aqui do meu lado.

Taylor não saberia como responder. Apertou os ombros de Jimmy carinhosamente, agora sentindo a si mesmo sugado pela nuvem de silêncio.

— Eu sinto muito, Jimmy.

— Obrigado. Eu estou realmente feliz que estamos vivos.  

— Eu também, Jimmy.

Taylor sentiu calafrios outra vez, lembrando-se do momento em que o garoto chamado Trent havia começado a gritar, engasgado no que parecia ser um ataque de pânico. As amigas dele reagiam como se nunca tivessem visto ele daquele jeito.

Trent então começou a berrar para que todos deixassem o píer, pois o cruzeiro que estava ancorado na extremidade iria voltar e chocar-se contra a plataforma, causando um acidente terrível. Era algo específico demais, Taylor tinha pensado. Trent chorava frases desesperadas, clamores de um desastre que ninguém jamais conseguiria imaginar sozinho.

Nisso, Levi Sunderland havia deixado o píer, sozinho e amedrontado. Taylor o reconheceu, já conhecia o nome e vira em fotos mais de uma vez. A família dele tinha negócios com os Dippoli, e o rapaz agora trabalhava no gabinete da presidência.

Viu também Angelita Andorras passar correndo com um tanquinho a tira colo. Taylor a conhecia de outros verões, mas vê-la ali no píer deixou-o embasbacado por um instante.

Então um Trent nervoso se tornou demais para as garotas lidarem, as arrastando pelo píer, e Taylor e Jimmy interviram, adiantando-se na direção do grupo. Entre passos nervosos, Trent agarrou os pulsos de Taylor, olhou nos olhos dele e sussurrou: “Eu vi você morrendo. Eu vi o seu amigo morrendo. Você precisa sair daqui.”.

Taylor então se afastou de Trent, como se tivesse medo de pegar o que quer que fosse que o rapaz tinha. O mesmo não ligou, agora correndo pelo píer e seguido das amigas, porém a sinceridade cruel no olhar dele ao dizer aquelas palavras ainda caçaria Taylor por muito tempo.

— Ele disse que vou morrer. — Taylor sussurrou para Jimmy, sufocando uma risada nervosa na garganta.

— O quê?

— Ele disse que vou morrer. Disse que vamos morrer se ficarmos aqui.

Jimmy pesou as palavras, com uma expressão de confusão. Ele balançou a cabeça e suspirou, então agarrou o pulso de Taylor e começou a puxá-lo na direção em que Trent e as garotas haviam ido.

Taylor não reagiu dessa vez. Deixou-se ser levado por Jimmy, sem saber o que dizer naquela situação.

Então assim que chegaram em terra firme, as buzinas agressivamente graves do cruzeiro ecoaram pelos ares úmidos de Nova Orleans, e a embarcação enorme recuou, destruindo o píer Big Natchez do começo ao fim, arremessando inúmeras pessoas na água, ou as devorando na avalanche de destroços de madeira, ferro e concreto que o movimento do monstro flutuante de aço causava. E Taylor não conseguiu ajudar ninguém.

Não pôde fazer nada.

XXXXXX

 

Taylor acordou de madrugada com o mesmo pesadelo dos outros dias, porém dessa vez não chegou sequer na metade da narrativa estranha. O quarto era espaçoso, com um closet e um banheiro posicionados na parede em frente à cama, que agora estava iluminada pelo céu estrelado, a luz entrando pelas portas semiabertas de uma varanda imperial.

A respiração irregular, Taylor alcançou pelo bloco de notas no criado mudo, porém dessa vez não tinha nada a acrescentar. Era cinco da manhã, sua cabeça doía, e ele empurrou a coberta e tirou a camiseta, ensopado de suor. Havia demorado pra conseguir cair no sono devido ao acidente, e lá estava acordado mais uma vez. Observou os próprios braços, pelos colados na pele devido ao suor, e suas mãos tremiam.

Sentiu uma pontada de ódio. Quando usava os comprimidos de Adderall, fazia tanta coisa que acabava por sentir-se esgotado no fim do dia e conseguia tirar uma boa noite de sono. Agora que estava limpando o próprio sistema, seu relógio biológico estava uma bagunça.

Andou até o próprio banheiro, abriu o armário de espelho e encarou o frasco de comprimidos. Sabia que naquele ponto da madrugada o efeito seria ainda pior, iria ficar ainda mais ativo, mas eventualmente iria sentir-se esgotado logo.

Guardou os comprimidos, fechou a porta do móvel com mais força do que deveria, encheu um copo de água da torneira e andou até a varanda.

Podia observar o quintal esverdeado dos Dippoli, porém naquele horário e com a visão ainda turva, via apenas um emaranhado de sombras e formatos geométricos, de diversas árvores e plantas que tinham sido aparadas recentemente. O ar estava seco e quente naquela região da cidade, e Taylor bebeu a água rápido. Estava prestes a sentar-se na pequena cadeira de praia posicionada na varanda, então ouviu um assovio.

Encarou o lado esquerdo da casa, e em duas varandas de distância no mesmo andar, a sombra de Amelie, sua avó, o encarava, um pequeno ponto avermelhado do cigarro próximo a seu rosto, a fumaça desenhando fantasmas no ar. Sabia que a avó acordava bem cedo.

— Não consegue dormir? — Ela berrou e soprou a fumaça.

— Não, vó.

— Venha conversar comigo.

Taylor concordou, e voltou-se para o próprio quarto. Posicionou o copo sobre uma mesa e saiu do cômodo. Atravessou o grande corredor e espiou pelo vão da escada no andar de baixo, porém ninguém ainda estava acordado. Entrou no quarto da avó, abraçado pelo cheiro de um perfume caro misturado com cigarro, então andou em direção à varanda.

Amelie apontou para a outra cadeira, e Taylor deitou-se e ergueu os pés no móvel. A silhueta da mulher parecia com a de sua própria mãe, embora Amelie Dippoli era sua avó paterna. A senhora tirou o cigarro da boca, soprou um tanto de fumaça para fora e então arremessou a bituca no gramado lá embaixo.

— A mãe vai ficar brava. — Taylor comentou.

— Sua mãe é uma chata, reclama de tudo. — Amelie tossiu. — Não consegue dormir, meu querido?

— Dormi um pouco. O Adderall ainda tá me perturbando...

— Você tem que parar com aquilo mesmo. — Sua avó ergueu o tom de voz desnecessariamente. — É novo demais pra ficar viciado nessas merdas!

Taylor inconscientemente encarou para a direção que Amelie havia arremessado o cigarro, e ela riu.

— Não olhe assim pro meu vício. Eu já sou velha e vivida. Posso fazer o que quiser.

Taylor concordou e afundou-se na cadeira. Fechou os olhos, mas sabia que não conseguiria dormir.

— Ainda pensando no acidente, meu querido?

— Aham. Se o Jimmy não tivesse me puxado junto com ele, provavelmente eu teria morrido.

— O do cabelinho pomposo?

— Esse mesmo.

— É um bom garoto. Fraquinho, mas tão bonzinho.

Taylor encarou a avó, sério, e ela soltou uma risada rouca.

— Sua mãe quase morreu de preocupação hoje.

— Eu percebi quando ela me deu um esporro, logo depois de me abraçar.

— Bom, você devia tê-la avisado que estava bem assim que o acidente aconteceu. Ela não é nova mais, Baby. Não precisamos de outro infarto nessa família.

— É, eu pisei na bola mesmo. — Taylor admitiu. — E o pai?

Amelie ergueu as sobrancelhas, como se não precisasse dizer nada. Denver Dippoli provavelmente nem sabia que o filho tinha ido ao píer, então aparentemente todos acharam melhor poupá-lo das explicações.

— Você acha que eu vou me tornar que nem o pai? — Taylor balançou os braços na frente do rosto quando uma fumaça do cigarro de momentos antes surgiu em sua cara. — Odeio esse cheiro.

— Seu pai? — Amelie riu. — Vocês podem até se parecer, mas tirando a aparência... pfff... ele sempre foi caso perdido. Não tem um dedo da coragem que...

— A mãe então?

— Você se parece com o Bernard, seu avô.

Taylor sabia que a avó falava do falecido marido. Não era a primeira vez que aquele assunto surgia.

— Ele se preocupou tanto, que se esqueceu de viver. Um homem focado, mas muito preocupado. — Taylor pode perceber que um filme se passava na cabeça da avó. — É por isso que os Dippoli estão cada vez mais dentro da lei. Para que não morram de estresse.

Taylor refletiu sobre como aquilo poderia dizer respeito a ele.

— Eu não quero que você morra de estresse, Taylor. Não antes de mim, pelo menos.

Amelie caiu na risada novamente, e Taylor chacoalhou a cabeça.

— Você não dormiu aqui ontem. Tem alguém?

— Você repara em tudo, velha.

— Eu conheço vocês todos. Quem é ela?

Taylor a encarou e engoliu em seco.

— Ele? — Amelie consertou. — Eu me esqueço de que você gosta da outra coisa também.

— Vó!

— Definitivamente se parece com seu avô.

— VÓ!

— Bom, eu também tenho minhas experiências. Quando eu fiz o intercâmbio no Brasil, me apaixonei por uma jovem chamada Lucinda. O cabelo encaracolado dela era divino, porém apesar da safadeza toda comigo, ela dizia que não gostava de moças. Quebrou meu coração.

— Sim, vó, a senhora me contou. — Taylor sentiu-se um pouco acuado. — Sinto muito.

— Não “sinta muito”. — Amelie ergueu a voz novamente. — Se Lucinda tivesse me dado papo, eu não conheceria o seu avô, e você não teria nem nascido. Efeito borboleta, não é?

— Mais ou menos isso... — Taylor bocejou, e então passou a mão pelo rosto como se pudesse melhorar sua situação. — Era Owen o nome dele.

— Era? — Amelie acendeu um novo cigarro. — Ele morreu por acaso?

— Não, levei ele pro aeroporto ontem. Foi embora.

Amelie concordou, tragando do novo cigarro. O céu escuro no leste começava a dar lugar para uma saraivada de cores quentes. Os primeiros raios de sol começavam a surgir no horizonte, e Taylor agora podia ver a avó com clareza.

— Você gosta dele?

— Não. — Taylor deu de ombros. — Quer dizer, eu gosto, mas não daquele jeito.

— Se é o que você diz... — Amelie posicionou a mão quente sobre a de Taylor por um segundo, e deu um tapinha caloroso. — Você vai sobreviver.

    — Eu vou. — Sussurrou. — Com certeza.

    Taylor beijou o rosto da avó, e então voltou para o próprio quarto. Pegou o celular e procurou o número de Kara.

XXXXXX

    DOIS DIAS ANTES.

Taylor acompanhou Owen pelo Aeroporto de Nova Orleans, carregando uma mochila pequena do homem nas costas. Owen era poucos centímetros mais baixo que ele, e andava apressado. Taylor tinha se acostumado a apertar o passo para alcançá-lo quando caminhavam, mas aceitou que eventualmente sempre ficaria atrás dele.

    — Você sempre tem tanta pressa. — Taylor comentou.

    — Bom, pelo menos um de nós tem pressa pra chegar a algum lugar.

    Taylor revirou os olhos e segurou a risada:

    — Idiota.

    — Estou brincando, Baby. Eu entendo.

    Taylor concordou, sabia que Owen entendia. Desde que se conheceram, ambos tinham descoberto muitas coisas um do outro, e sobre si mesmos também.

    Baby tinha ido com Latifah para o Ulmer’s Calderón, uma casa de festas escondida entre grandes prédios de fábricas, nos arredores industriais de Nova Orleans. Fazia dois meses que ambos tinham decidido terminar com o relacionamento. Ela queria abrir o relacionamento, porém aquilo não era pra Baby.

Contudo, ainda eram amigos: ambos eram calmos, e conseguiram trazer aquilo para o fim do relacionamento. Latifah apresentou Taylor para Amy e Owen, também amigos e um casal de ex-namorados. Ambos Taylor e Owen tinham rido sobre a ocasião, qual era a probabilidade daquilo? Depois concluíram que a probabilidade daquilo era casual, só estavam fascinados com a coincidência pois estavam inebriados.  

Enquanto isso, Amy e Latifah já estavam aos beijos no canto da pista de dança. Uma coisa levou a outra, e Taylor logo estava aos beijos com Owen também. Talvez fosse a estranha conexão de Amy e Latifah que havia feito aquilo (e os incentivos de ambas ao notarem), mas um estava afim do outro naquele dia.

Eles transaram naquele mesmo dia, e mais algumas vezes durante as semanas seguintes, mas logo entenderam que o que quer que tinha acontecido entre ambos no Ulmer’s, já tinha ido embora. Mais de uma vez, interrompiam o que faziam para se encararem nos lençóis, ambos sem saber o que dizer ou como seguir em frente. A confiança os deixou próximos, gostavam da companhia um do outro, mas a racionalidade veio como uma onda e decidiram que não tentariam mais.

Porém não precisavam parar de se ver. Eram amigos.

Às vezes Taylor ficava sentado no chão do quarto jogando videogames enquanto Owen preparava aulas, ou lia algo. Owen aparecia na casa dos Dippoli também, e o que quer que tiveram, fazia bem para ambos. Dividiam a cama de Owen sem fazer nada, apenas deitados e encarando o teto como duas crianças. Owen ouviu sobre os pesadelos de Taylor, e também contou sobre os seus próprios medos.

Porém o professor havia decidido deixar Nova Orleans por uma vaga em Atlanta. Ele convidou Taylor para ir junto, poderiam dividir apartamento, até tentarem algo novamente, mas ao mesmo tempo Owen não quis pressionar.    

E agora tinham alcançado a pequena fila de embarque do aeroporto. A voz no alto falante indicava que o voo decolaria em poucos minutos.

Taylor desceu a mochila de Owen no chão enquanto o professor procurava seus documentos.

— Então, acho que é isso. — Taylor deu de ombros. — Acabou.

— Ainda tem tempo. — Owen sugeriu pela última vez. — Ou sei lá, vai pra casa, junta suas coisas e pega o próximo voo. É Atlanta, não Japão.

Taylor não disse nada e Owen suspirou.

— Você vai ficar bem? — Owen ergueu as sobrancelhas.

— Você sabe que vou ficar bem.

Owen fez uma careta. Bitch, please.

— Escuta... Relaxe um pouco, Taylor. A vida é curta. Você tem alguns fantasmas pra lidar. Eu... eu tentei.

Taylor desviou o olhar, sério.

— Uau. — Taylor pigarreou. — Você ensaiou isso?

— Na minha cabeça tinha ficado melhor.

Taylor concordou:

— Aposto que sim.

A última chamada para decolagem ecoou pelo aeroporto, e Owen deu de ombros. Taylor abraçou-o, e ficou no abraço por pelo menos um instante. Sentiu que cairia no choro e recuou, a expressão dura no rosto.

Owen beijou-o repentinamente, e Taylor retribuiu, confuso e exausto. Ficou ali um instante. Arrepiou-se da cabeça aos pés, mas não disse nada. Separaram-se e Owen riu.

— Eu não quero apanhar de ninguém aqui. — Taylor comentou.

— Ai Taylor...

Owen arrumou os cabelos, pegou a mochila, piscou e desapareceu no portão do embarque.

Taylor secou os lábios, e checou ao redor, frustrado. Com um coração pesado, respirou fundo e foi embora.

 

XXXXXX

   

As pernas doloridas, Anisah encarou o sol nascendo pela janela do Hotel Andorras. Ela não tinha conseguido sequer cochilar desde a noite anterior. Tess estava desaparecida.

    A garota processava as palavras que havia escrito na tela do computador, mas aquilo parecia muito mais como um desastre que acontecia na TV, ou no universo de outra pessoa. Tess jamais passaria por aquele tipo de coisa. A Tess que estava desaparecida, não era a sua, e sim era de outro alguém. A Tess dela estava bem.

    Tess tinha que estar viva, simplesmente porque era assim que tinha que ser. Ela conseguia conquistar a atenção de uma multidão, e fazê-los confiar nela de olhos fechados. Tess tinha que estar viva, pois merecia muito mais do que tudo que Anisah um dia tinha sido capaz de dar para ela.

    E nos pensamentos desenfreados ao longo da madrugada, ela se sentia culpada: jamais devia ter deixado alguém chegar tão perto. Quando mais nova, Anisah costumava considerar a falta de amores em sua vida como a representação perfeita de que não precisava de ninguém para ser feliz. Ela saberia lidar com a solidão. Porém Tess chegou e a mudou inteira. Tess a enfraqueceu.

    Agora que o dia amanhecia, arrependia-se de todos os pensamentos. Quem era ela pra culpar a intensidade de seus próprios sentimentos tristes? Ela sentia absolutamente tudo. Ela merecia tudo o que Tess havia trazido para ela.

    Mas nada daquilo era útil.

    Durante o início da madrugada, Anisah que evitava telefones e ligações como o diabo foge da cruz, ligou para a emergência de Nova Orleans quatro vezes, perguntando se precisavam de voluntários para as buscas. Ela não conseguiria ficar parada. Eles disseram que não.  

Então às duas da manhã, Anisah saiu do hotel, sozinha. Andou pelas ruas da cidade até chegar ao Big Natchez, e por detrás de uma das árvores próximas ao Restaurante East Rivers, observando alguns poucos curiosos e vans de reportagem, ouvindo os guindastes barulhentos erguendo pedaços e estacas de madeira da plataforma do píer destruído, Anisah gritou. Três gritos longos que machucaram sua garganta, mas não serviram de nada.

Aí ergueram dois corpos ensacados num carro dos legistas, e suas pernas tremeram subitamente, exatamente como na primeira vez que Tess a fez gozar. Porém agora era de medo, e também de outra sensação que Anisah jamais tinha sentido. Talvez fosse luto.

Cambaleou de volta até o Hotel Andorras, engolindo o choro. Encostou-se contra a janela da recepção, e observou o sol nascendo. Então ouviu um burburinho e virou-se, Trent havia acabado de sentar-se numa das banquetas da recepção do local, também arrasado. Sem Cael, Trent era o único que podia saber um pouco como ela se sentia. Então Anisah arrastou-se e sentou ao lado do garoto.

— Conseguiu dormir um pouco? — Trent perguntou rouco.

— Não.

— Eu também não...— Trent encarou a barra da calça de Anisah, encharcada de água e orvalho da caminhada, coisa que só agora ela percebeu. — Você saiu daqui?

— Não. — Anisah alisou a calça.

Trent concordou, fingindo que acreditava.

— Mudaram a apresentação da Sky para amanhã. — Trent comentou, ansioso e incerto. Como se não soubesse se deveriam continuar conversando. — Ela está nervosa.

— Ah é? — Anisah encarou. — Pra ser honesta, eu não dou a mínima.

Trent reagiu um pouco chocado, então pareceu sentir o peso das palavras em si mesmo.

— Eu também não.

XXXXX

 

De banho tomado, Sky Grace encarou a mochila que havia trazido todo o seu material para a apresentação. Sentia fome, mas o suco que havia tomado no café da manhã do Andorras forraria seu estômago por boa parte do dia.

Sentia-se amargurada com o acidente do dia anterior, um buraco no coração devido ao desaparecimento de Tess e Cael, porém a ansiedade da apresentação no New Orleans Theatre ainda a devorava viva. Adiaram o evento pro dia seguinte, o que lhe garantiria horas extras de ensaios, porém ela tinha xingado baixinho. Havia contado os últimos quinze dias um por um, calculado as horas que restavam para conseguir dar seu show, e finalmente livrar-se daquela carga emocional da apresentação. A postergação para o dia seguinte, de certa maneira intensificou sua angústia.

Sabia que devia estar e mostrar-se mais triste por Tess e Cael. Diferente do que o grupo parecia esperar, ela ainda acreditava que ambos estavam vivos, só tinham se afastado para encher o cu de drogas – ou se ela conhecia direito Cael e Tess, os dois poderiam muito bem estar pregando uma peça de mau gosto em todos. Jesus, Anisah e Trent tinham gostos horríveis para parceiros.

Kara estava tentando convencer todos a irem com Sky. Eles provavelmente acompanhariam um pouco do treino, depois sairiam para espairecer e a deixariam em paz. Eles poderiam aplaudi-la no dia seguinte, quando de fato merecesse a aclamação de todos. Ela sabia que todos estavam dando o melhor, na medida do possível.

Ergueu a mochila nas costas, e alongou os braços. Adiantou-se para sair, mas parou contra o batente da porta, encarando as duas figuras familiares, a irmã gêmea e o pai. Todo o inferno que a mãe havia descrito sobre ambos, deixava de ser real assim que os encarava nos olhos.

— Stella. — Então encarou o pai. — Cosimo. Eu não acredito que vieram.

— A moça com o celular lá fora nos contou que mudaram sua apresentação para amanhã? — Cosimo exibiu um sorriso chateado, porém ainda orgulhoso. — Tiramos o dia para você.

Sky arregalou os olhos, confusa:

— Vocês não viram as notícias?

XXXXXX

Após o acidente no dia anterior, Taylor rapidamente trocou números com Kara, caso precisassem entrar em contato para resolver outras coisas. A polícia eventualmente os chamaria para testemunhar também, então todos ficariam preparados, embora jamais saberiam explicar exatamente tudo o que tinha acontecido.  

Taylor não sabia direito o que tinha o levado a trocar mensagens com Kara, mas sabia que em partes era para agradecer Trent. Após diálogos rápidos com a garota, descobriu onde o grupo estava hospedado. Descobriu também que Tess e Cael estavam desaparecidos. Dirigiu até a casa de Jimmy para buscá-lo, e respirou aliviado ao ver que o rapaz já tinha melhorado da noite anterior também. Agora Jimmy o encarava, confuso.  

— Vai me dizer que porra viemos fazer aqui?

Jimmy encarava o Hotel Andorras, sem saber como reagir. Taylor espiou o lobby do edifício ainda de dentro do carro, então virou para o amigo:

— Eu só quero conversar com eles. Agradecer o maluco. Sinto-me tão estranho e pesado nos últimos dias, que talvez só ficando perto de quem passou pela mesma coisa pode aliviar um pouco.

Jimmy arregalou os olhos.

— Uau. — Deu de ombros. — Seu argumento tem furos, mas é justo. Eu me acostumei com você andando em círculos ao invés de falar o que realmente importa, que sempre me surpreendo quando você é exato no que tá pensando.

— Cale a boca, Jimmy. — Taylor franziu. — Eu sou direto.

Jimmy fez uma careta.

— Acho que isso é parte de ter crescido no meio da máfia. — Jimmy deu de ombros. — Quem cresce no meio de malucos fica abilolado mesmo.

Taylor cotovelou Jimmy, com mais força do que deveria. O rapaz reclamou da dor, porém riu. Ainda encarando o Andorras, Taylor agarrou o pulso do amigo.

— Mencione a máfia lá dentro, que eu te arranco do lugar pelos cabelos.

— Tá bom. Não tá aqui quem falou.

 

XXXXXX

 

No salão de jogos do Andorras, Mina estava espremida entre Trent e Anisah num banquinho. Tinham diversos jogos e equipamentos para diversão num galpão bem iluminado, porém os três estavam sozinhos. Anisah digitava furiosamente num notebook, os gestos cansados, porém caóticos.  

“Acho que ela foi a pé no píer de madrugada. “ Trent digitou na mensagem para Mina, embora estivesse do lado dela. “Omg. Olha os pés dela!”

“Que doida”. Mina encarou a calça de Anisah. E digitou: “Coitada. Espero que encontrem Tess”.

Trent encarou-a sério.

E Cael também.” Mina respondeu rápido. “Desculpa”.  

Exausta, abatida, ainda elétrica pelo dia anterior, e ansiosa com o dia que viria pela frente, com Kara organizando um passeio improvisado para o grupo no meio de Nova Orleans, Mina não tinha outra escolha a não ser esperar.

— Você que gosta dessas coisas... macabras, de outro mundo... — Trent finalmente quebrou o silêncio.

Mina encarou o amigo, séria. Odiava como todos conseguiam ser redutivos ao falar do campo de estudo da vida dela. Ela estava se tornando uma especialista em diversos ramos, que de fato, tendiam a ser um pouco incomuns, porém era a vida real na sua mais pura e cruel forma. E ainda assim, a pesquisa de sua vida era vista de maneira supérflua, os caprichos mórbidos da garota estranha.

— Nada do que eu estudo é de outro mundo, Trent. — Ainda assim, soou simpática com o amigo. — É vida real.

— Tá bom. — Trent ignorou. — Você que estuda a vida real... você consegue encontrar uma explicação para... o que aconteceu comigo?

Mina sentiu pena de Trent. O amigo tinha explicado como tinha visto o acidente acontecendo. Tinha descrito algumas coisas em detalhes, sons, cheiros, e gravado a conversa em seu celular também, embora afirmando que queria esquecer-se de tudo. Mina jamais o culparia. A cada minuto que passava sem notícias de Cael e Tess, as chances eram menores de serem encontrados com vida - ela tinha feito a sua lição de casa. Porém ao mesmo tempo, ela jamais tiraria a esperança dos amigos.

— Pra ser bem honesta, os poucos casos que li envolvendo visões, previsões, não possuem nenhuma base científica útil. — Mina fez uma careta chateada. — Tudo que já estudei sobre esse material é facilmente explicado por manipulação, fanatismo religioso, transtornos psicológicos, problemas de memória, manifestação de traumas, uso de drogas... você me entendeu. Não dá pra você considerar que alguém de fato, viu o futuro, quando existem diversos fatores muito mais racionais e fundamentados, que explicam exatamente o que aconteceu.

Trent pareceu um pouco magoado.

— Eu vi o acidente acontecendo. Eu salvei vocês.

— Eu não estou dizendo que você não teve uma visão, Trent. — Mina continuou. — O sistema sensorial é complexo, ele vê coisas que não existem, cria padrões, cria mecanismos de defesa para sabermos lidar com as coisas que estamos vendo. Só estou dizendo que é difícil ver tudo isso com um olhar pragmático.

— Você mencionou “problemas de memória”?

Droga. Ela tinha mencionado problemas de memória.

— Mencionei?

Então a porta do salão de jogos se abriu, e os dois homens que estavam no píer entraram no cômodo. Taylor e Jimmy.

Anisah finalmente ergueu os olhos do notebook ao ver ambos entrando:

— Era só o que me faltava... — Ela revirou os olhos e fechou o notebook com força. — Homens! Tinha que ser a Kara.

Anisah levantou-se com o notebook embaixo do braço, e andou na direção da saída do cômodo. Passou por ambos quase que marchando. O mais alto, Taylor, a encarou, porém não disse nada. O menor, Jimmy, pareceu que iria dizer algo, mas ficou quieto. Anisah deixou o cômodo e bateu a porta com força, mas Jimmy foi logo atrás dela.

Taylor balançou a cabeça, então se aproximou de Mina e Trent.

— A Kara disse que nos encontraria aqui no salão.

— Ela foi se arrumar. — Mina sorriu, gentilmente. — Ela já vem.

Taylor concordou. Ele encarou a sala, então se sentou numa cadeira, diante de ambos. Mina o encarou, inconscientemente o analisando. Ela acabava fazendo muito daquilo.

— Trent. — O homem começou. — Eu não sei como dizer... só quero te agradecer. Desculpa eu ter... te afastado de mim, no píer.

Trent concordou nervoso, exatamente a mesma reação que teve quando Mina havia o agradecido, na noite anterior.

— Tudo bem, eu nem percebi o que estava fazendo na hora. E por nada cara. — Trent deu de ombros. — Se tivesse acontecido com você, eu tenho certeza que você faria o mesmo por mim.

Taylor fez uma expressão de que não tinha ideia do que Trent estava falando, mas concordou mesmo assim.

— Seu amigo ainda está desaparecido, não é? — Taylor disse baixinho. — Eu espero que o encontrem.

Mina observou a expressão de Trent enrijecer.

— É meu ex-namorado, na verdade.

A expressão podia pegar Taylor de surpresa, mas ele não pareceu reagir a aquilo. Ficou parado, apenas como se entendesse.

— Espero que vocês o encontrem. E a outra garota também.

— Tess. — Mina adicionou.

— Sim. Espero que encontrem a Tess.

Mas o outro olhar que Taylor deu dessa vez, Mina conhecia. Era o mesmo que ela sabia que tinha em seu próprio rosto também.

O olhar de quem sabia que era tarde demais para Tess e Cael.  

 

XXXXXX

 

— Posso ajudar com algo? — Era o cabeludinho que seguia atrás de Anisah, o mesmo que a encarava no bar. — Me desculpe, eu fiquei sabendo o que aconteceu...

— Você consegue achar a porra da minha namorada? — Anisah cuspiu as palavras. — Assim você me ajudaria.

Ele recuou, sem palavras. Finalmente a deixaria em paz.

— É o que imaginei. — Anisah seguiu, ríspida. — Você não consegue me ajudar.

— Eu já passei por algo assim. — Ele continuou atrás dela. — Eu... espero que a encontrem.

— O que foi? Você perdeu a namorada por acaso?

— Na verdade sim. Ela morreu num acidente de carro seis anos atrás.

Anisah parou. Respirou fundo e virou-se para ele.

— Jimmy, não é?

Ele concordou.

— Jimmy. Eu sinto muito. Mesmo. Mas se você não consegue... sei lá... desligar as vozes na minha cabeça que ficam dizendo que Tess está morta em algum lugar, se não tem ideia de como me ajudar a vê-la novamente... — Bufou, segurando as lágrimas. — Então eu não vejo motivo de continuarmos conversando. Você tem ideia da minha situação, não é?

Jimmy concordou em silêncio, os olhos marejados.

— Então obrigada. — E subiu as escadas, sem olhar para trás. Graças a Deus, dessa vez Jimmy não a seguiu.

 

XXXXXX

 

Taylor finalmente encontrou Kara, e a garota estava deslumbrante como no dia anterior. Os cabelos cor-de-rosa contrastavam com uma blusa de moletom roxa, que pendia para o lado esquerdo, revelando o ombro e a alça do sutiã. Ela terminou uma chamada de vídeo com um tchau caloroso, e encarou Taylor da cabeça aos pés.

— Oi. — Taylor sorriu de canto. — Tudo bem?

— É com você que eu tava falando nos SMSs, né? — Kara fez uma expressão de mistério.

É claro que era comigo, Taylor pensou. Quem mais seria?

— Sim, era eu... Taylor de ontem.

— Ah. — Kara riu. — Taylor de ontem. Eu ouvi o teu amigo te chamando de Baby ontem. Achei que era o seu namorado.

— Mas ele é meu namorado.

— Oi?

— Estou brincando, Baby é um apelido de infância. — Explicou. — Desculpa. Com o Jimmy nunca passou do primeiro beijo.

Kara fez uma careta de como se não soubesse o que responder.

— É brincadeira, Kara...

— Eu percebi, Taylor. Sinto que você faz muitas piadas.

— Eu tô nervoso com a situação toda... De qualquer jeito, obrigado por responder a minha mensagem. Espero que encontrem os seus amigos.

Kara concordou e então estreitou o olhar nele. Taylor sentiu como se ela pudesse lê-lo por inteiro. Com Mina tinha sido a mesma coisa.

— Imagina, obrigado por me procurar. — Kara sorriu. — Você acha mesmo que vão encontrá-los... com vida? Você tem o mesmo olhar sério que a Mina tem.

Taylor não precisou pensar, já tinha a resposta para a pergunta. Suspirou.

— Kara, o quão próxima você é deles... Tess e Cael?

— Não muito, pra ser honesta. Anisah e Trent são mais próximos, embora ela consiga atingir os meus nervos com facilidade. Vai responder minha pergunta, ou não?

— Você quer que eu seja educado ou sincero?

Kara fez uma careta.

— Bom, isso já responde minha pergunta. Escuta... vamos acompanhar a Sky num ensaio que ela tem hoje no teatro, para uma apresentação de dança dela amanhã. Vamos dar umas voltas pela cidade também. Acho que a Anisah não vem, porém o resto do pessoal todo mundo vai. Se você e seu amigo estiverem afim, podemos ir juntos para conversar... espairecer um pouco. Pensar melhor no que aconteceu.

Taylor concordou.

— É uma boa ideia.

Kara sorriu.

XXXXXX

O camarim do New Orleans Theatre era espaçoso e aconchegante, com espelhos e estofados avermelhados por todos os cantos, e Sky deixou-se girar na cadeira mais uma vez, imaginando quais artistas já tinham sentado naquela cadeira. Então o pensamento dela focou em bactérias e outros fluídos que poderiam estar ali, e sentiu-se desconfortável.

— Eu não faria muito disso não. — Stella pigarreou. Você não sabe quem sentou aí antes.

— Acabei de pensar nisso. — Levantou-se. Já nas vestimentas para o treino, adiantou-se até a mochila e calçou a sapatilha. — Eu estou feliz que vocês vieram.

Cosimo observava o cômodo com atenção, um pouco distraído.

This is a girls room, dad! — Stella berrou. — Vaza daqui, sei lá, vai procurar um prego pra martelar... vai fazer alguma coisa de homem.

Cosimo franziu, porém pareceu concordar. Deixou o cômodo, e Stella caiu na risada.

— O que você tava dizendo?

— Eu... estou feliz que vocês vieram. — Sky sorriu. — Senti a falta de vocês.

Stella deu um sorriso sincero:

— Se a mãe não fosse uma vaca... Ela ainda é, não é?

Sky não soube como responder. A mãe fazia a caveira de Stella e Cosimo diariamente, amaldiçoando-os da cabeça aos pés, porém ainda seria estranho para Sky falar sobre a mãe daquele jeito. Monday podia ter seus defeitos...

— Se você não respondeu, ainda é uma vaca. E o Soleil? Ainda tentando copiar a mãe?

— Ele na verdade é bem legal. — Sky parou na frente do espelho, arrumando o cabelo. — A gente sai bastante.

Stella mordeu os lábios.  

— Eu sinto falta daquele idiota. Mas senti mais de você.

Sky revirou os olhos.

— Tá bom. Agora vaza daqui você. This is a dancers room, sis!

Stella abriu a boca chocada.

— Que cadela. Mas adorei a atitude.

A irmã gêmea deixou o cômodo e fechou a porta. Sky respirou fundo, e sorriu. Encarou uma cestinha com uma maçã vermelhíssima, uma banana e uma garrafa de água, um mimo que a administração do teatro havia deixado para ela.

Pegou a banana e comeu, marchando para fora do cômodo.

Rumo ao palco.  

 

XXXXX

 

Taylor já tinha estado no auditório do New Orleans Theatre algumas vezes, porém o local vazio era diferente. O palco era uma estrutura de madeira e aço, com dezenas de vigas para refletores, suportes, rodilhas e cordas no telhado. Duas grandes plataformas acima do palco para eventuais voos ou acrobacias, cuja escada era acessível via backstage. Havia cerca de trezentos lugares ali, estofados vermelhos e macios com as bordas em dourado, porém poucos estavam ocupados. O pai e a irmã gêmea da garota aplaudiam da base do palco, enquanto Jimmy estava entre Mina e Trent na terceira fila, explicando algo empolgado. Ao lado de Mina estava Kara, e Taylor do outro, ainda sem ter certeza do que estava fazendo ali.

Porém a companhia era boa, não poderia negar. Kara tinha uma faísca de sinceridade espontânea, que o deixava seguro em ser honesto também.

— Então... — Taylor encarou. — A sua amiga Sky vai ficar nas alturas?

— Demorou tanto tempo assim pra surgir com essa piada?

Kara cotovelou Taylor, que não disse nada. Então Sky finalmente surgiu no topo da plataforma, e os amigos aplaudiram.

— You go, girl! — Trent assoviou em seguida. Sky piscou lá de cima e gesticulou um beijo para o amigo com a palma da mão.

— Uma artista de verdade. — Kara sussurrou, e ligou a câmera do iPhone. Tirou várias fotos, e Taylor espiou dezenas de notificações no display do aparelho. Desviou o olhar rapidamente, um pouco constrangido, e Kara notou. — Ah, não se preocupe. Estou acostumada. Consigo lidar com muita gente.

Taylor não soube o que responder.

 

XXXXXX

 

Sky já tinha ensaiado no teatro local próximo a sua casa, mas ali era diferente. Sapateou pela plataforma, reconhecendo o local, enquanto checava os ganchos do suporte mais uma vez na cinta ao redor de seu quadril. Os amigos lá embaixo aplaudiam, Cosimo e Stella não tiravam os olhos dela, e ela sabia que era o seu momento de brilhar.

Já imaginava que o grupo eventualmente iria se dispersar, os ensaios eram repetitivos depois de alguns minutos, porém estava feliz por estarem ali. Já pensava menos no acidente do píer, assim como em Tess e Cael.

O assistente do teatro checou os ganchos outra vez.

— Tá tudo certo.

— Ok, obrigada. — Observou o rapaz se afastando, então notou que algo ainda estava em sua mão. — Pssst!

O rapaz virou-se, e Sky entregou a casca de banana para ele.

— Joga para mim no lixo, por favor?

Ele concordou, ela sorriu e ele devolveu o sorriso. Era fofo.

— Obrigada. — Piscou. A música começou a tocar em algum lugar, e ela deu início aos movimentos. Fechou os olhos e pulou da plataforma.

XXXXXX

 

Anisah estava na metade da escada rumo ao auditório, quando ouviu os gritos.

Ressabiada, pulou o resto dos degraus de dois em dois e espiou dentro do auditório com o coração pesado. Tinha decidido ir atrás do grupo, pois se sentia muito sozinha naquele hotel. Então observou Sky fazendo acrobacias pelo palco, pendurada pelos suportes, e o grupo aplaudia e gritava. Ninguém sentia falta dela ali.

Trent estava na base do palco, gritando palavras de apoio e acompanhando os movimentos de Sky com a batida da música.

Anisah sentiu o rosto ferver. Como ela era a única que enxergava o que estava acontecendo?

Sabia que em partes estava errada por acreditar que todos deveriam comportar-se como ela. Ela tinha aprendido aquilo desde a infância, ninguém tinha o mesmo tipo de energia que ela.

Porém Tess estava desaparecida. Cael estava desaparecido. Todos tinham acompanhado a porra de um acidente. E agora riam.

Então a voz da noite anterior voltava como uma melodia triste em sua cabeça. No fim das contas, ela não era muito importante. Kara irradiava brilho (até demais, pro gosto de Anisah), Mina era um mar de profundidade, Sky era uma artista, Trent daria o coração para qualquer um, enquanto ela era só a menina do computador. A mal humorada que lidava com códigos. Sempre que dava um presente para o grupo, todos perguntavam se o dinheiro que ela tinha usado para comprar era limpo. Sem contar que eles faziam pouco de Tess em inúmeras ocasiões. Apenas a toleravam.

Sabia que em partes estava judiando de si mesma ao pensar daquele jeito. Ela era querida pelos amigos... porém... era só mais uma.

E Kara tinha que trazer ainda os dois rapazes do píer com ela. Ela não perdia uma oportunidade de chamar atenção para si mesma. E todos aplaudiam e riam, enquanto ela se sentia esgotada.

Ela havia notado os olhares de Trent, Kara e Mina nela. Como se ela fosse louca por ter ido ao píer durante a noite. Tess era sua vida, e Anisah precisava-a mais do que tudo.

 Sky recomeçou o ensaio, e o grupo estava mais calmo agora. Anisah virou-se prestes a sair dali, pois sentiu que seria melhor ficar longe deles.

Porém notou que Kara havia a visto. Enquanto a tonta filmava a si mesma, enxergou Anisah escondida, na saída dos fundos.

— Anisah! — Kara chamou, surpresa. — Que bom que veio querida. Sente-se com a gente.

Anisah respirou fundo. Entrou no auditório e encarou o grupo, um por um, todos virando-se para ela. Até Sky interrompeu seu ensaio.

— Tem certeza de que me querem aqui? — Anisah segurou as lágrimas. — Pois parece que estão indo muito bem sem mim.

— Do que você tá falando?  — Kara franziu. — Anisah, ninguém disse nada...

— Exatamente! — A voz trêmula de Anisah ecoou pelo auditório. — Cael e Tess estão desaparecidos, Trent teve um pesadelo sinistro, ontem uma porra de cruzeiro quase matou todo mundo, e vocês estão aí rindo como se nada estivesse acontecendo. Essa é a nossa vida real! Ninguém fala nada!

— Anisah... — Kara gaguejou. — Querida... não é bem assim. Todo mundo tem seu jeito de lidar... todos estão sofrendo...

— Ah, por favor, Kara. — Anisah fez uma careta. — Menos né, querida.

Kara arregalou os olhos.

— Anisah... — Trent adiantou-se. — Eu sinto muito. Eu também estou preocupado. Eu mal consigo processar o que aconteceu...

— Tô vendo o quanto você está preocupado, Trent. — Anisah retrucou, irônica. — Tá parecendo um macaco batendo palma pra Sky. E ela é outra que só se importa com essa porcaria de apresentação.

— Quem é essa maluca? — Stella encarou. — Já não temos drama suficiente por hoje?

— Tá vendo Trent? — Anisah respirou fundo. — É assim que se importam comigo. Eu te disse mais de uma vez...

— Nós sentimos muito por você, Anisah. — Trent argumentou. — Você não tem ideia nenhuma de como está a minha cabeça. Você está nervosa com tudo o que está acontecendo...

— Você devia ter falado conosco antes. — Mina disse com pena. — Você é quieta, acaba guardando muito dentro de si mesma... Todo mundo aqui está pensando no Cael e na Tess.

— Eu sou quieta, então tenho que lidar com tudo sozinha não é? — Anisah enxugou as lágrimas, bufando. — Típico de vocês.

— Ninguém disse isso. — Kara frisou. — Anisah, você vai acabar se arrependendo de falar essas coisas...

— Cale a boca, Kara! — Anisah gritou. — Você está tão preocupada com tudo que trouxe até mais dois malucos. Era pra ser só a gente, se lembra?

— Garota. Eu só vou falar uma vez. — Kara saiu do assento em que estava, e andou até a direção de Anisah. Encarou-a sem piscar, de um modo que a iraniana nunca tinha visto e sentiu-se arrepiar inteira. — Eu sinto muito por tudo que está acontecendo com você, mas faça o favor de recolher essas asinhas, porque ninguém aqui é seu saco de pancadas.

— Sabe esse do cabelinho? — Anisah apontou para Jimmy. — Eu procurei sobre ele. É um jornalista, seus idiotas. Ele provavelmente está usando vocês pra escrever uma matéria do tipo: “Passei dois dias com sobreviventes do píer. Aqui está um resumo patético sobre cada um deles”.

Todos os olhares pousaram em Jimmy.

— Eu jamais faria isso. — Jimmy encarou todos. — Eu estava lá também.

— Você não tem o monopólio da dor, querida. — Stella bufou. — Pare de estragar a festa.

— Cale a boca, Stella. — Anisah encarou a garota. — E o outro ali, é aparentemente dos Dippoli, embora não achei nada sobre ele na Internet. A família dele está envolvida com a máfia.

— Eu não tenho ideia do que ela está falando. — Taylor riu, nervoso.

— Parabéns Kara. — Anisah continuou, batendo palmas. — Você trouxe um criminoso para o grupo.

Kara caiu na risada.

— Olha só quem quer falar de crimes...

— CALEM A BOCA! — Sky berrou do alto da plataforma. — CALEM A BOCA, CALEM A BOCA, CALEM A BOCA, CALEM A BOCA!

Anisah encarou todo mundo, a respiração pesada e o rosto em fúria.

— Anisah, todo mundo tá torcendo para encontrarem a Tess! — Sky berrou do alto. — Mas PELO AMOR DE DEUS, CALE A BOCA! Se quiserem continuar com isso, saiam da porra do meu palco.

E Sky pulou da plataforma outra vez.

Todos se viraram de volta para Anisah, porém as luzes do auditório se apagaram repentinamente. Então ouviram um grito.

XXXXX

Ulysses já estava no fim do turno quando a garota na plataforma o entregou a casca de banana. Elas sempre achavam que os rapazes da equipe de segurança eram seus empregados pessoais. Ele pendurou o lixo no cinto de ferramentas e desceu as escadas, rumo aos armários dos funcionários. Quando tirou o cinto e foi procurar a casca de banana para descartar, não encontrou mais. Havia derrubado em algum lugar do backstage.

Porra. — Ulysses riu, guardando os equipamentos. — Tomara que olhem por onde estão andando.

XXXXX

Algumas paredes de distância, Larissa descia um corredor inclinado com um cabide de rodinhas recheado de adereços e fantasias da peça do dia anterior. Os corredores e sets do backstage eram divididos por painéis de madeira. Cada coisa que Larissa já tinha ouvido por aquelas paredes finas...

Encarou o cabide de peças infantis diante de si. A peça era “A Convenção das Bruxas”. Sempre faziam a peça no Halloween, porém tinham começado a apresentar também próximo ao Mardi Gras, devido ao poder místico do feriado. Tinha sido um estouro.

Larissa não viu a casca de banana. Acertou com o calcanhar no material mole, e sua perna escorregou. Larissa tombou para o lado, e ergueu o braço para apoiar-se na parede de madeira.

No último segundo, viu que sua mão ia à direção da ponta de um prego perigosamente posicionado na parede de madeira.

O prego atravessou a mão de Larissa fácil, rasgando a carne como se fosse gelatina. Larissa retirou a mão ensanguentada da parede aos berros, e empurrou o cabide de rodinhas para que tivesse espaço para ver o estrago em suas mãos.

O cabide de rodinhas continuou seu caminho, então pegou velocidade devido à inclinação do corredor. Aí atingiu em cheio a caixa de energia, que tinha sido adaptada naquele canto do teatro, só por uma noite.

Então a caixa de energia explodiu, e um curto circuito desligou as luzes do prédio.

Larissa olhou para cima, a tempo de ver as luzes se apagando.

— Merda. Fudeu.

XXXXXX

Assim que a luz voltou no auditório, Taylor arrepiou-se ao ver Sky pendurada no teto, presa nas rodilhas das cordas de suporte, que estavam instaladas numa viga. O pessoal na plateia também gritava.

O curto-circuito reiniciou o mecanismo que puxava e soltava as cordas, para que os dançarinos pudessem flutuar pelo palco. Assim que a energia voltou, o equipamento tentou recolher as cordas, puxando os suportes que estavam instalados em Sky.

Cosimo e Stella correram na direção do backstage, enquanto o grupo na plateia não sabia o que fazer. Observavam Sky presa no teto. A garota gritou várias vezes, sem entender o que estava acontecendo. Clamou por ajuda, mas então o mecanismo afrouxou, e soltou as cordas.

Ainda pendurada pela corda, Sky despencou de ponta-cabeça, doze metros em direção ao chão. Taylor não fechou os olhos, pois esperou o tranco das cordas ao serem travadas num último instante, mas não veio.

O grito foi interrompido com o baque do crânio contra o chão. Taylor arregalou os olhos, sem acreditar, e então viu o corpo da garota retorcido no palco. As luzes se apagaram novamente, uma explosão aconteceu no backstage, e a energia ficou em meia fase, agora piscando.

As cordas voltaram a erguer por cinco metros de altura o corpo de Sky de ponta-cabeça, e o grupo notou que a garota estava viva. O rosto retorcido e vermelho, a roupa branca ensanguentada, uma sapatilha arremessada na direção da plateia, Sky emitiu um berro gutural de dor, se afogando no próprio sangue e dor.

Então as cordas soltaram-se novamente e a garota calou-se para sempre. Sky atingiu o chão de ponta-cabeça outra vez, e Taylor notou agora o buraco amassado no chão do palco. A corda puxou, Sky subiu cinco metros de altura novamente, e então despencou de novo. E de novo. E de novo.

O corpo de Sky atingiu o chão pelo menos dez vezes, devido ao mau funcionamento do mecanismo. Girava ao ser balançado de cima pra baixo, colorindo de sangue e fluído o palco que antes era imaculadamente branco.

As luzes piscando, o grupo tinha relances da visão da cabeça da garota moída pelo palco, um emaranhado de massa encefálica, sangue e ossos. Era um cenário de carnificina.

Por último, o corpo de Sky finalmente despencou e soltou-se do cinto de segurança, agora só um toco de carne viva onde a cabeça da garota costumava estar. O cadáver atingiu o palco com um baque molhado desconfortável, e a corda finalmente parou.

As luzes acenderam-se, e Taylor finalmente ouviu os amigos da garota aos berros. Kara tapava os olhos, soluçando, sangue escorrendo pelo ombro visível da garota. Trent jazia próximo ao palco, em seu lugar de sempre, porém sem reação e coberto de sangue da cabeça aos pés. Jimmy tinha a cabeça escondida entre os joelhos, para não acompanhar a visão, e Mina ligava para alguém, como se algo ainda pudesse ser feito. Anisah estava travada no corredor, aos berros, e Taylor ouvia alguém aos gritos em algum lugar. Provavelmente o pai e a irmã de Sky.

Então Taylor ouviu algo tocando. Anisah levou as mãos trêmulas no bolso, e tirou o celular que tocava. Virou-se de volta para o palco, e no bolso de um Trent ensanguentado e ainda imóvel, o celular do rapaz tocava também.

Taylor encarou o palco uma última vez, então se afastou, as pernas bambas e o coração socando contra o peito.

Notou o sangue escorrendo nos pelos de seus braços e sua roupa. Cambaleou algumas vezes, e então saiu correndo na procura de um banheiro. Precisava vomitar.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Não esqueçam de comentar. As reviews são muito importantes para a continuidade do projeto.



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