Conjunto de porcelanas escrita por Angelina Dourado


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Vim trazer pra vocês este conto fofíssimo e cheio de açúcar para aproveitar o verão! Já fazia um tempo que eu queria fazer uma história com esse toque de casas sofisticadas que se vê tanto em séries e livros de época, espero que gostem do resultado.
Boa leitura! ^-^



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Quem passasse aos arredores da casa dos Monteiros ficaria impressionado. Não pelas colunas majestosas que sustentavam a mansão, as grandes janelas de vidro e suas sacadas de ferro escuro repletas de arabescos. Aquela era mais do que uma moradia de gente abastada do Rio de Janeiro, pois não era somente sua arquitetura clássica ou grandiosidade que chamavam a atenção, mas a forma meticulosa como era regida.

  Os jardins eram impecáveis, nenhuma flor murcha ou erva daninha tomava a vista de alguém. Seus móveis tão ricamente decorados pareciam estar sempre novos, o chão era lustro em todos os cantos, os tapetes devidamente arrumados, as lareiras sequer pareciam serem usadas! A prataria invejava não apenas pela extensa coleção, mas pelo brilho cintilante que advinha de cada peça, a moldura das dezenas de quadros brilhava no mais fino bronze.

  Dessa forma, quem tivesse a oportunidade única de ser convidado a um jantar com aquela família, ficaria extasiado pela comida divina servida, digna do mais exigente monarca europeu. A mesa posta era uma devida obra de arte, com seus guardanapos dobrados em cisnes e a porcelana antiga da família sem uma única rachadura em suas bordas. Um verdadeiro espetáculo silencioso, como um quadro a ser apreciado no museu de um grande pintor.

  Os visitantes sempre congratulavam a família pela residência impecável, com o Sr.Monteiro sempre deixando claro á quem se devia os créditos para tudo aquilo “Agradeçam aos empregados, especialmente o mordomo e a governanta, eles conhecem mais essa casa do que nós!”

  Francisco de Almeida e Cecília Barros cuidavam da mansão com pulsos firmes e rédeas justas. Dos vassalos às camareiras e do motorista ao jardineiro, todos os demais empregados estremeciam somente ao encarar as figuras austeras que os comandavam. Lideravam aquele lugar com uma estratégia que faria inveja ao maior dos exércitos e com a disciplina ferrenha de um colégio católico. Eram o cérebro que comandava todos os cômodos, mas também o coração que impulsionava para o trabalho acontecer. Por vezes Manoel Monteiro, dono da rica propriedade, até brincava ao dizer que aquele teto se tivesse vida os consideraria como já verdadeiros donos dele.

  Entretanto, a história da relação dos dois era um tanto quanto curiosa. O mordomo já trabalhava junto aos Monteiros há quase cinco anos, uma indicação do antigo mordomo que havia se aposentado e sido seu tutor na juventude. Estava bem acomodado na casa, conquistado a confiança dos patrões e o respeito de seus subordinados, não havia como estar mais satisfeito. Entretanto, por mais competente que Francisco fosse em seu oficio, aquela era uma casa de proporções consideráveis e que demandava um número de funcionários que começou a ir além de suas capacidades. Por mais que lutasse para deixar aquela moradia nos eixos, a chegada de Cecília foi inevitável.

  Era a primeira vez que a mulher assumia o cargo de governanta, contudo já possuía grandes referências, vinda de uma família que possuía uma longa história como empregadas domésticas, trazendo grande orgulho por ser a primeira da família a alcançar tal cargo. Sua mãe a havia ensinado, assim como sua avó havia feito como o restante de suas antepassadas. Mesmo com a pouca experiência ela não decepcionou ninguém, nem os Monteiros, os subordinados e até mesmo Francisco se viu surpreso com sua destreza.

  Já era esperada a instauração de uma rivalidade das duas figuras, orgulhosos e perfeccionistas, os primeiros dias deram-se como uma verdadeira competição que julgaria quem era o melhor chefe daquela mansão. Os demais criados pensaram que iriam à loucura naquela época, chegando a pensar que aquela junção não funcionaria de forma alguma. Contudo, a verdade é que a amizade e confiança entre eles se construiu aos poucos, com o tempo perceberam as qualidades um do outro, donde juntos poderiam melhorar ainda mais suas habilidades e se deram conta em como ambos eram parecidos no jeito de ser. Nunca aquela mansão esteve tão bem organizada desde a chegada dos dois.

  Todavia, com o passar do tempo algo começou a parecer um tanto diferente em Francisco e Cecília, coisa que os quase vinte funcionários da casa não deixaram passar despercebido. De longe tratava-se da forma como os arranjos de flores estavam sendo colhidos e nem como as abotoaduras eram guardadas. Foi a forma como eles passaram a ver um ao outro.

  Eram detalhes sutis, como os olhares que trocavam á distância, os elogios espontâneos sobre qualquer detalhe do trabalho um do outro, o jeito como sorriam facilmente quando estavam juntos – logo eles, os mais carrancudos dentre todos os empregados –, as longas conversas que se colocavam sobre o mais pífio dos assuntos, somente como uma desculpa para continuarem no mesmo cômodo. E ai de quem tentasse reclamar de um quando o outro estava ouvindo! Era pior do que se fosse contra eles próprios, pois os discursos de defesas chegavam a servir de estudo para os advogados.

  Passou a ficar mais do que óbvio para todos da casa o que estava acontecendo com as chefias. Até a Sra.Monteiro se colocou a brincar sobre a relação dos dois ao sugerir um casório quando inspecionava os novos lustres com Francisco. Foi a única vez que se flagrou aquele homem gaguejar, como também quase deixar cair uma peça de cristal de suas mãos. Tornou-se o assunto predileto das camareiras, cochichando em meio a risinhos sobre a relação ainda não estabelecida dos superiores, enquanto os vassalos faziam suas apostas quanto ao dia que aquela relação se estabeleceria de uma vez.

  Se tal afeto era tão óbvio para o mundo afora, obviamente também o era para os dois enamorados. Então o que ainda os impedia de juntarem as trouxas? Inicialmente fora culpa da própria seriedade de ambos, na qual sempre acharam inadequada a relação entre empregados – visto que essa situação já havia os perturbado anteriormente, com jovens casais de empregados fugindo juntos e deixando o restante da equipe na mão, ou ignorando seus afazeres para ficarem de graça um com o outro, ou ao término de uma relação estabelecendo um clima desagradável no meio de todos os presentes. –. Não queriam se tornar um empecilho no ambiente de trabalho, ainda mais com a responsabilidade de servirem de exemplo de postura a todos os outros.

  Felizmente, apesar de seus ferrenhos ideais e etiqueta mais sólidos que diamante, aos poucos com o incentivo dos colegas foram capazes de desconstruir parte daquelas ideias. Jamais se comportariam da maneira que outros prejudicaram e que tanto lhes causara transtornos, além dos próprios Monteiros não parecerem incomodados com uma possível relação entre os dois (na verdade acreditavam que até tornaria tudo mais fácil, visto que dessa forma nenhum deles largaria o emprego caso se casassem).

  Então o que impedia os cortejos agora? O trabalho em si.

  É esperado que uma mansão daquele padrão jamais ficasse carente dos cuidados de um mordomo ou de uma governanta, sendo assim, suas folgas nunca coincidam nos mesmos dias para que um pudesse cobrir a parte do outro. Pedir um dia de folga no mesmo dia para ambos seria visto como um mero capricho ou uma afronta aos patrões! Visto que também achavam desrespeitoso haverem cortejos durante o serviço, acabava que nenhum dos dois atravessava a linha do amor platônico.

  Por quanto tempo então esta verdadeira novela perduraria? Menos do que imaginavam, visto os eventos que ocorreram naquele final de Maio.

  Os Monteiros haviam saído de viagem para visitarem amigos e parentes em Salvador por cerca de sessenta dias. O mordomo e a governanta estabeleceram um estado constante de vigilância, feito cães a cuidarem de uma fazenda, não deixando que ninguém resolvesse fazer uma algazarra na falta dos patrões, além de deixarem a casa impecável para os hóspedes que alugaram alguns quartos na ausência dos proprietários. Eles chegariam em uma semana, dez dias depois da partida dos Monteiros. No qual tirando alguns detalhes a serem arrumados aqui e ali, o trabalho havia diminuído de forma drástica com a casa vazia.

  Aquela era uma oportunidade única. E o mordomo sabia muito bem disso.

  Francisco já havia afrouxado o colarinho tantas vezes aquela tarde que começava a se repreender mentalmente, pois acabaria por estragar a peça se continuasse daquela forma. Havia esperado tanto por aquela chance, mas agora procrastinava a cada hora que passava, desistindo de falar com Cecilia sobre o assunto todas as vezes que a havia encontrado pela casa – algumas vezes inclusive indo á ela determinado, mas desistindo logo em seguida –. Sentia-se tolo ao se comportar feito um rapazote com o primeiro amor, ainda mais quando ambos sabiam muito bem da recíproca de seus sentimentos. Não havia do que correr, mesmo assim fugia.

  Respirou fundo e cerrou os punhos por um momento, sentindo as mãos suadas tanto pelo nervosismo quanto com o caso de trajar fraque num clima tropical. – Ideia estúpida de imitarem as tendências europeias em pleno calor do Rio de Janeiro! – Rumou até algumas das camareiras que tiravam o pó do corrimão da grande escada da residência, questionando sobre o paradeiro de sua superiora. “A senhorita está em seus aposentos” elas responderam, e assim que o mordomo deu as costas, as garotas se olharam de maneira risonha e cheias de especulações.

  Antes de bater na porta, ficou parado por alguns minutos a repassar em sua mente o que poderia dizer, pois não pretendia vacilar uma palavra sequer. Precisava demonstrar postura, ser respeitoso e cordial. Após ouvir o chiar de uma chaleira no interior, decidiu enfim bater levemente na madeira assim que o chiado se dissipou. Ao notar o barulho dos sapatos da governanta se aproximando, já foi o bastante para que o coração se acelerasse de emoção.

    – Pois não? – Cecilia surgiu do outro lado, olhando ligeiramente para cima por conta da baixa estatura, os olhos do tom de amêndoa observando com sobriedade. Ao notar quem se tratava, um ligeiro sorriso tomou sua face e tingindo as bochechas proeminentes de rosa. – Oh Cisco é você! São as garotas certo? Devem estar se perguntando quais lençóis usar para o quarto dos hóspedes. Espero que não tenham tocado nos de fio egípcio, dona Margarete daria um chilique daqueles!

  Cisco. Não eram todas as pessoas que o mordomo permitia chamá-lo por tal apelido. Apenas sua mãe, os irmãos e seus patrões tinham direito de referir-se a ele de tal forma, ah e claro, Cecília. Da primeira vez que ela o chamou daquela forma, para as pessoas ao redor parecia que o tempo havia parado, como se pudessem prever o famoso ralhar do mordomo a dizer “É senhor Francisco para você!”. Contudo, de forma inesperada ele não pareceu ligar nem um pouco, deixando assim que a governanta entrasse definitivamente no seu circulo social que ia além da relação de colegas de trabalho.

   – Ah não, na verdade venho aqui para tratar de outro assunto. – O mordomo poderia estar em nervos no seu interior, mas por fora trajava o olhar sóbrio de sempre, com o nariz aquilino sempre levantado e virando para baixo somente os olhos esverdeados que encaravam Cecília, a voz grossa soando séria e quase inexpressiva.

    – Certo. – Disse a governanta juntando as mãos e olhando para Francisco á espera do que tinha a dizer. Sem demonstrar de forma alguma como se sentia e suas intenções, obviamente Cecilia não imaginava grandes coisas naquele momento.

   – Em particular. – O mordomo esclareceu, deixando a postura rígida por um milésimo de segundos e desviando os olhos rapidamente do rosto gentil e convidativo de Cecília. Ao contrário dele que demonstrava severidade em todo seu ser, a mulher contradizia seus modos rígidos e sua aparência delicada e doce, fazendo causar um efeito de surpresa ainda maior ao conduzir aquela casa com punhos de ferro.

   – Ah, claro. Entre por favor. – Ela abriu mais a porta de seus aposentos, permitindo a entrada do homem alto e esguio que não conteve uma observação precisa de todo o ambiente, acostumado a analisar todos os cômodos com os olhos de uma águia. O lugar como esperado de alguém como Cecília estava impecável, com uma fragrância de limpeza que cobria todo o ambiente.

  Ambos possuíam uma espécie de apartamento como moradia, com direito a uma pequena sala de convivência junto a uma cozinha básica, dividido somente no devido quarto.  Apesar do espaço limitado, a governanta conseguira deixar o espaço aconchegante com uma dupla de poltronas caramelo e o espaço preenchido com tapetes, cortinas e babados por todos os lados. Ela gostava de se gabar dizendo que havia tricotado a maior parte das decorações que havia exposto.

  Por um momento o silêncio se manteve entre os dois, com Cecilia esperando o visitante com paciência e Cisco matutando o que poderia dizer exatamente. Havia pensado em diversos cenários em sua cabeça, mas ao fitar a mulher na sua frente parecia que todas as ideias haviam se esvaído misteriosamente. Cecília trajava um vestido de cor branca no tronco com pequenos detalhes de babados próximo dos botões, com uma saia modesta de um verde escuro com uma cintura que evidenciava sutilmente o corpo curvilíneo. Ela lhe encarava ansiosa com os olhos amendoados, deixando-o sem palavras mais uma vez.

   – É alguma notícia do senhor Manoel e dona Margarete? As meninas estão bem? É uma longa viagem para qualquer criança. – Cecília iniciava as hipóteses, não tendo paciência o bastante para esperar que o mordomo organizasse os pensamentos.

   – Ah não, nenhuma noticia desde a última correspondência. A questão é… – Novamente Francisco deixara a postura imponente quebrar-se, desta vez sendo notado pela governanta ao ver o rosto tingir de rubro e se atrapalhar nas palavras. Somente ali ela teve a suspeita do que ele queria dizer, sentindo o coração palpitar em menos de um segundo antes de Cisco começar a falar. – Somente resolvi aproveitar o tempo livre que ultimamente temos para quem sabe, se for do desejo da senhorita é claro, passarmos algum tempo juntos.

  Os olhos de avelã se arregalaram, logo acompanhando um sorriso genuíno que foi retribuído por Cisco quase de forma inconsciente. Ambos dividindo aquele momento de ternura e timidez.

   – A esse ponto pensei que jamais me convidaria. – Cecília disse afiada como sempre, com um olhar jocoso e misto de soberba. O mordomo pigarreou sem jeito antes de responder, coisa rara de ocorrer com ele que era sempre certo de suas palavras. Apenas ela era capaz de virar sua cabeça daquela forma.

   – Oh, sabes como é o trabalho e todos os seus desafios. – Arrumou o colarinho mais uma vez, não se importando mais se estragasse o tecido. – Todavia, hoje o restante da criadagem está calma e faz um belo dia lá fora. Quiçá se for de seu agrado dar um passeio pelos jardins…

  Não podiam exatamente sair da mansão enquanto estivessem em serviço. Mesmo que os Monteiros não soubessem ou sequer se importassem, ambos temiam deixar aquele lugar “desprotegido” sem a presença de ao menos um deles. Entretanto, tratava-se de uma bela e grandiosa moradia, com muitos locais que podiam ser aproveitados e apreciados.

   – És uma ideia adorável Cisco, sabes como amo o jardim como se fosse meu próprio. Contudo, compreende que estamos sempre em companhia de outros. – A governanta deu um suspiro chateado, enquanto Francisco imaginava os vassalos e camareiras a espiarem eles pelas janelas e arbustos da propriedade como os enxeridos que eram. Queria expulsar aqueles jovens metidos com uma vassoura como se fossem pombos a pousar nas varandas.

  Ficaram num silêncio desconfortável por alguns instantes, até Cecília sentir-se acanhada em observar o mordomo e fitou o bule que possuía sobre a mesa de centro. Uma ideia surgiu em sua mente.

   – Bem, já é a hora que costumo tomar chá e estamos reunidos. Não vejo o porquê de não passarmos este tempo aqui mesmo.

    – Em seus aposentos? Não se incomodaria? – Perguntou Francisco surpreso, visto que tal atitude poderia ser interpretada como um escândalo. Era um cavalheiro, logo seria falta de decoro encontrar-se sozinho com uma dama em seus aposentos.    

   – Claro que não. Sabes que não sou de permitir a entrada de qualquer pessoa aqui, contudo já nos conhecemos há tempos e não é a primeira vez que ficamos a sós. Afinal, sei que és um homem de confiança. – Ela afirmou de forma polida, um singelo sorriso lhe desenhava a face. Tal ato poderia ser mal visto pela opinião alheia, contudo por mais repleta de pudores e etiquetas que fosse, Cecília era uma mulher que se colocava acima de qualquer obrigação social que fosse caso não visse sentido nela, permanecendo segura de si em meio a quaisquer críticas que ocorressem. No princípio Francisco havia se espantado com tamanha personalidade forte – por mais que ele mesmo tivesse características semelhantes – contudo não demorou a também amar este lado da governanta.

   – Sinto-me lisonjeado. – Afirmou não contendo um largo sorriso no rosto, por mais que sempre tentasse permanecer o mais sóbrio possível. O que fazia tais momentos de epifania ainda mais encantadores, segundo Cecília que achava o sorriso genuíno de Cisco um dos mais belos que já presenciara, como uma verdadeira joia rara.

  Um tanto contidos nos primeiros instantes, sentaram-se no minúsculo recinto de convivência que a governanta possuía, com a senhorita sentada em seu pequeno divã esverdeado enquanto Francisco se punha na poltrona logo em frente, tendo somente uma pequena mesa de centro com o conjunto de porcelanas para o chá que Cecilia adorava poder exibir.

   – É herança de família, dada á minha avó pelos patrões da qual serviu por quase trinta anos. Ela dizia que eram peças europeias e jamais ousamos questioná-la apesar das dúvidas, contudo sou modesta o bastante para dizer que não dou atenção a mero detalhe. Continua uma bela porcelana de qualquer maneira. – Exibia-se enquanto o mordomo escutava atento enquanto observava a fina peça. Tratava-se de um conjunto delicado, com bordas enfeitadas em dourado e adornadas com pinturas suaves de flores rosadas delineadas com finas folhagens. Era notável o carinho que a governanta possuía pelas peças, mas de qualquer maneira fez questão de usar o jogo naquela ocasião especial.

O colóquio iniciou-se de forma tímida, com o nervosismo de ambos fazendo as xícaras tremularem nas mãos, onde o peito se acelerava a cada olhar cruzado entre as íris de tons distintos. Contudo, ao se encontrarem cada vez mais imersos nas conversas e gestos um do outro, tal estranheza se dissipava como vento, tornando o ambiente mais aconchegante e a presença um do outro permanecendo natural.  Falavam (reclamavam) dos demais empregados, do trabalho e dos patrões, porém não se deixavam somente levar para tal assunto já tão saturado entre eles. Conversavam sobre a família, dos sobrinhos, das cidades que já visitaram e dos livros que haviam lido. Do que entendiam e o que achavam entender, de trivialidades que viam graça, dos lugares que gostariam de visitar e de pessoas interessantes ou não da qual conheciam.

Em verdade era fácil tornar prazeroso qualquer assunto entre eles. A mera presença um do outro já parecia ser o bastante. Cecília ficaria plenamente satisfeita somente em observar em silêncio os olhos de um verde vítreo por trás dos óculos de fina armação de Cisco, os cabelos bem penteados para trás parecendo coberto por neve pelos fios grisalhos em contraste com os poucos castanhos que sobravam, – uma característica deveras incomum a um homem de somente 36 anos, da qual ele próprio se incomodava vez ou outra apesar dela não ver defeito – o corpo esguio marcado pelo colete cinzento, sentado de pernas parcialmente cruzadas enquanto falava de maneira sóbria feito um intelectual. O fraque havia sido deixado dobrado na outra poltrona, após o mordomo sentir-se um pouco mais a vontade e finalmente se livrar da peça nada condizente ao país tropical.

Cisco encontrava-se especialmente fascinado pelos cachos de Cecília, pois por estarem sempre presos num coque firme, não se lembrava de alguma vez ter presenciado os fios em espirais caindo de maneira hipnótica pelos ombros da mulher.  A juba castanha adornava o rosto arredondado onde ele admirava os olhos cheios de vida e os lábios que o chamavam de uma forma que se acabrunhava em pensar. Como havia sido capaz de se deter por tanto tempo diante daquela mulher? As coisas que o recato o mandava fazer...

— Hoje estás especialmente bela senhorita Cecília, admiro-me especialmente por tuas madeixas libertas. – Comentou por fim após tomar a coragem necessária para tal, sentindo o rosto queimar por mais confiante que estivesse sua expressão, o coração galopando feito um corcel de corrida. Que tipo de sensações eram aquelas? Estava mesmo se portando como um jovem inexperiente no amor! Contudo, apesar de certo embaraço com tais emoções, Francisco amava a forma como Cecília o fazia se sentir.

— Oh que isso Cisco... – A governanta disse entre risos acanhados, o rosto claro tornando-se vermelho por mais que tentasse esconder cobrindo a boca e o queixo com uma das mãos, embaraçada pelo elogio. – São sempre uma bagunça!

  – Pois para mim parecem-me em perfeito estado. – Afirmou com um sorriso sutil que fez com que Cecília pudesse jurar que uma parte de si estava derretida e espalhada no piso. E qual não foi sua surpresa ao ver o homem levantar-se esbanjando a grande altura, sentando-se assim logo ao seu lado. – Permita-me ficar aqui?

— Mas é claro. – Respondeu tranquilamente, tendo o prazer de ver aquele raro sorriso se alargar ainda mais. Ao querer estender o contato que há tanto já era esperado, Cecília se colocou um pouco mais próxima de Francisco, olhando impetuosamente para os olhos claros por trás das lentes, sentindo a mão do homem rastejar pelo tecido do móvel até alcançar sua mão, envolvendo-a e acariciando sua pele com o polegar. Deixaram-se envolver por aquele momento de ternura, fitando um ao outro com um encanto pungente que possuíam pelo outro, prendendo a respiração sem que notassem como se para eternizar tal afeto, sentindo o coração pulsar de júbilo.  

O desejo os atraía num sussurro frequente, os olhares, as mãos e os lábios os chamando para mais perto. Com cuidado, Cisco deixou a mão que segurava a da mulher para tocar sua face, sentindo a pele macia em seus dedos como veludo. Cecília tocou sua mão, apertando levemente o dizendo de tal forma sutil para que se aproximasse. Os narizes se tocaram, estando próximos o bastante para sentirem a respiração um do outro, a umidade de suas bocas tornando-se sedentas para que compartilhassem tal momento...

Quando de repente alguém bateu na porta.

— Dona Cecília? Está aí Dona Cecília?

Afastaram-se abruptamente, atônitos com a interrupção inesperada e o temor de serem flagrados.

— Um instante Clarabela! – A governanta disse olhando de forma incisiva para Francisco que entendeu o recado, levantando-se apressado e se pondo a esconder-se por trás de uma parede que dividia os aposentos de Cecília. – Não se pode ter um momento de paz com vocês!

O mordomo pode ouvir a porta sendo aberta, sentindo o coração parar até a garganta, não sabendo se pelo medo de ser descoberto ou pelo momento que ambos acabaram de ter.

— Me desculpa pela intromissão Dona Cecília, é que nós não temos certeza se esses são os lençóis certos para colocar no quarto dos hóspedes e... Aquele é o fraque do senhor Francisco? – Ao ouvir o questionamento da camareira, o mordomo sentiu o estômago gelar-se de temor, levando a mão até a testa por ter tido tamanho descuido de sua parte!

— Ora essas! Deixe de ser intrometida menina!  E tratem de guardar esses lençóis finos onde encontraram, garotas tolas, óbvio que não são esses a se colocar na cama dos hóspedes! – Cecília esbravejou furiosa enquanto o mordomo ouvia os ‘’Sinto muito! Sinto muito!’’ de Clarabela parecendo sussurros em meio aos brados da governanta. – Francamente, não conseguem fazer nada sem que eu as cuide feito crianças?!

A porta fechou-se de maneira bruta, fazendo o mordomo se sobressaltar pelo susto. Contudo não se ouviu o som da tranca, deixando Cisco em dúvida se a mulher retornaria ou se era apenas para que ele pudesse se retirar. Esperou por alguns minutos, até ter a certeza que talvez a melhor opção fosse sair. Olhou com cuidado para os dois lados do corredor para ter a certeza que ninguém o encontraria deixando os aposentos de Cecília, saindo feito um gatuno pela madrugada.

Nas horas seguintes sequer vislumbraram a presença um do outro, estando Cecília ocupada arrumando toda a bagunça que as demais empregadas haviam feito nos quartos, enquanto Francisco resolvera fiscalizar o térreo donde estava sendo feito a mudança de alguns móveis a pedido dos patrões, que aproveitaram o momento de viagem para tais reformas.

Ambos retornaram a exercer a postura sóbria e inflexível de sempre, voltando a comandar aquela casa com as rédeas firmes. Contudo, por mais que externamente pareciam-se com as mesmas estátuas que imitavam, em seus âmagos eram inundados com os fortes sentimentos que possuíam e tornaram-se ainda mais aflorados após o encontro entre eles. Em seus pensamentos, a imagem do que aconteceu e o que teria acontecido passavam de forma insistente em suas cabeças, onde por mais que se esforçassem para não darem pistas de seus estados de espírito, as bochechas coravam em meio ás lembranças e por vezes um sorriso sutil aparecia sem ser percebido.

Naquela noite, quando a casa tornara-se silenciosa e as lâmpadas de querosene e velas eram acesas, Francisco não conseguia se concentrar no que Quincas Borba tinha a dizer sobre o Humanitismo para Brás Cubas. O livro foi deixado de lado, pois Cecília e seus cachos insistiam em aparecer de novo em sua mente, de forma viciante e já tão precocemente repleta de saudades. Deixou que o corpo se distendesse na poltrona que sentava, não sendo capaz de esquecer a textura de sua pele e dos lábios que estiveram tão próximos...

Foi em um salto que se levantou quando de repente ouviu três batidas em sua porta, rumando ansioso esperando de forma pueril pela presença que tanto ansiava. E mesmo com tal expectativa, surpreendeu-se da mesma forma ao se deparar com a imagem de Cecília novamente diante de si. Realmente já era de se esperar, não a conheceria tão bem se já não esperasse que fosse ela a ser tão resoluta para repetir tal encontro!

— Estás ocupado? – Cecília perguntou de maneira trivial, arrancando um sorriso solene do mordomo diante de si.

— Por incrível que pareça, não. – Cisco respondeu abrindo mais a porta e estendendo o braço para seus aposentos. – Desejas entrar?

— Se não for um incomodo. – Respondeu com um meneio positivo, fazendo os sons dos sapatos ecoarem pelo piso enquanto transitava de queixo erguido. Ambos vestindo a compostura tomada de recatos como sátiras naquele momento, divertindo-se da trivialidade da própria rotina.

Cecília antes de dizer alguma coisa deu uma longa observada no aposento por todos os ângulos, não crendo encontrar qualquer defeito se era de se esperar algo vindo do mordomo. Não havia se posicionado muito longe do homem, tendo de mover a cabeça para cima na intenção de olhar em seu rosto. Ajeitou uma mecha dos cabelos atrás da orelha, antes de dizer polidamente:

— Sinto muito pela intromissão de hoje à tarde, sabe muito bem como elas são atrapalhadas. Vim até aqui para esclarecer o ocorrido, os lençóis foram todos misturados entre os da casa e os de hóspedes! Um desastre imagine. Espero que não tenha se importado.

— Oh, mas claro que não! Compreendo muito bem sua posição dado que compartilhamos do mesmo fardo, não há com que se preocupar. – Cisco respondeu entrando naquele jogo. Sim um jogo, uma peça! Onde ambos eram sagazes o bastante para perceberem todas as desculpas lançadas somente para que houvesse uma justificativa para tamanho escândalo, onde os dois enamorados tinham a audácia de se colocaram sozinhos entre duas paredes. Cecília não precisava realmente se desculpar por aquilo, mas se quisesse rever o mordomo no mesmo dia precisava de uma desculpa decente. E Francisco percebera tal artimanha nos olhos geniosos da mulher, sentindo o coração acelerar-se feito um carro motorizado com tal constatação.

— Podemos então combinar outro encontro para compensar. – O olhar sugestivo de Cecília dizia muito mais por baixo daquelas palavras já repletas de intenções. Cisco tomou a audácia de se aproximar mais dela, repousando cuidadosamente as mãos em sua cintura, ambos sentindo um arrepio a percorrer a espinha com tal contato, os olhares não se desviando em momento algum.

— Seria deveras aprazível. – Mal terminara as palavras e deixou o ímpeto de tomar aqueles lábios convidativos lhe dominar. A boca tão macia como imaginou o correspondera em delírio, com os braços da mulher enlaçando seu pescoço e o fazendo agarrar sua cintura para mais perto de seu corpo. O desejo os enlaçava como névoa, perdendo-se nos lábios um do outro, compartilhando as línguas com graciosidade e apertando os braços envolvidos num abraço impetuoso a rondar aquele beijo. Beijavam-se com cada vez mais ferocidade, tomando todo o ar que possuíam até os pulmões reclamarem, suspirando sem fôlego antes de retornarem para a volúpia e a umidade prazerosa de seus lábios.

Perderam as contas dos minutos passados em meio ao amasso, sorrindo-se de forma apaixonada e os rostos rubros pelo momento compartilhado. Amando-se somente pelo olhar vívido de alegria.

— Boa noite, senhor Francisco. – Disse Cecília com um sorriso sacana, quando o abraço já se amolecia e se afastava lentamente dos longos braços do mordomo.

— Boa noite, senhorita Cecília. – Respondeu-lhe Cisco, antes de deixar que suas mãos se separassem de vez e resolvesse por fim fechar a porta, quando não avistara mais a governanta no corredor.

Foi em tal momento que a casa dos Monteiros soube por fim que nem mesmo seus governantes obedeciam tanto ás etiquetas.


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Notas finais do capítulo

Comentem o que acharam! Até a próxima pessoal e obrigada por terem lido! ^-^



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