Ilounastia-Lapso Mental escrita por Lunéler


Capítulo 4
Rosa, farpa e pedra




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Uma sombra cobria os olhos de Doto. Não acreditou no que via. Duas estruturas grandes e maleáveis surgiam das costas de Deplório. Eram asas. Dois membros flexíveis e articulados. Julgou que se tratava de uma farsa qualquer, um devaneio mergulhado no absurdo.

A ideia de Deplório não ser um homem normal causou-lhe um sobressalto de pavor que, aos poucos, tornou-se o fruto da curiosidade. Os vívidos pesadelos que outrora tivera o fizeram duvidar da situação, sob a hipótese da ilusão do sono; temeu que não fosse real. Mas, pouco a pouco, seu medo irradiou-se em fascínio e admiração e, ainda sob o abraço da contemplação, ele mapeou tudo o que estava ao seu redor, identificando a aparência de Deplório.

Ele tinha o rosto afinado e limpo, e a cabeça sem um fio sequer de cabelo. Sua altura e porte físico explicavam a grande resistência ao carregá-lo: tinha pouco mais de dois metros de altura e o corpo musculoso e largo. Algumas rugas lhe apontavam considerável maturidade, mas distante ainda da velhice. Olhos verdes-celeste ali-mentavam o ar em seriedade e expunham sua personalidade fria, mas confiante o suficiente para ser acolhedora.

As asas desenvolviam movimentos lentos, abrindo-se para o alto em cerca de um metro e meio e eram cobertas de penas brancas. Deplório ainda o olhava fixamente, de maneira focada e excessivamente concentrada. Doto o ignorou, pois se deslumbrava com sua visão, observando o cenário à sua volta. Eles estavam em ruínas antigas, onde havia destroços de pedras pelo chão e uma pequena vegetação que surgia das brechas entre os tijolos.

Para ampliar seu campo de visão, Doto se levantou lentamente, esbarrando no material que Deplório havia posto no chão. Ali tinha um colete de couro preto, uma espada, um cinto com garrafas de madeira amarradas, três facas de tamanhos diferentes e um machado de pequeno porte. Havia ainda um pano velho que, muito provavelmente, cobria mais algumas armas.

Próximo à parede oposta, parcialmente despedaçada, estava Tuí. Ele olhava atentamente para o céu e, em seguida, voltou seus olhos para o rosto de Doto. Seus cabelos negros repartidos e sua falta de rugas apresentavam-no mais novo que Deplório. Um pequeno cavanhaque, somado a seu olhar frio e acastanhado, enchia o ambiente de ceticismo.

Suas asas tinham uma tonalidade levemente amarronzada e estavam encolhidas para trás. Ele vestia no tronco uma armadura de ferro com símbolos gravados no peito, algumas facas penduradas no cinto e os punhos cobertos com luvas marrons de couro. Segurava na mão direita um arco já com a corda tensionada pelo encaixe de uma flecha, que apontava para o chão. Suas características corporais eram próximas às de Deplório, principalmente no que tangia a altura e ao desenvolvimento muscular.

— A tempestade está por vir - disse Tuí.

Deplório mirou o céu apertando o olhar e falou:

— Você vem conosco?

Doto lembrou-se de Borvênia, com seus lindos campos e colinas, da agricultura, do conforto de sua casa, da admiração por Ordero e, por fim, de sua paixão por Eliff. Em uma fração de segundos, os olhos dourados dela e sua mania de enrolar o cabelo com os dedos vieram por meio da recordação. Sua mente trouxe, involuntariamente, a lembrança do abraço acolhedor sob uma castanheira, em um dia de chuva forte. Por mais que ele estivesse com medo da reação de Deplório, a saudade era incontrolável e ele decidiu negar aquela jornada incerta para buscar sua paz.

— Não! Eu... preciso ir embora. - Escorou-se na parede, tentando sair da arena fugazmente, ainda impressionado com aquelas asas.

Deplório ficou parado, acompanhando-o apenas com os olhos, sem mover nenhum outro músculo. Em uma fração de segundos, porém, ele atirou-se sobre Doto, pressionando-o contra a parede e usou o antebraço para apertar seu pescoço, fazendo-o sufocar. O camponês entrou em desespero e se debateu, mas era inútil competir com tamanha força. Aos poucos, seus olhos foram enchendo-se de lágrimas e suas unhas enterrando-se no antebraço de Deplório, na tentativa de livrar-se do estrangulamento.

Cada vez mais força era aplicada contra seu pescoço, a ponto de fazer suspender seus pés do chão. Doto podia apenas enxergar os olhos verdes de Deplório apertarem-se em um conjunto de desequilíbrio e ódio. Quando ele pensou que era o fim, que morreria ali, sem ar, com as veias da testa saltadas, o agressor simplesmente o soltou. Ele caiu como uma pedra no chão e começou, pouco a pouco, a recuperar o fôlego, com as mãos no pescoço, tossindo. Lento e pautado como um psicopata, Deplório agachou-se à frente de Doto, o observou no fundo dos olhos e disse:

— Escute, rapaz! Não existe brincadeira aqui! Acredite no que você está vendo e no que te falei. Esqueça sua vida em Borvênia, ela não te serve mais!

Doto, ainda apavorado, com a boca entreaberta e os olhos arregalados, não disse nada, enquanto presenciava aquela expressão ameaçadora do guerreiro.

— Você tem sorte de ser quem você é! Não podemos levá-lo se você não puder desenvolver sua Eustase. Isso nos obriga a te dar escolhas, pois tudo deve partir de você! Fizemos sua iniciação, agora depende de você, camponês! Quer ir embora? Viver na tranquila Borvênia, longe de todo perigo? Vá! Mas saiba que os cavaleiros do Norte não vão te deixar em paz; eles são enviados de Ectus e não descansarão enquanto não te pegarem. Espero que mude de ideia. Se isto acontecer, saberá onde nos encontrar. A esperança é o artifício da persistência.

Ainda apavorado, Doto estranhou aquela atitude, mas não mudou sua decisão, pois estava determinado a voltar para casa. Seu medo era tão grande que nem sequer cogitou a possibilidade de estar ao lado deles. E a chuva iniciou repentinamente em pesadas gotas que se multiplicavam e abafavam os sons, mas ainda assim, os dois se encaravam. Nesse momento, despencou das nuvens um forte raio que iluminou a superfície, marcando pela metade o rosto fechado de Deplório. Segundos depois, houve a explosão sonora.

E quando a chuva se tornou mais intensa, os cavaleiros alados coletaram seus materiais e se retiraram da arena. Doto não acompanhou a partida deles, apenas ouviu as últimas palavras de Deplório:

— Siga pelas roseiras, eles têm medo delas.

Segundos depois, se levantou e olhou pelo canto da parede, mas eles não estavam mais lá. Havia, entretanto, o saco de pano que Deplório carregava; talvez tivesse esquecido. Então, ele apanhou a sacola e buscou abrigo embaixo de uma árvore, logo na saída das ruínas.

Enquanto esperava a tempestade passar, abriu o saco de pano e encontrou uma adaga e um mapa desenhado em tecido amarelo. A adaga era de aço e trazia uma frase esculpida na lâmina com caracteres que não pareciam letras e sim, símbolos; provavelmente era outro idioma. Ela tinha a ponta um pouco arredondada e estava extremamente amolada, pois, ao tocá-la, Doto fez um pequeno corte no dedo. Ele a encontrou ainda dentro de uma bainha de couro, revestida por cascalhos do ouro, onde se desenhavam linhas que cruzavam sua extensão. Constituía um material pesado e com excelente resistência.

Passado um tempo considerável, a chuva cessou e o céu se abriu em uma claridade fraca e hostil, que sussurrava o aspecto fúnebre do momento. Doto se sentia inseguro pela ameaça que sofreu. Era hora de partir, voltar para casa, os últimos raios de sol desapareciam naquele momento.

O mapa que lhe deixaram era bastante fiel, representava campos gramados, florestas, rios, detalhes geográficos do terreno, construções e estradas. Havia ainda um caminho representado em tinta vermelha que indicava um imenso corredor de roseiras orientado na direção de Borvênia. Então, por falta de opções ou por um pingo de confiança em Deplório, Doto decidiu seguir esse caminho.

Sua viagem começou pela mesma estrada de terra que o trouxe. Margeou uma floresta densa e repleta de bem-te-vis até encontrar, no lado esquerdo, uma trilha que dava para um roseiral longo e exuberante. No centro dele, abria-se uma passagem gramada. Eram rosas muito avermelhadas, de um lado e outro da trilha, que enchiam o ambiente de vida.

Antes de seguir, Doto encheu a sacola com laranjas de um pomar próximo; era sua única fonte de alimento. Ele não tinha nenhum conhecimento geográfico ou noção aprofundada de distâncias para deduzir quão longe estava de casa, mas arriscou aquela jornada, pois queria, desesperadamente, voltar ao encontro de Eliff e de sua cidade. Após ajustar seus sapatos velhos aos pés, iniciou a caminhada de forma otimista, abraçado ao desejo de encontrar sua terra.

As primeiras horas de caminhada adentraram a noite com suavidade confortante, pois as rosas exibiam seus perfumes e tocavam o íntimo de Doto, trazendo certa paz à situação. Aos poucos, o clima foi esfriando e tornando a caminhada mais árdua. Doto, porém, resistiu ao cansaço, pois as lembranças das últimas noites em Borvênia o motivavam para prosseguir.

Mais tarde, ele preparava-se para dormir na grama, quando inesperadamente começou a sentir uma forte dor de cabeça e uma tontura que se assemelhava ao prenúncio do desmaio. Parecia não haver motivo para sentir aquilo, pois foi repentino. Surgiu também um latejar tão firme como as batidas de um tambor em sua cabeça.

O estímulo foi tão grosso e violento que o fez perder o equilíbrio e ir ao chão, pressionando a cabeça na tentativa de conter a dor. Seu corpo tomou uma movimentação rápida e pulsante, como se estivesse sendo afetado por potentes descargas elétricas. Em se-guida, ele começou a ranger os dentes e tremer dos pés à cabeça.

Durante dois minutos, essa sensação assolou a mente de Doto, depois foi regredindo até os sintomas desaparecerem. Quando a dor cessou por completo, ele se sentiu cansado e assustado, sem saber o motivo do ataque.

Ainda deitado na grama, olhou para o lado e se assustou com uma imagem curiosa. Viu um vulto por detrás das rosas, que rapidamente se escondeu. Instintivamente, Doto se pôs de joelhos e tirou de dentro da bolsa a adaga, temendo que fosse algum animal da região. Então, com os olhos esbugalhados, mergulhados na escuridão, ele encolheu-se como um inseto a ser predado.

Doto ainda ficou posicionado ali durante algum tempo, te-mendo que a criatura voltasse, mas acabou adormecendo depois de muito esperar. Em seu subconsciente, algo o fazia sentir-se culpado e inseguro pela escolha da solidão. Ninguém mais o defenderia dos cavaleiros do Norte ou de qualquer outro medo iminente.

No dia seguinte, o sol nasceu forte e esquentou o ar até que Doto não suportasse o calor e acordasse. Definitivamente, ele não havia se preparado para a viagem, pois já sentia sede e não tinha qualquer fonte de água. As laranjas o ajudavam a manter-se nutrido, mas não matavam sua sede.

E determinado a chegar à Borvênia, vagou pelo canteiro das rosas conforme a insolação aumentava. O clima ficou excessiva-mente quente e isso fez com que o desgaste físico o consumisse e tornasse a caminhada mais lenta e rústica. Seu vigor muscular não estava preparado para aquilo.

Aos poucos, o cansaço foi arrancando as forças de Doto, e então, ao meio-dia, sob o insuportável calor, ele fraquejou e tombou no chão, pois tinha chegado ao limite da exaustão. Somou-se a isso uma nova dor de cabeça, que, dessa vez, foi muito mais forte. Seu corpo tremeu, seus batimentos cardíacos aceleraram e ele babou, gritou, sentiu sangue escorrer dos ouvidos; uma dor absurdamente violenta. Seu organismo apresentava sintomas próximos aos de uma convulsão. Tudo foi mais longo e intenso.

Cinco minutos foram suficientes para que o processo terminasse. Doto notou que tinha ferido seu nariz batendo-o no solo e ainda tinha o rosto voltado para a grama. Durante o surto, ele havia fechado os olhos e, quando os abriu, viu que nenhuma folha se mexia, não havia vento. Isso fez com que ele presenciasse mais facilmente a movimentação de alguém a observá-lo atrás das rosas, distante cerca de vinte metros. Muito rapidamente, o ser se escondeu atrás de uma árvore.

E Doto Insólito se perguntou o que exatamente seria aquilo. Nas duas vezes em que flagrou o indivíduo, não conseguiu identificar suas características; talvez fosse algum predador, talvez fossem os cavaleiros do Norte, não sabia. Estava com medo e pensou, inclusive, em voltar, mas era loucura. Afastou esses pensamentos da cabeça e voltou a caminhar.

Estava fraco, seus passos ficaram lentos, porque suas pernas tremiam e estavam doloridas. O trajeto parecia interminável e extremamente monótono. Durante todo percurso, o cenário mantinha-se igual, nada quebrava a imensa unidade visual daquele lugar. As rosas permaneciam ao lado esquerdo da trilha, como um mar vermelho, enquanto, no lado direito, elas pareciam acabar logo e dar lugar a uma floresta.

Ele ainda andou por muito tempo, só parou ao fim da tarde, pois seu corpo não aguentava continuar sem água e comida. E buscando algo naquele gigante roseiral, avistou bem longe uma árvore que trazia algumas frutas avermelhadas. Sua intenção era pegá-las, mas seu organismo foi novamente perturbado.

Naquele crepúsculo lento, quando a luz do sol ficou escassa e a iluminação se reduziu ao brilho das estrelas, Doto foi afetado pelo terceiro grande susto. O sofrimento iniciou quando ele avistou uma última vez a figura daquela árvore frutífera. Ele cambaleou para o lado direito e caiu próximo às rosas na margem da trilha e, em pouco tempo, começou a se debater, atingindo o rosto várias vezes no chão. Em seguida, seu ouvido e nariz sangraram e ele vomitou.

Com a agitação descontrolada, ele rolou para o lado e entrou pela folhagem das flores ciliares, no lado oposto ao que vira a árvore frutífera. O trecho em que Doto se encontrava, declinava-se à direita conforme se afastava do canteiro, ao passo que a vegetação tornava-se mais densa e perigosa para a extremidade da descida. Em pouco tempo, perdeu o controle dos movimentos.

Primeiramente, ele sofreu alguns cortes e arranhões devido aos espinhos das rosas. Em seguida, rolou pelos galhos até chegar ao local onde o barranco era mais íngreme, o que favoreceu a velocidade dele ao despencar. A escuridão e o balanço tornavam o colapso desesperador. A forma rude como seu corpo rolava refletia o descontrole total.

Após alguns segundos de queda, a ladeira chegou ao fim e o movimento foi interrompido. Doto acabou preso no galho de uma árvore através da alça do saco que carregava. Então, ainda suspenso no ar, sustentado pelo peito, voltou a seu estado normal de consciência; a confusão havia terminado.

Ao abrir os olhos e focar sua visão lá de cima, se deparou com uma imagem assustadora: um ser alado o observava quarenta metros à frente. Nesse momento, já estava escuro, o que dificultou a sua percepção. Porém, ficou claro que o indivíduo possuía asas, semelhantes às de Deplório e de Tuí. Provavelmente, ele era um dos cavaleiros do Norte, esperando a hora certa para atacá-lo.

E antes que ele pudesse ter qualquer reação, o galho que o segurava se partiu, levando-o ao chão. Na queda ele torceu o pé esquerdo e caiu de costas no chão. O buraco era fundo e largo, com muito barro úmido e pegajoso, devendo ter pelo menos cinco metros de pro-fundidade. Doto permaneceu algum tempo imóvel e logo começou a sentir algumas patas caminhando pelo seu corpo. Ali havia um ninho de tarântulas venenosas que surgiam de muitos buracos no barro.

Quando Doto forçou a vista sobre seu peito, percebeu que es-tava coberto por muitas delas e, em poucos instantes, sentiu picadas pelas pernas e coxas. E apesar da dor no pé torcido, ele se levantou e subiu as paredes da toca desesperadamente, atolando seus pés e suas mãos na terra. Ao sair do buraco, se sacudiu e tirou a camisa para que pudesse espanar seus membros, ainda infestados de aranhas.

Instantaneamente, as picadas causaram dor e ardência, gerando um desconforto que o fez se arrepiar. Para tomar distância daquele ninho, Doto andou para longe, descendo mais ainda no terreno. O relevo era definido por plataformas que pendiam para um matagal cada vez mais denso e emaranhado, o que dificultou o deslocamento de Doto.

Como ele havia saído às pressas, deixou para traz a camisa e os sapatos que atolaram na lama quando ele escalou as paredes da toca. Pôde, no entanto, trazer nas mãos a adaga e a sacola com o mapa dentro. Tinha ainda no rosto o reflexo perturbador e assustado de um homem confuso, andando às cegas.

A ausência de luz impedia que ele tivesse cautela ao pisar, as-sim seus pés esfolaram-se em galhos, espinhos e pedras que revestiam o solo. Logo, o sangue se espalhou pelo chão e marcou aquele momento na mente de Doto.

E somaram-se àquela dor os primeiros efeitos do veneno das tarântulas. Sentiu queimação pelo corpo todo e muita dor nos lo-cais das picadas. Em poucos momentos, seu organismo sucumbiu e veio a baixo por ação da gravidade, pois a conjuntura dos sintomas afetou seu equilíbrio. Seu corpo despencou novamente ladeira abaixo, cambalhotando rapidamente pelos galhos pontiagudos e hostis. Dessa vez, por estar lúcido, distinguiu cada instante da queda, que progredia como o arrastamento de uma onda forte no mar, em que não se pode conter o movimento.

Ele caiu bruscamente naquela descida e apenas foi freado por uma porção de rochas que se formavam às margens de um rio turbulento. Acabou, pois, estacionado na beirada, deitado de bruços, com o rosto voltado para baixo e os braços torcidos sob seu tronco. Apesar do grande sacolejo, a adaga e a sacola acompanharam seu deslocamento e pararam próximo a seus calcanhares.

A imagem era depreciadora e feria os olhos de quem visse. Era uma cena forte, pois Doto tinha os pés ensanguentados, as pernas inchadas, as costas e o peito ralados e o corpo todo bastante arranhado e ferido. E de algum lugar não muito próximo, podia-se ouvir o som de cascatas, o que fazia com que o camponês se sentisse parte daquela natureza perigosa.

Ele havia desviado seu caminho em mais de duzentos metros de terreno íngreme, tudo o que via eram muitas árvores e as rochas que constituíam o leito das águas. Estava desorientado e sua capacidade física o impedia de raciocinar para buscar uma solução.

Insólito ficou um bom tempo imóvel para conseguir forças e se levantar. Confuso e desnorteado, ele decidiu olhar o mapa para tentar localizar o rio ou qualquer outro rabisco que pudesse representar o caminho de casa. Apanhou, assim, a adaga, colocando-a na sacola e a amarrando a seu tronco. Ainda de pé, focou o mapa para entendê-lo melhor, mas teve uma sensação esquisita, algo como uma tontura e visão embaçada. Guardou o mapa, esfregou os olhos e foi se consumindo pela vertigem.

Por um desprazer muito grosso do destino, ele sentiu, em se-guida, um mal-estar furioso que o fez vomitar e colocar-se de joelhos sobre a pedra. A ânsia violenta o fez espargir tudo o que havia comido, depois, sangue em quantidade pequena. Iniciava ali o quarto grande estímulo.

Uma pressão exorbitantemente forte agiu sobre seus olhos e sobre sua cabeça, adicionados a um quadro visual bastante atípico. Viu tudo a seu redor vibrar, assumir uma projeção dupla e confusa, estremecer, e tornar-se cinzento, até o momento da escuridão plena, quando seu corpo despencou da pedra para a água.

Ele caiu praticamente inconsciente, mas teve sua lucidez de volta quando afundou, pois bateu as costas em uma rocha pontiaguda no fundo do rio, que rasgou sua pele em um corte de um palmo. A nuvem avermelhada de sangue diluído que surgia indicava a gravidade do ferimento.

Doto sofreu cada impulso nervoso do acidente, pasmado de dor. Infelizmente, nada pôde fazer no momento, em virtude da correnteza forte que o levava para a jusante do rio, afogando-o. A agonia, o medo e o desespero fizeram-no acreditar estar próximo da morte.

Conseguiu respirar poucas vezes em meio ao balanço do rio e sentiu que seus pulmões logo cederiam. Mas, sob o último raio da esperança, Doto agarrou uma raiz na margem oposta e dela se utilizou para chegar à terra firme.

Foi um julgamento do destino que, para Doto, deveria ter um propósito. Esteve a um fio do padecimento e, de forma surpreendente, sobreviveu, arrastando seu corpo para fora da água e trazendo consigo as marcas daquele episódio.

Suas costas sangravam incessantemente e seus pés ardiam por conta dos furos, cortes e arranhões; suas canelas e coxas ainda continuavam a inchar nos locais das picadas, provocando roxeados na pele. O saco de pano com o material ainda estava atado a seu corpo.

A noite berrava sua raiva através das cascatas do rio e impunha-se pelas estrelas incandescentes. Ele fora da rosa para farpa e da farpa para pedra. Parecia que não era bem-vindo ali e seria exterminado pela natureza. A confusão que os colapsos imprimiram gerava delírios e fantasias mentais a ponto de sentir-se perturbado e partir temendo que as árvores ao redor o esmagassem.

Ignorou sua dor e seguiu para a penumbra, adentrando os galhos da floresta cegamente. E via seu corpo sendo envolvido pela noite, cambaleando desnorteado.


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Notas finais do capítulo

Por questões contratuais, posso apenas disponibilizar 25% da obra em plataformas de leitura, como degustação. Se desejarem continuar a leitura acessem https://luvaeditora.com.br/product/ilounastia/ ou entre em contato através do e-mail lunelerelias@hotmail.com.



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