Quando você se foi escrita por ImDisappointed


Capítulo 1
Quando chegar a minha vez


Notas iniciais do capítulo

Esse é o resultado final depois de reescrever a primeira versão da minha antiga fanfic Quando você se foi.



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George acordou mais uma vez com fortes dores de cabeça.

Os olhos claros já cansados demoravam para focar, atrapalhados com a luminosidade da luz da lua. O suor molhava a enrugada tez e os dedos trêmulos da velhice seguravam sem firmeza o pedaço de pano branco que usava para se secar.

Era madrugada de um dia veranil do ano de 2065 e, mesmo de noite, estava um calor anormal para a região. O que poderia talvez explicar o mal estar do senhor que bebia as pressas a água do copo e apalpava o lugar ao seu lado buscando por Angelina e que, há anos, já estava vazio.

Mas a bem da verdade era que o calor não tinha tanto efeito e nenhuma doença abatia-se sobre o senhor. Bem, talvez se corações carregados e pesados de saudade fosse considerado uma doença, então sim, George Weasley estava doente.

A saudade que sentia dos filhos já distantes, que agora possuíam suas próprias proles. Da falecida esposa, que partiu tão vivaz e satisfeita. E do seu tão adorado irmão, seu parceiro de crime, de quem nunca George fora capaz de se despedir adequadamente. A saudade afundava seu coração em seu peito, pressionando seus pulmões e extraindo quase todo o ar de seu corpo.

E era por conta disso que, desde que se lembrava, ele costumava acordar assim. Sem folego.

Com o peito queimando em saudades, seus dedos tamborilaram na colcha e a memória de algumas fotografias se fez presente em meio as dores de cabeça.

Por isso, quando sua respiração e sua visão – apesar das dores ainda presentes – pareceram se normalizar, George decidiu se levantar. Um pouco ranzinza e murmurando xingamentos, ele desceu da cama e calçou um par de chinelos. E, sem nem dar uma leve espiadinha na bela paisagem, ele passou direto pela janela em direção ao guarda-roupa.

Ele abriu a porta e ficou perigosamente na ponta dos pés para alcançar a ultima prateleira e, assim pegar uma caixa que há tanto tempo ficou guardada.

Já com o tesouro em mãos e o guarda roupa fechado, ele se virou para seguir o caminho de volta para a cama. Porém, o brilho da lua entrando pela janela foi refletido no velho e grande espelho da sua falecida esposa que permanecia no canto do cômodo e acabou por trazer à tona aos seus olhos a imagem envelhecida de si próprio. 

Era velho, disso ele tinha conhecimento. Ele sabia reconhecer em si sua velhice e isso não o incomodava. 

O seu estranhamento estava em como envelhecera.

A idade veio para George desacompanhada e juntos eles seguiram caminho, sozinhos.

Mas maior ainda era o estranhamento quando tinha de encarar a velhice – dessa mesma maneira como fazia naquele instante ao se encarar no espelho e ver a flácida e enrugada pele do rosto – e questioná-la o porquê a idade não trouxe consigo seu tão idêntico irmão.

Fred tinha sido um para os quais a velhice não fez companhia e isso lhe queimava os ossos por saber que para seu parceiro de crime, a idade acenou em despedida e não para chama-lo. E para George, apesar de tantas conquistas, parecia natural se arrepender dos anos que viveu a mais que seu irmão.

Os olhos vazios se desviaram do vidro e a face que tentava se manter indiferente fez uma careta ao tentar subir na cama sem ajuda das mãos.

Ao abrir a caixa, diversos movimentos saltaram aos olhos do homem que um dia fora ruivo. Por uns instantes ele se perdeu nas fotos de seus filhos com seus netos e de sua esposa. Cada imagem que se passava era um passo numa linha do tempo que corria inversa, indo até o passado. Não demorou que ele encarasse fotos dos falecidos pais e do irmão.

Ele, em nenhuma das fotografias que possuía, estava distante do irmão. Os gêmeos estavam sempre abraçados e rindo. Ás vezes Molly saltava para dentro de uma foto ou outra e os rapazes, geralmente sujos e risonhos por razão de uma travessura, apanhavam da mãe, mas permaneciam sempre juntos. Sempre.

A falta de ar se intensificou e lágrimas rolaram devagar pelo rosto. George se acostumara a situações como aquela. A dor causada pela saudade era agora sua melhor amiga e os rios que se derramavam de seus olhos eram seus oásis, lavando a sua alma enferrujada.

Com a visão embasada, não demorou muito para que o senhor chegasse ao fim da caixa e, entristecido por não ter mais fotos com o irmão, ele notou a presença de pergaminhos velhos e uma cartela da primeira versão de vomitilha que ele e seu irmão haviam desenvolvido.

Ele abriu os dois pergaminhos que estavam no fundo da caixa e, abandonando ao seu lado o que estava em branco, encararou as duas palavras escritas no outro pedaço.

Oi Fred,

Meio despreparado, George se lembrou o que era aquilo e desenterrou do fundo da fraca memória o enterro do irmão.

 

Naquele dia, bem no instante em que o caixão contendo seu irmão começou a descer, George havia aparatado – sob os protestos da mãe – para próximo d’A Toca, se afastando assim do enterro. Ele não era capaz de assistir a terra ser jogada sobre o irmão.

Enquanto caminhava para a casa, os pensamentos turbulentos do ruivo gritavam por cima das memórias que ele tinha de Fred - que se repetiam constantemente em sua cabeça - sobre o quanto ele não fora capaz de proteger o irmão, de como ele não pode se despedir devidamente e de como não conseguia se lembrar das ultimas palavras trocadas entre os dois.

O jovem George, naquele dia, entrou no quarto que dividia com o irmão e, despedaçado por dentro, cambaleou entre os móveis até achar uma pena e pergaminho. Ele precisava se despedir.

A mão trêmula mergulhou a ponta da pena na tinta e manchou o pergaminho. Eu preciso dizer adeus, pensou consigo mesmo. Fungando, George girou o pulso escrevendo com seus garranchos o início de uma carta. Eu preciso. Seus olhos arderam e a memória do irmão morto interrompia a formulação de qualquer que fosse a frase. Os soluços queimavam a garganta e o rosto doía ao expulsar as lágrimas. Sem forças para continuar, ele apenas deixou para trás a pena e se sentou no chão, apoiando a cabeça no colchão. Ele precisa, pensou por fim, Fred merecia uma despedida.

Mas George foi incapaz, durante muitos anos, de dar adeus.

 

Com um soluço, o senhor voltou para a realidade e abanou a cabeça tentando tirar a memória dolorosa de si. Saber que, mesmo que tivesse a chance, ele ainda não conseguiria deixar o irmão ir era sufocante.

Ele pegou os pergaminhos e encarou as letras desformes que iniciavam a carta. Ainda era viva a sensação constante de não estar fazendo algo que deveria, porém, era mais fácil no fim ignorar do que realmente realizar a tarefa. A difícil tarefa de deixar ir.

Ele negou com a cabeça. Não, não conseguiria. O momento já tinha passado, repetia para si mesmo. Mesmo que sentisse no fundo da alma que em sua vida, para Fred – para falar do irmão, para lembrar e honrá-lo – ele sempre teria mais tempo.

Um velho pensamento retornou e logo os dedos enferrujados abriram a primeira gaveta e tiraram um estojo com uma pena e um tinteiro, do qual a tinta já começava a secar. Fred merecia uma despedida.

Ele encarou o pergaminho, não como fizera da primeira vez. Ele estava mais calmo e as memórias com Fred já não giravam em sua cabeça com um furação de caos e desconforto.

As articulações doloridas não permitiam pressa, mas assim que George conseguiu superar a barreira que havia colocado em seus sentimentos, as palavras fluíram e logo as folhas estavam preenchidas.

...

Oi Fred,

Antes que eu comece só prometa que não vai caçoar de mim depois que ler.

Bem, como começar essa carta sem parecer fraco? Sem parecer que, por mais que eu diga que meus sonhos já não são invadidos com tua imagem morta no chão, eu ainda me prendo ao passado - mesmo esse já tão distante - e que ainda choro algumas noites?

Gostaria de dizer que me lembro de como era o brilho dos seus olhos, ou a forma como sua boca se contorcia ao rir, mas eu não me lembro.

Depois que se foi, descobri um lado que nunca esperei surgir em mim, justo em mim. Eu deixei de ser um dos gêmeos que alegram, para ser aquele que já não demonstrava tão facilmente um sorriso. Eu... nós, deveríamos alegrar e não o contrário, mas foi isso que aconteceu. Eu, constantemente, precisava de mais uma bronca, ou mais um dos tenebrosos puxões de orelha da desgostosa Molly Weasley. Mas tudo isso tinha de ser com você para valer a pena.

Por fim passei a vida desejando ter mais um abraço, mais uma travessura.

E por mais que sejamos gêmeos, eu nunca pude realmente te ver em meu reflexo e nunca pude realmente te achar em mim. Isso foi a parte mais dolorosa. Não ter nada que suprimisse a dor de você ter ido, e isso me matou um pouco todo dia.

Me perdoe irmão, mas eu não busquei por você. Pelo menos não como eu deveria.

Desde o dia em que saí do seu enterro, eu não me ajoelhei em frente a tua lápide e chorei na sua frente.

Minha fraqueza não me permitiu fazê-lo, e mesmo que devesse isso a você em nome do tempo que tivemos, eu não o fiz.

Eu sei que jamais conseguiria ir até teu túmulo e dizer adeus como deveria.

Peço que não me culpe por isso, pois eu não estava preparado para te perder. E como poderia eu estar preparado? Nascemos e crescemos juntos. Não houve sequer um dia da nossa história em que eu me pensei existindo sem que você estivesse ao meu lado. Fomos gerados ao mesmo tempo e, portanto, deveríamos morrer ao mesmo tempo. Não houve um instante em que eu temi te perder porque a possibilidade de que isso acontecesse sempre foi nula. Bem, eu ao menos achava que era nula.

Meu irmão, como fomos tão tolos em acreditar que seríamos inseparáveis.

E foi por isso que eu fugi de toda e qualquer memória que me lembrasse que estava morto. E consequentemente, eu fugi de mim mesmo. Me esgueirei por entre espelhos e me neguei a encarar meu reflexo.

E mesmo quando o fazia, mesmo quando a saudade me obrigava a buscar por ti em meus próprios olhos, eu ainda não era capaz de te ver.

E ao me observar eu fantasiei diferenças físicas que nunca existiram, marcas que te tirassem de mim e o materializasse na minha frente. Mas não era possível, eu ainda não conseguia te trazer até onde eu estava.

Confesso que já tentei tornar o seu sorriso meu, para assim talvez preencher o buraco que tua ida causou a toda nossa família e em mim, mas era doloroso demais me olhar no espelho e tentar me tornar alguém que, tão ironicamente, era único.

Esse pergaminho - que nunca poderá segurar - esteve por muitos anos junto as marcas de nossos momentos, acompanhando a felicidade dos anos que vivi a mais que você e esquecidos sob uma vida que nunca será sua.

Perdoe-me irmão por só retornar agora. Por colocar minha vida acima desse adeus e por ignorá-lo.

Durante minha vida eu me neguei a aceitar que vivesse apenas em mim e em minha memória Fred, porque isso seria como admitir que você tinha partido. E isso eu nunca poderia fazer. Eu me agarrei a ti e neguei tua ida.

Porém, quando olho para meus filhos eu vejo neles a força que eu não tenho - a força de conviver com sua memória de forma feliz - eu consigo encontrar um pouco de paz.

Eu me pergunto irmão se, quando viu que não poderia viver em mim, você decidiu se tornar parte dos teus sobrinhos.

O mais velho - Fred II - é como você, ruivo e brincalhão. Ás vezes completa minhas frases, e chego a sorrir em ver que ele honra o nome que tem, e só nos olhos dele pude achar o brilho que os seus continham.

Minha menina é como a mãe e tem o meu senso de humor que com o seu sorriso combinam bem, e os dois agem como nós, inseparáveis. E nada me agradou saber que justo minha docinho tinha herdado tua safadeza e riso malicioso.

Talvez tenha sido eles quem me ensinaram a sorrir de novo. Por isso eu agradeço por todas as experiências que tive contigo.

Mas mesmo assim, mesmo sabendo que isso deveria ser uma despedida, um sinal de que já não me apego aos momentos que não pudemos partilhar. Ainda é difícil irmão, e doloroso dizer adeus. Mais do que pensei que seria quando comecei a escrever.

Eu falhei mais uma vez em te deixar ir. Meu medo é gritante quando se trata de te perder. Então eu transformo isso em um até logo, é mais confortável assim. Me faz sentir como se você não tivesse ido para um lugar tão longe. Me faz fantasiar que ainda somos jovens e que essa dor nunca substituiu as risadas de quando a vomitilha ainda estava em fase de testes.

Por isso acho que me resta dizer apenas que, por hora, isso parece o suficiente para mim.

Meu tempo está acabando, eu sinto e por isso digo que logo irei com você. E prometo que a velhice não me acompanhará desta vez.

Eu te amo e sinto tua falta como nunca senti antes.

Da sua aprimorada e melhorada cópia, George Weasley.

 ...

George desceu da cama e mesmo com dores no peito, ele empurrou as janelas de vidro do quarto, buscando por ventilação. Ao olhar a rua, ele observou o leve balançar dos galhos das árvores. Seu olhar se voltou para a cama, e com a cartela de vomitilhas na mão, ele pousou sua carta no criado mudo e se deitou.

Olhando para o canto do quarto, já quase transportado pelo sono, ele fitou o discreto espelho – que por tanto tempo temeu olhar – e, ao ver a figura de um velho tão parecido com o irmão, pode enfim sentir que as dores em seu peito já não eram assim tão fortes como antes.


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Notas finais do capítulo

Espero ter feitos vocês, ao menos, derrubar uma lágrima!

Obrigada por terem lido ❤



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