Semente Tayla escrita por ADivas


Capítulo 4
Capítulo 4


Notas iniciais do capítulo

Boa noooite!

Depois do capítulo passado, acredito que esse vai ser um tanto mais leve.

Provavelmente vocês perceberam que a história não segue exatamente uma sequência cronológica, e vai ficar ainda mais claro com esse capítulo de hoje. Esse vai e vem no tempo faz parte do jogo do enredo, porque aqui e ali revelo algumas coisas que serão muito importantes nos capítulos mais a frente.

Boa leitura!



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Aquela seria a primeira intervenção de Olívia no projeto. Havia conseguido reunir algumas frutas e verduras que sobraram do restaurante, mesmo que em sigilo. Já podia se imaginar sendo algemada se os seus patrões ao menos desconfiassem que estava levando sobras, mesmo que quase estragadas, para casa.

Os irmãos Vilar, gêmeos, dividiam as responsabilidades administrativas do restaurante. Comércio que era passado de geração a geração, era bastante significativo para eles. Não eram exatamente pessoas más, mas se preocupavam em demasia com a reputação. Saber que algum dos seus funcionários estavam envolvidos com projetos considerados ilegais pelo governo seria motivo de demissão na certa.

Imagina se soubessem que agora seriam três.

José, de longe, era a pessoa mais amável daquele estabelecimento. Os olhos traziam uma dose de sofrimento com empatia. A pele negra refletia bem na camisa preta, com calças folgadas brancas, uniforme oficial do local. O próprio homem acreditava que ainda estava empregado para que o restaurante pudesse agradar também os rebeldes – discretos, porque a revolução de muitos era sigilosa. Acreditava que os Vilar o usavam como uma maneira de dizer que não eram preconceituosos. Olívia discordava. Embora conhecesse os donos do lugar a menos tempo que o próprio José, conseguia enxergar que havia afeição por parte destes para o segurança. Talvez estivesse certa, ou talvez fosse a boa atuação dos Vilar que a tinham pregado uma peça.

Sérgio havia sido contratado alguns dias depois de Olívia. Era mais jovem que a garota, o corpo comprido e magrela, uma barba rala, que mais parecia que o garoto havia cortado seus pelos pubianos e colado no rosto. Sérgio havia tido um pouco de dificuldade para se adaptar a rotina de garçom. Um tanto quanto desajeitado, confessou à jovem que tinha habilidades maiores para materiais eletrônicos. Porém, na realidade a qual o Brasil se encontrava, os mais sofisticados aparelhos eram pertences apenas da burguesia. A escolha era comer ou comprar luxos. Como a segunda opção não mantinha as pessoas vivas...

Olívia também tinha separado algumas roupas para fazer doações. José havia comentado que todos os participantes eram totalmente carentes e qualquer doação era sempre bem vinda. Sérgio havia imitado a garota e separados algumas bermudas.

— E o que você faz exatamente lá no restaurante?

Era Tayla. Seus olhos negros contemplavam Olívia enquanto uma garrafa d'água prendia seus lábios. A garota branca a imitava, bebericando um pouco de água também.

Havia acabado de terminar sua apresentação. Como uma maneira de apresentar os novos integrantes e aliados do projeto aos participantes, José havia proposto que Olívia e Sérgio fizessem uma intervenção ligada as suas áreas. Olívia acreditou que falar sobre a importância de consumir frutas e verduras era uma boa. Assim, preparou uma pequena palestra sobre o assunto. Podia ver os olhos atentos das mães e pais, mas o tédio estampado no rosto das crianças. Não tinha como ser tão diferente, já que eles sabiam que logo após haveria aula de defesa pessoal com José. Óbvio que eles iam querer ação.

— Eu sigo a regra: mulheres na cozinha! – Olívia respondeu, revirando os olhos, demonstrando sua indignação.

Ela e Tayla estavam próximas a mesa que guardava as coisas que seriam doadas naquele dia. Toda a atenção do lugar estava vidrada em José, que estava no centro de um grande grupo de pessoas, formando um círculo, dando dicas de como derrubar um potencial inimigo que tentasse prejudicá-los rua a fora.

— É meio que dois em um: eu faço as dietas balanceadas dos clientes mais pomposos e não só isso, eu mesma cozinho para todo os clientes. Mas o salário é um só – O pesar estava altamente presente na voz da jovem – Foi o único trabalho que consegui até então.

As portas do mercado de trabalho abriam muito mais rápido para um homem. Se fosse branco, então... Olívia havia escolhido a Nutrição porque sabia que, dentre as profissões que ainda eram consideradas legais e importantes aos olhos do governo, esta, a possibilitaria um campo vasto de oportunidades.

Com seis meses de formada, começava a achar que estava errada. Para ingressar no campo da saúde era quase restrito à população masculina; na área em que morava, trabalhar como nutricionista particular seria uma utopia, uma vez que o público mal tinha dinheiro para comprar comida, quem dirá, para pedir cardápios de dieta saudável. Realmente, o que havia lhe restado eram os restaurantes, local em que, praticamente todos, as mulheres eram aproveitadas como cozinheiras.

Para uma mulher ingressar em cargos medianos ela precisaria ser ultra mega maravilhosa no que fazia, torcer para que nenhum homem com parentes ligados aos militares disputasse a vaga e deveria ser branca. Para cargos altos: só em sonhos.

Tayla observou o desgosto no rosto de Olívia e acenou a cabeça. Não disse nada, embora a expressão do seu rosto demonstrasse que havia uma chuva de palavras passando por sua mente. Seus olhos não pareciam enxergar o que suas pupilas refletiam, e sim, algo que Olívia não parecia conseguir ver. Desviou o olhar para o grupo de pessoas que praticavam os golpes da aula em dupla, mas quase podia sentir aqueles olhos negros pairados em si.

— Eu acho que disse isso antes, na primeira vez que veio aqui, mas algumas coisas são interessantes de se repetir – Tayla falou, apoiando uma das mãos na grande mesa. Olívia voltou seu olhar para a jovem, mas o dela, já estava nas crianças com José – A gente oferta mais do que comida aqui. Ou roupas, ou esportes. Estimulamos sonhos e damos esperança para essas pessoas. Já pensou que horrível viver em um mundo em que ninguém acredita no seu potencial ou prega que você é inferior ou que nada vale?

A expressão de Tayla se moldava a cada palavra. Em minutos, seu rosto apresentava dor, pena, alegria, orgulho, medo, esperança. Todos esses sentimentos refletidos em uma única fala prendeu Olívia. Era como se começasse a sentir que uma bolha nascia em volta das duas, ansiosa para que houvesse mais um pouco de discurso bonito. Melhor: uma visão de mundo invejável.

— Um ato muito nobre – Respondeu, tentando jogar em seu tom de voz toda a admiração que estava sentindo.

— Mas não é só para as crianças, sabe? Nem para os pais delas. É pra gente também! É pra mim! Às vezes quando eu penso que o mundo não poderia ser mais nojento e cruel, quando eu quase paro de crer no que eu acredito, me obrigo a lembrar daqui, desse espaço. O futuro depende da gente, e com gente, eu me refiro a qualquer pessoa que está respirando agora. Se não dissermos para essas pessoas que elas podem, que tem valor e que devem lutar por elas mesmas, quem vai fazer isso? O governo? Esse governo que nos reprime, maltrata, ridiculariza, torce pra que a gente morra e nos chama de aberração?

Naturalmente, Olívia engoliu em seco. Sentia como se uma bomba de ar estivesse ligada ao seu corpo, mas ao invés de soprar ar, introduzia força, fé e esperança. Quem era aquela menina capaz de injetar tudo isso só de uma vez?

— Está vendo aquela menina? – Tayla perguntou, apontando discretamente para uma garota que devia ter no máximo dezesseis anos e derrubava um garoto claramente mais velho no chão, sem dificuldades – O nome dela é Eloísa e eu não estou exagerando quando digo que essa garota é boa em tudo o que faz! Caso um dia, por algum motivo, eu tivesse que deixar de dar as aulas de capoeira, eu confiaria nela cegamente para administrá-las. De longe, a minha melhor aluna. Mas sabe em que a Eloísa realmente se sente plenamente realizada? Na dança. É uma bailarina e tanto.

Olívia escutava os elogios de Tayla, enquanto tentava imaginar aquela garota com um tutu. Eloísa tinha a pele um tanto quanto mais clara que a de Tayla, os cabelos pintados em um ruivo avermelhado, presos em um coque. Tinha a expressão muito concentrada enquanto conseguia se desvencilhar de sua dupla, que tentava agarrá-la.

— Mas analisando pelos olhos desse governo podre que vivemos, quais as chances da Eloísa conseguir algum futuro como dançarina? Não é branca, é mulher, mora em uma área que é considerada periferia...

— Além do que a dança, já em si, é quase considerado um ato de vagabundismo, né? – Olívia interrompeu, sabendo onde Tayla queria chegar. A jovem ainda não conhecia exatamente Eloísa, mas essa pequena conversa analítica da qual estava tendo com Tayla, já a fazia temer e ficar magoada com a realidade da adolescente.

O Ministério da Cultura havia sido extinto. Grupos de dança, vistos com péssimos olhos, caso quisessem existir teriam que ser patrocinados por empresários particulares, independentes do governo. Alguns ritmos de dança, como funk, hip hop ou qualquer dança de rua já haviam entrado para as restrições e ilegalidades, abrindo margem para que tais dançarinos fossem presos se pegos pelas autoridades.

— Só eu sei o tanto de ódio que acumulo por esse governo. A gente sofre tanto por causa deles, que eu me recuso a ser mais um ponto de extermínio de esperança dessas pessoas – Tayla falou.

Quase como se soubesse que estava sendo o assunto principal, ao longe, Eloísa desviou os olhos para as duas mulheres. Instantaneamente um sorriso meigo apareceu em seus lábios. Deu uma leve acenada com a mão e voltou a atenção para a aula de José

— Eloísa tem um talento extraordinário e eu não quero que ela desperdice isso. Nem ela, nem ninguém aqui. Eu quero que ela acredite e lute pelo o que ela é, e pelo seu futuro. Se não temos alguém de que exalte nossas potencialidades, vamos nós mesmos nos exaltar – E nesse instante, Tayla voltou os olhos para Olívia. Foi a primeira vez que os olhos negros e acastanhados tiveram realmente uma ligação. A mão de Tayla se ergueu, pairando no ombro de Olívia em um aperto que mais parecia um afago – E eu quero que você acredite em você também, Olívia! Eu preciso de vozes com autoconfiança aqui. Preciso de gente que saiba que pode chutar as regras do governo. Que, se eles tem armas e todo o tipo de tecnologia, nós temos nossa voz, força e capacidade de fazer além. Pode parecer pouco, mas toda grande revolução começou justamente com um pouco de barulho.

Aquelas palavras a atingiram como... Ela nem mesmo tinha uma metáfora para isso. Não queria ter ficado com a boca entreaberta nem os olhos marejados, mas esses são os tipos de coisas que as vezes não tem como controlar.

— Além do que, você tem algumas vantagens a mais aqui: é branca e tem diploma – Tayla completou, dando um sorriso alargado. Baixou sua mão, os dedos deslizando com cuidado pelo antebraço de Olívia, antes de dar as costas para a menina e se voltar para o grupo de pessoas que começavam a se deitar no chão em busca de descanso, gritando – Eu não acredito que esse povo já está cansado! Tá na hora da capoeira!

Logo, um número reduzido de pessoas foi começando a formar um círculo outra vez no centro do saguão. Olívia começou a se aproximar lentamente, sentindo um peso diferente em sua existência. Quando aceitou o convite de José, sentiu que poderia fazer diferença na vida das pessoas que mais precisavam, mas não imaginava o quanto.

Tayla começou a se alongar sobre o tatame, ao centro, enquanto deixava seus alunos respirarem um pouco. Alguns tinham o rosto suado e corado devido os movimentos da aula anterior. Olívia observava a elasticidade de Tayla, antes de perceber outra pessoa adentrar o centro da roda.

Uma mulher um tanto mais alva que Tayla começou a alongar os seus braços, os olhos presos na professora, enquanto um sorriso começou a brincar em seus lábios finos. Diferente de qualquer pessoa que ia praticar capoeira, ela vestia um short jeans curto, e não um de tecido mais leve, como os outros. Os cabelos negros, antes soltos e batendo em sua cintura, agora estavam presos em um coque bem alto. Bonita, mas o que havia realmente chamado a atenção de Olívia foi que, anteriormente, desde que chegara ao saguão, a mulher não se separara de um menino que deveria ter um pouco mais de um ano. Este, inclusive, era sua cópia fiel, com exceção dos cabelos que, ao invés de lisos, eram amplamente cacheados. Agora, o menino se encontrava nos braços de Eloísa, contorcendo-se para ir para o chão, enquanto a adolescente pedia para que se acalmasse.

— Acha que eu vou passar muita vergonha depois de tanto tempo, professora? – A mulher perguntou, a voz de veludo. A voz de quem está flertando.

— Opa, duelo de titãs! – José se animou, batendo palmas e pegando o berimbau, pronto para tocar o instrumento. Sua fala atiçou as outras pessoas do local, ecoando gritinhos e aumentando o número de pessoas que se reuniram para ver o que estava acontecendo.

— A capoeira, estando no sangue, não abandona os seus – Tayla respondeu, tanto entusiasmo na voz quanto a energia que cercava a roda.

As duas mulheres se aproximaram, deram as mãos, saudando-se, e se afastaram com alguns passos para trás. José começou a brincar musicalmente com o berimbau, puxando a letra de uma música com sua voz mansa, que logo recebeu o acompanhamento em coro das outras pessoas que assistiam. Estes, acompanhavam o momento com um bater de palmas também.

As duas garotas gingavam, se movimentando e se defendendo em um para lá e para cá. Logo, ataques com os pés começaram a cortar o ar, enquanto a outra se defendia com uma esquiva bem pensada. Olívia achava os movimentos tão bem executados que era quase impossível acreditar que não haviam sido ensaiados.

A outra mulher, por vezes, parecia muito próxima de acertar Tayla, que se abaixava, elasticamente, e mais rápido do que o medo de Olivia de alguém se machucar, já estava em pé. Tayla vez por outra atacava com movimentos com o pé, chutando-o para frente, mas astutamente, a outra usava uma boa esquiva.

Foi em um chute que parecia impossível de se safar, executado pela outra mulher, conduzindo a perna por cima do corpo de Tayla, que já se abaixava, que essa, envolvendo as próprias pernas com as da adversária, conseguiu jogá-la no chão.

Tayla, sentada no tatame, prendia as pernas da mulher, envolta das próprias, enquanto a outra ria, a bunda no chão. Os gritinhos de vitória soavam pelo saguão, vibrando pela bela partida. Tayla, suspirando, mas com o sorriso de um tamanho até então nunca visto por Olivia, soltou sua presa e se levantou, logo oferecendo sua mão para ajudar a outra a levantar.

— Não foi tão mal, né? – A mulher perguntou, ainda no chão e segurando a mão de Tayla. Ambas respiravam com dificuldade – Depois de parir um menino, e sei lá, um tempão sem prática.

— Foi ótima, Vanessa! – José aprovou. O homem tinha o rosto iluminado, assim como a maioria das pessoas que estavam na roda – A Tayla que é uma amostrada, não sabe maneirar.

— Ela sempre foi muito boa com essa coisa de tesoura.

Nesse ponto, ambas já estavam de pé. Depois da fala de Vanessa, as duas se olharam de uma maneira diferente. Cúmplice. O tipo de olhar que revela que muito mais que uma conexão de olhos, tem algo além. Talvez segredos, talvez memórias. Sentimentos, talvez.

Olívia sentiu as bochechas corarem. Havia uma piada muito interna na fala de Vanessa e não teria como passar despercebida por uma mulher lésbica. Essa coisa de tesoura.

Seu gaydar não era tão bom, na verdade, ela achava que ele nem funcionava. Nem teria apitado se não percebesse toda aquela tensão sexual que estava havendo no centro daquela roda. Tanto Tayla quanto essa tal de Vanessa eram bonitas e Olívia deixou o pensamento vagar para qual das duas gostaria de beijar. A resposta foi as duas, mas logo afastou tais pensamentos. Aquilo era a carência falando, já que desde que terminara a faculdade não havia ficado com mais ninguém.

Afastou-se um pouco da roda, tentando controlar o calor que já não se restringia só ao seu rosto.

Essa coisa de tesoura.


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Notas finais do capítulo

Minha ideia era colocar outras coisas bem importantes nesse capítulo, mas quando percebi o quão grande estava ficando, repensei melhor e decidi deixar para outro capítulo.

Críticas, sugestões e comentários são sempre muito bem vindos.

Abraçooos.



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