Semente Tayla escrita por ADivas


Capítulo 1
Capítulo 1




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Tinham tantos desejos selados pela esperança que temiam exceder a porcentagem permitida. Os dias eram marcados por acontecimentos tão caóticos que até mesmo a energia reservada para os sonhos tinha que ser exercida em uma quantidade razoável.

Naquele angustiante momento, o que mais torciam era que a gasolina fosse suficiente para conseguirem atravessar as fronteiras que os separavam das intermediações onde estava localizado o CCIS: Centro de Conversões dos Imorais Sexuais – instituição criada para métodos de estudos experimentais de indivíduos julgados como desviantes da normalidade sexual. LGBT+ eram encaminhados para tal instituto objetivando uma reeducação sexual para trazê-los de volta a normalidade. Anteriormente, pedófilos e estupradores também eram encaminhados para o mesmo local, mas com a recente aprovação da pena de morte para tais crimes, o destino de réus com essas acusações era o próprio óbito.

No carro, o silêncio era interrompido apenas pelo barulho do motor ou de qualquer outro som que estralasse na pista quente. Na direção, os olhos de Jotta não desviavam nunca do caminho a frente. De certo, Olívia sabia que os pensamentos do garoto deveriam estar a mil por hora. Ela mesma sentia a ansiedade formar um caroço na sua garganta.

Ansiedade, medo, raiva, tristeza. Os sentimentos anteriormente considerados negativos pela sociedade, nos tempos atuais passaram a ser vistos como animais de estimação de tão presentes que passaram a existir na vida dos brasileiros com menos condições de acessibilidade e aceitação.

Brasil, 2075. O país foi marcado por uma forte repressão dirigida a qualquer minoria, desde os pobres até os que não tem a tonalidade da pele considerada alva o suficiente. A elite branca se tornou predominante e a posição dos militares, em escala, ficou abaixo apenas do presidente e coligados partidários. A violência como forma de punição se tornou aceita e justificada perante a lei. Greves são consideradas desacatos aos governantes; protestos, formas sutis de terrorismo. Cidades consideradas pequenas e sem fins lucrativos para o governo foram destruídas com o intuito de gerarem, em seus solos desabitados, novas prisões – uma vez que havia uma superlotação em todo o país. As famílias que antes habitavam essas cidades, por vezes, foram fragmentadas e distribuídas pelas grandes capitais.

A tecnologia se tornou o ponto mais forte do país. Todavia, não uma tecnologia qualquer, e sim, uma tecnologia voltada à armas, formas de combate e ataque. A segurança se tornou o novo lema da propaganda eleitoral, embora ocultassem que a segurança não era um direito de todos. Aqueles considerados perigosos ou anormais tinham seus destinos trancafiados em celas.

Muitas escolas foram destruídas, e as que permaneceram também eram lideradas pelos militares. Houve a conversão de professores em soldados, para que, só assim, e sob rigorosa supervisão, pudessem ser autorizados a continuar dando aulas. Os conteúdos: pura ciência, sem nenhum toque de humanização ou matérias que poderiam levar ao pensamento crítico. As mulheres haviam voltado a ocupar cargos que se restringiam à cozinha e faxinas.

No carro, eram as vestes que protegiam Olívia e Jotta. Ambos trajavam camisas brancas com o símbolo da bandeira brasileira, cujo slogan exaltava, em latim, a pátria amada. Mas, verdadeiramente, eram seus jalecos que fariam as portas do CCIS se abrirem. Várias profissões haviam sido extintas: psicólogos, atores, sociólogos, assistentes sociais... Todos aqueles que poderiam contribuir com a chama da rebelião dentro dos brasileiros. Até mesmo os cantores só tinham permissão para cantar músicas permitidas pelo governo. O hit mais famoso, de certo, era o hino nacional.

Olívia havia escolhido a Nutrição. Jotta, a Enfermagem. Ambas profissões tinham carta branca para serem executadas, ainda mais se os nomes dos profissionais estivessem vinculados ao voluntariado do governo. Ambos estavam, mas nunca, em hipótese alguma, objetivavam serem servos do governo.

Olívia ousou afastar os papéis que tinha dentro do envelope que estava em seu colo, procurando a imagem que servia como seu carregador em momentos de quase desistência. Na foto, desgastada pelo tempo, uso e medo de ser encontrada, uma jovem mulata tinha um sorriso que combinava com os olhos ferozes. As olheiras profundas entregavam o cansaço causado pela resistência, e o cabelo, cacheadamente, era bem preso em um coque arrochado. Odiava, odiava profundamente, que os fios ocupassem seus olhos. Dizia ela que preferia seu olhar livre, e pela sua liberdade, escolheria sempre fitar os olhos amendoados de Olívia.

Tayla. Capturada por agentes do CCIS há dois meses. Operários militares haviam desenvolvido um aparelho chamado rastreador homossexual, que, uma vez apontado para uma pessoa, era capaz de detectar sua orientação sexual. Caso o dispositivo incendiasse a cor azul, tratava-se de um heterossexual; se rosa, homossexual, independentemente do sexo. A namorada de Olívia havia sido capturada quando voltava da padaria, local em que trabalhava, minutos depois do toque de recolher. Todos sabiam que a captura haveria sido feito de uma maneira ou outra, por causa da cor da pele da mulher, mas terem constatado que também era homossexual, só havia piorado a situação.

Mal sabem eles que, nós, homossexuais, já temos esse rastreador instalado na gente desde o nascimento.

Aquela havia sido uma fala de Tayla após o anúncio de criação do instrumento. O deboche era uma das suas maiores armas. Fechando os olhos, Olívia poderia ver a movimentação dos cantos dos lábios da garota enquanto bravejava, destilando todo o ódio que sentia do governo. Podia lembrar o cheiro dos cachos negros quando balançavam com o efeito do vento. Podia sentir o arrepio por todo o corpo quando suas mãos, em um encaixar de dedos, estavam conexas com as da morena, fazendo um misturar de suas tonalidades.

Que repúdio saber que havia sido capturada, justamente, por aquilo que debochavam! Que loucura ao saber da notícia! Que desespero, ao imaginar aquelas mãos perigosas sobre o corpo aventureiro de sua garota! Que força após a elaboração do plano de resgate! Que medo estava agora!

Jotta também tinha seu resgate particular. Heterossexual, mas militante pela causa, também sonhava em reencontrar seu irmão, capturado dias antes de Tayla pelo mesmo rastreador. Parceiros de causa, Jotta e Olívia se uniram e prometeram fazer até o impossível para retirarem quem amavam da prisão injusta do CCIS.

Como em qualquer momento da história, existiam os rebeldes. Alguns, mais temerosos que outros, preferiam agir na surdina. Assim havia feito Borges, um farmacêutico. Em segredo e para burlar os rastreadores, desenvolveu um antídoto para confundir o scanner do instrumento, fazendo com que um homossexual não fosse detectado. Garantiu a Olívia que funcionava por algumas horas, e portanto, pediu sabedoria na hora na ingestão.

Não havia uma parte sequer do corpo dos dois aventureiros que não estivessem tremendo, um efeito que só aumentou ao atravessarem os portões de acesso do CCIS. Olívia bebeu o líquido incolor, sentindo sua garganta ser umedecida, e quase vomitou, não pelo sabor, mas pela ansiedade. Pelo olhar, Jotta pediu que ela se apegasse a qualquer fragmento de calmaria que ainda estivesse presente em si.

O local seria apresentado por Heitor, um militar supervisor que havia estudado com Jotta. Infiltrado no CCIS, repassou informações para o amigo e se certificou de preencher o nome da dupla nos cargos disponíveis de suas profissões.

− Estamos no ápice do caos − Explicava Heitor, a voz cansada, enquanto instruía a dupla a vestirem os jalecos − Ontem houve uma rebelião aqui dentro, alguns prisioneiros fugiram...

− Vamos direto ao ponto, Heitor − Interrompeu Jotta, entregando a fotografia de um jovem loiro e magricelo, os olhos expressando a mais profunda tristeza. Olhos idênticos ao do próprio Jotta. Até um leigo associaria que era seu irmão.

− Prisioneiro 412. Ele está bem. Ainda não foi submetido a nenhum teste.

Diante da fala de Heitor, foi visível um acalmar instantâneo do enfermeiro. Assim, Olívia se apressou a repetir o ato do amigo, entregando a fotografia da namorada. No entanto, assim que o olhar de Heitor pousou na fotografia, sua expressão se solidificou.

− Espere. Sua namorada é a Tayla Menezes?

Heitor não queria gritar, mas a incredulidade se apossou das suas cordas vocais enquanto tirava a fotografia das mãos de Olivia.

− Tayla foi a responsável pela rebelião de ontem. Era a cabeça do movimento. Ela já estava sob processo de testes, e em todas as fases, mesmo exausta, gritava e xingava o governo e os militares, anunciando a resistência. Sua rebeldia afetou outros prisioneiros e isso aqui virou um inferno. Eles se organizaram, em um verdadeiro trabalho em grupo, e venceram alguns militares. Tayla quase conseguiu fugir também, mas... Eu sinto muito.

Como se tivessem arrancado sua sustentação, Olívia sentiu as pernas cederem. A imagem de Tayla com o punho erguido, invocando silenciosamente a força das minorias, colou em sua mente.

Havia um parte sua, inicialmente grande, que deseja que Heitor estivesse completamente enganado, confundido a feição da morena, o nome... Que houvesse alguma outra Tayla Menezes que não fosse sua namorada.

Sentiu seu ombro ser apertado por uma mão firme, e com os olhos embaçados, ergueu o olhar para um Heitor, o dono da mão, que se curvava em sua direção. Havia pesar em seus olhos, mas um alerta sussurrador em seus lábios:

− Precisa sair desse corredor. Vou levá-los para os aposentos, onde podem comer, beber algo e... − Chorar. Olívia não precisou que ele completasse a frase.

Não demorou para que os corredores ficassem cheios de homens altos, com trajes que variavam de jalecos para roupas militarizadas. Não havia piedade ou humanidade no rosto dessas pessoas, expressão idênticas a que Heitor havia fixado no próprio rosto. Ninguém se cumprimentava, só havia pressa e ódio.

Tayla morreu fazendo o que sempre fez: lutando e resistindo. Olívia não sabia se, nesse momento, sentia mais raiva ou tristeza.

− Os prisioneiros chamaram o movimento de Semente Tayla. Foi uma vida pela libertação de muitos.

Heitor voltou a sussurrar, com a voz muito segura, como se sentisse a necessidade de repassar tal informação. Sua expressão ainda era impenetrável, exceto pelos olhos, que esbanjavam admiração. Tayla havia sido uma inspiração.

Enquanto viravam um corredor, rumo aos quartos que ficariam, Olívia se restringiu a permanecer calada, enxugando uma lágrima insistente que teimava em escorrer por sua bochecha. Tayla-semente.

A história sempre esteve cheia dessas sementes. Pessoas que se foram, mas permaneceram. Pessoas que deixaram marcos não apenas naqueles que amavam, mas que trouxeram na sua existência um legado de força, coragem, reivindicação e luta pelo o que acreditavam. Uma busca de melhoras que, se não para o seu presente, para o futuro daqueles que ainda ousariam lutar. E pela luta de Tayla, Olívia jurou que batalharia pelo retorno da liberdade dos inocentes, daqueles que, como elas, só queriam existir e amar.


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