Everyday is Halloween escrita por Cassey Monstrance


Capítulo 3
Carpe Noctem




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 Conforme o combinado, o antissemita e a gótica desceram por uma rua silenciosa. Juntos, andavam num mesmo ritmo e lado a lado, pouco a pouco se distanciando da mansão dos Black.

 Por mais habituados que fossem ao clima da cidade, o frio noturno começava a se tornar difícil de lidar. Somente os postes iluminavam a calçada. Comércios grandes e pequenos nas proximidades, como o cinema e a cafeteria dos Tweak, encontravam-se fechados. E metros à frente, podiam ver o centro recreativo e quadra local onde algumas crianças fantasiadas brincavam.

 Henrietta bem sabia que precisariam atravessar esse mesmo espaço para alcançar as primeiras casas. Arrependia-se desde já por ter aceitado acompanhá-lo. Não estava em seu melhor humor.

 

 — Se o Halloween é um dia qualquer pra um gótico — para quebrar o gelo, Cartman iniciava. — O que vocês faziam antes de vir numa festa?

 

  Sob o stress e ansiedade, Henrietta estreitou os olhos desconfiada.

 

 — ...Por que ficou tão interessado nos nossos hábitos de repente?

 

 — Vejamos. Estou lidando com um animal estranho fora de seu habitat natural, acho que devo fazer pesquisas enquanto posso. — olhou para o lado. O que viu no rosto dela foi seu olhar de desprezo. — To só puxando assunto. O que você acha?

 

 — Hm, ta. — a gótica franziu os lábios. — Já que quer tanto saber, fazíamos o de sempre. Íamos ao cemitério da igreja, recitávamos nossos poemas, às vezes ouvíamos música e fumávamos nossos cigarros.

 

 — Só isso? Se cansaram de praticar satanismo e cortar os pulsos? — ah, que ótimo. Tendo previsto um deboche sobre sua cultura, Henrietta revirava os olhos. — Se bem que sobre a parte de cortar os pulsos era só você.  

 

 — E quanto a você, “The Cum”? Se cansou de entupir seu rabo com sopaipillas usando aquela fantasia de rato estúpida?

 

 — Era um guaxinim, sua puta.

 

 — Que seja. — levou dois dedos aos lábios por impulso, como se portasse um cigarro. Fez uma careta discreta ao lembrar que não tinha nenhum. — Lembro que sua habilidade ultimate envolvia a atenção da mídia. Esperava mesmo alcançar o sucesso vestindo aquilo? Patético.

 

 — Ah, é? — franziu o cenho, falando com mais seriedade. O movimento dela tinha sido notado. — Vamos ver quem vai estar rindo quando você estiver morrendo de câncer terminal. Ou você espera viver até os 30 fumando desse jeito?

 

 Atingida, Henrietta automaticamente parou de andar. Tendo imaginado que ela o faria ao ouvi-lo, Eric não demorou a fazer o mesmo. Virou-se para a garota apenas parcialmente de forma que pudessem se olhar. Apesar da raiva ser o principal, muitos outros sentimentos passavam através deles de uma vez.

 Entre eles, a sensação de nostalgia: foi exatamente nos insultos que se conheceram. Associando este fato, tiveram um sorriso tímido.

 

 Era agradável poder implicar com alguém do sexo oposto tendo a garantia de que não seriam considerados monstros sem tato. De alguma maneira, tinha sido divertido em todas as vezes. Nem com Wendy, sua antiga maior rival feminina, Cartman teve tal privilégio. Na verdade, não teve nem com a maior parte dos garotos.

 Quanto a Cartman... O sentimento de ser ele mesmo novamente. Esteve perdendo isso nos últimos anos, e mal havia notado. Chegava a ser estranho se sentir como “Cartman” outra vez.

 Do garoto que fazia babás autoritárias comerem as próprias fezes, um meio-irmão comer da carne dos próprios pais e esposas daqueles que judiavam de seu peso se suicidarem, esteve agindo como uma vítima. Um pobre coitado, que ocasionalmente viria ele mesmo a se matar. Para quem sempre encontrou forças no ocultar de suas fraquezas, passou a fazer tudo extremamente errado.

 Sequer poderia culpar somente Heidi por essas alterações em sua personalidade. Parecia mais uma conspiração, ou talvez algo muito maior. Era como se fizesse parte de uma série de humor em decadência, e seu verdadeiro eu estivesse pouco a pouco sendo apagado.

 

 Porém, somente quanto a Henrietta desta vez... Tinha um sorriso muito discreto. Quase inexistente. Ao mesmo tempo, suas sobrancelhas estavam um tanto arqueadas.

 

 — Ok... Você ganhou dessa vez. — deu-se por vencida. — Mas não acho câncer terminal tão engraçado. A morte é benigna, o sofrimento não.

 

 — Não é pra ser engraçado, é um aviso. — Eric procurou manter a postura severa. — Fique longe do cigarro, alguma hora isso vai foder com você.

 

 — Ah, claro. — rolou com os olhos. Mais um pra se intrometer em seus hábitos, já não bastava sua mãe? — Duvido que já tenha fumado um cigarro pra estar bancando o especialista.

 

 — Na verdade já fumei, e foi uma das piores experiências da minha vida. — a resposta a surpreendeu. — Vocês góticos devem ter problema mental, não sei qual é a graça de fazer algo ruim e que ainda pode te matar.

 

 — Depois de tudo o que falei sobre a Heidi está tentando se meter nos meus costumes? Por que não cuida da sua vida enquanto eu cuido da minha morte?

 

 — Porque não estou a fim de perder uma amiga por burrice. — impôs-se numa mescla de preocupação e autoridade. Notando que por essa ela não esperava, a viu arregalar levemente os olhos. — Não estou aqui pra mudar ninguém. Eu mesmo não gostaria de ser mudado. Quer se matar? Vá em frente, mas que não seja com essa porra de cigarro. Não pode criticar os emos por se cortarem se toda vez que você fuma está se matando um pouco, “ou estou errado?”

 

 Em choque, Henrietta permaneceu como estava. Os cílios longos fazendo um movimento suave.

 Engolia toda essa informação como um remédio amargo. Olhando pela perspectiva dele, aquela era uma atitude realmente hipócrita de sua parte. E hipocrisia era um dos maiores conformismos.

 Quem diria. Eric Cartman acaba de lhe dar um sermão.

 

 Nunca o tinha considerado tão conformista quanto os outros normies, em todo caso. Despreocupado em ser politicamente correto, Eric sempre foi alguém que pensou fora da caixa. É... Podiam ser considerados amigos.

 

 — Vamos indo. — deixando essa história de lado, o garoto inclinou o rosto para indicar a direção. — Vai esquecer o que é um cigarro quando estiver comendo mais doces do que pode aguentar.

 

 — Eu duvido.

 

 — Meu pau no seu ouvido.

 

 Silêncio. Tão sérios como estavam, continuavam. Depois desta piadinha ridícula que teve a capacidade de desestabilizá-la, Henrietta apertou nos dedos a ponte do nariz.

 

 — Vamos logo, antes que eu me arrependa duas vezes.

 

 Outra vez esta noite, Eric fez o gesto cortês e sarcástico para designar o caminho. Se aproximou dele, retomando a caminhada juntos.

 Enquanto prosseguiam, Eric esperou antes de dizer mais alguma coisa. Tentava disfarçar sua indignação interior, pensando se deveria ou não tocar no assunto que queria. Segurar suas vontades não era bem um de seus fortes.

 

 — Acha mesmo o traje do Coon estúpido? — perguntou com um semblante frustrado.

 

 — Bem, eu achava. — deu de ombros. — Depois de um tempo percebi que dentre os outros heróis o seu era o mais original. Isso alivia a dor no seu ego, Capitão Rato?

 

 — Prostituta de mausoléu. — respondeu na mesma moeda, arrancando dela um olhar mortal. Não chegou nem perto de se abalar. — Lembro que você tinha gostado mais do Mysterion, a puxação de saco entre vocês dois me dava vontade de vomitar. — começou a imitá-la, desde a voz feminina até o tom inexpressivo: — “Uau, isso é tão sombrio. Uau, você é mesmo das trevas”.

 

 — Eu sou gótica. O que você esperava?

 

 — Sendo alguém que chama todo mundo de conformista? Ser menos previsível.

 

 Sinalizando que ela deixaria de segui-lo logo agora que se aproximavam da quadra, Eric a segurou pela mão e compeliu a prosseguir. Sendo levada praticamente à força, Henrietta se dividia entre ficar furiosa e corar.

 Corar?

 

 A primeira sensação que tiveram ao reunirem as mãos foi o contato gelado entre seus dedos. Estavam consideravelmente protegidos em suas fantasias que cobriam o corpo inteiro, mas para as mãos descobertas e rostos expostos fazia realmente muito frio. Em pouquíssimo tempo, com suas mãos bem juntas, sentiram-nas se aquecendo e a maciez das mesmas.

Silenciosamente, sofreram pela falta um do outro quando tiveram que separá-las. Tinham crianças por perto, elas os veriam.

 

 Passavam agora pelo centro da quadra. Um lugar que ativamente fez parte de muitas infâncias na cidade, sendo cenário tanto de brincadeiras quanto até mesmo combates. Com dois banheiros públicos, bancos de praça pelas laterais, iluminação razoável e cercada por grades, tinha grandes estruturas para se jogar basquete. Mais adiante estava o velho playground com aparência de navio pirata sendo afundado por um Kraken, onde as antigas crianças do primário hoje com mais idade se penduravam ou se sentavam.

 Mesmo que Henrietta e Eric fossem pré-adolescentes da Middle School, conseguiam passar por despercebidos por entre os vários pirralhos de oito anos com suas fantasias. Tratando-se de um playground de navio pirata, um sentimento nostálgico passou por Cartman ao relembrar seus tempos na Somália. E de maneira inexplicável, uma sensação de déjà vu passou por ambos mediante uma criatura tentacular estar o afundando, sem que nunca tivessem estado juntos neste espaço.

 Estranho.

 

 — Está bem, sanguessuga. — vendo algumas casas logo à frente, a garota Frankenstein chamou sua atenção. Não estava sendo tão ruim até então. — Como começamos?

 

 — Estou pensando. — pôs uma mão sobre o queixo. — Não temos onde carregar os doces, não vamos conseguir nada se usarmos só os bolsos.

 

 Raciocinando por um instante, Henrietta olhou para as crianças no playground. Num canto, perto de um escorregador, avistou cinco baldes em formato de abóbora aparentemente abandonados. Não pensou nem duas vezes.

Enquanto ninguém olhava, andou rapidamente porém com toda a naturalidade de encontro com abóboras. Ao alcançá-las viu que estavam todas vazias, exceto por alguns míseros papéis de balas amassados no fundo. Com Cartman a observando sem esboçar reações, recolheu dois dos baldes pelas alças e com um em cada mão voltou prontamente até seu lado.

 

 — Corre. — avisou a gótica num tom sem vida andando em passos rápidos.

 

 Não ousando pensar demais nem olhar para trás, Eric a acompanhou no mesmo compasso. Só precisaram de mais alguns metros para conseguirem ultrapassar as grades. Ela tinha mesmo feito isso.

 Chocado de forma positiva, Eric recebeu dela um dos baldes.

 

 — Primeiro fumante menor de idade e agora cometendo latrocínio. — a acusou, ouvindo novamente seus passos pela calçada.

 

 — Você não é o único que pode fazer coisas ruins nessa cidade. — por lhe parecer bem óbvio, formou uma face entediada. — Achou isso ruim? O que acha de sequestro, dirigir sem licença e incêndio culposo?

 

 — Já fez tudo isso também?

 

 — Já.

 

 — Legal — sorriu de forma a exibir as próteses afiadas. Não era muito comparado ao que ele mesmo já fez, mas era bem melhor do que ela nunca ter feito nada de errado.

 

 Apesar de bem maior que o barraco do Kenny – que até hoje era cercado pelas ruínas do SodoSopa – a primeira casa era uma das poucas da cidade a ter apenas um andar. O quintal estava adornado com inúmeras decorações assustadoras e as paredes eram pintadas num tom de vermelho escuro. Cartman bem sabia quem morava por lá, e tinha escolhido essa primeiro justamente por conhecer a generosidade de quem habitava. Anos de caça aos doces, anos de prática.

 Cheios de expectativa, atravessaram o pequeno caminho pavimentado até a pequena varanda. Subiram três degraus baixos, até ficarem cara a cara com a porta de entrada. Henrietta engoliu seco de nervoso.

 

 — Vou deixar você falar. — Cartman avisou ao tocar a campainha.

 

 — Falar o quê?

 

 — Você sabe.

 

 A gótica gordinha quase suou frio ao ouvir a porta ser destrancada. Não achou que teria que dizer isso. Dando de cara com um dos donos da casa, respirou fundo.

 

 — Doce ou tra... — ficando emburrada, se interrompeu no meio do caminho. Parecia ainda mais ridículo ao dizer em voz alta. E era exatamente por isso que os góticos evitaram essa prática durante vários anos de suas vidas.

 

 — Oh Jesus, que fofos! — foram recepcionados por Sr. Escravo, fantasiado feito o vocalista da Kiss. Sua emoção parecia verdadeira mesmo com o rosto todo pintado. — Taí dois rostinhos que eu não esperava, pensei que todos vocês estariam na tal festa.

 

 — Não tinha lugar pra gente por lá. — Cartman respondeu sem muitos rodeios.

 

 — Ah. Entendo. — detectava nas entrelinhas que algo estava errado. Não iria incomodá-los com isso, de qualquer forma. — Ainda bem que vieram agora, nossos doces já estão acabando e já estávamos de saída.

 

 Enquanto o homem adulto pegava alguns doces numa tigela ao lado, Henrietta e Cartman se entreolharam. Como e por quê alguém em sã consciência sairia de casa durante a noite de Halloween? Seria pedir para ter a casa soterrada em papel higiênico e ovos.

 

 — Como assim já estavam de saída? — a gótica questionou.

 

 — Oh, vocês não souberam? Como muitos abriram mão da caça aos doces poucas crianças estão pedindo pela cidade, até pudemos comprar um pouco menos esse ano. Aproveitamos a oportunidade pra alugar o centro comunitário e fazer uma festa só pros adultos.

 

 — O quê?! — exclamou Eric, olhando de relance para a gótica. Mesmo com a pouca expressão sabia que estava tão surpresa quanto ele. — Nós não soubemos disso!

 

 — Oh, pelos deuses, não culpem os seus pais. Vocês estiveram preocupados com a festa de vocês, nós estivemos com a nossa. — mostrou as mãos cheias de doces, levando-os a estender os baldes. — Se eu fosse vocês correria, não vão ter muito o que encontrar se ficar muito tarde.

 

 Isto dito, o homem adulto despejou tantos doces em suas abóboras que as sentiram ficar pesadas. O garoto vampiro sorriu de maneira convencida para a gótica, que olhou impactada para o interior de seu balde.

 

 — Boa noite crianças, cuidado nas ruas — Big Gay Al passou por eles, com roupas combinando com as de seu marido. Certamente o baixista. Cumprimentou Eric com um aceno de mão e Henrietta com um toque gentil em seu ombro, embora ela não se movesse.

 

 Nisso os dois se foram. É claro, não antes de deixar a porta da frente bem trancada. Enquanto os via indo embora para a própria festa, Cartman começava a verdadeiramente se preocupar. Sua amiga permanecia estática.

 

 — Ei — estalou os dedos em frente ao rosto dela.

 

 Recuperando-se instantaneamente, Henrietta saiu de seu estado de letargia. Como se nada tivesse acontecido, o fitou com seu olhar morto. Apesar da reação, Cartman identificou um ar diferente em seu rosto.

 O garoto permaneceu gordinho durante todos esses anos tanto por questões genéticas quanto por ainda não ter aprendido a controlar o que consome. Já Henrietta, mesmo consumidora assídua de emagrecedores como café e cigarros, teve o sobrepeso mantido por algo muito além da hereditariedade. Se existe algo que ela aprecia, mais do que tudo, são os doces. Bem mais do que a cafeína e o tabaco.

 

 — É fácil assim? — a garota perguntou. — Você diz umas palavras bestas e consegue tudo isso de graça?

 

 — Na verdade nem sempre. Às vezes não te dão quase nada, em outras não te dão nada mesmo. É nessas horas que entra o vandalismo com papel higiênico, mas eu não recomendo. Quase deu merda pra mim uma vez.

 

 — E o que estamos esperando? — o segurou abruptamente pelo pulso. Embora sutil, a animação que ela tinha ficou mais nítida. — Vamos continuar, não temos a noite toda.

 

 — Sério? Não vai nem insistir? — sorriu, secretamente alegre por ela tê-lo tocado. — Achei que góticos gostassem dessa coisa de vandalismo, ou foi só você de novo?

 

 — Calado, Conde Gaycula.

 

 Antes que ele pudesse pensar num insulto relacionado a “noiva” ou “Frankenstein”, estava sendo levado por ela numa quase corrida até a próxima casa.

 Sem que Eric visse, pois Henrietta estava à frente, a garota sorria empolgada.

 

 

* * *

 

 

 Risadas ecoando pela rua. Duas sombras longas se estendendo pela calçada. Uma dupla de crianças rindo juntas não seria algo incomum, caso uma delas não fosse conhecida pela escuridão de sua alma.

 Com duas abóboras cheias até a borda com quase tudo que pode causar cáries neste mundo, Cartman e Henrietta haviam passado por quase todas as casas excluindo as deles mesmos. Carinhas pidonas e fantasias bem apresentáveis foram todo o necessário para conquistarem o doce que restava pelos lares. Tinham corrido uma boa maratona para alcançar esse resultado, chegavam a respirar pesadamente pelo cansaço, mas havia valido a pena. Sinceramente, havia.

 

 De um lado, as festas dos jovens. De outro, a festa dos adultos. Por não estarem em nenhuma delas, os dois gordinhos estavam sozinhos pela cidade. Toda South Park, só para eles. Como qualquer criança que se divirta no Halloween, o clima para os dois estava extremamente descontraído; não tinham preocupações e sequer faziam alguma ideia do horário.

 Afinal... Quem era Heidi? Quem era Pete? Onde estavam e o que estiveram fazendo antes de virem às ruas? Nada disso passava por suas mentes, nada disso importava. Tornaram-se tolices caídas no esquecimento.

 Ao relembrarem bobagens de seus respectivos passados, Henrietta tentava inutilmente conter um sorriso. Se lembrava bem de quando surgiu o Coon and Friends.

 

 — Barrinhas de limão? — cobria a boca com os dedos. — O mundo estava ruindo nas mãos de um deus das trevas e seus amigos decidiram mesmo vender barrinhas de limão?

 

 — Culpe seu amigo com um M no peito, Mysterion dizia que “cada pouquinho ajuda”.

 

 — E o que você fez enquanto isso?

 

 — Viajei até Nova Orleans e fiz Cthulhu de escravo.

 

 — Ah. É. — isso modificou totalmente os ares da conversa. Henrietta tentou não esboçar muita reação. Tanto o invejava quanto admirava por este feito, mas manteria isto guardado a sete chaves. Pelo menos por enquanto. — Sobre o Mysterion... Isso é bem decepcionante. O heroizinho do seu amigo tinha um grande potencial visual, mas quando descobri quem ele é, bem... Garotos depravados e conformistas nunca fariam o meu tipo, não são algumas roupas escuras que vão mudar isso.

 

  Arrogância, alívio, satisfação. Tal tríplice definia perfeitamente o pequeno sorriso de Cartman ao ouvir tais palavras, trocaria todos os seus doces arrecadados e talvez todos os doces do mundo para que Kenny estivesse ouvindo isso.

 

 — E vou te dizer mais. — decidiu complementar. — No Casa Bonita ele só esteve te bajulando por interesse. Num dia experimentou cigarros comigo e com os outros e achou uma merda, no outro estava te dizendo que fumar é legal. O Kenny é quieto mas sabe ser cuzão quando quer.

 

 — Pensei que ele fosse seu amigo.

 

 — Ele é, mas isso não importa nesse caso. — fechou a cara.

 

 Não entendendo ao certo o motivo dele ter ficado tão sério de repente, Henrietta elevou uma sobrancelha. Mas deu de ombros, não muito interessada. As desavenças na amizade dos outros não eram bem de sua conta.

 

 — O que fez pra convencer Cthulhu a te servir? — modificou o rumo do assunto. — Pros que seguiram na seita este continua sendo um dos grandes mistérios da humanidade.

 

 — Não é nenhum segredo. Foi o mesmo que fiz pra te convencer a estar aqui.

 

 — Encheu o saco dele até ele fazer o que você queria?

 

 — Quase isso. — tentando imaginar o quanto conseguiria irritá-la, Eric exibiu um soberbo sorriso de lado. — Talvez eu seja irresistível para criaturas das trevas.

 

 Era só o que lhe faltava. Rolando com os olhos, a gótica sacudiu a cabeça negativamente.

 

 — Que foi? O importante é que funciona. — Eric permaneceu do mesmo jeito.

 

 — Você é ridículo. — ao contrário do que esperava, Henrietta lhe sorria. Talvez ridículo fosse pouco. — Se eu estivesse com meu colar você estaria ferrado.

 

 — Ué, e por quê?

 

 — Vampiros clássicos tem horror a crucifixos.

 

 — Satanistas também deveriam ter.

 

 — Ah, cala essa boca. — franziu os lábios. Eric continuava sorrindo descaradamente. — Quando Satã morreu e voltou aos céus, não pude mais cultuá-lo. Depois o filho dele passou algum tempo na linha de sucessão, mas isso não despertou a atenção de ninguém. Não estou adorando nada no momento e estou bem assim.

 

 — Fico feliz por não estar adorando aquele cara.

 

 — Damien? Sem condições. Eu era mais próxima de Satã do que o próprio filho, daria uma anticristo bem melhor do que ele.

 

 — Sabe de uma coisa? — sorriu sinceramente. — Não tenho dúvidas disso.

 

 De maneira quase boba, Henrietta também deixou escapar um sorriso suave. Algo como “e você seria meu escolhido para ajudar a comandar o inferno” passou por sua mente, mas não teve muita coragem de dizê-lo.

 Mantiveram-se caminhando sem pressa. Nem ao menos sabiam quem estava seguindo quem ou para onde estavam indo. Não tinham muito mais o que fazer, apenas queriam permanecer na companhia um do outro.

 Até Cartman olhá-la de soslaio, e então perceber um detalhe.

 

 — Seu cabelo.

 

 — Hã? — curiosa, Henrietta parou no lugar e pôs uma mão sobre ele. Antes perfeitamente fixo para cima por toneladas de spray como os mais tradicionais dos góticos faziam, agora seu cabelo ao estilo Noiva do Frankenstein abaixava-se lentamente. — Segura aqui.

 

 Eric apanhou seu pesado balde de abóbora não por livre e espontânea vontade, mas por reflexo. A garota praticamente o jogou em suas mãos. Com precisão porém pouca paciência, Henrietta reorganizava as madeixas negras com os dedos até que estivessem totalmente postas para baixo porém bastante arrepiadas. Era o estilo de cabelo que ela usava todos os dias, com o acréscimo de alguns fios brancos espalhados pelas laterais.  

 Por coincidência, dentro da concepção de Cartman, o tipo de cabelo que Henrietta manteve por todos esses anos era justamente o que mais combinava com ela. Os cabelos curtos e indomáveis de uma garota a qual nunca prestou a devida atenção, com a rebeldia de alguém que no futuro se tornaria uma verdadeira rainha das trevas.

 Como alguém que não se encaixava e nem se encaixaria em qualquer padrão social, Henrietta poderia ser feia ou até assustadora para muitos. Para Eric, ela apenas tinha um tipo de beleza singular.

 

 — E agora? — a gótica de branco questionou o resultado em tom quase sarcástico. Incrível.

 

 Pouco importava que estivesse de branco: sua postura e seu batom preto bastavam para fazer dela a mais pura representação do obscuro. As cicatrizes desenhadas ao redor e abaixo da face eram somente um toque especial. Lutando para evitar a vermelhidão nas bochechas e a não desviar os olhos dos dela, pois caso contrário estaria se mostrando intimidado, Eric respondeu:

 

 — Ta parecendo uma bruxa.

 

 — Ótimo. — retomou seu balde de doces. — Então está perfeito.

 

 Cartman se reteve a uma risada interna. No fundo não esperava ouvir algo diferente disso. Mantiveram-se olhando nos olhos.

 Suas mentes jovens, embora imaturas e sem conhecimento de mundo, sabiam que tinha algo diferente acontecendo ali. Algo que mentes de apenas 13 anos, “velhas” demais para pedir doces mas novas demais para administrar sentimentos, ainda estavam no caminho de começar a compreender. Mesmo fazendo parte de universos distintos, mesmo mantendo um tipo de relação peculiar e quase agressiva, os dois se apreciavam de um jeito muito estranho.

 

 — Vamos ao cemitério. — com ânimo contido, o garoto falou do nada.

 

 — ...O que?

 

 — O cemitério da igreja. — inclinou a cabeça para um lado. — Não é o que você e seus amigos gostam de fazer?

 

 — Ah. É. — não correspondeu muito bem ao seu entusiasmo. — É o que fazemos.

 

 Confuso, Cartman entreabriu os lábios. De todas as possibilidades de reações, essa foi a única que não esperava. Achava que estaria fazendo um agrado.

 

 — Ah, não faça essa cara. — Henrietta fez um biquinho indignado. Não era tão boa em confortar os outros quanto era em dizer verdades. — Eu só não quero ir pra lá. Não estou a fim de fazer o que faço sempre.

 

 — Acabou de descobrir que conformistas sabem se divertir? — voltou com um sorriso de escárnio ao seu normal.  

 

 — Me dói concordar, mas... — levantou seu balde-abóbora para evidenciá-lo. — Contra fatos não há argumentos. Não lembro da última vez onde me diverti tanto.

 

 — Às vezes é bom fazer algo diferente. Eu só via você com os outros fumando nos fundos da escola, fazendo sempre aquela cara de quem tem areia enfiada no rabo.

 

 — E eu só via você dando uma de conformista com aqueles três imbecis. — o viu concordando com a cabeça. — Se estamos fazendo coisas diferentes hoje, então... Nada dos amigos de sempre. E nada de cemitério.

 

 — Uau. Sendo você eu nunca imaginei que ouviria isso.

 

 — Nem eu imaginei que diria.

 

 — É você mesma?

 

 De forma repentina, Eric pôs a palma e o dorso da mão sobre sua testa. Depois, apoiou somente os dedos em seu pescoço, como se medisse alguma temperatura. O que parecia mais uma brincadeira besta disfarçava o que realmente pretendia.

 Segurando em seu pescoço suavemente, feito um verdadeiro vampiro, aproximou-se dela de forma dramática e exibiu as presas para mordê-la na jugular. Corando em pânico e de cenho franzido, Henrietta afastou sua mão com um tapa.

 

 — Você nem ouse, garoto — o viu se afastar, rindo com implicância. Fazia um grande esforço para se manter inalterável. — Eu não quero fazer o mesmo de sempre, está bem? Se no Halloween vocês tem um dia de gótico, eu quero um dia de conformista.

 

 — Certo. Como eu estou de bom humor vou deixar você decidir. — cruzou os braços, como se assim fosse parecer menos submisso. — Em quais outros lugares vocês vão?

 

 — Pro meu quarto, na maioria das vezes. Em outros momentos tomamos um café no Village Inn.

 

 — Espera aí... — comprimiu os olhos. — Você fica sozinha no seu quarto com três caras?

 

 — Ficava. Agora temos a Karen. — espelhou seu gesto. — E não se meta no que eu faço.

 

 Por mais enciumado que estivesse, Cartman aceitou a condição e ergueu as mãos em sinal de paz. Só esperava que tivessem por ela o mesmo respeito que agora ele tinha.

 Esta era uma noite para fazerem coisas diferentes do normal. Continuarem agindo feito crianças ainda estava de pé, certo? Já que não tinham lugar melhor aonde ir e para ela estar com garotos era normal...

 

 — Quem chegar primeiro na minha casa fica com todos os doces do outro...? — o antissemita tentou uma aposta, apontando a direção a ser seguida com o polegar.

 

 Viu as pupilas dela dilatarem. Quando deu por si, Henrietta segurou em seu vestido e pôs-se a correr em disparada.

 Era uma bela vantagem ela não saber onde fica sua casa. É claro que ao apontar o caminho ele não tinha prezado por honestidade.

 

 — Filho da puta! — vociferou a gótica, dando meia volta ao perceber que ele corria na direção contrária.

 

 Ouvir a risada maldosa de Cartman foi uma motivação quase sobrenatural para fazê-la correr tão rápido quanto conseguia. Ignorava todo o cansaço do esforço anterior. O som das pisadas fortes dos dois poderia ser facilmente comparado a uma manada de elefantes correndo desesperada por uma savana.

 O garoto em traje de vampiro se espantou e quase se desconcentrou ao ver a garota Frankenstein bem ao seu lado, o empurrando para atrapalhá-lo. O que começou como uma competição ferrenha se transformou em dois gordinhos rindo juntos, derrubando no chão algumas de suas balas, empurrando-se incansavelmente para tentar impedir o outro de continuar. Teriam prosseguido nisso por sabe-se lá quanto tempo se não fosse por uma pequena interrupção.

 

 — Ohh que amores, deixem eu tirar uma foto — uma mulher adulta, com uma beleza que Henrietta achou impossível de não se notar, parou bem à frente deles enquanto estiveram distraídos. Estava fantasiada feito Jessica Rabbit, com uma maquiagem perfeita e uma linda peruca ruiva. Certamente usava um corselet sob o vestido vermelho para afinar a cintura.

 

 Logo que a mulher tirou o celular de sua bolsa tiracolo e o ergueu na vertical, os dois pré-adolescentes pararam tudo o que estavam fazendo. Henrietta eliminou seu sorriso de um segundo para outro, estabelecendo uma cara tão mal humorada que aterrorizaria Wandinha da Família Addams. Ao mesmo tempo, Cartman sorria amplamente e com aspecto perverso, expondo totalmente as presas afiadas.

  A mulher se certificou de tirar ao menos três fotos iguais para garantir que ao menos uma sairia perfeita. Guardou o celular novamente na bolsa, andando de forma calma até o rapaz.

 

 — Eric, tenho uma festa hoje.

 

 — É. — tentou evitar um torcer de lábios. O sorriso para a foto já não existia mais. — Fiquei sabendo.

 

 — Deixei jantar pronto caso sinta fome. Cuide da casa na minha ausência, confio em você. — fez um carinho em seus cabelos bem arrumados e olhou para Henrietta, que até então só observava. Ter visto Eric animado e com uma garota diferente depois de quase três anos era uma surpresa bastante agradável. — Prazer em conhecê-la, sua fantasia é linda! Se eu soubesse teria dado a ele uma roupa de Frankenstein.

 

 A garota não pareceu ter forças para dizer um “obrigada”. Tentou um sorrisinho simpático, mas não conseguiu mostrar nada mais que uma boca trêmula e envergonhada. Ao menos pareceu satisfatório.

 

 — Beijinho de esquimó? — a falsa ruiva pediu ao vampiro.

 

 — Mãe, porra... — se queixou, sentindo as bochechas queimarem pela gótica que testemunhava. Sabendo que Liane não iria deixá-los até que fizesse o que ela queria, decidiu à duras penas se render. — Merda.

 

 Aproximando as faces (com hesitação por parte dele) esfregaram delicadamente as pontas dos narizes. Ao ser obrigada a assistir esta cena, Henrietta botou uma mão sobre a boca para sufocar o riso. Viu Eric emburrado, incapaz de olhá-la quando o “beijo” terminou.

 Nisso, a Jessica Rabbit se foi. Os dois ficaram sozinhos de novo, um tanto sem norte pelo que acabou de acontecer. Olhando uma última vez para a mulher indo embora, a gótica teve muitas dúvidas.

 

 — Aquela era mesmo sua...?

 

 — Mãe. — Eric completou. Continuava constrangido e irritado.

 

 — Isso de deixar comida pronta pra você, de não ligar muito quando você xinga... O jeito da sua mãe me lembrou muito a minha. — falhou em controlar um pequeno sorriso de deboche. — Tirando o “beijinho de esquimó”.

 

 — Vai se foder. — tornou a cruzar os braços, olhando com raiva para outra direção.

 

 Um ruído de riso interrompido foi ouvido da garganta da gótica. Estava mesmo muito risonha hoje em comparação com outros dias, mas para ele estava melhor quando não era ele mesmo a piada.

 A garota Frankenstein precisou rolar com os olhos de novo. Eric era mesmo muito orgulhoso. Conviver com alguém tão semelhante a ela, apesar de diferente em muitos aspectos, era tanto provar do próprio veneno quanto uma dádiva.

 Também não iria matá-la tentar alegrá-lo. E isso não tinha nada a ver com ser seu dia de conformista.

 Tímida porém cheia de determinação, aproximou a mão da dele até que a tocasse. Com o tato, o gelo dos dedos de ambos logo se transformou em calor. A reação inicial dele foi de hesitação, mas foi uma questão de tempo para que liberasse lentamente seus braços do aperto. Com os baldes de abóbora sendo segurados pelas mãos do lado oposto, entrelaçaram gentilmente seus dedos.

 Sem perceber, Cartman fez um breve carinho sobre a mão dela com o polegar. Gostando do que sentiu mas se recusando a confessar, Henrietta fingiu não compreender. Acharam interessante o contraste entre suas mãos: ambas “cheias”, onde uma era mais áspera e com mais cor enquanto a outra era mais delicada e pálida. Sem contar as unhas revestidas com um preto brilhante que ela tinha, mais parecidas com pequenas garras.

 

 — ...Estou com frio. — Henrietta ergueu o rosto, tão orgulhosa quanto ele. Não iria se mostrar emocional. — Vamos embora logo.

 

 — Quer a minha capa? — ofereceu, também fazendo o possível para soar tranquilo.

 

 — Não é pra tanto, não seja bicha.

 

 Voltaram a andar, dando essa conversa por encerrado pelo bem de suas integridades. Se alguém perguntasse, estavam próximos e de mãos dadas apenas para se aquecerem. Nada mais.

 

 

* * *

 

 

 


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