Truque do Destino escrita por Akiel


Capítulo 11
X - Tabuleiro




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X – Tabuleiro

 

“O xadrez é, em sua essência, um jogo.

Na forma, uma arte. E, na sua execução, uma ciência”.

(Baron Tassilo)

No xadrez lutam pessoas e não peças.

(Emmanuel Lasker)

 

Kaer Morhen

A chuva volta a cair sobre a fortaleza, o som das pesadas gotas colidindo contra a dura estrutura ecoando na silenciosa torre. Sob as sombras da tempestade que retorna, um witcher permanece abraçado a duas feiticeiras, os braços envolvendo os corpos menores com uma força que se recusa a enfraquecer. Há uma calma na mente do Lobo que nasce dos restos da inquietude que nesse momento pode ser enterrada, enraizada na realidade do retorno da filha, agora completo com o reconhecimento do passado que permanecia perdido. Sob o sussurro da chuva, Geralt consegue ouvir os fracos soluços que ainda escapam dos lábios de Ileanna. Com cuidado, o witcher coloca a mão enluvada na nuca da filha, sentindo a jovem feiticeira se encolher ainda mais no abraço. Lábios finos depositam um trêmulo beijo sobre o cabelo negro e os olhos dourados se desviam brevemente para a feiticeira mais velha.

Há um brilho no violeta olhar de Yennefer que Geralt se recorda de ter visto somente no momento em que Ileanna nasceu. Retribuindo o sorriso nos lábios da amada, o witcher se permite respirar fundo e aproveitar a presença das feiticeiras. Com suavidade, a bela feiticeira coloca a mão sobre a do amado, ambos segurando e apoiando a pequena que, aos poucos, se acalma. Abaixando o rosto para beijar o negro cabelo da filha, a poderosa feiticeira deixa que a mente se concentre na força e no calor das presenças de Geralt e Ileanna e no toque que a segura com força pela cintura, quase como se a feiticeira mais nova temesse o desaparecimento da mãe. Para Yennefer, cada gota de chuva desfaz o peso de todos os anos passados longe da filha e dos dias em que o passado não podia ser comentado ou relembrado. A cada batida, o coração da bela feiticeira se acalma, mas também se fortalece, intensificando a decisão, há muito tempo tomada, de proteger as filhas.

Envolta pelo calor e pelo carinho dos pais, Ileanna sente um antigo e desconhecido machucado lentamente cicatrizar, o fogo da cura encontrando uma lenta calmaria sob o sussurro da tempestade. Na mente da jovem feiticeira, há silêncio. Os múrmuros de sonhos e de um passado que não era lembrado sendo silenciados na presença do witcher e da feiticeira mais velha. Pouco a pouco, as lágrimas param de cair dos olhos dourados e os soluços dão lugar a uma respiração mais calma e estável. Arriscando um olhar para cima, a jovem feiticeira encontra as brilhantes írises violentas e, no suave olhar de Yennefer, Ileanna encontra uma certeza de futuro, de um lugar nesse mundo – a primeira desde que deixou a companhia daqueles que a salvaram. Respirando fundo, a jovem de olhos de witcher se aproxima ainda mais da mãe, o abraço de Yennefer imediatamente recepcionado e envolvendo a filha em um toque que oferece segurança e conforto.

— Geralt? – uma voz chama, quebrando o feitiço do momento e atraindo a atenção do witcher.

— Eskel. – o Lobo responde, assentindo para o amigo.

Por um momento, o witcher recém-chegado apenas observa a cena na torre. As írises douradas deixam o amigo e passam a se concentrar nas feiticeiras. Eskel percebe as sombras de lágrimas presentes na face de Yennefer, o suave sorriso nos lábios bem desenhados e o modo protetor como a feiticeira envolve Ileanna, mantendo a mais nova em um abraço firme contra o próprio corpo. Por um momento, a atenção do olhar dourado se foca na jovem feiticeira, que se mantém de costas, a face apoiada contra o ombro da mais velha. Procurando novamente pelos olhos do amigo, Eskel encontra um intenso brilho no olhar de Geralt, um que mistura surpresa e felicidade.

— Está tudo bem? – o witcher questiona de modo quase hesitante.

— Sim. – Geralt responde, incapaz de controlar o sorriso que estica os lábios finos – Você precisa de alguma coisa?

— Avallac’h está pedindo uma reunião com todos. – Eskel explica – Para conversar sobre o ataque da Caçada Selvagem.

Assim que as palavras deixam os lábios do witcher, o sorriso se desfaz nas faces de Geralt e Yennefer, que são lembrados da ameaça que pode chegar a qualquer momento. A feiticeira sente o momento em que a tensão retorna ao corpo da filha, o toque de Ileanna se tornando mais forte e profundo. Írises violetas procuram pelo dourado olhar do Lobo Branco, se deparando com a compreensão e a firme decisão refletidas nos olhos claros. Geralt coloca a mão sobre a da amada, ambas apoiadas nas costas da mais nova. O coração do poderoso witcher bate com força no peito, a mente tentando afastar a raiva e ódio trazidos pela lembrança da última vez que a Caçada esteve em Kaer Morhen, o dia em que levaram Ileanna. E, agora, eles retornam, não apenas por Ileanna, mas por Ciri também. Por um momento, o witcher se recorda do pedido feito por uma aparição em uma ilha distante. O caminho que Avallac’h tenta traçar para Ciri para recuperar o passado perdido, como poderia envolver Ileanna? O que o Aen Saevherne pode esperar conquistar com o poder da jovem feiticeira? Respirando fundo, Geralt foca o olhar nas írises violetas que o observam atentamente.

— Eu vou na frente. – o witcher diz – Você e Ileanna podem se juntar a nós quando estiverem prontas.

Yennefer assente, entendendo na fala do amado o tempo oferecido para que Ileanna possa se acalmar e se preparar para encontrar o antigo professor. Com um último sorriso, Geralt se volta para o amigo, seguindo Eskel pela escadaria que oferece acesso ao andar inferior. O caminho através dos degraus é feito sob um tenso silêncio, o witcher de cabelos negros desviando o olhar periodicamente para o companheiro, a mente questionando e imaginando o que poderia ter originado a cena com a qual se deparou. O Lobo percebe a curiosidade do amigo, mas somente quando o salão é alcançado o witcher decide quebrar a quietude:

— Ileanna se lembrou. – Geralt diz, um pequeno sorriso esticando os lábios finos – Ela se lembrou de mim e de Yen.

— Mesmo? – Eskel questiona, parando no meio do caminho, a face se iluminando com a surpresa, mas também com felicidade pelo amigo – Ela lembrou de tudo?

— Eu não sei o quanto ela lembrou. – o Lobo Branco responde sem deixar de sorrir – Mas é um começo.

— Com certeza. – Eskel concorda com firmeza, a mão pousando sobre o ombro do amigo e os lábios oferecendo um sorriso de apoio.

Witcher. – a voz de Avallac’h, rígida e autoritária, captura a atenção dos guerreiros. O olhar aquamarine foca nas írises douradas do witcher de cabelos brancos com um silencioso questionamento que encontra apenas um desafiador silêncio no olhar de seu alvo.

— Onde estão Yen e Ileanna? – Ciri questiona ao notar a ausência das feiticeiras.

— Elas já virão. – Geralt responde sem desviar a atenção do olhar do Aen Saevherne, percebendo a sombra de desconfiança que nasce no claro olhar.

Enquanto isso, na torre, uma jovem feiticeira respira fundo e dá um passo para trás, quebrando o envolvente abraço da mãe, os dedos limpando rapidamente as marcas deixadas pelas lágrimas na pele clara. Yennefer permite o movimento, o olhar violenta observando a respiração mais compassada e o olhar mais firme da mais nova. Por um momento, a poderosa feiticeira se deixa levar pela memória de um encontro em Ard Skellig e da imagem de uma jovem feiticeira com olhos de witcher e uma ausência de lembranças que congelou o sangue e machucou o coração. Mas agora Yennefer pode ver o reconhecimento e a recordação nos olhos de Ileanna, as sombras vistas antes tendo sido desmanchadas com cada lágrima derramada. Sem pensar, a bela feiticeira ergue a mão e toca a lateral do rosto da filha, atraindo a atenção das írises douradas que observam com silenciosa curiosidade.

— Minha pequena. – o termo carinhoso deixa os lábios de Yennefer em um acalentador sussurro que ameaça fazer as lágrimas retornarem aos olhos dourados.

— Mãe. – a palavra ainda soa estranha na língua da jovem feiticeira, mas ao mesmo tempo certa e familiar.

— Nós procuramos tanto por você. – o toque da feiticeira de olhos violetas se aproxima dos olhos dourados, tão poderosos e intensos quanto os do pai – Nós sentimos tanto a sua falta.

— Acho que uma parte de mim sempre se lembrou. – Ileanna diz de modo lento e pensativo – Sempre quis retornar para esse mundo. – uma fraca risada escapa por entre os lábios vermelhos – Acho que posso entender Zireael um pouco melhor agora.

— Vocês estão seguras aqui. – a força que nasce na voz de Yennefer rivaliza com a intensidade da chuva que ainda cai – A Caçada não levará nenhuma de vocês de novo.

— Eu não temo os Cavaleiros Vermelhos, mãe. Posso lidar com Eredin e os outros. – a certeza na voz da filha, a confiança no próprio poder e nas próprias habilidades, faz com que um pequeno e orgulhoso sorriso nasça nos lábios da feiticeira mais velha – Mas Zireael... Ela confia na pessoa errada.

— Avallac’h. – Yennefer diz sem hesitação.

— Sim. Há apenas uma coisa com que Avallac’h se importa e é Lara. O sangue, a memória de Lara. – as palavras da filha fazem com que uma lembrança desperte na mente da poderosa feiticeira.

— Quando vocês estavam lutando, o que você perguntou para Ciri... O que você realmente queria saber?

As atentas írises violetas percebem a surpresa que o questionamento causa na feiticeira mais nova, a sombra de hesitação que nasce no dourado olhar. É claro para Yennefer que há mais entre Ciri e Ileanna do que uma estadia compartilhada no mundo dos Aen Elle, que existe uma conexão de poder entre as duas jovens, mais profunda e complexa do que qualquer um deles poderia ter antecipado, algo que Ileanna busca, mas oscila em revelar. Poderia ser algo também conectado ao antigo Rei dos Aen Elle? Vendo as sombras de dúvida que dançam nas írises claras da filha, a poderosa feiticeira tem a certeza de que o que quer que essa conexão seja possui raízes no passado de Ileanna em Tir Ná Lia. Tal dança observada é como um tornado na mente da feiticeira com olhos de witcher que se vê dividida entre o segredo guardado por anos e a vontade de contar, de dividir e confiar na mãe. A presença de Yennefer sempre ofereceu segurança e proteção e é isso, junto com o passado relembrado, que liberta a voz da jovem feiticeira.

Sem jogos e sem máscaras. É hora de colocar as cartas na mesa. O pensamento acompanha o controlado suspiro que escapa por entre os lábios vermelhos.

— Quando Zireael chegou em Tir Ná Lia, ela era esperada. – Ileanna começa, o claro olhar focado nas írises violetas da mãe – Avallac’h tinha previsto que ela viria, a herdeira do sangue de Lara Dorren. Mas o rei sabia que, criada nesse mundo, ela não possuiria nenhuma conexão com o poder do próprio sangue, com a herança deixada pela Gaivota. Então, ele me pediu para guiá-la nesse caminho, para ser o farol a levar Zireael de encontro ao próprio poder. Nós... conectamos. – as írises douradas são abaixadas, um vinco de concentração aparecendo na face jovem – Nossos poderes parecem se complementar. Acredito que Auberon sabia disso e por isso me pediu para ajudar Zireael, para mostrar a ela o que ela é capaz de fazer. – respirando fundo, a jovem feiticeira volta a atenção para os olhos da mãe – O que eu perguntei, o que fiz... Zireael está perdida. Ela foge de um passado que não aceita, que não compreende. Ela não será capaz de controlar o próprio poder até ela decidir quem ela quer ser e pelo que ela quer lutar.

— Você acredita que Avallac’h sabe disso?

— Sim. – Ileanna responde sem hesitar – Apesar de ele ser um respeitado conselheiro, há coisas que o rei manteve de Avallac’h. Mas ele é esperto e deve ter percebido isso.

— Então, a pergunta se torna o que Avallac’h pretende fazer com esse conhecimento. – Yennefer diz, compreendendo o posicionamento da filha e tendo percebido a mesma fuga por parte de Ciri do passado que a liga a Lara Dorren – Você acha que ele tentará moldar Ciri?

— É uma possibilidade. – a feiticeira de olhos dourados responde – Ele tentou comigo e com Caranthir, não vejo por que ele não tentaria com Zireael.

A bela feiticeira de olhos violetas assente, concordando e registrando a necessidade de observar com mais cuidado o Aen Saevherne. Contudo, sob a luz do recente reencontro, a conversa desperta a curiosidade no coração de Yennefer. Dando um passo à frente, a feiticeira volta a tocar o rosto da filha, os dedos afastando alguns fios negros da face jovem e as írises violetas observando o atento e dourado olhar.

— E você? – Yennefer questiona – Quando você decidiu?

Por um momento, surpresa nasce nas írises douradas, mas logo é substituída por uma concentração nublada por uma sombra de tristeza. Yennefer percebe que a filha sabe a resposta, mas essa se encontra em um passado que ainda é doloroso recordar. O silêncio permanece por longos momentos, nenhuma das feiticeiras fazendo o primeiro movimento para quebrá-lo. Sob o suave e carinhoso toque, Yennefer sente a trêmula respiração que deixa os lábios de Ileanna, o esforço da voz para encontrar liberdade para contar a história. Sentindo a inquietação que domina e divide a filha, a feiticeira de olhos violetas se aproxima ainda mais, os lábios deixando um suave beijo sobre a testa da feiticeira com olhos de witcher.

— Uma das minhas lembranças mais antigas é ser apresentada para o rei. – as palavras de Ileanna são um sussurro sob os ecos da chuva e Yennefer oferece a filha o tempo necessário para pensar e falar – Ele costumava me levar para o jardim principal do Palácio da Lua e me deixar brincar no balanço da árvore central. Quando comecei a treinar com Eredin e Avallac’h, o rei me levou para esse mesmo lugar e me contou a história da Geada Branca. – a menção do fenômeno da natureza traz um pouco de tensão aos músculos da feiticeira, mas Yennefer não deixa a filha perceber – Ele me contou como a Geada Branca existe no Caminho dos Mundos, silenciosa e poderosa, contando o tempo de cada mundo e, quando a Época do Fim chega, ela derruba as fronteiras e envolve o mundo agonizante em um abraço final. Com bolhas de sabão, ele me mostrou os mundos e, com meu poder, eu pude congelá-las como a Geada Branca. O rei me disse que eu tinha um poder tão raro quanto a Geada e que, com ele, eu poderia ajudar a proteger Tir Ná Lia e os Aen Elle.

Uma pausa e as mãos da jovem feiticeira são apoiadas na cintura da mãe, os dedos envolvendo e torcendo o tecido em um firme aperto. Yennefer permite a breve quietude da filha, as mãos acariciando o rosto jovem enquanto o dourado olhar é abaixado.

— Eu nunca me senti ameaçada na presença de Auberon. – Ileanna retoma, a voz ecoando o peso das lembranças e das perdas que ainda não foram superadas – Pelo contrário, me sentia segura e protegida. Eu o respeitava. Com ele, eu aprendi a história dos Aen Elle, de Lara, dos mundos que existem dentro do reino da Geada Branca. Eu via o rei e o homem sob a coroa e a solidão e as perdas que eu via nele de alguma forma ressoavam em mim. E eu acho que foi naquele momento, com o conto da Geada Branca que eu comecei a decidir o que fazer com meu poder. Foi quando eu comecei a decidir que iria servir.

E você ainda serve. O pensamento é imediato na mente de Yennefer enquanto os dedos da feiticeira secam as novas lágrimas que escapam dos olhos da jovem com olhos de witcher. Você continua o último pedido de Auberon, guiando e cuidando de Ciri. Você ainda carrega o peso da traição que marca a morte do rei. Minha pequena, você ainda é uma soldada do Rei dos Amieiros. Em silêncio, a poderosa feiticeira envolve a filha em um apertado abraço, oferecendo compreensão e conforto sem a necessidade de palavras.

— Deveríamos ir. – Ileanna diz dando um passo para trás e limpando o rosto com as costas da mão – Os outros estão esperando.

— Tenho certeza de que Avallac’h está ansioso para planejar uma defesa contra o ataque da Caçada Selvagem. – a leve provocação que colore as palavras da feiticeira arranca uma breve risada dos lábios da filha.

— Avallac’h deve ter todo o tabuleiro montado.

— Você acha? – Yennefer questiona, notando o brilho de seriedade que nasce no olhar da feiticeira de írises douradas.

— Todos somos peças no tabuleiro de Avallac’h. O truque é descobrir quais são as jogadas que ele planeja e decidir até onde você quer jogar de acordo com as regras dele.

 

 Tir Ná Lia

O tenso silêncio ainda pesa no aposento do vice-rei, principalmente entre os jovens cavaleiros vermelhos, enquanto uma aura de calmo controle permanece ao redor de Ge’els quase como uma capa de proteção. Com um suspiro e um último olhar para o estrelado céu, o regente dos Aen Elle se dirige para a mesa colocada próxima a lareira, os longos dedos sendo apoiados na cadeira da cabeceira, que é puxada um momento antes que o penetrante olhar de mel seja dirigido aos soldados presentes. Há curiosidade nas írises azuis de Andir, mantida sob controle com o véu do respeito e da hierarquia. Os olhos de Vridhiel e Faolin, contudo, são mais sinceros, brilhando com a adrenalina que ainda queima no sangue dos cavaleiros e uma descoberta que implora para ser revelada, avisada.

— Sentem-se. – o vice-rei instrui e leva apenas um segundo para ser obedecido – Nós temos muito o que conversar.

— Meu senhor. – Andir, sentado à direita do regente, começa – Respeitosamente, peço para que explique o que está acontecendo.

— Andir, você veio a capital sob a ordem de me questionar acerca da missão que incumbi a Vridhiel e Faolin. – com um movimento da mão, Ge’els indica os soldados sentados à esquerda da mesa – E a resposta para essa pergunta é simples: eu pedi que eles encontrassem a Rosa de Auberon.

A admissão do vice-rei, feita sem hesitação, surpreende os jovens cavaleiros vermelhos. Surpresa nasce nas írises azuis de Andir, o olhar do navegador procurando nos companheiros alguma pista de que a fala do regente é falsa ou enganadora. Contudo, o choque encontrado nos olhos claros de Vridhiel e Faolin serve apenas como confirmação da veracidade das palavras de Ge’els. O jovem capitão sente o coração batendo intensamente sob a armadura, os dedos se fechando com força contra a superfície da mesa. Por mais simples que a resposta do vice-rei possa parecer, Vridhiel sabe que é mais do que um simples reconhecimento de uma ordem dada. É a confirmação de que o Ge’els agiu sem o conhecimento de Eredin em busca de uma feiticeira que havia sido condenada à morte por traição. O verde olhar do capitão observa a face do vice-rei em busca de alguma pista sobre o que o regente planeja com tal admissão, mas o rosto de Ge’els permanece como uma antiga escultura, sério e impassível, escondendo cada pensamento e intenção.

— A Rosa? – Andir questiona, a voz ecoando a surpresa e a confusão sentidas – Mas ela está morta!

— Não, não está. – Ge’els responde em um calmo tom de voz, aparentemente se distraindo ao encher taças com vinho para si e os soldados – Apesar da afirmação de Eredin, Ileanna não morreu em Tedd Deireadh.   

— Eu estava lá, eu vi quão ferida ela estava. – o navegador diz, as írises azuis procurando o olhar da cor do mel – Não havia como ela sobreviver, mesmo que ela tenha pulado para outro mundo... – uma sombra de dúvida penetra a voz do cavaleiro vermelho, mas logo é escondida – Além disso, o rei não possui motivo para mentir. 

— Tal é minha dúvida e a razão pela qual mandei Vridhiel atrás de Ileanna. – o vice-rei diz, a voz adquirindo uma fina camada de fria seriedade – No momento, não posso afirmar se Eredin mentiu ou se apenas cometeu um erro de julgamento. O fato é que a Rosa de Auberon ainda vive e se encontra no mundo dos Aen Seidhe.

— Então, o rei poderá encontrá-la. – Andir diz, o atento e intenso olhar ainda focado na face do vice-rei.

— Isso é mais uma certeza do que uma possibilidade, não é mesmo, Vridhiel? – as írises cor de mel se voltam para o jovem capitão, que se recusa a permitir que a fria autoridade no olhar de Ge’els o afete.

— Sim, meu senhor. – o cavaleiro vermelho responde – Caranthir possui a localização da Rosa e, com certeza, a dirá ao rei.

Por um momento, o silêncio retorna ao aposento, denso como a neblina a cobrir o caminho a frente. Sob a luz da lua e das velas, as írises cor de mel do vice-rei dos Aen Elle brilham com uma concentração que esconde as verdadeiras intenções do regente com a conversa e faz com que os jovens soldados se sintam em um campo de batalha, mas sem o conhecimento das regras ou do intento por trás do confronto. Andir sente a confusão e a desconfiança corroendo o sangue, o azul olhar tentando desesperadamente ver por trás da máscara impassível de Ge’els. Do outro lado da mesa, a cada segundo que passa, Vridhiel sente o coração batendo mais intensamente no peito, lealdade e preocupação brigando pelo lugar de destaque nos pensamentos do jovem capitão. Tudo isso é um jogo, o cavaleiro vermelho sabe, e todas as jogadas, todos os caminhos levam para o desfecho do destino da Rosa de Auberon. E é o pensamento de que a último movimento seja a morte de Ileanna que mais assombra a mente do Aen Elle. Com discrição, Faolin bate o próprio ombro contra o do capitão, a sutil ação servindo como um alerta para que a guarda não seja abaixada, o navegador percebendo que há muito mais em jogo na mesa do que apenas palavras ou ordens.

Observando os jovens elfos, um pequeno e discreto sorriso nasce nos lábios finos do vice-rei. Por mais treinamento e experiência de batalha que eles tenham, os cavaleiros vermelhos ainda são apenas soldados, inexperientes com os modos da corte, com o jogo de palavras e intenções e, por isso, tão sinceros. Ge’els é capaz de ver as emoções e ler os pensamentos apenas examinando os olhares de cada um. Uma experiência distinta daquela tida com a Rosa de Auberon. Ileanna sabe como jogar – o envio de Vridhiel e da rosa de gelo é uma evidência –, julgar como e quando revelar as cartas possuídas, quando fazer uma jogada e quando esperar, tendo aprendido isso com Avallac’h e o próprio vice-rei. Ge’els se vê ansioso para descobrir quais serão as jogadas escolhidas pela protegida de Auberon e quando o jogo a trará de voltar para Tir Ná Lia.

“O senhor, mais do que qualquer um, sabe onde a lealdade dela sempre esteve. E por quê” A mensagem entregue por Vridhiel ecoa na mente do regente e leva os pensamentos de volta para a rosa de gelo presenteada. Sim, eu sei. Você deu a Auberon sua confiança, sua lealdade. E, então, vocês compartilharam um segredo, a verdadeira natureza do seu poder. O pensamento faz com que o olhar da cor de mel volte a observar os cavaleiros vermelhos presentes. Ge’els sabe onde a lealdade de Vridhiel e Faolin é mais forte, o que deixa como única incógnita a presença que chegou como surpresa.

— Andir. – o vice-rei diz, o alto e forte tom de voz quebrando o silêncio como um trovão, o claro olhar observando o navegador atenta e intensamente  – Você era leal a Auberon tanto quanto sua irmã, Inis, era leal a Lara. – Ge’els percebe como a tensão nasce sob a pele do cavaleiro vermelho diante da menção da irmã – Então, eu presumo que não estou errado em afirmar que Ileanna também tinha seu respeito e sua confiança.

— Sim. – Andir responde, a voz ecoando o peso das lembranças despertadas pelo nome da irmã – A Rosa nunca me deu um motivo para desconfiar.

— E por isso eu pergunto: Você acredita que Ileanna traiu Auberon?

Em um segundo, Andir se vê como o foco da atenção de todos os presentes, a questão levantada pelo vice-rei podendo ser lida nos olhares dos outros cavaleiros vermelhos. Sob o tenso silêncio, o navegador deixa que os pensamentos retornem ao passado, à convivência com a Rosa de Auberon. A lealdade de Ileanna nunca foi uma dúvida na mente de Andir e a acusação feita pelo atual rei foi recebida como um choque envolto em surpresa confusão. Por mais que tentasse encontrar um motivo que pudesse levar a Rosa a traição, o cavaleiro vermelho só encontrou as lembranças de uma feiticeira sempre pronta para ajoelhar diante do rei, para obedecer e servir. Mas a Caçada é leal ao trono, ao rei e o julgamento de Eredin foi aceito, a sentença assistida no Tempo do Fim. O navegador estava presente durante a caçada a Ileanna, o azul olhar tendo visto a neve de Tedd Deireadh ficar vermelha com o sangue da feiticeira e Andir acreditou que a Rosa havia morrido, os machucados carregados profundos demais para qualquer um sobreviver. Contudo, é a confusão sobre a traição de Ileanna que o questionamento de Ge’els desperta e para qual há apenas uma resposta:

— Não. – o navegador diz em um sussurro – Não posso dizer como ou por que Ileanna trairia o rei Auberon e isso não me deixa acreditar.

Ge’els assente, aceitando a resposta de Andir, mas não deixando de perceber os suspiros aliviados que escapam dos lábios de Vridhiel e Faolin. Para o vice-rei, a admissão do navegador oferece a oportunidade de ter mais um soldado para descobrir a verdade sobre Eredin e Ileanna, mais um ponto para puxar a feiticeira de volta para Tir Ná Lia, uma vez que a Rosa sempre nutriu um profundo respeito por Andir e Inis.

— Mas por que Ileanna está com os Aen Seidhe? – Andir questiona, as írises azuis se voltando para o vice-rei.

— Ela está com Zireael. – Faolin responde, atraindo a atenção do companheiro – E com aqueles que protegem a Andorinha, incluindo Avallac’h. – o claro olhar do navegador é desviado para o regente.

Naturalmente. A Raposa ainda persegue a sombra da Gaivota. O pensamento é um reflexo imediato para o vice-rei. E o poder no sangue da Rosa. Por um momento, as írises da cor do mel observam os ansiosos cavaleiros vermelhos, a mente reconhecendo a hora de realizar um movimento, uma jogada para ganhar mais um aliado.

— E isso o deixa com uma escolha, Andir. – Ge’els diz, o tom de voz calmo e controlado – Você pode permanecer na capital conosco e nos ajudar a desvendar a verdade por trás da traição de Ileanna ou você pode ir, retornar para Eredin e reportar minhas ações. Você tem até o amanhecer para decidir.

Kaer Morhen

Lentamente, a chuva se transforma em uma fina garoa, o vento soprando levemente o frio para dentro da fortaleza dos witchers. Com a exceção de duas feiticeiras, todos se encontram reunidos no salão ao redor de uma das mesas de madeira, onde o desenho da arquitetura de Kaer Morhen foi colocado e é observado por atentos olhos aquamarines.  Enquanto Vesemir discute estratégias com Eskel e Lambert, o olhar do Lobo Branco permanece focado no Aen Saevherne, a mente recordando a história contada e o aviso dado por uma aparição. Com a ameaça da Caçada Selvagem tão perto, Geralt não pode deixar de imaginar se os Cavaleiros Vermelhos serão os únicos inimigos a serem enfrentados no caminho para manter Ciri e Ileanna a salvo. A atenção oferecida a si não é ignorada pelo Aen Elle, o claro olhar logo sendo erguido em direção ao witcher.

— Algo errado, Geralt? – Avallac’h questiona, o casual tom de voz escondendo a cautela com que as írises aquamarines observam o Lobo Branco e atraindo a atenção dos outros presentes.

— Eu só estava pensando. – o guerreiro responde, ocultando a desconfiança com um fragmento da verdade – Quantos cavaleiros você acredita que Eredin irá mandar?

— Não tantos quanto imagina. – o Sábio diz, cruzando os braços sobre o peito – Não é fácil pular entre mundos com um exército. Eredin poderá usar seus navegadores mais poderosos para trazer o Naglfar, o navio da Caçada, e mais uma ou duas centenas de soldados. Não mais do que isso.

— E quem são os navegadores mais poderosos da Caçada? – Eskel questiona com genuína curiosidade na voz.

— Eu diria Caranthir e Ileanna. - Avallac'h sorri com a pequena provocação, não deixando de perceber o modo como as írises douradas do witcher de cabelos brancos brilha com claro ultraje – Seguidos por Andir e Faolin.

— Andir? - Geralt questiona reconhecendo o nome – O irmão de Inis, certo? - Avallac'h assente – Então, ele é mesmo leal a Eredin.

— Ele sempre foi leal ao trono e ao rei, mas a morte da irmã o deixou com a lealdade menos cega, por assim dizer. – o Aen Saevherne responde, mas falha em esconder a amargura que colore as palavras ditas e revela as sombras do passado entrelaçadas na morte de Inis. E de Lara.

Eu imagino como a morte de Lara realmente o afetou. O pensamento nasce na mente de Geralt junto com o despertar das lembranças acerca da navegadora que assombrava a Ilha da Neblina. Inis disse que você não a perdoou e nem a Cregennan. Por um momento, o dourado olhar cai sobre a jovem de cabelos acinzentados que permanece sentada à mesa. E Ciri? Ela também possui sua raiva e ressentimento? A possibilidade queima o coração do witcher e atraí as írises claras de volta para o Aen Elle, os braços sendo cruzados sobre o peito em uma tentativa de controlar as próprias desconfianças. Ou Ciri é a sua tentativa de ter Lara de volta?

— Você sabia que Inis estava na Ilha da Neblina? – Geralt questiona e há algo na voz do guerreiro que captura a atenção de Vesemir. O líder dos witchers conhece o aluno e reconhece que há mais na mente do Lobo do que ele está se permitindo mostrar.

— Isso era apenas uma teoria, uma história entre os Aen Elle. – Avallac’h responde – Mas, sim, eu senti uma presença na Ilha. Contudo, ela não se aproximou e eu não a procurei.

Você a temeu? Ou o passado que ela representava? O pensamento é como veneno na língua do witcher, pedindo para ser libertado e dirigido ao Aen Saevherne. A cada segundo que passa, a cada palavra que é dita e pensada a suspeita apenas se intensifica na mente do Lobo Branco, assim como o desejo de manter as filhas longe do Aen Elle. Do outro lado, o atento olhar aquamarine percebe os pensamentos que dançam nas sombras das írises douradas, as deixando muito parecidas com o olhar de Ileanna – o mesmo traço de dúvida, de questionamento. Por um momento, Avallac’h se permite imaginar o quanto Inis contou a Geralt, o quanto o ponto de vista da navegadora pode ter influenciado a visão do witcher sobre o passado. E o presente.

— Diga-me, Avallac'h... – Vesemir questiona, tentando quebrar a tensão – Você treinou Ileanna e Ciri. Se não tivesse acontecido uma interrupção, quem você acha que teria vencido?

— Ileanna. – o Aen Elle responde de imediato, surpreendendo os outros com a rapidez da resposta – Ileanna possui duas vantagens sobre Zireal: controle e experiência. Vocês treinaram Ciri, sim, e ela lutou para sobreviver, mas ela não possui a experiência de batalha de Ileanna, de comandar e lutar ao lado de soldados. Além disso, a Rosa tem um controle sobre o próprio poder que Zireael ainda se encontra longe de alcançar.

— O modo como você fala sobre ela... – Geralt começa a dizer, percebendo o tom quase impessoal com o qual o Aen Saevherne descreve Ileanna.

— O que você vê quando olha para ela, Geralt? - Avallac'h questiona com um tom de voz quase tão afiado quanto uma adaga – Você vê uma jovem feiticeira, talvez uma poderosa navegadora. Você vê a filha que perdeu anos atrás. Eu vejo a Rosa de Auberon, a poderosa feiticeira que Ileanna se tornou, que liderava e lutava ao lado dos soldados que comandava, ganhando deles a mesma lealdade que oferecia, a Rosa que se ajoelhava para o Rei sem hesitação, a força da natureza que ela é capaz de ser e ainda não mostrou a vocês. Não se iluda, witcher. Como Cirilla, Ileanna possui o poder de destruir um mundo.

De incendiar o Caminho dos Mundos com Zireael, como Auberon previu. O pensamento é mantido em silêncio, o Aen Saevherne segurando a língua para não revelar o segredo da Rosa, a verdadeira natureza do poder de Ileanna que a tornou tão valiosa para os Aen Elle e a conecta tão profundamente a Andorinha. Entretanto, diferentes partes da fala de Avallac’h capturam a atenção dos presentes. Para o mais velho dos witchers, é o passado em combate de Ileanna que captura o interesse e faz com que Vesemir questione quantas batalhas Ileanna lutou para e com os Cavaleiros Vermelhos. Contudo, para a Andorinha, é uma única palavra que faz a atenção de refém e desperta a curiosidade – por mais que o orgulho se sinta um pouco dolorido ao perceber que Avallac’h tinha certeza de sua derrota. Você vê a filha que perdeu anos atrás. O Aen Saevherne poderia estar certo e Ileanna ser realmente filha de Geralt? Isso explicaria a semelhança física com Yennefer e os olhos dourados com pupilas verticais, mas ainda assim o verde olhar procura pelo witcher, o encontrando com a atenção ainda voltada para o Aen Elle.

Mesmo que o dourado olhar ainda se encontre focado nas írises aquamarines, é a fala sobre lealdade que domina a mente do witcher de cabelos brancos e o faz recordar de um encontro acontecido em Hindar e de uma aposta feita. O nome do cavaleiro vermelho com a cicatriz no rosto... Vridhiel. Foi para Vridhiel que Ileanna entregou a rosa de gelo e deu uma escolha: para retornar para Eredin ou para o lar dos Aen Elle. E quanto mais o witcher pensa, menos provável parece que o cavaleiro vermelhou escolheu a primeira opção, como Ileanna disse na época. Se esse tivesse sido o caso, então Eredin teria mandado alguém há muito tempo. E se Vridhiel realmente escolheu a segunda opção, o caminho oferecido por Ileanna, o que isso significa para a jovem feiticeira? Se ele obedeceu, então ele ainda é leal?

— O que foi, Geralt? – Avallac’h questiona, percebendo as sombras se intensificarem no dourado olhar.

— O quão leal eram os soldados que Ileanna comandava? – o witcher pergunta, as írises claras observando a curiosidade que nasce nos olhos aquamarines.

— Muito. – o Aen Saevherne responde – Uma das fraquezas de Ileanna é a compaixão. Ela se preocupava com cada soldado sob seu comando e, se necessário, os protegia em batalha. Eles, em retorno, a protegiam também. Sendo leal a eles, ela conquistou uma intensa lealdade por parte dos soldados. Eu me atreveria a dizer que ela ganhou a mesma lealdade que ela oferecia a Auberon.

— Ela era uma boa líder, então. – Eskel comenta, não compreendendo como se preocupar com aqueles que lutam ao seu lado pode ser uma fraqueza.

— Sim, mas um bom líder também precisa saber quando fazer sacrifícios.

A simplicidade com que o Aen Elle fala surpreende tanto os witchers quando a Andorinha, que recorda o respeito e a autoridade que Ileanna parecia ter conquistado entre os elfos, mesmo sendo humana. Entretanto, antes que alguém possa rebater as palavras do Aen Saevherne, o som de pessoas se aproximando, vindas da entrada da fortaleza, rouba a atenção de todos. Logo, duas mulheres podem ser vistas e reconhecidas, os sorrisos nos lábios de ambas pintados com provocativo divertimento.

— Estamos interrompendo? – Triss questiona e, ao ver Ciri, corre em direção a Andorinha, a abraçando com força.

— Não pareça tão surpreso, witcher. – Keira diz se aproximando e sorrindo para Geralt – Eu estava te devendo uma, não?

— Yen me contou o que está acontecendo. – Triss explica – E eu achei que Keira iria ser uma boa adição ao nosso time.

— Foi uma boa ideia. – a voz de Yennefer ecoa pelo salão e anuncia a chegada da feiticeira e de Ileanna – Estou feliz que tenha conseguido chegar a tempo.

Tão rápido quanto o soprar do vento, o clima de surpresa e divertimento se desfaz, os olhares de Keira e Triss logo sendo atraídos para a jovem feiticeira que acompanha Yennefer. Para as feiticeiras é óbvia a identidade da jovem de olhos dourados, a semelhança com Yenna e Geralt sendo uma clara denúncia. As castanhas írises de Triss percebem o modo como Ileanna acompanha o caminhar de Yennefer, quase como em um reflexo da imponência presente no caminhar da mais velha. Entretanto, mais do que qualquer coisa, as recém-chegadas percebem a nova cor que parece pintar o sorriso de Yennefer e o brilho que domina as írises violentas, a aura de felicidade e satisfação que emana da poderosa feiticeira e contrasta com a iminente ameaça da Caçada, mas que, com certeza, se origina na presença da jovem de olhos dourados.

— Agora que estamos todos aqui, vamos começar. – a forte e imponente voz de Avallac’h captura a atenção de todos e a dirige para os planos para a chegada da Caçada Selvagem.

Tir Ná Lia

O som das cachoeiras que contornam os jardins do Palácio do Despertar são como um sussurro a quebrar o silêncio da noite. De pé próximo a amurada de proteção, um soldado permanece com os braços cruzados contra o peito coberto pela armadura, a mente presa na conversa recém-terminada, a traição da Rosa de Auberon. Írises acinzentadas são elevadas para a lua cheia que ilumina a adormecida capital dos Aen Elle. Mas a quietude do sono é algo que se encontra distante da mente do navegador, os pensamentos agitados como as ondas do mar sob uma tempestade. Anos atrás, quando a sentença foi dada e Ileanna caçada, a confusa realidade foi o gatilho para despertar antigas lembranças. E, agora, tudo parece retornar e atormentar o coração do cavaleiro vermelho.

Mesmo quando Auberon ainda vivia, a traição de Lara era como uma sombra a acompanhar o soberano e os Aen Elle. Alguns concordavam com o julgamento, mas outros defendiam que não havia nada de errados nas ações da princesa. E esse impasse ainda persiste, a vida e a morte de Lara Dorren entrelaçadas nos espinhos da lealdade e da traição. Como a Rosa de Auberon. Um suspiro escapa por entre os lábios finos, a mente tentando, mas falhando em fugir dos pensamentos que remetem ao passado, às mortes que acompanharam o fim de Lara e Cregennan. Os dedos envoltos pela manopla apertam os braços com uma força inconsciente, o coração batendo rápido e dolorido no peito. Inis. A morte da irmã permanece como um espinho no peito de Andir, a lealdade de Inis para com Lara sendo equivalente a que o navegador oferecia para o antigo rei.

A filha e a protegida de Auberon, ambas marcadas pela sombra da traição. Como a irmã, Andir não acreditava que havia algum crime nas escolhas de Lara, na decisão de ficar com o feiticeiro humano. As acinzentadas írises observam o horizonte banhado na noturna luz, mas a mente se recorda de quando metade da cidade foi coberta pelo gelo, a marca da dor da perda. A lealdade de Ileanna nunca foi questionada, ninguém se atrevia a pensar que a Rosa de Auberon pudesse ser capaz de se voltar contra o rei. E, por isso, a acusação e o julgamento de traição foram um choque para todos. Contudo, a mesma dúvida que acompanhou o navegador durante toda a caçada à feiticeira retorna, instigada pelas palavras e questionamentos do vice-rei. Eredin teria mentido? Não sobre a morte de Ileanna, um erro de julgamento é muito provável, mas sobre o ato de traição em si? E, se sim, por quê? Tantas perguntas e apenas a Rosa e o atual rei possuem as respostas.

— Veio garantir que não fugi? – o questionamento é feito em um tom de voz colorido com provocação, as claras írises se voltando para o soldado que se aproxima com passos lentos e cuidadosos.

— Não. – Vridhiel responde, um sorriso esticando os lábios finos – Apenas vim ver se precisa de alguém para conversar.

— Você não é tão sutil quanto acredita ser, meu amigo. – Andir comenta, um sorriso próprio nascendo nos lábios ao perceber a confusão que nasce nas írises verdes – Sei por que está ajudando o vice-rei nessa busca pela Rosa de Auberon. Sua lealdade não é a única coisa que o faz se preocupar com Ileanna.

Por um momento, o verde olhar do capitão é desviado para as cachoeiras, a tensão que domina os músculos podendo ser percebida mesmo sob a armadura. Sob o noturno silêncio, Andir observa o modo como a tensionada mandíbula de Vridhiel denuncia as palavras que o cavaleiro vermelho mantém guardadas, o sentimento que sempre permaneceu como um segredo, exceto para aqueles que o conheciam bem ou que sabiam como olhar. E Andir sabe que Ge’els tem conhecimento desse sentimento e o usa como o caminho para manter o apoio de Vridhiel. O coração do capitão mantém o ritmo de uma tempestade no peito, medo e preocupação guerreando com o dever e a responsabilidade e, em meio a tudo, a lealdade e o carinho guardados como um tesouro escondido. O cavaleiro sabe que negar é tolice e um pesado suspiro escapa por entre os lábios finos, as verdes írises retornando para o companheiro.

— Meus sentimentos são nublam meu julgamento. – o capitão diz, a voz ecoando com a autoridade da posição possuída – Eu não acredito que Ileanna tenha traído o rei Auberon.

— Eu também não acredito. – Andir responde com simplicidade, o acinzentado olhar retornando para o horizonte – Você se lembra da noite do funeral do rei? Do que aconteceu enquanto o corpo de Auberon queimava na pira?

— Metade da cidade congelou. – Vridhiel diz, assentindo – Avallac’h disse que a Rosa perdeu o controle do próprio poder. Ele teve que fazê-la parar para impedir que toda cidade congelasse.

— Ela sofreu com a morte do rei. – o navegador retoma – Tanto e tão profundamente que o poder dela escapou do próprio controle. E eu me recordo de muitos poucos que se mostravam tão prontos e dispostos a servir Auberon quanto a Rosa. – as claras írises são dirigidas para a face do companheiro – Eu vi Eredin caçá-la e quase matá-la. Eu a vi tentar escapar, ferida demais para que acreditássemos que pudesse sobreviver. Eu segui as ordens do rei, mas devo admitir que nunca acreditei completamente na culpa de Ileanna.

— Ela sobreviveu. – a voz de Vridhiel sai apenas um pouco mais alta do que um sussurro – Ela está com Zireael e Avallac’h. – Andir assente, aceitando e acreditando nas afirmações do amigo e o verde olhar do capitão procura pelas acinzentadas írises do navegador – Você decidiu? Você ficará?

— Por enquanto, sim. – Andir responde com um pesado suspiro, o olhar percebendo a satisfação que nasce na face de Vridhiel, mas a mente desejando que o caminho escolhido não leve para o mesmo destino encontrado pela irmã.

Kaer Morhen

Ao redor da mesa, feiticeiras e witchers permanecem reunidos sob o atento olhar aquamarine de um Aen Saevherne. Avallac’h sabe que é só uma questão de tempo até a Caçada alcançar a fortaleza, a raiva e a personalidade impulsiva de Eredin o impedindo de perder a chance de capturar Zireael e matar Ileanna. Por um momento, o claro olhar do Aen Elle cai sobre as jovens que são os alvos dos cavaleiros vermelhos, sentadas lado a lado entre Geralt e Yennefer. As írises douradas da Rosa de Auberon percebem o olhar do antigo professor e um suave sorriso estica os lábios vermelhos. Há algo diferente em Ileanna, mas Avallac’h não consegue definir exatamente o quê. As sombras antes presentes no claro olhar perderam a força, dando lugar a uma claridade que inquieta a mente do Sábio, que se encontra incapaz de afastar a sensação de que Ileanna está um passo mais perto da força da natureza que o feiticeiro sabe que ela pode ser.

— Você acredita que Eredin virá pessoalmente? – Ciri questiona dirigindo o verde olhar para o Aen Saevherne.

— Não. – Avallac’h responde – Por mais impulsivo que Eredin possa ser, eu acredito que ele mandará os generais em seu lugar.

— Quantos generais ele tem? – Lambert questiona, a voz e o dourado olhar não escondendo a desconfiança sentida com relação ao Aen Elle.

— Três. – apesar da resposta ser dirigida ao witcher, as írises aquamarines se focam na feiticeira de olhos dourados – Imlerith, Caranthir e Ge’els.

Ge’els. O nome ecoa na mente de Geralt e Yennefer, despertando a lembrança de um encontro ocorrido na ilha de Hindar. Foi esse o nome dito por Ileanna em uma das opções dadas ao cavaleiro vermelho encontrado. As írises douradas do witcher procuram pelo olhar violeta da feiticeira, encontrando nos olhos da amada os reflexos dos próprios pensamentos, o coração batendo com os ecos dos pensamentos invocados pela fala de Avallac’h sobre a lealdade dos soldados de Ileanna e o provável caminho escolhido por Vridhiel.

— Contudo, apenas Imlerith e Caranthir virão. – Ileanna comenta, não percebendo a muda conversa que ocorre entre os pais – Ge’els nunca deixa a capital.

— Por quê? – Eskel questiona.

— Ge’els é o vice-rei de Eredin. – Avallac’h responde antes que Ileanna possa fazê-lo – Enquanto Caranthir e Imlerith o acompanham na Caçada Selvagem, Ge’els permanece em Tir Ná Lia para manter a ordem na ausência do rei. – o olhar aquamarine se volta para a jovem feiticeira – Apesar da posição que ocupa, Eredin não possui a mesma habilidade para governar que o último rei.

— Foi para ele, não foi? – Geralt questiona antes que as sombras que nascem no olhar de Ileanna com a provocação do antigo professor possam se transformar em uma resposta – O cavaleiro vermelho que encontramos em Hindar, você o mandou para Ge’els.

— Que cavaleiro vermelho? – Avallac’h pergunta, a surpresa pintando o até então firme tom de voz.

Por um momento, o Lobo Branco vê a surpresa que nasce nos olhos dourados da filha e denuncia a lembrança deixada de lado, a aposta feita e abandonada em silêncio. Contudo, a observação é breve, pois quando as írises de witcher são dirigidas para o Aen Saevherne, o brilho que Geralt vê se torna tão afiado quanto uma lâmina e, mais uma vez, o guerreiro se recorda das palavras de Avallac’h, da lealdade e proteção de Ileanna para com os próprios soldados. Yennefer também percebe a mudança na jovem feiticeira, o olhar violeta indo da filha para Avallac’h e voltando, a mente percebendo que, por mais que questionamentos e desafios sejam feitos para Ciri, o verdadeiro duelo de Ileanna é com o antigo professor e com os segredos que o passado compartilhado por ambos parece guardar.

— Vridhiel. – a feiticeira com olhos de witcher responde, a voz adquirindo a frieza das primeiras conversas, em que a face de Ileanna como uma cavaleira vermelha se mostrava com mais frequência.

— Seu segundo em comando. – Avallac’h diz e a compreensão que nasce na face do Aen Elle intriga o witcher de cabelos brancos, o dourado olhar adquirindo um brilho protetor que também se mostra como uma velada ameaça ao Aen Saevherne – Você o encontrou nesse mundo?

— Em uma das ilhas de Skellige. – Ileanna responde e uma gelada brisa parece invadir o salão da fortaleza – Ele estava procurando por Zireael, como ordenado por Eredin, mas me encontrou.

— E você o mandou para a capital, para Ge’els. – o Aen Elle diz, as írises aquamarines observando atentamente as reações da antiga aluna – Por quê?

— Eu queria saber se ainda havia restado algo da minha antiga vida. – cada palavra da feiticeira de olhos dourados parece ser envolta em um fragmento da gelada brisa, ecoando em Geralt e Yennefer a lembrança da mesma resposta dada em Kaer Trolde.

— A lealdade dos seus soldados? – Avallac’h questiona e não há como não ouvir a provocação que pinta a voz do Sábio e intensifica o afiado brilho nos olhos de Ileanna.

— Mas Ge’els poderia ordenar a sua morte tanto quanto Eredin. – Ciri diz, não compreendo qual seria a diferença entre o rei e o vice-rei.

— Não. – a jovem feiticeira responde, as írises douradas ainda focadas no olhar aquamarine que reflete a pergunta da Andorinha – Ge’els não deseja minha morte e você sabe por quê. – o gelo na voz de Ileanna parece se transformar em presas, mordendo as palavras ditas e aqueles que as ouvem.

— Mas ele não impediu Eredin de caçar você! – Ciri interpõe, o tom de voz mais alto e firme em uma tentativa de conquistar a atenção da mais velha.

Contudo, quando a intenção é alcançada, a Andorinha sente como se o frio penetrasse o próprio coração. As sombras que nascem nos olhos dourados parecem chamar a tempestade sentida no próprio poder da feiticeira, relâmpagos e trovões e um mar revolto, com ondas de perguntas e dúvidas que Ciri sente que são dirigidas a si. Não pela primeira vez, Zireael se vê confusa pelo silencioso questionamento das írises douradas, os sussurros sem voz que ecoam em uma parte de si que a Andorinha não consegue alcançar ou reconhecer. O silêncio das jovens alimenta a tensa atmosfera que domina o salão, a atenção de todos concentrada na quieta conversa que parece acontecer entre Ciri e Ileanna.

Para Avallac’h, é claro que o tempo só tem intensificado o laço entre a Rosa e a Andorinha, por mais que Zireael não compreenda o que a atrai para a branca tempestade guardada em Ileanna. A Caçada Selvagem se aproxima, trazendo a ameaça de violência e morte, mas o Destino sussurra mais alto do que o perigo dos Cavaleiros Vermelhos, declarando o caminho previsto por Auberon e abrindo a trilha que levará Ciri e Ileanna para o Caminho dos Mundos. Para destruir ou construir, queimar ou proteger, Avallac’h ainda não consegue dizer. Para os outros, duas questões permanecem no ar, pesadas com os possibilidades que podem guardar. Qual é a verdadeira conexão entre Ciri e Ileanna? E para qual caminho essa conexão irá levá-las?

Uma sensação de quase déjà vu domina o witcher de cabelos brancos que vê na silenciosa conversa de Ciri e Ileanna uma repetição daquela tida ao final do duelo. O coração do poderoso guerreiro bate forte no peito, pesado com a impressão de que há algo— um segredo, uma ligação – entre as filhas que permanece inacessível para qualquer um que não elas. A sensação é compartilhada pela feiticeira de olhos violetas, que vê o modo como a postura de Ciri muda, tendendo para a direção de Ileanna como se a Andorinha quisesse alcançar a Rosa, mas sem saber como.

Há tanto que você não sabe, que você não compreende. O pensamento navega na mente da feiticeira de olhos dourados, as claras írises lendo facilmente a confusão e a dúvida no verde olhar da Andorinha. Se eu pedir, você me deixará mostrar? Você deixará que eu a guie, Zireael? A escolha será sua, eu só quero mostrar o caminho.

— Ge’els é leal ao trono e às nossas leis. – Avallac’h diz, quebrando o tenso silêncio e atraindo a atenção das verdes írises da Andorinha – Sendo assim, ele não iria contra uma ordem do rei sem um forte motivo.

— Ele poderia ter uma razão agora? – Yennefer diz e o Aen Elle percebe o tom de desafio na voz da feiticeira e a indireta dada para a última fala de Ileanna.

— Talvez. – O Aen Saevherne responde, o olhar aquamarine caindo para a feiticeira de olhos dourados – A lealdade oferecida por Ge’els para Eredin nunca foi tão forte quanto aquela que ele dava para Auberon. Você mandou alguma mensagem para Ge’els junto com seu segundo em comando?

— Que ele sabe onde minha lealdade sempre esteve e por quê. – o desafio é claro na voz de Ileanna e, para todos os presentes, se torna óbvio que há algo na vida da jovem feiticeira com os Aen Elle que permanece obscuro, um segredo ainda não contado, mas que é a chave para montar e compreender o quebra-cabeça do passado da feiticeira com olhos de witcher.

— Ge’els treinou você tanto quanto eu. – Avallac’h diz e, por um momento, Geralt pensa ouvir um eco de orgulho na voz do Aen Elle – E ele realmente ensinou você a jogar.

— Assim como você. – a resposta imediata de Ileanna faz com que um sorriso estique os lábios do Aen Saevherne.

— Se Vridhiel tivesse retornado para Eredin, Caranthir teria aparecido há muito tempo. Então, acredito que seja seguro assumir que ele seguiu para Ge’els. – o Sábio continua como se a interrupção não houvesse acontecido, as írises aquamarines presas no dourado olhar da feiticeira – Sua lealdade para com Auberon nunca foi questionada. Não por mim, por Ge’els, nem mesmo por Eredin. E, com certeza, não pelos seus soldados. Seguindo suas instruções, Vridhiel mostrou que a lealdade dele ainda permanece com você. E, não atacando, Ge’els mostrou que a lealdade que possui para com o trono é manchada com desconfiança com relação ao rei.

— Então, Ge’els não é leal a Eredin? – Geralt questiona tentando compreender a posição do vice-rei dos Aen Elle.

— Como eu disse, Ge’els é leal ao trono. – Avallac’h responde – Ele pode guardar desconfianças com relação a Eredin, mas como ele agirá é outra questão.

— Ninguém sabe jogar como Ge’els. – Ileanna comenta – Se ele se posiciona contra Eredin ou apenas como um espectador, só o tempo dirá. Caranthir e Imlerith são os generais nos quais devemos nos focar.

— Serão eles que virão para Kaer Morhen? – Triss questiona. A feiticeira percebeu o quão tensa a situação realmente é, não somente por causa da ameaça da Caçada Selvagem, mas também e, principalmente, pelo passado compartilhado por Ileanna e o Aen Elle.

— Provavelmente. – a feiticeira de olhos dourados responde – Eredin não virá e eles não deixarão o rei sozinho e desprotegido. Caranthir e Imlerith provavelmente virão com um pelotão cada. O resto permanecerá no Naglfar.

Avallac’h assente, concordando com a previsão de Ileanna. Contudo, quando os witchers e as feiticeiras começam a discutir os pontos mais vulneráveis e estratégicos da fortaleza, a mente do Aen Saevherne não se foca nas palavras ditas e nos planos compartilhados. O olhar aquamarine permanece voltado para a Rosa e a Andorinha, a mente imaginando como o caminho irá se revelar depois da batalha. O Aen Elle sabe que Ciri precisa de mais treinamento para aprender a controlar e não temer o próprio poder, um treinamento que seria enriquecido pela presença e experiência de Ileanna. Mas uma vez que o poder de ambas seja revelado e conectado, o Destino irá prevalecer? O Caminho dos Mundos abrirá para ambas? E, quando a porta for aberta, esse mundo irá sucumbir ao frio e ao gelo, se transformando em Tedd Deireadh?

Quando a hora chegar, Ciri e Ileanna comandarão o próprio poder ou será outro que segurará o controle?

Skellige

Olhos de um claro e frio azul observam a névoa que é derramada sobre a água de Skellige, a ausência de uma resposta corroendo os pensamentos com as sombras da desconfiança. O atraso nos retornos de Andir e Caranthir inquietam o sangue do soberano e jogam a mente em possibilidades manchadas pela traição. A lealdade de Caranthir não é tão questionada quanto a de Andir, uma vez que o general permaneceu nesse mundo enquanto o navegador retornou para capital. Para Ge’els. Quanto mais passos o Tempo dá, mais Eredin desconfia do vice-rei. Seria realmente possível para Ge’els traí-lo? E, se sim, por quê? O que o outro Aen Elle poderia esperar ganhar traindo o rei? O soberano sabe que não é o trono, uma vez que é pública a preferência de Ge’els por servir ao invés de governar sozinho.

Talvez o motivo seja o mesmo que trouxe Vridhiel e Faolin mais uma vez a esse mundo. O que Ge’els procura? A Andorinha, o poder de Lara? Sob o azul e frio céu de Skellige, o rei da Caçada Selvagem se recorda de um desenho achado no esconderijo de um Aen Saevherne. A Rosa de Auberon. Mas isso não seria possível. Ileanna está morta. Por mais que o pensamento ecoe com força, a mente não consegue impedir que as suspeitas renasçam e joguem sombras sobre a certeza. Se a Rosa sobreviveu a luta em Tedd Deireadh, teria ido ao antigo professor em busca de auxílio e refúgio? E todas as suspeitas e acusações que Ileanna possuía contra si, Ge’els teria ouvido e acreditado? Ou o vice-rei possuiria desconfianças próprias? As mãos cobertas pelas pesadas manoplas apertam a murada do navio, quase quebrando a madeira.

— Meu rei? – o chamado acompanha o alto estalar do portal sendo fechado e retira o soberano dos próprios pensamentos.

— Caranthir. – Eredin diz em reconhecimento, o azul olhar sendo dirigido para o navegador, que retira o pesado elmo  – O que descobriu?

— Eu segui Vridhiel e Faolin até a fortaleza dos witchers, ao norte. – o poderoso Aen Elle responde.

— Eles queriam encontrar Zireael? – Eredin questiona, tentando desvendar as intenções por trás dos atos de Ge’els.

— Acredito que não, meu senhor. – Caranthir diz, surpreendendo o soberano, as írises azuis parecendo capturar a névoa que envolve o Naglfar – Zireael está com os witchers, assim como Avallac’h. A maldição foi quebrada e a Raposa está em sua forma verdadeira.

— Se não era Zireael, o que Vridhiel e Faolin buscavam? – a quase violenta autoridade que ecoa na voz de Eredin não atinge o navegador, que mantém o calmo tom de voz ao responder.

— Ileanna. A Rosa de Auberon está viva e com os witchers.

Por um momento, todo Naglfar treme sobre a água, refletindo o poder que é liberado pelo rei, escapando em ondas juntamente com a raiva sentida. Ileanna sobreviveu. A nova descoberta alimenta o fogo nas veias de Eredin, queimando com a certeza de que Ge’els está jogando um jogo próprio. E, mais do que isso, que a Rosa e a Andorinha estão juntas sob a guarda da Raposa. Avallac’h conseguiu recuperar a vantagem tida durante o reinado de Auberon – o poder de Ileanna, a guarda sobre Zireael, os segredos do rei. Mas Eredin se recusa a perder esse jogo, a ser relegado a um canto do tabuleiro. O guerreiro decide mostrar o próprio poder e porque a Caçada Selvagem é uma força a ser temida e respeitada. Os witchers e Avallac’h serão os primeiros a sentir e, então, Ge’els saberá tão bem quanto Ileanna qual é o preço da traição.

— Chame Imlerith e vá até os witchers. – a voz do rei, poderosa e imponente, parece chamar e comandar o frio vento que congela as águas de Skellige – Tragam-me Zireael e Ileanna. Os outros, vocês podem matar. Mas eu quero o poder da Andorinha e o coração da Rosa de Auberon.

Caranthir assente, cruzando o braço direito sobre o peito em respeito e submissão. A mente do navegador, contudo, percebe a rachadura que nasce na coroa do soberano e no poder mantido por Eredin. A sobrevivência de Ileanna e Avallac’h e as decisões de Ge’els mudam o traçado do tabuleiro e agora que o primeiro movimento foi feito, o que acontecerá? Quem manterá a vantagem do jogo?

Tir Ná Lia

Olhos da cor do mel observam os soldados que conversam no jardim do palácio, a mente repassando a conversa tida há poucas horas, o posicionamento de uma nova peça no tabuleiro de um jogo com muitos lados. O vice-rei tem consciência de que Eredin irá notar a ausência de Andir e o relacionará ao pedido por Vridhiel e, naturalmente, irá concluir que não possui mais o apoio esperado da capital. Contudo, conhecendo o rei, Ge’els sabe que o soberano irá esperar terminar a caçada no mundo dos Aen Seidhe para se voltar contra o vice-rei. Isso dá o tempo necessário ao Aen Elle para descobrir a verdade por trás da acusação de traição feita contra Ileanna. E, mais ainda, se o Destino irá se mostrar como previsto por Auberon ou se a Rosa e a Andorinha mudarão o caminho traçado para ambas.

Com passos lentos e cruzando os braços nas costas, Ge’els se afasta da janela, caminhando de modo distraído pelo silencioso salão do trono. O vice-rei sabe muito bem que Eredin não é o único lado a jogar nesse tabuleiro. Há os witchers que, com certeza, farão tudo o que puderem para manter Cirilla e Ileanna em segurança e longe da influência dos Aen Elle. E, naturalmente, há a Raposa. Avallac’h conhece o poder guardado no sangue de Zireael e a verdadeira natureza do poder da Rosa, o segredo guardado pelo rei e dividido apenas com o Aen Saevherne e o próprio vice-rei. O que o Sábio deseja fazer com esse conhecimento é algo que Ge’els pode apenas especular, mas que o regente arrisca dizer que possui conexão com a preservação da memória de Lara, do que ela significava para Avallac’h. Entretanto, é a última jogadora que captura a atenção e os pensamentos do vice-rei.

Ileanna.

Afinal, Ge’els tem certeza de que a Rosa de Auberon também está jogando, mas para conseguir o quê? Honrar a memória do último rei? Simplesmente ajudar Zireael? Recuperar a própria imagem perante os Aen Elle, se livrar da acusação de traição? Um discreto suspiro escapa por entre os lábios do vice-rei, as írises da cor do mel sendo dirigidas para o trono que permanece vazio sob a luz da lua. O que Auberon havia planejado para aquela que tornou sua Rosa, ainda seria possível? A salvação de uma tempestade, a proteção de um sangue. Sob as sombras que dançam em meio a luz das velas, o vice-rei deixa que a mente viaje para o passado, para a lembrança de uma noite quase tão silenciosa quanto essa, mas na qual o salão ainda era preenchido pela força da presença de um rei.

— Ileanna? – o nome ecoa no salão do trono com a imponência sempre presente na voz de Auberon.

— Dormindo. – Ge’els responde, o olhar da cor de mel focado nas costas do soberano, que permanece virado para a janela – Avallac’h disse que ela está cada vez mais perto de ter controle total do próprio poder.

— Eu concordo. – Auberon diz, um dos braços sendo erguidos, os longos dedos exibindo uma orbe congelada.

— Isso é uma bolha de sabão? – o conselheiro questiona, não compreendendo o intento do rei com a demonstração – Está congelada.

— Sim. – o Aen Saevherne responde se voltando para o outro Aen Elle – Como um mundo tocado pela Geada Branca. – írises da cor do chumbo derretida se focam no olhar da cor do mel – Tal é o poder que Ileanna carrega e se encontra tão perto de controlar.

— Acredita que Ileanna poderá nos proteger das Geada, meu rei? – Ge’els questiona, o atento olhar observando a sombra que nasce nos olhos do soberano.

— O Tempo irá chegar para nós e para todos os seres de todos os mundos. – Auberon diz, as írises de chumbo derretido caindo para a gelada orbe entre os dedos – Mas minha Rosa não será tocada. E ela sempre retornará para nosso jardim.

— Mesmo se ele estiver congelado e destruído? – Ge’els questiona, um leve tom de sarcasmo colorido as palavras e fazendo um pequeno sorriso nascer nos lábios do rei.

— Uma Tempestade pode destruir, mas também pode ofertar uma nova vida. – o rei responde sem erguer o olhar – Uma nova chance para o que foi perdido.

— Lara. – o conselheiro diz, um brilho de compreensão nascendo nos olhos da dor de mel – Aquela que carrega o sangue de Lara e que foi predestinada a vir, é a ela que se refere, meu rei?

— Meu sangue não será apagado.– a imponência retorna à voz do soberano, ecoando a autoridade do rei – E minha Rosa não cairá para a Geada, Ge’els. Não importa por quais caminhos a Tempestade a leve, Ileanna sempre retornará para o jardim em que ela floresceu.

Ela sempre retornará. As palavras ecoam na mente do vice-rei enquanto a memória se desfaz e chamam a certeza sentida de que o jogo, eventualmente, irá trazer Ileanna de volta para Tir Ná Lia. Mas e se o retorno fosse incentivado? Um convite dado, um resposta para uma mensagem ainda não respondida. Os olhos da cor do mel observam o vazio salão por um momento, procurando, e então param sobre um pequeno pedestal colocado sobre a lareira. O pequeno e prateado tripé serve de suporte para uma bolha de sabão congelada, guardada e esquecida. Com um toque delicado, Ge’els pega a pequena orbe, o frio preservado gelando a pele e solidificando os pensamentos.

Seu jardim aguarda seu retorno, Rosa de Auberon.

Kaer Morhen

O movimento no interior da fortaleza denuncia a intensidade dos preparativos para a batalha anunciada. Enquanto as feiticeiras se encontraram reunidas para a escolha dos melhores feitiços para proteger tanto a estrutura quanto aqueles que lutarão dentro dos muros de Kaer Morhen, os witchers se espalham, reforçando pontos fracos e espalhando armadilhas para os cavaleiros vermelhos em pontos estratégicos. No salão principal, contudo, uma jovem feiticeira de olhos dourados permanece, assim como o Aen Saevherne que a observa com atentos olhos aquamarines. Parte da atenção de Avallac’h observa enquanto Ileanna brinca com dados, os posicionando como soldados em um tabuleiro ou, nesse caso, sobre o mapa da fortaleza. A maior parte da concentração do Aen Elle, entretanto, se encontra voltada para as mudanças notadas na face e na postura da ex-aluna.

Houve um enfraquecimento nas sombras presentes nos olhos dourados de Ileanna, o nascimento de um brilho que parece denunciar uma descoberta, o encontro com algo há muito perdido e buscado. E isso faz com que o Aen Saevherne questione se a jovem feiticeira se recordou de alguma parte – ou de tudo – do passado vivido nesse mundo. Mas esse pensamento leva apenas a outro questionamento: se verdadeiro, o que a Rosa irá fazer com esse conhecimento? O que mais irá mudar em Ileanna? Parecendo perceber a intensidade dos pensamentos do antigo professor, as írises de witcher são elevadas para o Aen Elle, um suave sorriso nascendo nos lábios vermelhos da feiticeira. É quase paradoxal, Avallac’h percebe, pois apesar de menos sombras e o novo brilho no olhar, Ileanna parece permanecer a mesma.

— Está esperando que eu grite com você? – a Rosa questiona com divertimento e as palavras são uma confirmação para o Aen Elle – Ou apenas confronte você?

— Você lembrou. – Avallac’h diz com simplicidade.

— Em parte, sim. – a jovem feiticeira confirma – Mas você não me respondeu.

— É para isso que eu devo me preparar? Um confronto? – as írises aquamarines se focam no dourado olhar da ex-aluna, o tom e o ritmo da conversa familiar demais para os participantes.

— Não. – percebendo a surpresa que nasce no olhar do Aen Elle, Ileanna continua – Eu não sou idiota, Avallac’h. Você sempre soube. Assim como o rei. E eu sempre soube que esse era um conhecimento longe do meu alcance, pois nenhum de vocês iria me contar se eu perguntasse. E a ausência das minhas memórias, do meu passado, nunca me incomodou. – um  suspiro escapa por entre os lábios finos da jovem feiticeira – Eu não vou mentir. Lembrar me fez bem, curou uma parte de mim que eu não sabia que estava machucada. Mas nada mudou, Avallac’h. Eu não mudei.

Apesar das mudanças observadas, o Aen Saevherne entende o sentido das palavras da ex-aluna. Olhando mais atentamente, Avallac’h pode ver a mesma Rosa de Auberon presente nas lembranças. A força no olhar dourado é familiar, assim como a certeza que ecoa nas palavras que deixam os lábios vermelhos. O passado lembrado é uma peça que completa o quebra-cabeça, mas que não muda a integridade da imagem. Quem Ileanna se tornou é o que possui mais peso, as escolhas feitas, o caminho traçado são o que carregam a verdade sobre a Rosa. As írises aquamarines veem a navegadora que servia – e ainda serve – o rei lealmente. Assim como a acusação de traição não mudou o coração de Ileanna, o passado lembrado também não o modificou. A percepção faz com que um sorriso nasça nos lábios do Aen Saevherne, sendo  imediatamente correspondido.

A poucos metros de distância, o verde olhar da Andorinha observa a conversa entre a jovem feiticeira e o Aen Elle com curiosidade. As peculiaridades da relação entre Avallac’h e Ileanna nunca foram completamente compreendidas por Ciri. Apesar da mútua e clara desconfiança, Zireael vê uma familiaridade e um respeito similar aquele que alguém pode nutrir por um adversário conhecido e com o qual é divertido batalhar. Contudo, logo a mente da Andorinha é dominada pelos pensamentos acerca do que o Aen Saevherne revelou sobre a jovem feiticeira – intencionalmente ou não. Observando Ileanna de certa distância, Ciri pode ver a óbvia semelhança física com Yennefer, algo que já foi percebido anos atrás em Tir Ná Lia. Mas a Andorinha também se recorda de ter visto as semelhanças com Geralt, o olhar que sabe como lutar, que defende e protege. Todas as observações que pareciam apenas divagações na época, uma busca por algo familiar, agora retornam com a força de uma certeza, de uma verdade.

— Uma moeda pelos seus pensamentos? – a pergunta, dita em um tom leve e divertido, surpreende a Andorinha e a traz de volta para a realidade. Se voltando para a origem da voz, Ciri vê Geralt sorrindo com a própria brincadeira, Yennefer permanecendo ao lado do witcher.

— Vendo algo de interessante? – a feiticeira de olhos violetas questiona, o olhar sendo desviado brevemente para Ileanna e Avallac’h.

— Eu nunca os compreendi. – Ciri responde – Eles não confiam um no outro, mas se respeitam. – as verdes írises percebem quando o Lobo Branco assente, concordando, e a garganta dói com as palavras que lutam para sair, com a pergunta que implora para ser feita – Ileanna... – a Andorinha começa e é um caminho sem retorno – O que Avallac’h disse é verdade? Ela é realmente sua filha?

Surpresa nasce nos olhares dourado e violeta. Geralt não pensou no momento em que Avallac’h o questionou que Ciri não sabia sobre esse detalhe. Olhando nas verdes írises da filha mais nova, o witcher não vê raiva ou mágoa, mas somente uma genuína curiosidade, que também nasce nas írises violetas. Yennefer não sabe quando o Aen Saevherne revelou tal informação, entretanto a feiticeira não sente nenhuma vontade de negá-la.

— É verdade. – a simplicidade e o orgulho com que as palavras deixam os lábios de Yennefer surpreendem um pouco a Andorinha, que não esperava uma confirmação tão direta.

— Ela foi... Perdida? – Ciri questiona, lembrando do que foi dito por Avallac’h e por Ileanna anos atrás – Para a Caçada Selvagem?

— Dezesseis anos atrás. – Geralt responde, confirmando e cruzando os braços sobre o peito – Ela tinha oito anos na época. Os cavaleiros vermelhos atacaram Kaer Morhen e a levaram embora.

— Por causa do poder no sangue dela. – as palavras deixam os lábios da Andorinha de forma lenta, quase como se acompanhassem o ritmo das lembranças que despertam na mente – Porque ela é um Truque do Destino.

— Essa é a explicação mais provável. – Geralt diz com um toque de sarcasmo colorindo a voz.

— O quanto você sabe, Ciri? – Yennefer questiona em um tom mais suave, querendo descobrir quanto da verdade é conhecida pela mais nova – Avallac’h te disse alguma coisa sobre Ileanna?

— Nada diferente do que ela já tinha me contado. – Ciri responde, a mente tentando lembrar de uma conversa em um jardim anos atrás – Ela me contou que foi roubada por Eredin, por ordens do rei. Por causa do poder no sangue dela. – o verde olhar pula da feiticeira para o witcher, o antiga vontade de entender Ileanna retornando com uma força que se revela no brilho que domina as írises claras – Mas ela não lembrava desse mundo, da vida que ela tinha aqui, então ela ficou. Ela escolheu ficar em Tir Ná Lia, servir o rei. Ela sabia por que os Aen Elle a queriam e, ainda assim, ela ficou.

Yennefer assente, encontrando na fala da Andorinha tudo que viu em Ileanna. O desejo de servir ao antigo rei dos Aen Elle, a força das próprias decisões, o caminho escolhido e traçado pela própria vontade. Mas a feiticeira de olhos violetas também vê a confusão sentida por Ciri com relação a filha mais velha. Ciri não entende as escolhas de Ileanna e Yennefer é capaz de ver por quê. Os Aen Elle sempre mostraram para Ileanna o que esperavam da jovem feiticeira, desde o início a colocaram em uma posição de escolha. De escolher o caminho ofertado, de ser uma deles, de controlar um poder até então dormente e desconhecido. E, no momento em que Ileanna aceitou, tudo veio junto. A ascensão à protegida do rei, à navegadora da Caçada Selvagem. O antigo rei ofereceu um começo e Ileanna o transformou no caminho de uma vida.

Mas Ciri nunca experimentou essa posição. Calanthe a protegia e temia a herança de Pavetta. Mesmo após a queda de Cintra e tudo que se seguiu, Ciri nunca teve a oportunidade de escolher. Cada caminho atravessado pela Andorinha foi um tropeço no Destino, uma sequência de acontecimentos, de lutas e fugas. Até mesmo a chegada a Tir Ná Lia foi uma tentativa de escapar da batalha que acontecia em Thanedd. Deixando que um pequeno suspiro escape por entre os lábios, Yennefer percebe que é justamente essa experiência de escolha que Ileanna busca oferecer a Ciri. As perguntas feitas, os questionamentos colocados... Tudo foi feito para que Ciri escolha quem quer se tornar, pelo que quer lutar.

O som de passos captura a atenção dos três, que voltam o olhar a tempo de ver Ileanna se afastando da mesa e caminhando em direção ao pátio da fortaleza. Como se puxada por uma corda invisível, Ciri segue o caminho da feiticeira de olhos dourados, os passos rápidos e o coração batendo tão rápido quanto os pensamentos nadam na mente. Ao tentar seguir as filhas, Geralt tem o movimento bloqueado por toque suave no braço. As írises douradas são dirigidas para o olhar violeta, encontrando uma calma compreensão que intriga a mente.

— Deixe. – Yennefer diz em um quase sussurro – Elas precisam conversar.

— Por quê? – o witcher questiona, percebendo que há mais nas palavras e na atitude da amada feiticeira do que é mostrado.

— Ileanna quer mostrar a Ciri o caminho para escolher quem ela quer ser. – a feiticeira responde – E Ciri precisa decidir, Geralt. – Yennefer ergue a mão direita, os dedos contornando a face do guerreiro em um carinho suave e gentil – Ela não é mais uma criança. Ela tem que escolher o caminho que quer percorrer.

— E Ileanna? – o witcher responde envolvendo a cintura da feiticeira com os braços.

— Ela escolheu há muito tempo. Ela segue o que deseja, o que acredita, e não há nada que possa fazê-la desviar do caminho escolhido.  

— Igual a mãe. – Geralt diz e a risada que escapa de Yennefer é como uma brisa que acalma o coração do witcher.

Puxando a feiticeira para um caloroso abraço, o Lobo Branco repousa a cabeça levemente sobre os negros cachos, os pulmões buscando o perfume de lilás e groselha que é tão familiar. Por um momento, o witcher permite que a ameaça da Caçada e os preparativos para a batalha deixem a mente, a atenção se voltando completamente para o calor de Yennefer e a presença das filhas no pátio. Seria uma mentiria se Geralt dissesse que compreende completamente o que acontece entre as filhas, mas o Lobo sabe é algo que precisa ser resolvido. O witcher apenas espera que essa resolução não leve a mais perigo para as filhas.

 

Arredores de Kaer Morhen

O pesado trotar dos cavalos ecoa na silenciosa trilha e na mente do poderoso navegador, os pensamentos se voltando para a missão a ser executada. Por mais que tente negar e ignorar, Caranthir sente o coração batendo rapidamente no peito, ansioso pelo reencontro com o antigo professor e a feiticeira de olhos dourados. O Aen Elle se lembra da caçada em Tedd Deireadh, da neve molhada com o sangue da Rosa de Auberon, mas a sobrevivência de Ileanna não foi uma surpresa tão grande para o cavaleiro vermelho. O poder da Rosa não é algo que Caranthir se deixou esquecer, o tendo sentido diversas vezes contra o próprio poder durante os treinos realizados sob a guarda de Avallac’h.

A memória do antigo professor, contudo, é mais amarga do que a da feiticeira de olhos dourados, marcada pela descoberta acerca da própria natureza. Sem muita dificuldade, o Aen Elle ainda pode sentir a raiva que queimou o sangue quando a verdade foi revelada. Caranthir sente a sombra do conhecimento sobre o coração, de saber que foi criado em uma tentativa de preservar o poder de outra pessoa. Um poder útil e importante para os Aen Elle, mas o navegador sabe que esse não era o único pensamento na mente de Avallac’h durante os experimentos que levaram ao nascimento de Caranthir. Para a Raposa, não era apenas a preservação e o fortalecimento de um poder, mas também da memória de uma Gaivota. A mesma tola obsessão que levou Avallac’h a tentar controlar o poder da Rosa, o que foi uma grande falha. O pensamento faz com que um pequeno sorriso nasça nos lábios escondidos pelo elmo. Somente Auberon controlava o poder de Ileanna.

— Posso ver a fortaleza dos witchers. – a voz de Imlerith tira o navegador das próprias lembranças e guia o olhar azul para a estrutura de pedra que se ergue entre as montanhas.

— Adiante! – Caranthir comanda aos próprios soldados, o outro general ecoando a mesma ordem.

Logo, os witchers cairão e a Rosa e a Andorinha serão entregues ao rei. E a Raposa? O rei ordenou a entrega apenas de Ileanna e Zireael, então Caranthir não negará a si mesmo o prazer de arrancar o coração de Avallac’h.

Kaer Morhen

Os passos que a acompanham não são passados despercebidos e a feiticeira de olhos dourados espera que o pátio seja alcançado para então se virar para a Andorinha que a segue. Há um redemoinho de perguntas no verde olhar de Zireael e, uma vez mais, Ileanna se vê tentada a apenas pedir por permissão para mostrar o caminho antes que tudo seja perdido ou quebrado pela Caçada Selvagem. Do outro lado, Ciri procura por algo diferente na feiticeira mais velha, alguma mudança causada pela verdade descoberta, pelo passado relembrado. O atento olhar da Andorinha percebe que as sombras parecem enfraquecer no dourado olhar, mas nada mais parece modificado. Ileanna permanece com a forte e imponente postura, a confiança na própria habilidade e no próprio poder que sempre se transformou em um silencioso e constante desafio na própria presença da jovem feiticeira. E quando o verde olhar se foca nas írises de witcher, a calma e paciência que encontram – tão familiares – são a certeza que confirma a suspeita.

— Não mudou você. – as palavras deixam os lábios da Andorinha em um confuso sussurro.

— Você também? – Ileanna questiona, uma pequena e breve risada escapando por entre os lábios finos – Vou dizer a você o mesmo que disse para Avallac’h, Zireael: o que descobri me fez bem, curou machucados que eu não sabia que carregava, mas não me mudou. Não mudou quem eu sou, o que eu quero ou pelo que eu luto. – a jovem feiticeira dá um passo à frente, a mente percebendo no intrigado olhar da mais nova uma porta de entrada para questionar, para mostrar— Você entende, Zireael? O passado não define o presente. Seu passado, seu sangue, seu poder não definem você.

Ciri sente o coração tremer no peito, as palavras da feiticeira de olhos dourados ecoando o que foi dito por Geralt após um duelo interrompido. O poder que você tem é seu e só você pode decidir o que fazer com ele e, mais do que isso, decidir quem você é. Percebendo o início de compreensão que nasce nas verdes írises, Ileanna se aproxima ainda mais, a mão esquerda sendo erguida e os dedos tocando levemente a franja acinzentada da Andorinha. O verde olhar procurar pelas írises douradas da mais velha, encontrando o mesmo mudo questionamento de antes, mas dessa vez, não há inquietação ou desconforto, há apenas uma vontade de responder, de encontrar a resposta.

— Eu não quero me tornar Lara. – Ciri diz e a força com que as palavras são ditas fazem com que um sorriso nasça nos lábios da Rosa.

— Ninguém espera que você se torne. – Ileanna responde, o toque caindo para a face da Andorinha. Nem mesmo Avallac’h. Ele deseja preservar, não transformar, o pensamento é mantido em silêncio, sendo trocado por outro – Nem mesmo o rei desejava isso. – uma sombra nasce nas írises douradas e um pesado suspiro escapa por entre os lábios vermelhos – Havia mais que Auberon esperava de nós, que ele desejava que eu mostrasse a você. Você permitiria, Zireael? Você me deixaria mostrar o que Auberon esperava que você encontrasse?

Em meio às palavras da mais velha, Ciri escuta o pedido que permanece escondido. Você confiaria em mim? Em silêncio, a Andorinha ergue a própria mão, os dedos se fechando sobre o punho da feiticeira. O efeito é quase imediato. Sob a pele, Ciri pode sentir o chamado do poder de Ileanna, a poderosa tempestade que é guardada dentro da jovem feiticeira e que sussurra, chamando, convidando. O verde olhar se foca nas írises douradas, lendo o pedido oculto, o convite para sentir a tempestade, para confiar e descobrir. E, dessa vez, não há medo. Com as palavras de Ileanna e Geralt pesando e ecoando na mente, a reposta encontra facilmente liberdade nos lábios da Andorinha.

Sim.

Respirando fundo, a jovem feiticeira sorri, encontrando na resposta de Zireael o início do fim de uma última missão, um último pedido de um rei assassinado. Contudo, o frio que penetra o pátio e parece querer congelar o próprio vento desfaz o alívio fugaz, trazendo consigo o gelo do reconhecimento. As írises verdes da Andorinha percebem a mudança na mais velha e, antes que Ciri possa questionar, Ileanna responde:

— A Caçada está se aproximando.


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Notas finais do capítulo

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