Sol de inverno escrita por


Capítulo 1
Praia das Ametistas




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Os invernos na cidade litorânea Belas Joias¹ raramente eram chamados de inverno pelos moradores, assim como nas cidades ao redor, que eram maiores e mais famosas; o litoral sudeste do Brasil raramente tinha um inverno frio o suficiente para moletons de algodão ou casacos quentes, no máximo os habitantes vestiam um casaco mais fino ou uma blusa de mangas.

Aquele ano, porém, estava sendo atípico. Com temperaturas chegando a 11º na praia² e ventos cortando os céus a cada instante, aquele inverno sim podia receber a nomenclatura de inverno.

Para Marília, o clima parecia estar refletindo seu interior. A adolescente de dezesseis anos, com a pele bem branquinha, os cabelos ruivos e o rosto coberto de sardas, passara os últimos três dias deitada no enorme sofá da sala de casa, os óculos fora do rosto e sem ânimo para se mexer. Ela não se lembrava de quando o pai colocara o cobertor sobre seu corpo, mas a peça quente continuava a manter o calor corporal dela intacto. Seus ouvidos captavam as movimentações do pai pelos cômodos da casa, mas nenhum dos dois trocou palavras por estarem totalmente desamparados.

Seu estupor inicial apenas foi interrompido quando a porta de sua casa foi esmurrada com força por uma mão espalmada sob a madeira. Marcos saiu da cozinha e atendeu-a, não se surpreendendo ao ver Thalita, melhor amiga de suas filhas, parada no corredor. Ele sorriu e se afastou para ela entrar; trocaram um rápido abraço e poucas palavras rapidamente, já que a garota estava ansiosa demais para fazer o que pretendia.

— Mary? — Ela sussurrou, entrando na sala e vendo a amiga na posição que se encontrava. Seu coração disparou no peito. — Ai, graças a Deus! Eu achei que você tinha se machucado ou... ou... por que não me respondeu? Por que não atendeu minhas ligações? — Thalita perguntou, andando de um lado ao outro e falando rapidamente. O tom azul de seus cabelos começara a desbotar, como uma folha no outono, e seus olhos estavam fundos; a maquiagem pesada tentava encobrir as olheiras que se criaram após três dias de choro intenso desde o funeral.

— Desculpa. Meu celular descarregou depois do funeral e eu não tive ânimo para colocar ele pra carregar. Não tive ânimo para nada. — Marília ergueu os olhos azuis e fixou-os nos da amiga. — Eu acabei de perder minha irmã, merda! — Exclamou, erguendo a voz.

— E eu acabei de perder minha melhore amiga, porra! — Thalita pareceu prestes a chorar, mas se abaixou na altura do sofá para pegar o rosto da ruiva nas mãos; suas mãos negras fizeram um contraste gritante contra a pele branca de Marília, como se se completassem completamente. As duas se encararam por um tempo, respirando com dificuldades. — E pensei... pensei que havia perdido a outra melhor amiga. E, se você não percebeu, eu também considerava Paula e ainda considero você como minha irmã... — ela confessou, os lábios pintados de preto tremendo com o soluço que ecoara de sua garganta.

— Me desculpa... — Marília abaixou a cabeça e puxou Thalita para um abraço. Ficaram assim por uns minutos, os corpos trêmulos enroscados em busca de conforto. A adolescente negra foi a primeira a se recompor e se erguer do lugar.

— Levanta! — Thalita obrigou, plantando-se na frente da televisão e apoiando as mãos na cintura. Sua blusa era muito mais larga do que o necessário, preta e toda cortada em lugares estratégicos, deixando parte de sua pele aparente, e ela usava um shorts jeans curto e desfiado nas pontas. Seu estilo sempre fora bem diferente do estilo das duas outras amigas, mas roupa nunca foi uma questão importante no relacionamento delas. O importante eram suas atitudes.

— Ah não, Thali. Me deixa ficar aqui. Eu não quero levantar... — Marília resmungou e enterrou o rosto no travesseiro, para não ter que olhar para a outra. Sabia que era uma tentativa falha, é claro, mas tentou mesmo assim.

— Marília, você tem que levantar. Precisa voltar a viver, e eu ‘tô pedindo. Vamos passear um pouco. Por... favor! — Sem esperar resposta, Thalita se aproximou com passos decididos e arrancou a manta que cobria o corpo gordo da amiga. Depois, segurou seu braço e começou a puxá-lo até que, com um puxão mais forte, as duas caíram do sofá no chão. Thalita sorriu, convencida. — Ótimo. Já saiu do sofá. Agora vamos. — Se levantou e apagou a televisão como se estivesse em sua própria casa. Tendo frequentado o loca por mais de dez anos, nenhum dos moradores se importava com o jeito à vontade da garota.

— Eu te odeio. — Marília resmungou enquanto se levantava do chão. Arrumou a armação preta dos óculos sobre o nariz e começou a andar, indo em direção do quarto.

— Odeia nada. — Thalita respondeu, rindo, e atirou uma almofada na direção de Marília, que se desviou com facilidade.

*

Elas acabaram por parar na Praia das Ametistas; elas sempre acabavam ali, desde muito novas. Fora ali que, quando tinham somente três anos de idade, se conheceram e nunca mais se separaram. Fora para ali que Paula fugira e fora ali que Thalita e Marília estavam quando receberam a ligação. Aquela ligação. Paula estava morta, o navio fora pego por uma tempestade e seu corpo pequeno se perdera na imensidade do mar que ela tanto amava em vida. Fora na Praia das Ametistas que a vida das duas garotas mudara para sempre.

 Quase que automaticamente, se sentaram no final do calçadão que, junto do de Santos, fora eleito o maior calçadão de praia do mundo. Por algum tempo, ficaram em silêncio, apenas observando as ondas do mar. Embora estivesse um frio congelante, o céu estava quase sem nuvens e o sol começara a brilhar, mostrando que o dia logo voltaria a esquentar. As ondas estavam suaves e quebravam na areia com o barulho característico, capaz de fazer qualquer um em contato com aquele som relaxar imediatamente.

— Você acha que ela está lá? — Marília perguntou de repente, cruzando as pernas e apoiando as mãos na coxa.

Thalita se remexeu e depois, cautelosamente, estendeu a mão para tocar a de Marília. Estavam acostumadas com gestos assim vindos de Paula, que sempre fora a mais carinhosa do trio, enquanto Thalita era considerada a mais bruta; mesmo assim, Marília aceitou de bom grado enroscar seus dedos nos da morena.

— Você sabe como a Paula era. Ela adorava uma onda e o mar, independente da temperatura. Ainda mais se pudesse estar em cima de uma prancha, com os cabelos soltos e um óculos de sol.

As duas riram e uma olhou nos olhos da outra de forma a passar conforto. Aquelas lembranças, por mais recente que fosse o acidente, não cutucaram a ferida de forma dolorosa. Falar da amiga era mais fácil do que imaginavam.

— Eu nunca vou parar de me perguntar se... se ela realmente está morta. — Marília confessou, voltando a olhar para o mar e apertando os lábios. — Você sabe que não encontraram o corpo dela, né? — Ela perguntou, a voz falhando. Thalita mordeu fortemente o lábio, fazendo-o sangrar.

— Marília... — Thalita chamou, a voz ainda baixa e falhando.

— Não! — Marília soltou as mãos que ainda estavam entrelaçadas e apoiou o rosto nelas. — Não fala nada, Thalita. Meu pai já falou comigo. Eu sei que isso é louco, sem sentido e que ela está morta, no fundo do mar que ela IDOLATRAVA e eu nunca mais a verei e nem poderei me despedir. Mas eu quero tanto que ela tenha se salvado de algum jeito... eu só queria que existisse um jeito mágico³ dela estar viva e aproveitando a vida... — A adolescente começou a chorar no meio da fala, soluçando. Thalita não hesitou em passar os braços pelo corpo da outra e a apertar em um abraço.

— Não. Não é louco e sem sentido porque eu TAMBÉM quero isso. Quero que ela esteja viva e bem, porque eu a amo e é horrível perder quem você ama... — Thalita começou a chorar também, mas conseguiu respirar fundo e se controlar. — É natural desejar isso, Mary.

— Eu só queria que ela nunca tivesse entrado naquele navio. — Resmungou, deitando a cabeça no ombro da outra.

— Destino é uma merda. — Thalita sintetizou, arrancando um risinho de Marília.

— Merda é um palavrão muito feio. — Repetiu o que sempre repetia, de brincadeira. Para implicar, Thalita respondeu como sempre respondia:

— Vá a merda, Mary.

As duas começaram a rir e a conversar sobre outros assuntos, mantendo Paula sempre no meio dele com naturalidade. Ainda doía, é claro, mas era necessário. O sol esquentou aquele dia de inverno pouco a pouco, e no íntimo de casa uma delas um novo sentimento começou a tomar forma.


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Notas finais do capítulo

¹ Belas Joias é uma cidade fictícia localizada no sudeste brasileiro, foi criada para ser um refúgio pessoal das minhas personagens. Vocês podem imaginá-la como quiserem ♥
² SEEEEEI que em alguns lugares 11ºC não é frio algum, mas em cidades praianas, onde a temperatura chega rapidamente em 40ºC, 11 é tipo frio congelante.
³ Paula está viva e em um mundo mágico (típica jornada do herói), vocês podem encontrar alguns contos sobre ela no meu perfil XD

É isso guys, obrigada ♥



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