Quatro Amigos escrita por Eu-Pamy


Capítulo 3
Terceira parte


Notas iniciais do capítulo

Estou postando sem betar para ver se me anima a escrever uma longfic, então desculpem os erros.

Espero que gostem!



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 Brothers, eu não sei vocês, mas estou morrendo de fome aqui, comi um almoço bosta hoje lá no curso, a salada estava murcha e a carne com gosto de massinha de modelar — Martin espreguiçou-se na cadeira e depois levou a mão a barriga, chateado. — Paguei trintão naquela merda de comida, eu devia ter denunciado, qualquer dia alguém vai ter uma intoxicação com aquele lixo, isso se várias pessoas já não tiverem tido.  

— Trinta reais? — Douglas se assustou.

— Você já comeu massinha de modelar, é? — Carlinhos perguntou e zoar o amigo suavizou aquela sensação estranha que esteve sentindo por alguns minutos, Raul também não o olhava mais fixamente e isso ajudou a relaxar.  

Ignorando as duas perguntas, Martin continuou:

— Será que a tia do quiosque ainda tem pastel para fritar?

Douglas deu de ombros, coçando o pescoço involuntariamente, e disse:

— Do jeito que está o movimento, deve ser massa pronta da semana passada.

— Tenta lá, eu também vou querer um — Raul falou.

Martin assentiu e disse:

— Então vão dizendo os sabores, para eu não ter que vir aqui duas vezes.

— Eu não vou querer pastel não — Douglas disse calmo, mas não olhava para nenhum deles. A água do mar deveria estar um gelo só, mas o clima estava quente e nem mesmo o passar das horas suavizava a secura no ar, espalhando sua maresia e deixando a boca salgada quando o respirava profundamente.

— Vou querer o maior — Carlos disse um segundo depois de Douglas, mas Martin que sempre foi bom em compreender sentimentos escondidos nas vozes das pessoas, focou na resposta anterior, tinha um traço de constrangimento ali que ele não poderia ignorar.

— Anda, cara, só diz um sabor, não é difícil.

— Você nem sabe se tem — Raul intercedeu, prevendo um climão. Era típico de Douglas e Martin aquilo.

— Então eu vou querer o que tem mais recheio — Carlinhos disse meio alheio ao que estava acontecendo, comida era seu assunto preferido, independente do momento. Boca foi feita para comer e comida foi feita para ser devorada, então não tem discussão. — Vou querer dois, por garantia.

Raul conteve-se para não rir daqueles olhos famintos do loiro magricela e apenas balançou a cabeça com uma expressão agradável.

— Se você não fala eu escolho o seu sabor, então —Martin disse a Douglas, levantando-se.

— Eu não quero mesmo — Douglas assegurou com teimosia. Nos seus bolsos não tinha nada além de um celular antigo, o RG e um pirulito que guardou para o irmão, e ele não queria gastar o dinheiro de outra pessoa.   

— Relaxa — O mais velho respondeu desencanado, virando e indo para o quiosque.

— Eu quero qualquer um, obrigado, não precisa perguntar — Raul resmungou para si mesmo, ninguém escutou. Martin fazia questão de pressionar Douglas a escolher um sabor, enquanto agia como se Raul nem estivesse ali querendo pastel também. Às vezes era muito ruim ser o mais quieto do grupo, sua descrição o tornava quase insignificante.

— Eu odeio pastel com palmito. Odeio salada com palmito também — Carlinhos tinha uma expressão esquisita e divertida ao mesmo tempo, o semblante de reflexão, e falou aquilo quase em um sussurro, como se fosse um grande segredo.

— Será que você, sei lá, só não odeie palmito, talvez? — Raul questionou com ares de sabichão. Douglas brincava de contorcer o copo de plástica vazio, ao seu lado.

Os olhos do loiro de arregalaram um pouco.

— Você acha que o cuzão vai escolher pastel com palpito para mim? 

— Por que ele faria isso? Quais as chances disso acontecer?

— Com certeza ele vai e você vai ter que comer os dois que pediu — Douglas murmurou sem tirar os olhos do copo, mas em seus lábios havia um discreto sorriso maroto.

Carlos levantou-se e foi em direção do quiosque.

— Eu não! Não mesmo! — Assegurou antes de afastar-se.

Raul revirou os olhos e depois virou o corpo para Douglas que ainda brincava com o copinho.

Douglas tinha a pele branca, mas de tanto ficar sob o sol tinha um bronzeado permanente. Seus olhos eram castanho-claros e quando a luz batia neles as ires ganhavam um brilho mágico e hipnótico, não era à toa que as meninas gostavam dele.

Mas quando Raul o olhou bem ali, de noite, sentados de costas para os potes na calçada, via sombras que tornavam a pele mais amarelada, quase em um tom doente e percebia roxeados abaixo dos olhos que entregavam o seu cansaço. Ele tinha apenas dezessete anos, um ano mais novo que o asiático, mas desde que o conhecera achava que fosse mais velho, por nenhuma razão óbvia. Douglas era somente um garoto, tinha a aparência e comportamentos normais de um adolescente, mas, mesmo assim, algo nele era diferente dos outros três. Um jeito de olhar, talvez, ou a postura que tomava em certas ocasiões, ele também pensava diferente e isso o amadurecia muito. Raul com toda sua sensibilidade não conseguia ter aquela visão do mundo e precisava empenhar grande esforço mental para compreender algumas atitudes de Douglas, como se o verdadeiro Douglas fosse um enigma desconhecido e inexplorado.

Raul inclinou o corpo e esticou o braço para surrupiar aquele copo das mãos do amigo. Aquilo conseguiu captar um pouco de atenção para si, finalmente.

— Que foi? — Douglas questionou, devolvendo o olhar avaliador do oriental. Raul sorriu sem graça e deu de ombros, Douglas aproveitou sua falta de tato em diálogos para recuperar seu copinho quebrado e voltar a torturá-lo até que não parecesse mais um copo. —Você não acha que pegou pesado com o Carlos, hm? — O mais novo fez a pergunta que queria, agora que estavam sozinhas.  

Raul franziu o cenho.

— Como assim?

Embora um ano e meio mais novo, Douglas lançou um olhar que Raul não compreendia, uma forma de dizer que ele sabia, mas do que Douglas sabia?

O moreno largou o copo na mesa, enjoado daquela brincadeira, mas quando o vento bateu e quase jogou o objeto para fora da mesa, ele o tomou de volta. Limpou a garganta e explicou:

— Tudo bem que você gosta de agir como o paizão do grupo e que o Carlos é o mais novo e, talvez, isso faça você achar que tem que cuidar mais dele do que do resto, sei lá. Não ‘to criticando, mas o cara é mente fraca, vai na onda dos outros e é bem mongoloide com algumas coisas, aí você diz essas coisas para ele, mas ele não vai entender mesmo, pô. Pelo contrário, uma coisa é brincar e fazer zoação entre amigos, isso ele esquece dois minutos depois, outra é tomar partido da vida pessoal dele dizendo como ele tem que agir, como tem que pensar e esperar que ele seja sincero com a gente o tempo todo, como se fossemos os responsáveis dele. Nem tomo mundo acha isso legal, entende? Você tem que deixar o cara amadurecer sozinho — Amassou o copo e continuou falando sem alterar a voz: — Somos amigos, certo? Não dá para ficar julgando amigos. Todo mundo aqui sabe como ele é, mas se mesmo assim ele quer mentir sobre a vida dele ou esconder alguma coisa, problema é dele. O Carlos não é criança, Raul, ‘tá entendendo? E nem você é o pai dele.

Raul não falou nada por algum tempo e nem levou aquelas palavras a mal, sabia que Douglas tinha boas intenções. Raul gostou de ouvir aquilo na verdade. Era bom saber que Douglas também prestava atenção nessas coisas e tinha formado uma opinião sobre aquele assunto, demonstrava que ele se importava a ponto de refletir sobre aquilo. Esse tipo de coisa fortalecia a amizade, e Raul não enganava-se com a vaidade de achar que estava livre de ter falhas, sim, podia estar mesmo sendo demasiado protetor com o amigo e foi bom ouvir alguém alertando-o disso, porque só assim ele poderia tentar melhorar.   

Sem falar que ele próprio também sabia, quando se tratava dos amigos, Raul era extremamente exigente, principalmente com Carlos, o mais inconsequente e despreparado entre eles. Não tinha porquê tentar negar algo assim.

Foi criado em uma família rígida, cheia de disciplina e cuidados, então era natural que esperasse o mesmo das pessoas que ele gostava da companhia, ao ponto de esquecer que nem todos estavam acostumados com isso.   

— Entendo, mas não é que eu esteja julgando ele, Dog, é que me preocupa o motivo de mentir para nós. Seja o que for, ele deveria confiar na gente.  

Raul torceu a boca e olhou para o quiosque, vendo Martin e Carlos esperando os pasteis ficarem prontos enquanto conversavam algo com a senhora. No mesmo momento, viu Carlos roubando alguns saches de ketchup e mostarda, e enfiando-os no bolso do shorts.

— Um dia ele aprende a confiar, Raul. O que importa é que quando estamos juntos não devemos ficar pressionando, sabe? Se ele prefere contar pra gente mil mentiras, tirar vantagem de coisas que não aconteceram e rir disso, qual o problema? Não estamos só falando do papo de virgindade, certo? Eu também percebi que ele têm estado muito estranho faz um tempo, mas o moleque só tem quatorze anos e nada na cabeça, deixa ele ser feliz, se é preciso criar mentirar para isso, então beleza, como você mesmo diz: e daí? Todo mundo aqui tem problemas em casa, na rua, coisas que não queremos que os outros descubram, é normal ter segredos, mas quando estamos juntos, pô, vamos tentar esquecer isso. Se ele está escondendo alguma coisa, temos que ter paciência e esperar a hora que ele se sentir preparado para nos contar, não podemos forçar.

O asiático ficou um longo momento em silêncio, contemplando o mar.

— Melhor rir de uma mentira bem contada que chorar por uma verdade esmagadora — Raul murmurou e Douglas sorriu para ele, admirado, por um instante o brilho voltando aos seus olhos castanho-claro. O japonês tinha cada tirada inesperada.

— É, tipo isso mesmo. — Olhou triste para o copo esmagado entre os dedos.

— E você, Dog, quando vai aprender a confiar? 

Douglas encarou o amigo, mas não respondeu nada já que Martin e Carlos haviam acabado de chegar com uma bandeja de alumínio repleta com pasteis enrolados em papel toalha.

Carlinhos parecia mais animado do que nunca vendo tanta comida.

— Vamos aos agradecimentos do dia! Papai, obrigado pelo dinheiro de Martin e por ele ser parceiro pra gastar comigo! — Carlos disse com sua cara-de-pau e riu empolgado, sentando-se e rapidamente voltando-se na direção do maior pastel da bandeja, os olhos azuis brilhando infantilmente quando ele o atacou.

Martin e Raul riram e também se serviram, Douglas demorou um pouco, mas acabou pegando um também.

O céu escuro e limpo revelava estrelas infinitas, que, somada a lua cheia, iluminavam as águas do mar com reflexos coloridos e hipnóticos. As ondas pareciam dançar e a areia molhada misturava-se com a outra metade seca e branca, o horizonte de águas profundas se perdendo na noite.

Martin pegou o celular e ligou na rádio, alto suficiente para quebrar o silêncio e ainda poder ouvir a própria respiração. A dona do quiosque pegou uma cadeira e foi se sentar do lado de fora, sozinha. Ninguém mais caminhava nas calçadas e os quatro rapazes, a música e os pasteis quentinhos pareciam uma pintura irreal enquanto toda aquela imensidão solitária os encara de volta.

Carlos e Martin arrastaram suas cadeiras para as laterais da mesa, virados para o mar ao lado dos amigos.

— Tão escuro — Carlos sussurrou sem perceber, parecia assustado e frágil. Martin quis abraçá-lo, mas agora a mesa os separavam.

Douglas que desta vez estava mais próximo, inclinou-se para sussurrar:

— Relaxa, ele não vai morder você sentado aí — "Ele" no caso era o mar, e todos entenderam o motivo da brincadeira.  

Carlos se emburrou, uma ruga de irritação na testa, era o único que ainda estava comendo pastel, o seu terceiro já. Ainda tinha um na bandeja, mas ninguém tinha mais vontade por estarem satisfeitos. Carlinhos deveria ter um buraco negro no lugar do estômago, era a melhor explicação. 

No rádio do celular tocava uma música de Caetano.

— Você ainda tem medo de entrar na água? — Raul indagou ao loiro, fazia tempo que não falavam daquele assunto.

Carlos ficou indiferente àquilo e focou em sem pastel de queijo delicioso.

Douglas balançou a cabeça, resignado, mas sem perder aquela brecha de implicar novamente com o menor:

— Poderia ser o novo campeão olímpico de natação, mas não, porque tem medo de se molhar. — Gargalhou em seguida.  

— Se ferrar, Douglas.

— Mas ele ganhou medalhas, não foi? Naquela última competição de atletismo em Bertioga. Em esportes de terra o Peixinho funciona bem, o que é uma contradição — Martin lembrou e recebeu um olhar assassino do loirinho que desde pequeno tinha medo de água e envergonhava-se imensamente disso. Os amigos haviam descoberto seu segredo em uma viagem com o clube esportístico que frequentavam, quando ao atravessar uma ponte velha Carlos acabou caindo numa lagoinha e quase se afogado em meio metro de água.    

— Apelido ridículo, véio — reclamou com zanga, achando ridículo compará-lo a um peixe. Ele certamente seria o pior peixe que já existiu na face da terra.  

— Aposto que o treinador ameaçou jogá-lo em uma piscina se ele não ganhasse aquela corrida — Douglas disse e eles riram sem compaixão, afinal era mesmo verdade que todas as pessoas que frequentavam o clube, incluindo o treinador, vez ou outra zoavam Carlos depois daquela viagem e do seu vexame na lagoa.  

— Foi por isso que ele bateu o recorde de tempo? — Raul questionou e sua expressão séria arrancou até um leve sorrisinho de Carlinhos.

Os pasteis acabaram, porque é claro, Carlos comeu o último e em seguida tomou o restante do refrigerante, só depois ficando satisfeito.  

Algumas garças passaram voando no céu e aterrissaram não muito longe dali, na areia molhada.

Com a música calma da rádio e a brisa em seu rosto, Douglas sentiu um impulso tomar posse de si.

— Vamos pra lá? — Perguntou aos outros.

— Lá onde, doidão? — Indagou um Carlos com os dedos na boca tentando limpar os dentes, um nojo.

— Na praia, molhar os pés, ué. ‘Tô com vontade.

— Pra sujar meu tênis novo? Sem chance — Martin respondeu, expressão indignada.

— Vamos Raul? — Douglas insistiu na ideia, afastou a cadeira e levantou-se — Ver se a água está gelada ou não, hm? — O japonês pareceu estar em dúvida, entretanto, sem mais nem menos, acabou se levantando e andando com as mãos nos bolsos da calça jeans em direção da areia da praia, sem nem mesmo esperar por ninguém ou responder que ia com Douglas; estava de chilenos, então não se importava em se sujar. Douglas sorriu com a atitude do amigo — Vamos, loirinha? Não vamos entrar, prometo. Eu só quero molhar meus pés.

— Loirinha o caralho. Vai sozinho, cuzão, estou pesado. — A zanga do loiro crescia conforme Douglas continuava olhando-o com olhos pidões. — Aff, cara esquisito. — Bufou e levantou-se a contragosto. — Vamos Martin, se ficar aí sozinho é capaz de brotar um assaltando desse asfalto só para roubar esse teu celular de boiola. 

A reação de Martin não poderia ter sido mais exagerada.

— Como é que é, baixinho? Esse celular é moderno, está na moda, é super difícil de conseguir, por que está tentando menosprezar o meu tesouro? Você não tem sentimentos? — Martin já levantava-se, de qualquer forma, vendo que perdera aquela batalha. No momento estava mais preocupado em defender a honra do seu amado aparelho telefônico de última geração — Sabe quanto eu paguei nesse bebê aqui?

— Por isso mesmo, quando mais caro e moderno, mais cheio de frescuras, em outras palavras, celular de boiola — Carlos explicou o que para ele fazia sentido. Os três limparam a mesa, levando o lixo para a lixeira ao lado do quiosque. Carlos devolveu a bandeja de alumínio e a dona o agradeceu.

Uma vez que a conta foi paga por Martin, eles caminharam para a praia.

Martin tirou os tênis, as meias e subiu a barra da calça antes de pisar na areia seca, que grudava mais que cola-quente na pele. Carlinhos estava de tênis, mas era um velho e ele não importou-se de o sujar, sabendo que não estava nos seus planos molhar os pés mesmo. E Douglas estava de havaianas.

Raul já estava no meio do caminho até o mar e continuou caminhando tranquilamente, a luz da lua iluminando-o. Ele vestia um shorts e uma blusa de frio preta que encobria sua pele extremamente branca.  

— O japonês nem pra esperar, meu — Carlos reclamou. — Bicho estranho da porra né? Nem olhou para ver se a gente está indo atrás.   

Martin enfiou os tênis na mochila e o celular tocando música no bolso de trás da calça, isso abafou um pouco a música, mas ainda dava para ouvir.

— Você parece um vaga-lume com a bunda acesa — Douglas comentou vendo o bolso de trás de Martin iluminado pelo celular, como estava escuro, mesmo uma luz fraca como aquela chamava atenção.

O mais velho se espreguiçou indiferente aquele comentário, tinha passado muito tempo sentado durante o dia, no cursinho. Um de seus braços foi propositalmente para os ombros de Carlos e o puxou para perto com carinho, caminhando assim com ele. O loiro era bem menor, mas o corpo magro era definido, com a regata que usava dava para ver os belos músculos moldados pelos treinos de vôlei e tênis. Também tinha uma pele bonita e a lua deixava seus olhos azuis com uma luminosidade tranquila e especial, como se as luzes daquelas estrelas quisessem competir com o brilho daquelas esferas cintilantes e naturalmente furiosas.

Martin puxou o celular do bolso, sem se afastar do pequeno Carlos, e aumentou o volume do aparelho, logo estava cantando uma música da qual gostava muito.

Douglas assistia eles sem estranheza, via também que Raul estava na beira da praia molhando os pés, parado, ainda com as mãos nos bolsos e contemplando as ondas escuras. Só dava para ver a parte de trás de seu corpo, mas Douglas ficou com vontade de tirar uma foto do amigo daquele jeito, só não o fazia porque seu celular não era bom o suficiente.  

— Clara como a luz do sol, clareira luminosa nessa escuridão... Bela como a luz da lua, estrela do oriente nesses mares do sul... — Martin cantava, não muito alto e nem desafinado demais para tornar-se desagradável, mas, apesar disso, Carlinhos o olhava como se fosse um louco cantarolando seus planos para o fim do mundo dependurado sobre seu ombro. — Clareira azul no céu, na paisagem, será magia, miragem, milagre, será mistério... — Continuou cantando a letra, leve e despreocupado. Douglas gostava desse jeito desencanado do amigo.

A música era Sereia, do Lulu Santos, um clássico.

O loiro já de saco cheio daquilo, afastou o braço negro e pesado dos seus ombros doloridos.

— Ok, todo mundo já entendeu que você sabe a letra. Agora me larga, doidão.

A música continuava tocando no aparelho móvel.

Prateando horizontes, brilham rios, fontes

Numa cascata de luz.

No espelho dessas águas vejo a face luminosa do amor.

As ondas vão e vem...

E vão e são como o tempo.

Eles chegaram à beira da praia, Douglas tirou os chinelos, os amigos pararam, mas ele continuou caminhando em direção das águas frias, até que elas estivessem molhando seus joelhos. E sem perceber, estava cantando a música do celular também, baixinho:

— Luz do divinal querer, seria uma sereia? Ou seria, só... delírio tropical, fantasia...? Ou será... um sonho de criança... sob o sol... da manhã? — Douglas olhou para a lua cheia e luminosa e admirou as grandes ondas que formavam-se ao longe. Queria que sua mãe estivesse ali com ele, sentindo aquela vida toda provinda da natureza e entrando no seu corpo, o deixando feliz, pleno.

Mas sua mãe estava no quarto de sua casa, deitada, deprimida na cama. Seu irmão estava passando uns dias com o pai e Douglas não sabia quando o veria novamente, ainda assim, pensava nele o tempo todo. O pirulito ainda estava ali em seu bolso guardado para o caçula, e não poderia ser diferente.

Sentiu vontade de chorar, mas não chorou.

Respirou fundo, a água salgada lhe dava motivação para viver.

Douglas olhou para trás, viu seus amigos um pouco afastados, conversando distraídos. Carlos se abaixava para pegar algumas conchinhas.

Encarou o céu e foi como se olhos também o encarassem de volta. Olhos gulosos, que queriam devorá-lo e revelar todos os seus segredos. Mas Douglas não deixaria aqueles olhos loucos decidirem o seu destino.

***

(Alguns anos depois)

— Acabei de ter um insight. O futuro é uma miragem!

 Ah, oi... O que você disse? Pensei que estivesse dormindo.    

— Eu disse que eu acabei de perceber que o futuro é uma ilusão. Não pode existir ainda porque não aconteceu! Por que é que nós nos preocupamos tanto com ele então? Não precisamos ter medo do que não existe, não percebe?

 Você acordou hoje disposto a filosofar mesmo, hein? Ok, deixa eu pensar... Caraca, que pergunta difícil antes do café da manhã... Hmmm, já sei, já sei. E se houver neste mundo, no universo, alguém que sabe o que vai acontecer? E se o que for acontecer com a gente já tiver sido escrito, hm? Você não acredita nisso, em destino?

 Acredito mais ou menos. Ninguém pode ter certeza. Mesmo se existir mesmo um ser superior em algum lugar, penso que nem ele sabe o que vai acontecer de verdade conosco.  

 Por que você acha isso?

 Simples, porque o futuro tem muitas portas e eu ainda não escolhi qual quero abrir. Somos imprevisíveis, eu mesmo devo ser a pessoa mais impulsiva do universo!

—  Haha Concordo, nesse quesito concordo mesmo! Haha Mas já que você está dado hoje a perguntas difíceis, responde essa sabichão:  e se todas suas escolhas derem sempre no mesmo final? Digo, não importa a porta que você escolher, o fim do caminho será sempre o mesmo.

—  Não... Isso seria triste, não acha? Porque vai que o escritor da nossa história se engane e cometa um erro terrível, o que acontece com a gente? Todo mundo pode cometer erros, mas eu não quero que o livro da minha vida termine com folhas em branco, sem um propósito. Eu quero poder escrever o meu final, quero decidir o que vai ter atrás da porta que eu entrar.   

 Mas isso não iria acabar com o mistério? Lembre-se, erros também são oportunidades, mesmo palavras escritas erradas podem mudar a vida de alguém para melhor. Momentos inesperados podem ser decisivos para descobrimos quem somos.   

 Agora é você quem está soando complexo pela manhã. O que você quer dizer com isso?

— Eu quero dizer que eu não sei o que vai acontecer amanhã, nem sei se o amanhã vai ser real para mim, é por isso que eu tento viver o hoje como se fosse o último tempo de vida que eu tenho. Às vezes sinto que estou gastando minhas últimas palavras e que logo irei desaparecer completamente. Isso me dá medo, mas também me faz querer me entregar completamente. Faz sentido isso?

 Não para a maioria, mas para mim faz todo sentido do mundo.

 Eu só queria, sabe... conseguir existir depois dessas últimas palavras, sem ter mais que lutar contra tudo e todos para sentir-me livre.

 Tem uma maneira de conseguir isso.

 Qual?

 Não se afaste mais de mim, eu prometo que vamos enfrentar tudo juntos.

— Como eu faço isso, sabichão? Se destino não existe, então eu não sei em qual porta você está.

— Acho que nessa parte você tinha razão antes. Todos os caminhos vão te levar até mim.

— Não vai ser um erro do escritor?

— Se for é o melhor que já me aconteceu.

— Caraca, você está mesmo inspirado hoje.  


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Notas finais do capítulo

Esse final ficou muito sem noção? Do tipo que o leitor pergunta: hey, essa autora bebeu? Eu pensei em tirar, mas por mais confuso que seja, eu gosto desse papo de bêbados filósofos acordando pela manhã... É como um deles disse: "Não para a maioria, mas para mim faz todo sentido do mundo".



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