Cartas para Julieta escrita por Capitu


Capítulo 4
Diante de ti me desfaço de todo meu orgulho


Notas iniciais do capítulo

Capítulo fresquinho pra vocês! Espero que gostem! Agradeço imensamente os comentários que tenho recebido!



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Mesmo quando eu descuido (me desloco)

Me deslumbro (perco o foco)

Perco o chão (e perco o ar)

Me reconheço em teu olhar (que é o fio pra me guiar)

De volta, de volta



Após aquele momento tão doce e especial trocados naquele começo de tarde, Aurélio despediu-se de sua amada para realizar uma pequena tarefa que havia deixado pendente na cidade, entre uma atividade e outra parou na praça central do Vale para tomar um pouco de ar fresco, sentia-se especialmente nostálgico naquela tarde, a leitura de sua primeira carta para Julieta combinada com o diário da própria, havia trazido a ele uma sensação de completa plenitude, pensava o quão felizardo era por encontrá-la e ter recuperando graças a ela um sentido para levantar-se todas as manhãs; ansiava para que ela percebesse todos esses sentimentos na leitura de cada uma de suas letras que ainda estavam por vir e ansiava ainda mais por conhecer a visão dela dos episódios que compunham este enredo até tornarem-se um.

Na fazenda Ouro Verde, Julieta procurava concentra-se na leitura daqueles infinitos contratos de trabalho que finalmente havia encontrado, eles estavam o tempo todo bem embaixo do seu nariz próximo a mesa de carvalho do escritório; tal situação a deixou perplexa, pois agora se dava conta que se não fosse esta perda dos contratos, ela jamais tomaria conhecimento das cartas de Aurélio para ela, parecia que a vida e o destino mais uma vez presenteava o casal Cavalcante com momentos feliz, cheios de amor e ternura, um daqueles momentos que ficariam eternizados em suas memórias. “Memórias, era isto, esta era a chave”- pensou, ao levantar-se apressadamente largando todo o trabalho para o dia seguinte. Correu para o quarto e pegou um de seus cadernos de anotações pessoais, agora um de capa azul bem grossa, abrindo-o para iniciar um novo processo de escrita. Este caderno era deveras especial para Julieta, era nele que ela escrevia todos os seus projetos- havia se reencontrado com ele após muitos e muitos anos-  “vinte para ser um pouco mais exata” -pensou-, quando em uma tarde de primavera viu-se sonhando outra vez, naquele mesmo dia em que ela havia decidido abrir mão do luto, enchendo sua vida de novas cores.

Durante o restante daquela tarde Julieta dedicou-se na elaboração de um minucioso plano para leitura das memórias do casal- “Memórias de Julieta e Aurélio, assim será o nome do projeto” -pensou- “mas esse nome poderia ser mais curto...uhhh...ah foco Julieta, foco, não há  tempo para pensar em nomes agora”-concluiu. Após ter tudo anotado saiu para pôr seu plano em prática; como ela sabia que o próximo episódio relatado seria o encontro na confeitaria - “este mesmo que você chamou por tanto tempo de patético”, pensou revirando os olhos - lhe ocorreu a ideia de pedir as cozinheiras da fazenda a preparação de doces, bolos e chás, guloseimas especiais para recriar aquele ambiente. Após passar na cozinha, dirigiu-se ao antigo quarto de Aurélio e organizou todo o ambiente para uma noite aconchegante, ali juntos, ela e seu amado, embarcariam mais uma vez nos braços e nas memórias um do outro.

Ao anoitecer, Julieta avisou  a todos que naquela noite não desceria para jantar, tomou um belo banho, vestiu uma aconchegante e elegante camisola e aguardou ansiosamente por seu amado. Já era tarde, quando Aurélio voltou do compromisso na cidade e encontrou um recado de Julieta sobre a cama, que dizia: “ Aurélio meu querido, esta noite te convido a navegar mais uma vez por minhas memórias, espero você no seu antigo quarto. Com amor, Julieta”; Aurélio exibiu um enorme sorriso em seu rosto, parecia um menino ao ganhar um doce, após fazer pequenos círculos naquele bilhete pois amava a letra de sua amada, correu para o banheiro, tomou um rápido banho, vestiu seus trajes de dormir e saiu correndo em direção ao antigo quarto.

Deu três batidas na porta, estranhou não obter resposta mas mesmo assim adentrou naquele ambiente, ficando surpreso com o que viu. O quarto estava mudado, sua cama já não ocupava o centro do recinto, fora removida para a parede próxima a janela; sua mesinha de leitura ainda se encontrava no mesmo lugar, porém junto aos seus livros, haviam sido adicionados diversos livros sobre a produção de café e sobre negócios, além dos romances favoritos de Julieta- sorriu ao perceber que já sabia todos de cor; já próximo a lareira, um grande sofá vermelho fora adicionado, conjuntamente a um grande e felpudo tapete, havia também uma mesinha de canto com várias guloseimas sobrepostas, como em uma confeitaria e finalmente sobre a lareira estavam os porta-retratos; ao lado dos seus haviam alguns novos que nunca havia visto, no primeiro estava a  fotografia de uma linda menininha de cabelos escuros como a noite, seus olhos eram curiosos e sonhadores- “minha Julieta, reconheço seus olhos em todos os lugares”- pensou orgulhoso. Na outra Julieta estava lendo para o ainda menino Camilo, estava naquela pose enlutada e austera, a mesma que possuía quando se conheceram; na terceira havia uma foto da linda netinha do casal, Julieta, filha de Camilo, que havia acabado de completar três anos- “Julietinha, você tem o sorriso de sua avó”- falou alto imitando a voz de dona Ofélia- Julieta que estava escondida dentro do guarda-roupa - “me sinto uma criança travessa”- pensou envergonhada-, segurou-se para não dar risada- e por fim uma foto deles no dia em que se casaram- “Ah, este dia”- pensou suspirando- ficou ali por um tempo olhando para aquela foto admirando o quão linda era sua esposa e o quão ainda mais apaixonado ele ficou por ela naquele dia- “Este foi o dia mais feliz de minha vida”-  disse Aurélio. Emocionada dentro de seu esconderijo Julieta disse baixinho- “O meu também meu Aurélio, meu esposo, meu lindo e bondoso esposo”.

Aurélio chamou e procurou por Julieta- “onde será que você se meteu”- pensou; contudo, antes mesmo de sair em direção a casa para procurá-la, teve sua atenção roubada por um livro de capa vermelha que estava sobre uma das poltronas, logo o reconheceu e disse em voz alta- “O diário de Julieta”. Pegou o diário nas mãos e foi tomada por um sentimento de curiosidade e indecisão, seria muito impróprio lê-lo? Será que Julieta ficaria irritada por tal invasão de privacidade?; embora aflito Aurélio se deu conta que havia um algo diferente que não estava no livro aquela tarde, era uma espécie de marcador, abriu na página indicada e percebeu que ele possuía uma espécie de recado que dizia- “leia-me”; era a autorização que ele precisava, decidiu iniciar a leitura em voz alta.



“São Paulo, fevereiro de 1910

 

Hoje fui com Camilo me encontrar com o filho do Barão para tratar das negociações de compra da Fazenda Ouro Verde; pensava, pelo telefonema tido com o  advogado da família, que me encontraria com dois homens desesperados que fariam de tudo para me convencer, já estava preparada, com certeza eles apelariam para meu lado emocional a fim de subjugar minha condição de mulher e assim manipular minha mente, ingênuos, não sabem que eu a Rainha do Café, não tenho essa fama por nada, sempre estou devidamente armada para enfrentar este tipo de condição e colocar negociadores em seus devidos lugares.

E assim o foi, ou eu pensava que seria, até que após tentarem me convencer usando a morte do velho Barão como pretexto, o senhor Aurélio - sim, aquele mesmo, o dono daquele par de olhos azuis bondosos que já haviam me conturbado no dia que fui até a Fazenda Ouro Verde- tomou uma atitude inesperada, fora de tudo que eu previa, levantando-se e vindo em minha direção.

Quando percebi que ele se aproximava agarrei as costas da cadeira com toda minha força, fiquei assustada e com medo, pensei que ele tentaria me intimidar por meio de um contato mais corpo a corpo, contudo, fui completamente surpreendida por sua atitude; Aurélio se ajoelhou diante de mim sem se importar onde estava, despindo-se de todo seu orgulho, retirando-se de toda a sua honra para implorar pela dignidade de sua família.

Atordoada pedi para que ele se levanta-se, mas ele disse, com todas as letras que não tinha vergonha de pedir por sua família e que pensava poder contar com a pena de alguém que ele admirava… admirava, ele me admirava.É a primeira vez que um homem admite que me admira, mais que isso, que admira o fato de eu ter mantido  meu império (que eu mesma construí, mas isso não vem ao caso) e mais que isso, que invejava o fato de eu saber dos negócios do café muito mais que ele.

Mais uma vez, aquele homem derrubou minhas barreiras e me magnetizou com suas atitudes, não foram somente seus olhos, mas sua emoção, sensibilidade e sobretudo, pela preocupação tão sincera que demonstrou com sua família, com os seus, eu realmente  fiquei paralisada, quase que em choque; quando ele se afastou eu não pude deixar de seguir seus olhos, eu fiquei surpresa, eu estou surpresa, eu nunca vi um homem assim, eu não, não…

Não Julieta, não não não, preste atenção no que você está escrevendo, olhe o que este homem está fazendo com você, é um jogo- mas foi tão sincero,- não Julieta é um jogo, esse homem está desesperado e vai tentar fazer de tudo pra te dobrar, inclusive esse tipo de cena, patética, ponha isso em sua cabeça Julieta, foi patética, apenas mais uma cena patética.”

 

Terminada a leitura Aurélio caiu em uma profunda gargalhada e falou - “tão patética que você se apaixonou por aquele homem que se rendia ali mesmo aos seus pés, senhora Rainha do Café”. Julieta aproveitou este momento para vagarosamente escapulir do armário e respondeu:

 

— Ora, ora, quer dizer que você se rendeu ali mesmo aos meus pés, conte-me meu querido, foi neste momento patético - fez uma pausa e gargalhou- que você se despiu de seu orgulho e se rendeu aos meus encantos?

 

— Mas a senhora é muito petulante e convencida- disse tomando-a em seus braços, trazendo-a para mais perto- me diga, antes que eu lhe responda, onde estava escondida para que pudesse me espiar por todo este tempo? - perguntou, beijando suavemente sua têmpora direita.

 

— Dentro do guarda-roupa, onde mais eu estaria?- encarou-o com olhos suplicantes como de criança quando faz arte.

 

Os dois caíram em uma profunda gargalhada que possivelmente ressoou por toda casa; sentiam-se tão leves, felizes, plenos, que não se importavam com esses detalhes. Aurélio puxou Julieta pela cintura e a beijou ternamente, ela passou os braços pelo pescoço dele, fez carinho em seus cabelos, riu entre seus lábios e terminou o beijo da forma que mais gostavam, com um demorado selinho, recuperando o fôlego; foi então que ele disse:

 

— Pois bem, antes da senhora Cavalcante me contar como e porque decidiu modificar esse ambiente aqui, lhe concedo a resposta de sua pergunta inicial. Naquela tarde na confeitaria eu me desloquei, senti como se o chão abrisse diante de mim, perdi o foco, mas contraditoriamente me encontrei com a luz que me guiava novamente, o seu olhar- disse olhando-a ternamente.

 

Julieta estava com lágrimas em seus olhos e disse quase como em um sussurro:

 

— Você que é a luz que me trouxe de volta e me tirou de dentro do temporal que sufocava a minha existência- disse acarinhado o rosto de seu amado- agora, o senhor Aurélio Cavalcante me concederia a honra de ler para mim sua segunda carta para Julieta? - finalizou, apontando a carta que estava sobre a mesinha lateral.

 

Aurélio tomou Julieta pelas mãos sentando-a no sofá, ela se acomodou em seus braços e abriu espaço para que ele pudesse apoiar a carta e iniciar a leitura, eles ainda trocaram alguns olhares lacrimosos e cheios carinho e por fim, Aurélio pigarreando tomou o fôlego necessário para a leitura, sabia que poderia se emocionar a qualquer momento, pois as palavras ali descritas eram o desvendar mais profundo de sua alma; foi naquele dia que viu-se despido de todo o orgulho que possuía  ao implorar pela dignidade dos seus.

 

“Estimada Sra. Julieta Bittencourt

 

Escrevo esta carta tomado de um profundo pesar, um pouco envergonhado pela situação em que vivenciamos ontem a tarde na confeitaria, pois, embora eu tenha afirmado que faria de tudo pela dignidade da minha família, hoje pela manhã percebi a dimensão do ocorrido e acredito que a devo ter feito passar vergonha na frente de todos. Creio que devo iniciar esta correspondência com um pedido de desculpas, não queria fazê-la sentir-se mal e incomodada com olhares alheios.

Ocorre que ontem me vi desesperado, imagine a senhora a minha situação, até algumas semanas atrás tudo que parecia perfeito em minha pacata vida tornou-se obscuro e incerto, penso em meu pai um senhor idoso, em minha filha cheia de sonhos e com tanta vida pra viver; eu perdi o meu chão, o meu alicerce e me vi diante de uma situação ao qual eu não sei exatamente o que fazer, penso que a senhora deva me achar um inútil já que não tenho a mesma garra, a mesma fibra e a mesma habilidade que possuis para o mundo dos negócios, sou de fato um grande acomodado com a minha situação. Por isso, ontem, diante de ti eu me desfiz de todo meu orgulho e me humilhei de uma forma que eu jamais pensei que me humilharia, aos seus pés implorei por misericórdia.

Reafirmo o que lhe disse ontem na confeitaria, penso que talvez eu possa contar com a pena, a compaixão, de uma mulher a qual eu passei a admirar muito, e digo isto de peito aberto e sincero, não pense que quero me aproveitar da sua sensibilidade feminina, pelo contrário, não paro de pensar na senhora desde o dia que os nossos olhos se encontraram, a pensar em força e  sua a garra, na primazia em que que conduz seus negócios e mantém o seu império, na sua pose determinada, intimidadora, mas ao mesmo tempo tão elegante, bela, inspiradora; ainda me pergunto quem é a senhora, quais são os seus mistérios, quais são os segredos que se ocultam por baixo destas camadas escuras.

O que sei é ali tão próximo aos seus olhos, belos, castanhos, quentes, embora procurassem ser frios e austeros, eu vi uma mulher que não está acostumada a ser admirada, uma mulher que me intriga e me chama, sinto algo raro, difícil de compreender, pois na senhora, aquela que veio como um vendaval para tirar tudo o que eu tenho - inclusive minhas certezas- encontrei a luz que talvez me guie para fora desse temporal, o fio para me guiar de volta aos meus sonhos, ao me despertar da letargia ao qual estive por todos estes anos.

 

Mais uma vez lhe peço perdão por estas importunas letras, entretanto, não poderia deixar de transmitir-la este misto de sentimentos que me invade quando estou diante de ti.

 

Com o mesmo respeito e admiração,

Aurélio Cavalcante “



— Meu Aurélio Cavalcante, o homem que mesmo despido de todo o seu orgulho e mesmo em uma situação em que poderia me odiar, escolheu me olhar para além do escudo e da minha frieza, eu não te merecia e nem te mereço meu amor- Julieta disse entre lágrimas.

 

Aurélio estava igualmente emocionado, se não fosse aquele dia, ali aos pés dela, possivelmente não teria se dado conta do quanto poderia aprender com a mulher ao qual passava a admirar pela fibra com que levava seus negócios; era com ela que havia despertado para ir além do seu comodismo. Pensando em tudo isso tomou-a em seu colo, secou suas lágrimas e beijou ternamente os seus cabelos; ficaram assim, em silêncio por incontáveis minutos, repassando mentalmente cada uma das palavras que haviam compartilhado durante aquele dia, sentiram um leve e feliz cansaço em seus corpos, possivelmente causado pela enorme carga emocional que vivenciaram. Foi assim que ele quebrou o silêncio dizendo:

 

 

— Meu amor, minha contradição preferida, algoz e salvação, fortaleza e doçura, minha Julieta- disse, depositando um terno selinhos nos lábios da mesma- me parece que tivemos um dia emocionalmente forte e por isso cansativo, que tal irmos descansar?- ela assentiu com a cabeça em meio a um sorriso. Ele então prosseguiu:– Certo mais antes me diga o que pensavas quando decidiu preparar este quarto de forma tão especial juntando as minhas lembranças as suas?- perguntou Aurélio.

 

Julieta levantou-se, olhou nos olhos azuis como o mar de seu amado e respondeu:

— Em Transformar esse este cômodo, que já era tão sobrecarregado de suas memórias, em uma espécie de templo de nossas memórias. Aqui preservaremos tudo que nos levou e nos leva ao nosso amor, aqui será nosso refúgio, nosso lugar secreto e esconderijo, o lugar das memórias de Aurélio e Julieta- disse por fim, sorrindo docemente tomando-o pelas mãos e prosseguiu:

 

— Agora venha, vamos ao outro templo de construção de nosso amor, ele fica em nosso quarto- finalizou com olhar travesso- amanhã retomamos nosso retorno às lembranças que nos levaram ao que somos hoje.


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura!
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