Doze anos de solidão escrita por iFancy


Capítulo 2
Anjos cuidam


Notas iniciais do capítulo

Muito obrigada a todos que comentaram no capítulo anterior. Fico muito feliz!



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Narração – Sam

Tia Sharon sempre me disse para não confiar em estranhos. “Você nunca sabe quais são as verdadeiras intensões deles”, ela dizia enquanto preparava o jantar e eu a observava desde a bancada. Porém ela nunca disse nada a respeito de não confiar em anjos, afinal, anjos são seres puros. Por que temeria?

Minha perna doía e o vento que entrava pela janela daquela casinha de madeira, fazia-me sentir fincadas fortes no corte, agora costurado com uma linha preta. O Anjo era calado demais e parecia não gostar de me ouvir falar, mas eu não me importava. Saí da casa, encolhendo-me. Encontrei-o perto do celeiro usando um machado para cortar algumas toras de madeira.

Acho que anjos não sentem frio, afinal, eles são seres celestiais, certo? Bom, fato é que o Anjo soava, mesmo que a temperatura estava baixíssima, e limpava, vez ou outra, as gotículas de suor que escorriam pelo seu rosto e pescoço, molhando a regata branca e surrada que ele tinha no corpo.

Manquei até ele, recebendo seu olhar quando fiquei há alguns metros de distância.

—Estou com frio – falei e ele voltou a cortar a tora de madeira que estava pelas metades, jogando-a no chão depois de parti-la. – Você me escutou? Estou com frio.

Ele largou o machado, apanhando as madeiras e caminhando para dentro da casa. Colocou-as dentro da lareira, acendendo-a com certa dificuldade. Saiu novamente, passando por mim sem me olhar, e logo voltou segurando um toco, colocando-o em frente à lareira. Apontou para ele, me olhando.

—Você é mudo? – Perguntei me sentando.

Uma vez tia Sharon me disse que os surdos e mudos tinham um idioma próprio, algo com as mãos. Talvez eu devesse tentar conversar com o Anjo usando as mãos.

—Estou com frio – repeti esfregando as mãos no braço e tremendo, tinha aprendido que aquilo significava frio no jogo de mímicas.

Não pude verificar a eficácia da minha tentativa, mas acho que ele compreendeu. Aproximou-se de mim e apanhou minhas duas mãos, estendendo-as na direção da lareira. Saiu da sala e foi ao quarto, voltando de lá com um cobertor feito de lã. Jogou-o sobre minhas costas e ajustou minhas mãos mais uma vez.

—Estou com fome – falei, mas logo me lembrei que talvez ele não escutasse. Então massageei minha barriga, sinalizando fome.

Ele saiu da sala mais uma vez, indo à cozinha e voltando de lá com o mesmo prato que me dera mais cedo, cheio de sopa de legumes. Eu detestava sopa de legumes.

—Eu não quero isso. – Virei o rosto e ele ainda insistiu, esticando o prato para mim, mas por fim me largou ali, deixando o prato sobre a mesa, e saiu da casa. – Ei!

Levantei-me segurando o cobertor e corri atrás dele, que ia até o celeiro novamente, mas não se deteve a ele, avançou um pouco mais e recolheu as vacas que comiam tranquilamente. Dei mais alguns passos e adentrei ao curral, tampando meu nariz ao sentir o fedor horrível de bosta de vaca.

—Eca! – Exclamei e vi o Anjo posicionar um banquinho ao lado de uma vaca que tinha um balde abaixo dos seus peitos. – Que legal! Você vai tirar leite dela?

Tia Sharon uma vez me levou a uma fazenda, mas não pudemos tirar leite da única vaca que havia lá, pelo que entendi ela estava com uma doença que a fazia espirrar o tempo todo. Lembro-me de rir até sentir a barriga doer quando vi a vaca Mimosa espirrar. Tadinha morreu meses depois.

O Anjo não me respondeu. Ordenhou a vaca e apanhou o balde com leite, passado por mim e me esperando do lado de fora. Assim que saí, ele fechou o curral e caminhou até o interior da casa novamente.

Fiquei espiando o que ele tanto preparava naquele fogão tão estranho, mas ele era alto demais, tanto o Anjo quanto o fogão. Então não pude ver nada até o momento em que ele colocou sobre a mesa um mingau.

—É de milho ou fubá? – Perguntei misturando com a colher, sentindo o aroma gostoso que subia.

Provei, queimando a ponta da língua, e olhei o Anjo, que me encarava.

—Está muito bom! Melhor que o da tia Sharon.

Esperei que ele sorrisse, mas quem sorriu fui eu. Ao ver-me sorrir, ele saiu da casa novamente, mas desta vez eu não o segui. Permaneci sentada à mesa, me servindo do mingau.

...

Não demorou muito e eu havia tomado todo o mingau até sua última gotícula. Assim que terminei vi o Anjo entrar segurando duas enormes peles de lobo. Passou por mim e entrou no quarto.

—O que é isto? – Fui até ele, animada.

Assisti-o abrir o guarda-roupa e tirar de lá um grande saco cheio de algo que pareceu algodão. Ele parecia não se importar com a minha presença. Apanhou aquela mesma maleta que pegara mais cedo e, por um instante achei que ele me costuraria a força novamente, então recuei amedrontada. Mas, não. Deitou as duas peles de lobo sobre o chão, uma em cima da outra, e pôs-se a costurá-las, deixando aberto apenas o topo, onde enfiou os algodões e depois terminou a costura.

Concluído seu trabalho eu entendi que sua pretensão era fazer um colchão. Quando, então, me atrevi a sentar sobre ele, fui impedida pelo Anjo que, apenas com um gesto, me mandou sair do quarto. Obedeci e logo o  vi sair do quarto também, voltando de fora da casa com os braços cheios de madeira.

Sentada à mesa, eu escutava batidas vindas de dentro do quarto. Quando ficar ali apenas escutando se tornou entediante, me levantei e fui espiar novamente o que ele fazia.

—Como você fez isso? – Perguntei, extasiada, vendo que ele havia construído uma cama, não como a minha que estava na casa da tia Sharon, mas, ainda assim, parecia divertido dormir sobre ela. – É para mim?

E foi então a primeira vez que eu o vi responder uma pergunta minha. Balançou a cabeça afirmativamente e saiu do quarto.

Segui-o até a cozinha, mas antes ele apanhou meu prato sujo sobre a mesa, e já na cozinha colocou uma panela cheia de água para ferver.

Voltei ao quarto, ainda curiosa com a cama, e me joguei sobre ela sentindo minha perna latejar, mas tal era meu encantamento que nem liguei para a dor. Movi minhas pernas e braços, sentindo o conforto do algodão junto às peles de lobo. Tia Sharon ia gostar de ouvir aquela história, talvez fosse até melhor que as suas.

Ouvi um barulho na cozinha e, ao sair do quarto, vi apenas a sombra do Anjo. Acheguei-me à porta da casa e vi-o despejando a água na banheira. Será que eu me banharia mais uma vez? Olhou para trás e, vendo-me, fechou a cortina por trás de si. Fui capaz dever apenas sua cabeça para o lado de fora. Ele era muito alto, ou talvez eu que fosse pequena demais.

...

Antes de escurecer me deitei na cama que o Anjo havia feito para mim e me permiti pensar em tia Sharon. Eu queria poder mandar-lhe algum sinal de vida, afinal, ela devia estar até agora me procurando lá no parquinho. Ou não.

De tanto pensar, acabei caindo no sono, sonhando com aquele homem barrigudo e com cara de mal que me raptou no parque e me jogou dentro de uma van junto com outras crianças.

Quando acordei, o quarto estava mergulhado num breu medonho, o que me causou um mal estar. Detestava o escuro. Coloquei os pés no chão sentindo uma fincada na perna, no local do corte. Ao me achegar à porta, percebi a luz da lareira acesa. Inclinei o corpo e vi o Anjo sentado num toco, encarando a lareira, enquanto comia algo. Ao seu lado havia outro toco, onde fui me sentar.

—O que está comendo?

Ele me olhou e se levantou, indo até a cozinha. Quando voltou me entregou uma mexerica, que eu me coloquei a devorar sem receios.

—Você conhece Portland? Minha tia Sharon mora lá. Será que estamos muito longe da casa dela?

Me intrigava o silêncio do Anjo. Ele só me encarava vez ou outra, mas nunca mudava sua expressão. Expressão essa que era um pouco triste e assustadora. Nas histórias que escutei, os anjos costumavam ser sorridentes e simpáticos, do contrário seriam demônios. Mas eu não acho que o Anjo seja um demônio, talvez ele só esteja num dia ruim. Tia Sharon também tinha seus dias ruins. Nestes dias, ela costumava ficar deitada no sofá o dia inteiro, só comendo chocolates e me dizendo que um dia eu iria entender. Bom, ainda não entendi.

Quando pensei em perguntar ao Anjo se ele entendia o porque da minha tia Sharon ficar de mal humor todo final de mês, ele se levantou e foi até o quarto, deixando a casca da mexerica, que havia comido, no chão.Quando voltou, porque ele sempre voltava, me estendeu o que parecia uma escova de dentes, mas era feita de um pedaço de madeira como cabo e pelo de algum animal como cerdas.

—É com isso que vou escovar os dentes?

Ele não me escutou. Saiu da casa e eu o segui.

Encontrei-o dentro do banheiro, colocando numa escova igual à minha algo que pareceu pasta de dente, mas acho que não era, porque não estava dentro de um dentifrício.

Era a primeira vez que entrava naquele banheiro. Percebi então que ali era o único lugar onde havia um espelho, pequeno, mas razoável.

Ao me ver pelo reflexo, ele se virou, enquanto esfregava os dentes ferozmente, e colocou em minha escova um pouco daquele negócio que eu ainda não sabia o que era.

Então encarei aquela coisa gosmenta com nojo, mas logo senti o Anjo levar a minha mão até minha boca, me fazendo escovar os dentes.

No final ele bochechou com algo e cuspiu na pia, dando espaço para que eu lavasse minha boca. Depois me ofereceu um pouco de um líquido que estava dentro de um frasco escrito “hortelã”. Não hesitei e bochechei também, na esperança de tirar o gosto ruim da língua. E foi o que aconteceu. Acabei ficando com um hálito refrescante.

—Nem o melhor listerine dá essa sensação.

Saímos então do banheiro, mas, quando viu que eu o seguia, ele se virou e apontou para o banheiro.

—Ah verdade.

Tia Sharon sempre dizia: “Se não quiser acordar molhada, vá ao banheiro antes de se deitar”. Talvez o Anjo tivesse uma tia como a minha, que o ensinou a importância deste ritual ‘pré-noite de sono’.

Quando terminei e lavei minhas mãos,ele entrou em casa e me esperou. Quando passei pela porta ele a trancou com alguns pedaços de madeira, atravessados por trás da porta.

Caminhei sonolenta até a minha cama e logo ele entrou segurando uma vela. Não entendia o porquê dele usar velas, se tinha lâmpada no teto.

—Você não pagou a conta de luz? - Questionei enquanto o via fazer a sua cama. - Tia Sharon disse que quando não pagamos a luz, homens do governo acabam com ela.

Ele novamente apenas me olhou e foi até o guarda-roupa, tirando de lá um cobertor e me entregou. Eu ainda estava envolvida naquele que ele me deu mais cedo.

—Amanhã você vai me levar para a tia Sharon?

O Anjo se deitou e entre nossas camas estava a vela. Abaixou-se lentamente e assoprou o fogo, nos deixando no escuro.

—Boa noite. - Ele disse pela primeira vez.

 


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