Philia escrita por Mileh Diamond


Capítulo 2
1963


Notas iniciais do capítulo

Mais um desse presente arrastado~~
E algo que eu esqueci de dizer é que, se vocês acharam as personalidades deles muito OOC, apenas assumam que o tempo foi responsável por amargurar essas pessoinhas :x

Boa leitura!!



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Abril de 1963

 

Vadim fez das aulas com a CSKA uma espécie de tradição. Agora, pelo menos uma vez no semestre, ele mandaria alguns bailarinos para as aulas extras como troca de experiências. Lilia já era uma opção porque tinha uma boa amizade com os patinadores. Ela só tinha que agradecer.

Dessa vez ela tinha ido sozinha, seu professor falando que tinha que resolver umas coisas antes da aula, mas que ela poderia ir na frente se não se importasse. E ela já tinha quinze anos, não precisava da companhia de adultos pra pegar o ônibus.

E pensar que no início ela imaginava nunca mais pisar naquele rinque.

O que a recebeu na sala de dança não foi o "Oi, Lilia." com o que ela estava acostumada. Ela foi recebida com música, uma que ela não conhecia. E também, com patinadores dançando. Não parecia balé. Aliás, não parecia com nenhuma dança que ela já vira.

— Lilia! - disse Irina de seu lugar na roda ao redor dos irmãos Korbut da dança do gelo. Eles pareciam a estrela principal, no momento. - Você tem que experimentar isso!

— Estão ouvindo músicas americanas? - ela franziu o cenho preocupada ao notar a letra em inglês. - Vocês vão acabar presos.

 

— Não se você não contar. - Yakov disse ao lado do gramofone, finalmente se fazendo notável. Pelo visto, ele estava controlando a música da festa.

 

Lukerya e Ilya Korbut davam um show no meio da sala. Os movimentos rápidos dos pés e dos joelhos, junto com os rodopios, os levantamentos e as acrobacias (!) formavam algo diferente de tudo que ela tinha visto. Eles pareciam se divertir com a dança. Definitivamente era mais animado que balé.

 

— Eles chamam de "swing". - Irina disse advinhando seus pensamentos. - Aparentemente é popular no Oeste desde os anos 50. Ilya conseguiu os filmes e Yasha, as músicas.

 

— Por que isso não me impressiona? - ela disse olhando para o dito cujo com olhos semicerrados. Yakov tinha um anjo da guarda muito, mas muito poderoso para livrá-lo de encrencas.

 

— Vamos, Lilia, tenta! - a garota disse segurando seu braço. - Dobre os joelhos e mexa a cintura e os pés assim, indo de um lado para o outro. - ela falou demonstrando o movimento.

 

— Isso é ridículo. - a bailarina murmurou enquanto tentava repetir. Era tão... livre. Desleixado. Não estava acostumada com coisas que não eram perfeitas.

 

— Isso! Agora mais rápido, sinta a música! - ela disse se remexendo toda ao som da canção estrangeira.

 

Não era nada como o balé em que ela era crescera. Quem sabe o mais próximo daquilo eram as danças tradicionais, com muitos pés batendo e giros? Ainda assim, ela tinha que admitir que era legal, principalmente quando ela deixou de se mover como uma marionete depressiva. O Oeste tinha umas danças legais.

 

— Isso é muito besta. - ela disse rindo.

 

Em algum momento, a roda dos Korbut formou-se ao redor dela e Anatoly Ganshin que se autodeclarou seu par para o momento. Ele era um dos melhores dançarinos ali, em sua opinião, então era  quase uma honra tê-lo ao seu lado.

 

— Que tal um arabesque de frente pra animar isso aqui? - Ganshin perguntou no seu ouvido quando estavam próximos o suficiente.

 

— Promete que não vai me derrubar?

 

— Palavra de patinador.

 

Não que isso valesse muito pra ela. Batalov era um traíra quando se tratava de dividir doces no cinema e ela ainda não perdoara Yakov pelo rato de brinquedo em janeiro. Mas era o que tinha pra hoje.

 

Após um rodopio, Lilia deu dois passos para trás e depois seguiu em frente, dando um impulso quando sentiu as mãos de Anatoly em sua cintura, mandando-a para cima enquanto ela se apoiava em seus ombros e erguia a perna, completando o arabesque.

 

A pequena multidão foi ao delírio e, de onde estava, Lilia viu o momento em que Yakov ficou de queixo caído ao lado do gramofone. Ela ainda teve tempo de mandar uma piscadela antes de Ganshin a devolvê-la para o chão, finalizando a performance com um giro e a deitando como num tango.

 

Extra. Ganshin era muito, muito extra.

 

Treinador Andrei escolheu essa hora para entrar no estúdio e Feltsman foi rápido para desligar a música, enquanto os outros voltavam a normalidade e Lilia e Anatoly fingiam que não acabaram de dançar algo digno de um filme Hollywoodiano.

 

Andrei olhou a cena por um minuto e disse:

 

— Vocês não enganam ninguém, crianças. Espero que tenham ao menos se aquecido nessa bagunça.

 

Três pessoas riram baixo, incluindo Anatoly que se curvou levemente perante Lilia e falou sorrindo:

 

— Foi ótimo dançar com você, madam. Mas eu ainda sou fiel à Irinushka.

 

Ela fez uma reverência como no balé, também sorrindo.

 

— Digo o mesmo, Tolya. E acho que não devo lealdade a ninguém.

 

— Nossa, fala na cara, então. - Yakov disse se aproximando da dupla. - Sinto que fui traído.

 

— Por quê? - ela perguntou genuinamente curiosa.

 

Ele arqueou as sobrancelhas, exagerando decepção colocando uma mão no coração.

 

— Oh, Lilia, como você pôde? Nós éramos parceiros. Eu danço com você nessa aula desde que você era uma pirralha antissocial.

 

Oh. Era verdade. Tirando seus pares no Bolshoi, Yakov era o que mais dançava com ela. Um parceiro bem útil até, se levarmos em conta que a ajudava mesmo não participando mais das aulas de pares. Ela só não achava que ele os considerava uma constante importante. Que gracinha.

 

Ela ainda o incomodaria.

 

— Pares não são noivos, Feltsman. Só porque eu dancei com outro não significa que estou te "traindo". - ela cruzou os braços. - E você nem se ofereceu pra dançar comigo.

 

— Porque eu não achei que você ia gostar. - ele se defendeu. - Mas já que é assim, na próxima eu danço até salsa cubana se você quiser.

 

— Você sabe salsa cubana? - ela arqueou uma sobrancelha.

 

— Não, mas eu dou meu jeito. É questão de honra. Eu fui trocado por Ganshin. Ele é o cara que ainda bate de cara no vidro da recepção quando limpam demais.

 

— Seu ego é tão fraco, Feltsman. - Anatoly disse com falso desprezo. - Usando de falhas alheias para esconder as suas.

 

— Pode me criticar quando enxergar a porta, Tolya. Vamos, Lilushka, para longe dos míopes. - Yakov disse praticamente empurrando a mais nova para o outro lado da sala.

 

O que aprendemos hoje?

 

Swing é uma dança americana. Não tinha nada a ver com balé. Ganshin era um doce e Yakov Feltsman era um parceiro ciumento.

 

Fofo.



 

 

 

 

Outubro de 1963

 

Yakov Feltsman teve seu primeiro emprego como professor aos 18 anos.

 

Deveria ser fácil. Olhar uns pirralhos, ensinar figuras, evitar que caiam e percam um dente de leite antes da hora... Ele tinha experiência com crianças. Mesmo não tendo irmãos, ele sempre foi a babá do prédio em que morava. Dava uns trocados bons.

 

Agora, aquelas pestes...

 

— Vocês podem... Não, Misha, não force a ponta das lâminas. Podem, por favor, fazer uma fi- Anya, solnyshko, solta a minha mão, você não vai cair. Eu... LARISA CHEBUTARYEVA, SAI DE CIMA DESSE ZAMBONI!

 

É, elas eram um nível completamente diferente.

 

Lilia estava lá para assistir àquele desastre da pedagogia. Oito ou nove miniaturas de gente com menos de sete anos fazendo da vida de Feltsman um inferno. E Yakov era um show à parte quando irritado. Ele ficava vermelho, começava a falar alto, quase arrancava os cabelos na tensão... Engraçado era pouco para descrevê-lo. Mesmo que ele não compartilhasse da opinião.

— Você parece saber o que está fazendo. - ela disse quando ele estava próximo o suficiente, após retirar a menina do zamboni.

 

Ele fechou a cara.

 

— Claro que eu sei. Eu sou experiente com essas criaturinhas... - seu olhar parou em dois meninos brigando a alguns metros dali. - Pasha, sem empurrar! Crianças que empurram não recebem presente do Ded Moroz.

 

O tal Pasha parou imediatamente o que estava fazendo e os dois meninos olharam surpresos.

 

— Verdade?

 

— É, verdade. - finalizado o conflito, ele voltou-se para a menina. - Como pode ver, tenho tudo sob controle.

 

Era como os cartazes do governo falando sobre crescimento econômico enquanto os índices de desemprego estavam lá em cima: não estava tudo sob controle. As crianças deveriam estar numa fila para fazer o exercício final, mas só sabiam correr (e cair) ao redor enquanto gritavam enlouquecidas. Um dos Korbut deveria estar ajudando Yakov, mas pelo visto ele ficou sozinho no posto. Agora tinha que sofrer.

 

Lilia estava quase ficando com pena.

 

— Larisa ainda parece empenhada em conquistar o zamboni. - ela comentou olhando para a menina de óculos que tinha um olhar um tanto maléfico para a máquina que alisava o gelo. - Te pagam bem?

 

Não, ele queria responder. Mas dinheiro não é algo de que se abre mão. O pior, ele sentia que Lilia estava zoando com a sua cara ao fazer aquela pergunta. Como se ele não pudesse dar conta de um bando de pirralhos.

 

— Mais do que você está recebendo por fazer nada aí fora. - ele retrucou não olhando para a mesma, mas para seu pequeno batalhão de demoninhos do gelo.

 

Quem convidou Lilia para criticá-lo, afinal?

 

Ah, sim, foi ele que a chamou pra sair e pediu que esperasse até a aula acabar. Droga.

 

Lilia pareceu pensar o mesmo, pois apenas arqueou uma sobrancelha para o comentário parcialmente ácido. Agora, ela deveria deixá-lo sofrendo. Mas já estava aqui e queria sair para ir ao cinema o quanto antes. A lerdeza educacional de Yakov não estava ajudando.

 

— Se eu colocar tudo em ordem, quanto eu recebo? - a mais nova perguntou com um sorriso pequeno. Não saíra de casa com a perspectiva de ganhar alguns rublos, mas a sorte tem seus favoritos. E ela precisava de grampos novos.

 

O patinador a olhou como se estivesse ofendido. E estava mesmo.

 

— Eu não preciso que você coloque tudo em ordem. - ele frizou o verbo. - O trabalho é meu e... Masha, de onde você tirou esse taco de hóquei?! - ele se interrompeu ao ver uma das meninas, a menor e com delicadas fitas rosas, carregando um dito taco maior que ela pelo rinque.

 

Lilia foi trocada mais uma vez por crianças fazendo um estrago, mas ela não se sentiu tão ofendida. Aquela já era a resposta de que ela precisava: Yakov precisava de ajuda.

 

E porque a garota se sentia muito benevolente naquela tarde, ela resolveu ajudar.

 

Yakov nem viu quando ela saiu dali à procura dos patins.


 

 

 

A avó de Feltsman costumava dizer que o medo move as pessoas.

 

Ele acreditava parcialmente nisso. O medo de ser motivo de chacota e ter que prestar serviço militar o levou a treinar e ser um patinador do Exército. O medo de levar uma surra na primeira semana em Moscou o levou a lutar boxe. A lista continuava.

 

Mas a visão de Lilia entrando no rinque como quem estava prestes a matar oito crianças não o fez se mover. Pelo contrário, o prendeu mais ainda contra o gelo.

 

Lilia era como todas as garotas de quinze anos que Yakov conhecia: baixinha e ainda com cara de criança. Quem sabe aos 17 ela começasse a parecer mais com uma mulher de verdade. A questão é que, tendo cara de criança, ela não deveria parecer assustadora enquanto deslizava pelo gelo com a altivez de uma reencarnação de Stalin. Ele nem queria pensar no dia em que ela começasse a usar salto alto.

 

Yakov sentiu medo. E as crianças devem ter sentido o mesmo, pois quando cada uma das que estavam no caminho olhava para a menina, elas paravam suas peripécias e ficavam quietas. Lilia entrou pela entrada mais distante e seguiu em linha reta até onde Yakov estava, não desviando uma vez. O que significa que as crianças em seu trajeto tiveram que sair do caminho após um olhar gélido que deixava claro que o recreio havia acabado.

 

Ele já podia ouvir os murmurinhos incertos dos pequenos. Pelo visto, foram mínimos os que notaram a presença de Lilia anteriormente no muro, de forma que ela parecia ter saído do nada. E para os que perceberam, não entendiam por que a moça estava tão brava.

 

— Ela é professora? - Masha do hóquei cochichou para outro menino.

 

— Parece mais uma bruxa. - ele respondeu apenas para ser ouvido por Lilia e receber um olhar que o fez ficar meio tom mais pálido. Yakov podia dizer que tinha orgulho dele. Ele, em seu lugar, teria chorado.

 

— Eu quero todos os meninos e meninas numa fila perto dos cones. Agora. - ela disse em alto e bom som, a voz praticamente reverberando pelo estádio inteiro.

 

Algumas almas já estavam se apressando para seguir a ordem, mas um rapazinho muito corajoso (ou muito burro) estufou o peito e apontou o óbvio:

 

— Você não é treinadora!

 

E o verdadeiro treinador ali se perguntou se deveria calar a boca do garoto (Denis? Dima? Eram tantas crianças. Vamos ficar com Denis) e impedir um crime hediondo. Porque olhares matam, disso ele tinha certeza. Principalmente quando eles vêm de um par de olhos verdes que passavam o dia inteiro na ponta dos pés até os dedos sangrarem e que provavelmente aprenderam a atirar com uma AK-47 sob a vigilha do pai.

 

Mas Lilia não o olhou como se quisesse matá-lo. Era apenas o olhar de suave desgosto que ele sempre associaria com professoras de dança. Um semicerrar de olhos que dizia "Quem deixou esse encosto infantil atrapalhar a minha aula?"

 

— Hoje eu sou. - ela respondeu simplesmente, mãos seguras atrás de si. - E eu obedeceria se fosse você, malenkiy.

 

— Não quero. - Denis cruzou os braços desafiadoramente.

 

Alguns pequenos corajosos de última hora pareciam prontos para se juntar a rebelião. Yakov ainda assistia a tudo pasmo.

 

Lilia nem piscou.

 

— Vocês gostam de histórias, crianças? - ela perguntou dando impulso sobre os patins, fazendo-a se mover ao redor.

 

Alguns responderam "sim", em particular as meninas. Denis ainda mantinha sua posição como o rebelde da turma.

 

— Quem aqui já foi ao Bolshoi? - ela perguntou olhando para os pequenos.

 

Larisa do zamboni levantou a mão animadamente.

 

— Eu fui! Eu assisti Petrushka!

 

A bailarina se permitiu um sorriso pequeno ao notar um pouco de cultura naquela geração. Mas nem isso salvou Larisa da próxima pergunta num tom muito mais sombrio do que a conversa deveria permitir:

 

— Você sabe o que acontece com crianças desobedientes no balé, mocinha?

 

A garota pareceu pensar a respeito, o nariz pequenino franzido em concentração fazendo uma careta fofa com os óculos. Ela balançou a cabeça ao final.

 

— Não.

 

— Hum. Eu vou contar pra você, então. - ela voltou a se mover em lentos movimentos entre as crianças, como se estivesse julgando-as uma a uma. - As crianças que não obedecem levam um castigo de Carabosse.

 

Uma interrogação pareceu surgir na mente dos menores, até mesmo de Denis, com o nome novo.

 

— Quem é Carabosse? - Anya perguntou em voz baixa.

 

— É uma fada das sombras. - a mais velha respondeu. - E ela não gosta de pessoas mal-criadas. Sabe o que ela fez quando não a convidaram para uma festa por pura falta de educação?

 

— Não. - alguns responderam em uníssono.

 

— Ela fez a princesa Aurora dormir por cem anos. - a seriedade com que aquilo foi dito fez o próprio Yakov sentir calafrios.

 

As crianças emitiram um "Oh!" coletivo de surpresa. Que fada malvada! Mas por que não a convidaram? Isso era muito injusto, também.

 

— Mas dormir é legal! - Denis retrucou e alguns concordaram.

 

Lilia virou-se para o seu principal rival naquele grupo, indo ao exagero de se curvar levemente para que estivessem na mesma altura e ela pudesse encará-lo.

 

— Ah, é? Imagine não poder acordar e brincar com seus amigos ou ver sua família. Imagine não poder assistir todos os desenhos que você queria. Imagine passar cem anos sem comer bolo de aniversário. - ela listou séria enquanto assistia à expressão do menino ir de confiante para levemente assustada. - Não parece tão legal, né?

 

— Mas... Mas a gente não faz balé! - ele rebateu tentando se livrar daquele destino obscuro. Denis não queria ser Aurora!

 

Feltsman imaginou se aquilo não estava indo longe demais.

 

— É verdade. Mas quer que eu conte um segredo? - ela voltou a ficar de pé - Carabosse é muito amiga de Snegurochka.

 

— A donzela de neve? - uma das meninas perguntou.

 

— Exato. E ela protege todos os patinadores. Mas quando eles estão muito levados, ela fica triste. - a garota parecia muito sentida enquanto falava, como se a tristeza fosse dela própria. - Carabosse não gosta de ver seus amigos tristes.

 

Yakov desviou o olhar para evitar uma risada que certamente destruiria a autoridade de sua amiga. Aquela história era... um pouco diferente do que ele estava acostumado. Mas ele já entendeu onde aquilo ia dar.

 

— E o que ela faz? - Anya perguntou com olhinhos preocupados.

 

Lilia fez uma pausa para suspense, analisando cada expressão curiosa e amedrontada dos pequenos patinadores. Ela não era cruel. Sabia seus limites. Mas alguém tinha que ensinar os daquelas crianças.

 

— Meninos e meninas que não obedecem aos seus treinadores são enfeitiçados por Carabosse e nunca mais poderão pisar no gelo novamente. - ela finaliza solene, como uma juíza anunciando o resultado final de um julgamento.

 

O suspiro quase aterrorizado das crianças quase lhe deu dó. Eles pareciam gostar muito da patinação para aceitarem se separar dela.

 

— E como ela faz isso? - Denis perguntou com tanto medo quanto os outros.

 

— Mágica. - ela disse com a mesma seriedade de sempre.

 

Uma mágica chamada "Falaremos com seus pais e eles nunca mais te deixarão fazer aulas", ela pensou. Mas não iria dizer, estragaria a "magia" da história.

 

Antes que um dos mais sensíveis começasse a chorar, ela tratou logo de dizer:

 

— Mas, se vocês ouvirem o treinador Yasha, tenho certeza de que ela vai esquecer todas as coisas ruins que vocês fizeram até agora. Snegurochka também irá perdoá-los.

 

Aquilo pareceu acender uma luz para as crianças e elas olharam para Yakov com expectativa. Percebendo ser sua deixa, o rapaz assentiu.

 

— É verdade. - ele apontou para o pequeno circuito com cones e figuras em oito organizado e esquecido a poucos metros dali. - Vocês só precisam fazer uma fila, quietinhos, para terminarmos o último exercício de hoje. Depois, vocês poderão ir pra casa e Carabosse não ficará brava com ninguém.

 

A última informação foi o gatilho para todos começarem a se mover organizadamente, talvez com um pouco de pressa, para a fila. Os dois adolescentes se entreolharam e Yakov do fundo de seu coração queria a habilidade das pessoas casadas de conversar apenas com o olhar. Porque ele não sabia se o sorrisinho de lado significava um "Viu? Você é um péssimo treinador.", um "Você me deve 30 rublos." ou ainda "Vamos terminar logo essa aula que eu não quero perder o filme."

 

Ele esperava que ela entendesse o seu olhar de "Eu sou meio contra terror psicológico, mas obrigado pela ajuda.", de qualquer forma.



 

 

Lilia não participou tão ativamente do final da aula. Sua função se resumiu a ficar num canto observando as crianças aperfeiçoando técnicas de figuras compulsórias ou o ocasional bunny hop que elas exibiam. Ela só ficava triplamente sem graça e, ao mesmo tempo, comovida quando um deles a chamava de "Treinadora Linya" e pedia sua opinião sobre a consistência de seus spins. E Lilia achava que eles estavam ótimos, considerando que ela demorou cinco visitas ao gelo para largar completamente o muro e sair patinando por aí se sentindo a própria Sonja Hejne. Então, nessas horas, ela apenas olhava para Yakov com a pergunta silenciosa de "Isso foi realmente bom ou a minha ignorância está me cegando?". Ele respondia com um aceno simples e ela podia tecer os elogios que quisesse. Com sorte, todos estavam melhorando, de forma que ela não teve que destruir sonhos.

 

Pra não dizer que ela foi completamente inútil, ela pôde ajudar uma mocinha com seu programa longo (!) para uma competição entre clubes e fazê-la parecer mais delicada em sua interpretação de Für Elise. Sinceramente, quem foi o sádico que fez uma criança de sete anos patinar Beethoven? Ela escolheria alguma trilha sonora de desenho animado e ninguém a impediria. De qualquer forma, ela mostrou à pequena Melaniya Petrovna como ter leveza em seus spins mesmo não tendo ideia de como fazer um decente. O resultado pareceu bom. Apenas doeu admitir que ela não participaria das próximas aulas.

 

— Ah. - a jovem patinadora não escondeu sua decepção com a notícia. - Mas você é uma treinadora tão legal, treinadora Linya!

 

— Mas eu não sei patinar tão bem, Lana. - ela confessou enquanto os outros alunos recebiam as últimas instruções de Yakov no outro lado do rinque. - Eu só sei balé.

 

— Você podia ensinar balé no gelo!

 

Aquilo fez Lilia sorrir. Crianças tinham um jeito de fazer tudo parecer mais fácil.

 

— É muito difícil. Mas eu tenho certeza que o treinador Yasha ensinará muitas coisas legais pra você. Doubles, triples, os camels. Você sim pode se tornar uma verdadeira bailarina no gelo.

 

A menina não parecia tão satisfeita com aquilo, mas se alegrou com a última parte.

 

— Acha que eu posso ganhar a competição inter-clube?

 

— Tenho certeza. - ela disse com a consciência limpa de que não precisava mentir. Petrovna era muito talentosa.

 

Melaniya abriu o maior dos sorrisos enquanto surpreendia a mais velha com um abraço que quase a fez perder o equilíbrio. Uh, essa geração estava pouco a pouco perdendo a noção de limites pessoais.

 

— Obrigada, treinadora Linya! - ela disse pouco antes de seu verdadeiro treinador anunciar o fim da aula e dispensar os alunos.

 

Meninos e meninas acenaram suas despedidas para os dois professores, com já alguns pais esperando nas arquibancadas. Se alguém se importou com as aulas sendo ministradas por um rapaz de 18 e uma menina com não mais que 16, não se manifestou.

 

— Bom, acho que temos algumas coisas a discutir. - Yakov foi o primeiro a comentar assim que não havia mais nenhuma criança por perto.

 

— É claro. Quero um terço do que você ganharia com essa aula. Em rublos. - Lilia disse sentando-se  um dos bancos e desamarrando os cadarços do patins emprestado.

 

— O quê? Não, não isso. - ele franziu o cenho. - Eu queria agradecer por ajudar com as crianças, mesmo que tenha aterrorizado as coitadas um pouco com aquela versão bizarra de Bela Adormecida.

 

— Crianças precisam ter um pouco de medo, Yakov. É o que as mantém vivas. - ela soava como uma profissional. - Você pode treinar isso nas próximas aulas.

 

— E você aprendeu a lidar com essas pestinhas como...?

 

A garota sorriu de lado, voltando-se para o mais velho assim que colocou seus sapatos novamente.

 

— Yasha, eu sou a caçula. Eu era a pestinha. E acreditava em Baba Yaga até os nove anos. Fica fácil lidar com o inimigo quando o conhece. - ela se levantou do banco e alisou a saia, a bolsa já em uma mão enquanto esperava. - Vamos falar do meu pagamento antes ou depois do filme?

 

O patinador fez uma careta. Seu precioso salário já era tão pequeno...

 

— Lilushka, tenha compaixão...

 

— Eu já tive compaixão ao te ajudar na aula. - ela continuou impassível. - Quero minha parte. Preciso de grampos novos...

 

— Eu compro! - ele se ofereceu prontamente.

 

— ... e meia-calças novas, sapatos novos e aquele lenço adorável que eu vi outro dia. - ela continuou segurando um sorriso.

 

— Você não vai conseguir isso nem com o meu salário inteiro. - ele resmungou. Malditas crianças ricas. - Eu sou apenas um pobre proletário tentando ganhar a vida.

 

— E você quer que eu venda minha força de trabalho por nada? - ela cruzou os braços. - Que feio, camarada. Isso é exploração. Marx teria vergonha.

 

— Mas é uma bruxinha capitalista mesmo. - ele acabou rindo, se levantando após ter se livrado dos patins. - Se eu te mimar o dia inteiro, você esquece essa história?

 

Ela pendeu a cabeça levemente.

 

— E com "mimar" você quer dizer...?

 

— Pago os ingressos, os doces, o ônibus e qualquer outra coisa que você inventar. - ele ofereceu. - Desde que some menos que 50 rublos.

 

Ela pareceu pensar a respeito, olhos verdes concentrados enquanto fazia dezenas de cálculos mentais e analisava as opções. Yakov realmente esperava que ela tivesse mais piedade. Seria seu primeiro salário e ele já estava endividado.

 

— Vai servir. - ela disse ao final, dando de ombros. - O lenço só custa quinze rublos.

 

O garoto suspirou aliviado. Não estava tão frito assim. Ainda tinha um pouco de bondade naquela soldado.

 

— Obrigado, treinadora Linya. - ele falou sorrindo ao se lembrar de como as crianças a chamaram. Quem sabe um dia ele conseguiria transformá-la numa coreógrafa.

 

— Menos, Yakov. Bem menos. - ela disse escondendo as bochechas coradas ao ir andando na frente.

 

Mas até ela tinha que admitir que ensinar uns pirralhos a patinar era divertido.


 

 

 

 

Outubro de 1963

 

Não é novidade pra ninguém que o time de hóquei é a menina dos olhos da CSKA. Aliás, qualquer time de hóquei recebe mais atenção que a patinação artística. Eles só estavam ali por caridade, praticamente.

 

Por isso, eles tinham que ter uma boa relação com os rapazes do time. E eles conseguiam, apesar do natural ar de superioridade que eles pareciam exalar de propósito toda vez que esperavam os patinadores esvaziarem o gelo. Metidos.

 

Hoje era um daqueles dias, com Yakov, os Korbut, Lagutina e Ganshin saindo do rinque após os treinos quando os rapazes de vermelho e azul esperavam do lado de fora.

 

— Hey, Feltsman, aquela menina que de vez em quando aparece aqui é sua namorada? - Levon Bobrov, atacante do time com um sério problema de acne e piadas sem graça, perguntou com um sorriso provocador. - Ela parece muito nova pra você.

 

— Porque ela é. - ele disse enquanto colocava os protetores de lâminas. - Somos só amigos.

 

— Sabia que você não ia nos decepcionar, Yakov Eliseevich. Sempre um cavalheiro. - Marko Bobrov, irmão um ano mais novo de Bobrov, disse com um sorriso ligeiramente menos idiota. - Mas ela até que é bonitinha, não acha?

 

Ele se resumiu a encolher os ombros enquanto procurava a garrafa d'água em sua mochila. Aquele tipo de conversa não era nem de longe sua favorita, ainda mais com aqueles caras. Quanto mais tempo ele conseguisse ficar quieto, melhor.

 

O time de hóquei já começara a entrar, mas os Bobrov ficaram para trás, apenas para a chateação de Yakov.

 

— Se é assim, então você me passa o telefone dela? Acho que a gente daria super certo junto. - Levon disse quase estufando o peito numa tentativa de exibir sua virilidade. O moleque só tinha dezessete.

 

— Você é o interessado. Fala com ela quando a vir. - ele respondeu fazendo pouco caso, mesmo que estivesse se segurando para não revirar os olhos. Lilia não tinha um mau gosto daqueles.

 

— Vou fazer isso. Bailarina, hum? Nunca namorei uma. - aquele sorriso assumiu um ar malicioso e Yakov soube, naquele momento, que algo daria errado. - Dizem que elas são bem flexíveis. Imagino se vou esperar muito tempo pra testar...

 

Yakov não se segurou.

 

Uma distância de talvez dois metros o separava de Levon. Antes da última palavra terminar de ser dita, o patinador já tinha um punho segurando a gola do uniforme do garoto. Eles tinham a mesma altura, mas naquele momento Yakov cresceu, os olhos semicerrados de raiva enquanto falava entre dentes:

 

— Fale de Lilia assim de novo e eu enfio essa porra de taco num buraco tão fundo que nem os médicos do Exército vão conseguir tirar.

 

Ele ainda teve o prazer de ver os olhos cheios de medo do jogador antes de seu irmão o puxá-lo para o lado.

 

— Não é pra tanto, Yakov. - Marko disse sério, mas parecendo constrangido. - Ele não quis ofender. Age como um idiota às vezes, mas não fez por mal.

 

— Ei! - o outro Bobrov reclamou. - Você mesmo disse que não tinha nada com ela, Feltsman. Por que bancar o macho agora?

 

— Levon, cala a boca. - Marko disse já estressado, mas não sendo escutado graças à resposta nada calma de Yakov:

 

— Eu tenho que namorar alguém para defendê-la de comentários nojentos como o que você fez? - sua voz estava aumentando o tom a cada palavra e logo muitos já estavam olhando. - Lilia é minha amiga. Não sei se tem Q.I suficiente para entender isso, mas nós defendemos amigos. E já que você fez o favor de mostrar o quão bosta é, seja sensato e não tente falar com ela. É uma moça muito boa pra lidar com lixo igual a você.

 

Levon parecia pronto para continuar a briga, mas Marko foi rápido para impedi-lo com comentários irritados em bielorrusso. Yakov conseguiu entender um "Você só fala merda.", mas talvez ele estivesse errado.

 

De qualquer forma, ele não continuou ali por muito tempo, escolhendo seguir para o vestiário e evitar mais um embate com os jogadores de hóquei. Já tinha se estressado muito naquele dia.

 

Ilya Korbut tinha visto a cena e o seguiu até o vestiário. Ou talvez Yakov estivesse com mania de perseguição e esqueceu que o espaço era público.

 

— Pensei que ia ter sangue. - o dançarino do gelo confessou sentando-se num dos bancos.

 

— Tsk. Se houvesse, eu perderia minha vaga por ter estragado a cara de um dos queridinhos da CSKA. - Feltsman resmungou retirando os patins.

 

— Você sabe que não tem problema admitir que gosta de Baranovskaya mais do que como amigo, né? - o outro disse com uma pitada de sorriso na voz, mas ainda sério.

 

Hoje era seu dia, pelo visto.

 

— A frase "Somos só amigos" é tão difícil de entender assim? - ele disse exasperado naquela mistura de cansaço e irritação. - Eu posso listar mil razões pelas quais eu não namoraria a Lilia. Mas todo mundo parece amar distorcer as coisas.

 

— Porque é muito difícil achar um menino e uma menina sendo amigos desse jeito. - ele explicou. - É como se vocês fossem feitos um pro outro, sei lá. Uma dupla inseparável. Lukerya disse que quer um casamento igual ao de vocês. E vocês nem são casados.

 

Yakov escondeu o rosto em uma das mãos. Vergonha alheia, própria ou simplesmente estresse? Difícil dizer.

 

Porque ele não conseguia ver Lilia daquele jeito. Ela era... bem, ela era a Lilia. Se tivesse que fazer um daqueles diagramas de Venn da aula de matemática (que ele odiava), ela estaria numa intersecção de "irmã" e "colega". Significava que era uma amiga, certo? Ele tinha outras amigas, só precisava apontar as meninas do time.

 

Mas Lilia era a favorita.

— Diga a sua irmã que não vai ter casamento. Nem hoje, nem daqui a dez anos.  - ele disse pegando uma muda de roupas na mochila e se dirigindo aos chuveiros. Só uma ducha fria para resolver seus problemas, agora.

— Mas nós já tínhamos escolhido as roupas para a cerimônia! - Ilya disse atrás de si e Yakov tinha certeza de que ele estava rindo, dessa vez.

 

— Morra, Minsk.

Ugh, ele e Lilia se casando.

 

Nojento.


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Notas finais do capítulo

*Friends da Anne-Marie toca ao fundo*

Caso não tenham percebido, essa fic será 80% esses dois reafirmando que são só amigos e aquele 20% outros clichês. Amo muito tudo isso.



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