Na hora de dormir, os rostos daquelas três crianças passam em minha mente, hoje eles teriam quase a mesma idade que eu. Fecho os olhos, agora eu sei que os verei, mas ainda não sei como reagir, então deixo o sono me levar.

Estou encarando a peça vermelha em minhas mãos. Novamente, eu sei que estou sonhando, mas dessa vez, eu tenho meus 10 anos.

Oliver está ao meu lado, ele realmente está muito feliz enquanto brinca com essas peças. Eu consigo sentir que estou impaciente.

Olho ao redor, encarando o rosto de cada pessoa na sala de espera, esperando reconhecer alguém. É quando vejo alguém entrando rapidamente no local, e atravessando a sala com pressa, indo em direção ao corredor dos escritórios. É uma mulher, mas o que me chama a atenção é a garotinha que está segurando em sua mão e a seguindo.

Eu nunca tinha reparado nelas, pois sempre fiquei distraído com as peças de montar, mas agora eu sei que aquela garotinha é Felicity.

Pouco tempo se passa, e vejo Felicity voltar sozinha, e entrar no banheiro. É quando ouvimos a explosão e o prédio começa a tremer. A mulher sentada na cadeira perto de mim diz a mesma frase que já ouvi várias vezes, mas dessa vez não presto atenção, pois me concentro em ir até a porta do banheiro.

Felicity sai do banheiro e começa a ir em direção ao corredor, mas eu seguro em sua mão. Ela me encara confusa.

— Venha brincar, tem várias peças de montar ali - Decido usar isso como desculpa.

Ela olha para o corredor e parece decidir o que fazer. Quando ela sorri, puxo-a pela mão até o tapete.

Mostro a ela as inúmeras peças espalhadas. Encaro a porta principal, aguardando a chegada do segurança que eu sei que virá. Quando ele aparece avisando sobre a evacuação do prédio, Felicity se desespera, ela levanta e vai correndo até o corredor. Minha mãe aparece, segura minha mão e me guia até a saída. Eu olho para trás, e vejo Felicity praticamente puxando uma mulher, também em direção a saída.

Fico tranquilo quando saímos de dentro do prédio e vejo Felicity com sua tia também já do lado de fora. Então o sonho termina da mesma forma de sempre, com o segundo avião colidindo, e os grandes prédios vindo ao chão.

Acordo de meu sonho rotineiro, mas dessa vez estou calmo, minha respiração está normal, e não estou suando como sempre.

Por ser domingo, posso chegar mais tarde na IS, e por ter um fluxo de carros bem menor, eu entrego bem menos folhetos.

Enquanto caminho pelas ruas de Starling City, várias coisas passam em minha mente e ao mesmo tempo não consigo pensar em nada. Eu sinto que tem algo de diferente, mas não sei o que é.

A caminhada até a IS dura 25 minutos. Entro no local, e como de costume, Donna vem me abraçar.

Uma mulher sai de trás do balcão e também vem me abraçar, eu a encaro por alguns segundos, sem reconhece-la. Ela tem a pele branca, é bem mais baixa do que eu, o cabelo loiro com as pontas onduladas ajuda a dar destaque em seus olhos azuis brilhantes.

E então, um flash como um filme passa em minha mente. Eu me lembro de uma vida toda em milésimos de segundos. Lembro de ter estudado com Felicity no colegial, e nos tornamos melhores amigos. Lembro de ela ter me apoiado mesmo quando eu estava acabando com a empresa de minha família. Lembro de ela ter discutido com meus pais por terem me expulsado de casa. Lembro de ouvir todos ao nosso redor dizendo que parecemos um casal, por sempre estarmos juntos, mas também lembro de nos considerarmos como irmãos.

— Tommy, hoje vamos almoçar no Big Belly Burguer né? – Felicity pergunta voltando para trás do balcão.

— Vamos sim – Eu respondo depois de cumprimentar Quentin – Vou entregar todos os folhetos de hoje até meio dia, então venho te encontrar aqui.

Eu não sei explicar, pois me lembro de ontem termos combinado de almoçar juntos nessa lanchonete, mas como uma memória distante, me lembro de apenas ontem ter descoberto que Felicity morreu no 11 de setembro.

— Você poderia tirar o dia de folga, e relaxar hoje, querido – Donna sugere.

— Deixe o rapaz trabalhar, Don - Quentin diz enquanto vira a placa na porta, com a palavra "aberto" para fora – Trabalhando duro, que se cria responsabilidade.

— Ele está certo – Digo pegando o monte de folhetos que devo entregar hoje pela manhã – Eu já vou indo, para conseguir voltar cedo – Olho para Felicity antes de sair – Esteja pronta ao meio dia.

Passo a manhã toda distribuindo folhetos para os motoristas no centro da cidade. Minha mente está trabalhando a mil por hora. Minhas memórias estão uma bagunça. Sinto como se estivesse vivendo duas vidas diferentes, mas eu tenho certeza que não estava sentindo isso ontem, mas eu também não sei em que ontem devo acreditar.

Me encontro com Felicity meio dia em ponto em frente à sede da pequena empresa de seus pais. Andamos em silêncio até nossa lanchonete preferida, embora eu nem sabia que gostava de comer nesse lugar, mas eu sinto que gosto.

— Você está muito quieto – Felicity diz quando nos sentamos numa mesa ao lado da janela – O que aconteceu?

— Nós somos melhores amigos, certo? – A encaro esperando uma resposta.

— Claro que sim – Ela diz como se isso fosse óbvio – Você está se sentindo bem, Tommy?

— Felicity, você acredita em coisas doidas e estranhas né?

— Eu acreditar na existência de aliens, não é uma coisa doida, são fatos – Ela começa a olhar as opções no cardápio em cima da mesa.

— E se eu disser que ontem eu tinha uma vida totalmente diferente da que tenho hoje? E que eu só percebi que ela está diferente, quando te vi, porque você não existia ontem.

— Tommy? Você por acaso se envolveu com aquelas pessoas estranhas no final da sua rua, e está usando drogas?

— Acho que se fosse isso, seria mais fácil de entender – Ela parece confusa – Não, Felicity, não estou usando drogas.

— Então que história doida é essa ter uma vida diferente da que tinha ontem?

A garçonete para ao nosso lado, ela espera alguns segundos antes de pigarrear chamando nossa atenção.

— Desculpa se interrompi – Ela troca o olhar entre nós dois – Vocês já querem pedir?

— O de sempre, Carly – Felicity responde, e a moça, Carly, sai anotando algo em seu bloquinho.

— Eu não sei qual é o meu de sempre – Eu penso, mas pela expressão de Felicity, acabei dizendo em voz alta.

— Agora, você pode por favor, me explicar o que está acontecendo com você?

— Antes, eu mesmo preciso entender o que está acontecendo comigo – Respiro fundo, ela ainda me encara – Você se lembra o que estava fazendo, e onde estava em 11 de setembro de 2001?

— Mas você já sabe disso.

— Por favor.

— Tudo bem, né – Ela não está entendendo, na verdade nem eu estou, mas vamos descobrir juntos – Eu estava no escritório da tia Beth, em uma das torres gêmeas, quando o avião atingiu o prédio e disseram que o prédio estava sendo evacuado, eu chamei tia Beth para sairmos de lá.

— E o que mais? – Eu pergunto um pouco ansioso.

— Tommy, você sabe que nós nos conhecemos lá, quando você me chamou pra brincar na sala de espera, mas só viemos a nos conhecer mesmo anos depois, na escola. Mas só porque eu adiantei dois anos.

— Não – Algumas coisas estão começando a se encaixar em minha mente, parte por parte, minhas memórias estão se dividindo, e estou começando a diferencias as duas vidas.

— Não? – Felicity parece apenas ficar cada vez mais confusa.

— Não foi assim que realmente aconteceu, mas foi assim o meu sonho de ontem à noite.

— Você não está falando coisa com coisa, e está começando a me assustar.

— Presta bastante atenção, Felicity, porque eu também não sei exatamente o que está acontecendo comigo, mas com a sua ajuda podemos descobrir.

— Tudo bem.

— No 11 de setembro, eu estava naquela sala de espera, mas eu nunca tinha te visto, e então quando evacuaram o prédio, você e sua tia acabaram ficando dentro do escritório, e vocês duas morreram naquele dia.

— Eu morri? Mas como assim, eu morri? – Condigo ver nos olhos dela uma mistura de confusão, surpresa e raiva.

— Mas ontem – Eu decido continuar minha linha de raciocínio – Seus pais me contaram sobre você ter morrido naquele dia, e pela primeira vez me mostraram uma foto sua. E então, quando eu fui dormir, eu sonhei com aquele dia, que a propósito, eu sonho com aquele dia todas as noites nos últimos 17 anos, e eu sempre tenho controle pra fazer o que eu quiser, mas escolho deixar que o sonho termine da mesma forma que a primeira vez – Ela está me encarando, com a boca um pouco aberta, mas eu decido continuar – Ontem à noite, no sonho, eu vi você e a reconheci da foto que seu pai me mostrou, por isso eu te chamei pra brincar. Mas se não fosse por isso, você teria morrido, como aconteceu mesmo, da primeira vez, eu acho.

— Se eu entendi bem – Ela coloca a mão no queixo, parece pensativa – Todas as noites você tem o mesmo sonho, e tem controle sobre ele, mas como você nunca o mudou, nada na sua vida também nunca mudou. Então ontem a noite você mudou um pequeno detalhe, e então eu sobrevivi, mudando assim, a sua vida.

— É, eu acho que é isso mesmo – Percebo que ela realmente entendeu o que eu disse.

— Você já assistiu Projeto Almanaque? – Ela pergunta sorrindo.

— Eu acho que não.

— No filme, eles usam uma máquina do tempo para poder curtir momentos do passado, que eles não puderam participar. Mas toda vez que eles viajavam no tempo e mudavam um simples detalhe, quando voltavam, a vida deles estava completamente diferente – Ela explica de forma calma.

— Aqui, o pedido de vocês, desculpa a demora, hoje estamos com poucos funcionários – Carly diz colocando os pratos a nossa frente.

— Está tudo bem, Carly – Felicity diz sorrindo.

— E o que esse filme tem a ver com o que estávamos falando? – Pergunto pegando algumas batatas fritas, e as colocando todas na boca. Felicity ri de mim, antes de responder.

— Eu acho, que talvez esses seus sonhos sejam como essas viagens.

— Tipo – Me aproximo dela para falar mais baixo – Viajem no tempo?

— Sim – Ela diz, também comendo algumas de suas batatas – Pois como você sempre terminava o sonho da mesma forma, nada mudava, mas quando você permitiu que eu sobrevivesse, e mesmo assim o sonho terminou igual pra você, sua vida mudou por completo, pois você alterou, o que Dr. Brown chamaria de a linha do tempo.

— Quem? – Fico confuso com sua citação.

— Emmett Brown, De Volta Para o Futuro – Ela levanta os braços com os olhos um tanto arregalados.

Eu balando a cabeça em negativo, pois eu sei que ela é muito fã desse filme, mas eu nunca assisti.

— Esquece – Ela bebe um pouco do milk shake, depois molha uma batata frita no mesmo para comer – Enfim, você viaja no tempo em todos esses seus sonhos.

— Se isso for verdade – Eu digo, ainda estou confuso, mas começando a entender melhor – Talvez eu possa salvar mais alguém.

— Você pretende evacuar todo aquele prédio antes que ele desabe? – Ela pergunta.

— Isso não vai dar – Dou uma bela mordida em meu lanche, antes de continuar – Pois eu preciso terminar o sonho da mesma forma, que é eu e minha mãe saindo juntos do prédio.

— Então quem você pretende salvar?

— Acho que eu sei quem eu devo salvar.

— Você sabe que nós dois estamos parecendo loucos agora, né?

— Felicity, podemos parecer loucos, mas se estivermos certos, a nossa vida vai mudar por completo – Me levanto, deixando o dinheiro do nosso almoço em cima da mesa e indo em direção a porta. Percebo que ela me segue, então continuo a falar – E eu sei exatamente o que vou fazer hoje à noite, quando eu dormir.