Fenda Mesozóica escrita por carlotakuy


Capítulo 1
[1/4] – Capítulo I




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A brisa, as gotículas suaves de chuva, o aroma de grama e a fumaça exalando de dentro da pequena casinha de campo era tudo que Isabella sempre adorou desde pequena. Voltar a casa de sua infância era como retomar suas origens onde correr pela lama do quintal e se embolar na grama recém cortada eram obrigações do seu dia a dia.

Mas lá estava ela agora: uma adolescente chata e insuportável que mal conseguia se deliciar com as mesmas pequenas coisas. Sentada na varanda gasta da pequena casa a garota soltou um longo suspiro de cansaço, se acomodando desajeitada num sofá antigo e fofo, mantendo com jeito a xícara de café nas mãos.

Ela e sua família haviam acabado de chegar de cinco longas horas de viagem para passarem as férias ali, na antiga casa de campo da família e residência de sua avó.

— Esse pequeno pedaço de fim de mundo – resmungou a mesma contra a chuva que caía fraca fora da construção.

As folhas das árvores ao redor farfalharam com o vento, numa risada silenciosa. Mal se podia ouvir o canto dos pássaros, que sempre inundavam aquele lugar naquela época do ano, e apenas poucos animais despontavam aos olhos, como coelhos e esquilos que corriam para se abrigar da chuva.

Isabela soltou mais um suspiro tomando em seguida um longo gole de café quente. Ainda não entendia completamente o porquê de seus pais terem arrasto ela e seu irmão para aquele mausoléu em plenas férias de verão, mas sequer podia contestar, ao menos não depois de ter discutido por dois dias inteiros com sua mãe sobre essa decisão.

Um gritinho animado soou de dentro da casa fazendo a jovem revirar os olhos por antecipação. Em instantes passos rápidos e desengonçados se aproximaram daquela parte da varanda e sem qualquer motivação Isabela fitou o dono deles.

Seu irmão menor era gorducho e baixinho, com um dos dentes faltando no largo sorriso. Seu jeito era desengonçado, além de seus passos, e os cabelos castanhos do mesmo se encontravam cobertos por uma touca escura e gasta, abafando os mesmos.

Ele apareceu radiante, em contraste a chuva que começava a cair mais forte, e correu na direção da irmã que quase derrubou a xícara de café quando o mesmo se lançou sobre ela, com aquele olhar que ela conhecia bem.

— Esse lugar é incrível!

Isabela fez uma careta e depositou a xícara numa mesinha ao lado.

— Nós não já falamos sobre esse tipo de coisa Caio?

O menino murchou totalmente a alegria e a olhou tristonho, quase fungando pelo pequeno nariz.

— Já Isa.

— Então não se jogue em cima de mim da próxima vez, estamos entendidos?

— Sim – murmurou.

Isabela bufou, mas afagou os cabelos cobertos do garoto que sorriu minimamente com o gesto de carinho. Ela se afastou no sofá, dando espaço para o mesmo se sentar e assim ele o fez.

— O que você vê de tão bom nesse lugar? – perguntou Isabela depois de longos segundos de uma contemplação silenciosa da chuva – É só mato.

Caio sorriu ao comentário, aquecendo repetidamente as mãos uma na outra.

— Eu gosto daqui – disse simplesmente – a vovó me ensinou a gostar na verdade, é bom de brincar, correr e...

— E só. Não vejo o que eu poderia fazer aqui por exemplo, é um lugar amplo para crianças correrem de um lado para o outro, mas só.

O comentário da garota fez Caio encarar tristonho o piso de madeira velha na varanda.

— É um lugar amplo para pessoas como nós relaxarmos, meu amor.

Os olhos de Isabela e Caio desceram surpresos sobre a mulher que surgira do nada. O pequeno sorriu e pulou do sofá em direção a mesma, a abraçando, enquanto a garota observou o ato indiferente e voltou a encarar a chuva que descia fria do céu.

— Não quero relaxar – retrucou Isabela – quero ficar com os meus amigos, na minha cidade, com as minhas diversões.

Adriana sorriu e balançou negativamente a cabeça.

— Você fica com eles todos os dias da semana e se diverte em todos os finais de semana, não acha que é a nossa vez de termos você um pouco?

Os olhos caramelos desceram sobre Isabela ternos e a garota não conseguiu responder. Sua mãe sempre vinha com o discurso família na hora em que ela pensava em discutir, era injusto.

Isabela só queria poder ir na festa que teria no final de semana que viria e depois sair com todas as suas amigas para o cinema verem o filme que esperaram por tanto tempo. Mas não, ela não podia, porque sua família queria vê-la presa dentro de uma casa velha e caindo aos pedaços.

Com expressão de poucos amigos e com a conversa encerrada Isabela levantou e marchou para fora da varanda entrando dentro da casa sem olhar para trás. Caio apertou receoso o braço da mãe ao ver a irmã desaparecer, fazendo a mesma olhá-lo.

— Será que ela vai melhorar algum dia?

A mulher sorriu e acariciou o rosto e os cabelos do filho. Ela não sabia o que fazer com Isabela. Era uma jovem prepotente, antipática e rebelde. Se achava, na maioria do tempo, dona do mundo e do próprio nariz e isso a entristecia muito.

Fazendo-a se questionar repetidamente onde ela havia errado.

Balançando a cabeça e pegando a xícara de café esquecida ela puxou Caio consigo, para dentro da casa e para longe da chuva que começava a ficar cada vez mais grossa.

— Algum dia meu amor, algum dia.

•••

Isabela bateu com tudo a porta do quarto quando entrou no mesmo. Era um saco estar ali naquela casa velha, sem ter nada para fazer. Batendo o pé rumou até a cama jogando sobre ela todo seu peso.

Os olhos esquadrilharam todo o cômodo, seu antigo quarto da casa, e lembranças nostálgicas tomaram conta da garota, que sorriu inconscientemente ao lembrar da noite em que ela e sua avó pintaram as paredes do quarto escondido de seus pais, ou das noites em que ela dormia ouvindo a mulher contar histórias mirabolantes.

Isabela sentia falta disso. Desse calor singelo que inundava tudo que aquela mulher fazia. Mas agora sua avó já não estava mais lá e encarar aquela casa sem ela era quase um martírio.

As paredes rosadas e preenchidas de flores pareciam frias, os móveis antigos, antes tão bem polidos eram opacos e até mesmo os vasos de plantas que ambas cultivavam na janela do lugar jaziam vazios.

Era como se tudo estivesse morto.

Isabela queria ir embora dali.

O celular da garota tocou, estridente, a tirando dos pensamentos. Largada na cama ela se esticou para alcançar sua bolsa, ainda não desfeita da viagem, e revirando um dos bolsos encontrou o aparelho.

Na tela reluzia quinze mensagens de suas amigas e ela sorriu desbloqueando a tela.

Boa tarde meninas, cheguei sã e salva.

Finalmente!

E então, como foi a viagem?

Cansativa. Um saco. Não aguento esse lugar.

Qual é, vão ser só duas semanas.

Duas looooongas semanas.

Use esse tempo pra descansar.

Eu queria usar para me cansar, na verdade.

Risadas irromperam no grupo fazendo a jovem sorrir.

E então, como estão os meninos?

Bem.

Bem até demais.

O quer querem dizer com isso?

Veja bem, o João ainda não deu qualquer sinal de vida e o Matheus...

O que tem o Matheus?

Já saiu para duas festas com o primo, Túlio.

Isabela entortou a boca automaticamente com a mensagem. Não achava que ele fosse superar tão rápido sua partida, não depois das mensagens que haviam trocado dois dias antes. Os garotos eram inacreditáveis.

Tudo bem, se pudesse também sairia. Quem sabe não inauguro uma balada na fogueira por aqui?

Todas riram novamente.

Não está chateada?

Estou, mas de que adianta? Bola pra frente, só tenho dezessete anos.

Assim que se fala garota!

O celular está descarregando, passei o caminho todo jogando, vou aproveitar e ir dormir, nos falamos amanhã.

Sim, até amanhã!

Boa noite Isa.

Fechando o aplicativo de conversa e encarando seu próprio papel de parede a garota suspirou. Ele só tinha ido para algumas festas, só isso.

Por enquanto, resmungou seu subconsciente e seu estômago se embrulhou.

Há quanto tempo conhecia Matheus para saber que eles nunca dariam certo? Ele era só um garoto, como qualquer outro, que queria curtir a vida ao máximo enquanto ela era seu antônimo.

Quando o conheceu e o beijou na festa de sua amiga Isabela cogitou evitar qualquer tipo de romance, mas no outro dia ele estava lá, com olhinhos de cachorro sem dono, na porta da sua casa a pedindo para sair.

E saíram por semanas. Mas agora, quando ela teve que se ausentar, na primeira oportunidade ele fazia isso? Eles não eram namorados, mas onde estava o senso de relacionamento daquele garoto?

Voltando a olhar para o quarto e sua realidade Isabela resmungou algo incompreensível para si mesma e caiu deitada na cama mais uma vez, já se acomodando para dormir de qualquer jeito.

Ela estava presa naquele lugar por duas semanas inteiras, longe de suas amigas e seus amigos, com Matheus solto e pronto para passá-la pra frente a qualquer momento.

Não tinha como ficar pior.

•••

— Isabela, levante e venha me ajudar!

— Eu também quero ir, por favor, por favor, por favor!

Deitada na cama a garota piscou aturdida com a agitação da casa tão cedo naquela manhã. Resmungando sozinha ela sentou, se estabilizando no espaço tempo, e em seguida encarou a porta semiaberta.

Numa fresta pequena se encontrava a cabeça de sua mãe com um sorriso de lado, lhe dizendo, apenas com o olhar, que a hora de dormir já havia chegado ao fim e lá fora já era um novo dia.

Ela havia dormido tanto assim?

— Querida, pode descer e ajudar seu pai?

Isabela bufou tentando prender os cabelos, mas as madeixas cacheadas e curtas se negaram a permanecerem presas, escorrendo em seguida por suas costas.

Maldita hora em que as havia cortado.

— Isabela! – o grito do andar de baixo ricocheteou por toda a casa e ambas no quarto fecharam os olhos pela voz do pai.

— Eu já vou! – gritou de volta – Que droga! – murmurou baixinho.

Desistindo dos cabelos e cambaleando em direção ao banheiro do corredor com seu kit de higiene ela sinalizou com a mão para sua mãe.

— Diga, pelo amor de Deus, que eu já vou descer?

Adriana riu e concordou com a cabeça, descendo as escadas.
Encarando seu reflexo no espelho antigo e parcialmente quebrado a garota bufou. Estava com olheiras visíveis e um cabelo tão rebelde quanto a juba de um leão.

Ela teria muito trabalho naquela manhã.

•••

— Que demora foi essa?

O pai da garota resmungou jogando sobre a caçamba da caminhonete mais uma caixa de madeira vazia. Ele era alto em comparação a filha, com os cabelos tão castanhos quanto os dela e os olhos, de um verde profundo e intenso, numa réplica perfeita.

Eles eram a imagem um do outro, tanto em aparência quanto em personalidade.

— Eu tava dormindo, tá legal?

— Ainda está?

Charles virou para ela cruzando os braços.

— Não!

— Então sai já daí e entra na caminhonete – ele fechou a parte traseira – nós vamos na cidade aqui do lado comprar comida e coisas pra cuidar do jardim.

— Finalmente um pouco de civilização!

Isabela recebeu um olhar de repreensão do pai e mais que rapidamente entrou no veículo. Enquanto afivelava o cinto parou para observar a paisagem verde exuberante ao seu redor, com árvores verdes e pássaros diversos atravessando de um galho para o outro.

Até mesmo a cantoria matinal dos mesmos soava animada, como um prelúdio de boa sorte. Charles entrou batendo a porta do motorista e dando partida no automóvel.

— E então, como está sendo voltar para cá?

Isabela tirou uma foto rápida de fora da caminhonete e em seguida voltou-se ao seu pai, que sequer a olhava, dando ré, mas esperando avidamente uma resposta. Para respondê-lo, ela suspirou.

— Está sendo horrível.

O homem tentou conter a tristeza que cruzou seu rosto.

— Eu sei que precisamos vencer o luto, ok? – ela se adiantou – 

Masnão consigo ficar dentro daquele quarto sabendo que ela não está mais lá.

Isabela guardou o celular e voltou a fechar a bolsa.

— É um saco.

— Minha querida – ele aprumou-se no banco iniciando o percurso – nós todos precisamos conviver com a falta dela. Eu sei que é difícil e estamos tentando muito para que as coisas melhorem.

— Era melhor não termos vindo – resmungou baixinho.

— Nós precisávamos vir – ele apertou o volante – essa é a herança que ela nos deixou. Vai ser a última vez que vamos vir para essa casa.

— Ótimo!

— Nós vamos vendê-la.

As palavras de seu pai caíram como chumbo na cabeça da garota. Os olhos esverdeados desceram sobre seu pai surpresos e em choque, mas o mesmo continuou firme, fixo na estrada que surgia logo a frente.

Isabela não conseguia acreditar. Eles iam vender a casa da sua avó? A casa que ela lutou e cuidou tanto? Eles seriam capazes de tamanha crueldade?

Era verdade que ela não se sentia bem ali, mas tinha seus motivos. Talvez um dia tudo aquilo passasse e quem sabe ela conseguisse aproveitar o verde da paisagem, o canto dos passos e o aroma de campo e flores. Ela não odiava eles afinal, só não conseguia aproveita-los naquele momento.

Não quando a partida dela tinha sido tão recente.

A caminhonete dobrou e a estrada de terra ficou para trás, dando espaço para uma pista sinalizada. Logo a frente se via a cidade e seu centro comercial, com poucos carros e construções residenciais.

Isabela lembrava quando pisou ali pela primeira vez. Era tão pequena quanto podia recordar e correra muito pelas ruas da cidade enquanto sua vó comprava o pão da noite.

A questionou naquele mesmo dia o porquê dela morar tão longe da pequena cidade ou o porquê de morar ali, naquele lugar afastado de tudo e de todos. Mas ela não lhe respondeu e com um sorriso lhe disse: um dia, quando você chegar na minha idade, vai entender.

A jovem ainda não entendia, mas queria muito.

— Vocês não podem vendê-la – disse de súbito, surpreendendo o pai ao volante.

— O que disse?

— Disse que não podem vendê-la – repetiu – é a casa da nossa avó, mãe da minha mãe, sua sogra.

Os olhos se encontraram e Charles se sentiu aturdido por breves segundos com a profundidade dos sentimentos que ali transbordavam.

— Ali está a nossa história, não podem simplesmente jogar tudo isso fora e dar a outra pessoa. Tudo o que está ali é nosso.

Lágrimas já ameaçavam embaçar a visão da garota quando seu pai sorriu, compreensivo, e lhe bagunçou os cabelos que ela demorou tanto para arrumar.

— Pensei que não gostasse daqui.

— E não gosto – ela resmungou ajeitando os fios desarrumados – por enquanto.

O veículo se aproximou da movimentação de gente e lentamente o homem estacionou em uma das ruas.

— Vamos resolver isso juntos depois então, certo?

Isabela assentiu e saltou da caminhonete. A rua do lado de fora estava agitada, na medida do possível, com seus poucos moradores e suas construções, numa mistura de arte e falta de dinheiro.

O homem bateu a porta do carro sem força, desviando a atenção da garota, que junto com ele se aproximou da traseira.

— Nós vamos primeiro entregar isso daqui para um dos amigos de sua avó. Ela deixou para ele lá na casa.

— Faça como quiser – foi a resposta da garota, que ainda olhava em volta, para o designer em branco e bronze da cidade.

Ao longe se via uma igreja alta e majestosa, provavelmente a única das redondezas, e ao redor dela se encontrava o polo mercante onde as barracas e os feirantes disputavam entre a rua e as lojas, vendo quem alcançaria o cliente primeiro.

Isabela seguiu o pai de perto enquanto ele se aproximava de um loja grande de marcenaria. Lá dentro se encontravam cadeiras, mesas e estantes na mais pura madeira em formatos práticos.

A dupla foi atendida por um senhor careca e sorridente, que trajava uma típica roupa de marcenaria, apoiado num balcão extenso e de tom mais escuro que os demais móveis.

— Sejam muito bem vindos! O que desejam?

— Senhor Leôncio?

— Ele mesmo! – o idoso sorriu mais abertamente.

— Somos da família de Isabel, a senhora que morava em uma das casas de campo aqui perto.

— Ah! Sim! Uma mulher tão boa...

Charles sorriu de lado e assentiu, calando momentaneamente o senhorzinho.

— Foi uma lástima – concluiu o mesmo – mas o que os traz aqui?

— Sim – o pai de Isabela depositou uma pequena caixa em cima do balcão – essa caixa foi deixada para o senhor em testamento. Isabel e você eram bons amigos, sim?

O velho sorriu e Isabela jurou ter visto, por detrás dos olhos azulados pela idade, uma tristeza profunda e irreparável. A jovem deu um passo a frente inconscientemente com essa percepção, levando a atenção do mesmo para si.

— E quem é essa menina? – ele lhe sorriu.

— Essa é minha filha mais velha, Isabela, neta de Isabel.

O idoso a sua frente sorriu e a jovem o retribuiu automaticamente, como se ambos compartilhassem um segredo único.

— Muito prazer em conhecê-la minha jovem – ele lhe estendeu a mão – você é muito bonita. Parece com sua avó.
Isabela retribuiu o aperto.

— Vocês se conheciam de muito tempo?

— Sim, sim, éramos bons amigos desde que ela chegou por aqui.

— Mas ela quase não saia de casa, não pai?

O olhar confuso de Isabela só aumentou com a resposta visual de Charles, que deu de ombros.

— Na verdade – a voz do homem chamou a atenção de ambos – éramos vizinhos.

— Vizinhos? – perguntaram pai e filha em uníssono.

Leôncio riu e concordou com a cabeça, puxando a caixa e depositando-a debaixo do balcão.

— Sim, minha casa fica próxima a da sua avó. São só algumas árvores de distância. Costumávamos caminhar muito por lá.

— Dessa eu não sabia – soltou a garota.

O trio ficou em silêncio por alguns instantes, até uma voz grossa soar na parte traseira da loja, chamando por Leôncio. O velho sorriu para a dupla a sua frente.

— O dever me chama, desejam algo mais?

— Não – adiantou-se o homem – era só isso mesmo, obrigado. Foi um prazer conhecê-lo.

Isabela assentiu, reforçando as palavras do pai, e com um maneio da cabeça o idoso se afastou, entrando por uma porta lateral. A jovem deixou seu olhar se perder ali por segundos a fio, até ouvir a voz de seu pai lhe chamando na entrada da loja.

Ela o seguiu, mas ainda intrigada com o velho e sua estranha ligação com sua avó. Por que ela nunca falara dele?

A dupla zanzou pelo mercado comprando frutas, verduras, grãos e coisas para jardinagem. Charles e Isabela estavam exaustos quando voltaram a caminhonete. Eles riram ao entrarem, depois de algum comentário dos mesmos, e com sorrisos afivelaram o cinto.

Fazia muito tempo que saíram juntos assim e ainda que Isabela não quisesse admitir, gostava do tempo que passava junto ao pai. Eles eram tão próximos e tão parecidos que se compreendiam como ninguém. Com um só olhar ela sabia o que ele queria dizer e vice versa.

Com o automóvel ligado e já na estrada a dupla conversou, tranquilamente, sobre trivialidades de seus cotidianos. Como os acontecimentos engraçados na escola de Isabela e as situações mais divertidas do trabalho de Charles.

Sem perceber eles chegaram em casa bem a tempo do almoço improvisado com o que haviam levado e o resto da manhã se seguiu mais leve, com a família reunida a mesa.

Após o almoço Isabela deixou o calor da família para se esticar no sofá velho da varanda, encarando agora uma paisagem mais verde e radiante do que a do dia anterior, tomada pela chuva.

Se acomodando no assento a garota tirou mais fotos do lugar, encarando a tela com um sorriso de lado, quase como se a visão daquele lugar lhe remetesse, automaticamente, as coisas boas que viveu ali.

Ela conseguia se visualizar subindo nas árvores mais baixas, se via suja de terra caçando cogumelos e flores coloridas e conseguia enxergar, quase que nitidamente, ela e sua avó saindo juntas para uma trilha no meio das árvores.

Com um suspiro a jovem levantou e desceu a pequena escada da construção em direção ao gramado liso. Em passos calmos ela adentrou no meio das árvores, ouvindo, em deleite, o cantar dos pássaros acima da sua cabeça.

O ar ali era mais puro e límpido que qualquer outro e entre uma árvore e outra ela conseguia entender o porquê de sua avó ter desejado passar ali os seus últimos anos. Era simplesmente revigorante.

O celular no bolso da calça da garota apitou em mensagens e o puxando para as mãos Isabela sorriu novamente vendo o nome de suas amigas na tela.

Ela destravou a celular e entrou no aplicativo quase em um só movimento. No instante em que seus olhos desceram sobre o mesmo, Isabela estancou com a foto que havia disparado tantas mensagens no grupo.

Matheus e uma garota, aos beijos, no canto de uma festa.

O estômago de Isabela se revirou mais uma vez e ela respirou fundo tentando tomar o controle de suas ações. Sabia que aquilo podia acontecer, não estavam indo sério de verdade.

Não estavam sérios.

— Eu estava séria – murmurou fechando os olhos com força.

O celular tremeu mais uma vez em suas mãos e ela percebeu, como um baque, que não havia sido uma simples foto. Haviam gravações, várias delas, rolando por todas as redes sociais.

Os sentimentos da garota embolaram-se. Ela não sabia se sentia raiva ou tristeza com tudo aquilo. As mensagens ainda soavam desesperada no seu celular, com comentários de suas amigas e mensagens direcionadas a ela, com nítidas preocupações.

Mas no turbilhão em que se encontrava Isabela não conseguiu fazer nada e antes mesmo que pudesse escolher um dos dois sentimentos, os pés de dela a levaram para uma imponente construção.

A casa era alta, de madeira e com um quintal repleto de flores. Algo como um armazém se encontrava logo atrás dela e uma horta se estendia na extensão direita da mesma. Isabela quase deixou o queixo cair com tanta exuberância num só lugar.

Não havia uma alma viva a vista e a garota adentrou ainda mais na excêntrica residência, observando encantada a paisagem ao seu redor e esquecendo, momentaneamente, os sentimentos que a afligiam.

Deve ser a casa de Leôncio, pensou consigo.

A contemplação só parou quando um pigarro, alto o suficiente para acordá-la, soou fazendo a mesma quase tropeçar em seus próprios pés. Seu sangue gelou e internamente ela desejou que os moradores fossem tão simpáticos quanto o velho da feira.

— Não é todo dia que recebemos alguém aqui – disse o dono da voz, surgindo de trás.

Isabela virou-se lentamente até ele e quando os olhares se cruzaram, ela suspendeu sua respiração.

O garoto era poucos centímetros maior do que si e possuía um sorriso tão bonito quanto todo o seu rosto bronzeado e preenchido de suor. Os cabelos negros estavam desgrenhados em contraste ao seu visual sujo e amassado, de quem está trabalhando em algo bastante braçal.

Isabela demorou para responder, ainda perdida no sorriso e nos olhos do garoto, preenchidos de um tom mel hipnotizante.

— Eu não pretendia invadir – disse rapidamente – estava só andando pela floresta e...

O jovem a sua frente riu da mesma, fazendo-a olhar-lhe em confusão, com as sobrancelhas unidas num questionamento mudo pela reação.

Uma das mãos do garoto abanou no ar.

— Não se preocupe, você não é a primeira a usar essa desculpa.

Foi a vez de Isabela rir do garoto, que sequer se abalou, mantendo um sorriso presunçoso e um olhar fatal.

— O que quer dizer com isso?

— Exatamente o que você entendeu.

Ele avançou na direção da mesma, fazendo saltar, a cada passo, sei corpo exposto.

— Primeiro de tudo, quem diabos é você? – ela perguntou cruzando os braços.

— Você está na minha casa – ele inflou o pulmão, buscando uma clara posição superior a ela – não devia me tratar com mais respeito?

Isabela o fitou de cima a baixo, como se o avaliasse para responder sua pergunta, e notou que em uma das mãos ele carregava um longo machado.

— Ah, não, não mesmo. Agora se me der licença – ela apontou para ele e em seguida para o lado, o mostrando o movimento para sair da frente dela.

O garoto desistiu do sorriso e, fincando o machado no chão, cruzou os braços e a encarou.

— O que uma garotinha da cidade grande está fazendo por essas bandas?

Ela o imitou na posição e rebateu seu olhar inquisidor, desestabilizando o mesmo.

— Já disse que me perdi e acabei aqui.

— Saiu direto da cidade pra cá? – ele acenou na direção dela –Você parece alguém que acabou de sair do shopping – zombou.

— Você é um saco.

— Você acabou de me conhecer.

— E se depender de mim, não nos vemos mais.

Isabela ameaçou voltar para a floresta e o garoto imediatamente lhe deu espaço, levantando os braços e dando um passo para trás. Ela até ia conseguir, se não fosse impedida pelo apitar do seu celular.

O jovem, a poucos passos, encarou curioso o aparelho e ela lentamente retirou o mesmo do bolso, ainda fixa na figura próxima a si, encarando-o desconfiada.

Quando seus olhos finalmente desceram sobre o aparelho um sorriso de escárnio surgiu em seu rosto. As notificações chegavam uma sobre a outra e o garoto a fitou curioso.

Isabela respirou fundo tentando controlar a raiva. Sim, ela estava sentindo raiva agora, uma raiva imensa. Apertando o celular na mão ela leu a tela mais uma vez, se certificando de que estava lendo corretamente.

Bom dia meu amor, como está?

Estou morrendo de saudades!

Quando vamos poder nos ver de novo?

Espero que essas duas semanas passem rápido!

Estou doido para ver aquele filme novo com você. Saudades dos nossos beijos, do seu carinho...

...

Isabela respirou fundo mais uma vez até sentir uma mão áspera lhe tocando o ombro. O garoto ao seu lado parecia preocupado, mas ao ver os olhos do mesmo toda a raiva que ela sentia se voltou contra ele.

Num único movimento ela lançou o celular contra uma das árvores, fazendo o jovem afastar-se. A tela do aparelho se estilhaçou no encontro com a casca grossa, caindo inutilizável. Isabela tomou fôlego e se afastou do toque do estranho, com um olhar de aviso para ele se afastar.

Ele entendeu o recado e dando alguns passos para trás a observou catar o aparelho e se embrenhar novamente entre as árvores, sumindo de sua vista. Sozinho o rapaz soltou um assobio, retomando o machado para a mão e a caminhada até o armazém, com tantas questões quanto fossem possíveis.

Quem era aquela garota?

O que diabos tinha acontecido?

E por que olhar naqueles olhos lhe arrepiou o corpo inteiro?

•••

Isabela entrou em casa como um raio e se trancou no quarto. Respirou diversas vezes tentando controlar as lágrimas, mas não conseguiu e borrou toda a maquiagem que demorou horas fazendo naquela manhã.

Seu choro foi silencioso. Ela sentiu raiva de Matheus por achar que conseguiria fazê-la de boba e sentiu raiva e vergonha de si mesma por ter se envolvido com ele, por ter lhe dado espaço na sua vida e no seu coração.

Talvez Isabela nem gostasse dele de verdade, mas a sensação que ela tinha ali, no chão frio daquele quarto, era a de que haviam arrancado um pedaço de seu peito. As palavras cínicas e a falsidade dele lhe eram cortantes.

Foi nessa onda de sentimentos que a jovem passou o resto da tarde em sua cama, sozinha e ressentida, apenas com o farfalhar das árvores lá fora como companhia.

•••

Quando o sol lançou seus primeiros raios no céu Isabela pulou da cama. Precisava recompor as energias e nada melhor do que andar sem rumo, pensando em tudo e nada ao mesmo tempo.

Foi com essa intenção que ela tomou um banho gelado e se maquiou, escondendo as olheiras e oleosidade da pele. Vestindo uma roupa fresca, um conjunto de blusa e short jeans, ela desceu as escadas, amarrando os cabelos com uma presilha.

À mesa não falou muito ouvindo sua mãe e pai conversarem como um casal apaixonado e recém casado. Após tomar café e se munir de uma garrafa de água ela pôs os pés para fora da construção.

Caminhando lentamente se permitiu observar a casa que ela e a avó tanto gostavam. Era pequena e de primeiro andar, com toda a parte externa coberta por uma pintura gasta e branca, com o musgo já tomando alguns pontos específicos.

O telhado era de um carmesim vivo, que depois de tanta ação da natureza, parecia ceder para algo mais escuro, que mesmo a garota não saberia decifrar o tom.

Inconscientemente a garota comparou a casa de sua avó com a que encontrara no dia anterior, tão grande e majestosa. Será que sua avó sabia que ela existia? Será que conhecia o hospitaleiro morador?

Pensar no jovem a fez ficar irada e toda a confusão que a atingiu voltou com força total.

Tentando espairecer ela se permitiu pensar sobre seus problemas, passo a passo, entrando a cada movimento um pouco mais na floresta. Isabela pensou na morte de sua avó, em Matheus, em seus pais. Em como sua família buscava sempre se estabilizar de problemas que eles mesmos inventavam.

Em como Caio havia crescido e já parecia uma versão pocket de homem. No cachorro que Isabela perdera no ano anterior e em como suas amigas lhe eram tão importantes.

No meio de suas reflexões uma chuva fina começou a preencher a copa das árvores alcançando-a em questão de segundos. Antes que Isabela pudesse sentir os respingos suaves se tornaram gotículas raivosas e interrompida em seus pensamentos a mesma se abrigou na entrada de uma caverna.

Ela encarou o céu aturdida, confusa com a variação drástica do tempo, e cogitou voltar correndo para casa, mas, após muito ponderar, desistiu e sentou um pouco mais para dentro da caverna, numa protuberância que lhe serviu de assento.

O som de chuva batendo no solo a fazia se lembrar dos dias tempestuosos que passara ali com sua avó, tomando uma bebida quente e conversando na beira da mesa da cozinha com uma lareira modesta ao fundo.

Cada nova lembrança que surgia fazia Isabela se sentir mais triste. Triste por sua avó, que havia ido embora deste mundo e triste por si mesma que perdera uma de suas pessoas mais importantes.
Com um suspiro a garota sentiu as rochas da caverna vacilarem. 

Alarmada ela encarou a entrada e a ventania misturada a chuva do lado de fora. Antes que conseguisse fazer qualquer movimento as rochas na entrada da caverna caíram, estrondosas, e Isabela as encarou em pavor.

Houve um pequeno terremoto na escuridão da gruta e mais uma queda de rochas, que desta vez lançaram torrentes de água dentro do local, arrastando Isabel para cada vez mais fundo na caverna.

A garota viu a morte com seus próprios olhos naqueles míseros segundos que duraram a pequena correnteza súbita. Quando caiu no chão quente, longe da água e aparentemente salva, ela não abriu os olhos acreditando que o pior ainda estivesse por vir.

E veio quando ela abriu os olhos e viu uma paisagem completamente diferente da que se encontrava segundos atrás. A sua garrafa de água ainda jazia em sua mão, amassada pela força com que ela a havia apertado.

Os olhos esverdeados esquadrilharam o local num misto de medo e admiração. As árvores eram grandes e robustas, preenchidas de folhas verdes e vibrantes. Havia um barulho quase irritante de água escorrendo e o ruído de pássaros ao longe.

Mas nada constatou mais a roubada em que ela tinha se metido do que a pata gigante logo a frente que subia e se erguia em um imponente dinossauro, alto, grande e de um tom tão claro que lhe ofuscou os olhos.

Isabela não sabia o que fazer e a única coisa que escapou de seus lábios foram únicas três letras:

Uau.


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Notas finais do capítulo

Uma história bem aleatória que surgiu não sei de onde direto para vocês! ♥



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