Mérante havia reunido todos os corifeus para o papel de Clara no Quebra Nozes e uma das meninas da turma dançaria com Rosita Mauri. A cada dia uma delas seria eliminada.

Às cinco da manhã do dia seguinte, Odette foi com Félicie até os fundos da mansão para começarem o treino. A mais velha pendurou um sino numa corda que estava no galho da árvore e pediu que a menina pulasse para tocá-lo. Félicie não entendeu nada, mas fez.

— Félicie, você não tem precisão e finesse.- Odette se aproximou com um jarro de água. — Tem pouco ou nenhum senso de ritmo. Você não tem equilíbrio, graça, nem charme.- despejou a água fazendo uma poça sob os pés da menina.

— Qual é! Não pode saber tudo isso de um pulinho só… ou pode?- Odette não precisou responder. — Acho que sim…

— O lado positivo é que você tem a energia de um guepardo, mas também tem a leveza de um elefante deprimido.- coincidentemente Odette já havia escutado aquela frase.

— Hey! O Mérante usou exatamente a mesma frase.

— Depois de dez anos de faxina se aprende alguma coisa…- ela desconversou. — Agora pule, toque o sino e caia sem espirrar água.

— Mas isso é impossível!

— Achei que o seu sonho era dançar…- dito isso, Odette deixou a menina sozinha e a observou de longe.

Foram inúmeras tentativas sem sucesso, Félicie começou a ficar irritada e a brigar com os pombos que a cercaram. Quando todos eles voaram, uma pena caiu sobre a água que não espirrou. Os olhos verdes da menina brilharam, ela tinha que cair como aquela pena! Com determinação ela tentou novamente… e conseguiu! Com o treino desse dia, Félicie conseguiu passar pra próxima fase. Quando anoiteceu, Odette lhe ensinou as cinco posições base do ballet.

Conforme os dias passavam e Félicie ficava nas audições, Odette treinava o equilíbrio dela. Ensinou a fazer um grand battement, a ficar na ponta dos pés e explicou que para fazer uma pirueta ela tinha que controlar a tontura. Foi uma longa manhã com inúmeras tentativas. Mas Félicie progrediu bastante, até quando estava limpando estava dançando, estava bem confiante.

Porém, na manhã seguinte, quando foi pra audição, Félicie deu de cara com Camille e Régine acompanhadas de Mérante e o diretor da Ópera. A verdade veio à tona.

Odette também foi chamada até a sala e ao chegar, Régine despejou seu ódio.

— Sua traidora! Você sabia e me apunhalou pelas costas! Está demitida!

Mérante detestou o modo como Régine falou com Odette e deu um basta pedindo silêncio da parte dela. O coreógrafo deixou que Camille entrasse nas turmas, com uma condição...

— Mas quero deixar claro, se demitir madame Odette, eu demitirei Camille.

Odette ficou surpresa com essa atitude, mas não demonstrou. Mérante aproximou-se, foi bem rígido e Félicie gelou com isso.

— Você teve um péssimo início nas aulas, além de enganar e mentir para ficar aqui! Mas...- sua voz suavizou. — Também tem se mostrado uma grande promessa e trabalhou muito duro mostrando dedicação. Deve ter uma boa professora.- olhou de relance para Odette e continuou. — Então também pode ficar nas audições. Mas se não conseguir o papel deverá deixar a Ópera, ficou claro?

Tanto Félicie quanto Régine responderam que sim.

Mérante disse que o futuro de Félicie estava nas mãos da mesma e ao finalizar a frase e se virar para sair da sala, Mérante deu uma última olhada para Odette que fez o mesmo.

Ela achou estranho. O que aquele olhar significava?

Odette ignorou Régine e levou Félicie pra fora.

— Odette… Você quase perdeu o emprego por minha causa.

— Não se preocupe com isso.- acariciou seu cabelo. — Você ainda tem chance. Troque de roupa enquanto eu termino de limpar o palco. Depois disso vamos pra casa, tudo bem?

Félicie assentiu e sorriu.

Mérante viu quando Odette foi pro palco e a seguiu. Ela nem percebeu sua presença, estava concentrada no que fazia. Com a perna boa, Odette girava enquanto limpava. Sentia falta de dançar e tentava fazer os mínimos movimentos possíveis pra manter a sensação.

Félicie chegou em silêncio ao ver que Mérante a observava e sorriu ao perceber o porquê.

— Ela é graciosa até mesmo varrendo o chão.- comentou o coreógrafo.

— Ela foi uma boa bailarina, não foi?

— Ela não foi apenas boa, foi a melhor de sua geração… Mas infelizmente houve um incêndio no palco.

Só nesse momento Odette percebeu a presença dos dois e os olhou timidamente.

Mérante foi embora e Félicie correu para abraçá-la. Odette gostou daquela demonstração de carinho, mas elas precisavam manter o foco.

Já em casa, Odette deixou Félicie a par do que ia enfrentar. Resumindo, na teoria, ela seria humilhada por Camille.

— Gostei do estímulo!- ironizou. — Então como que eu vou conseguir o papel?

— Vai conseguir o papel porque você tem uma coisa com a qual ela apenas sonha: paixão. Aproveite isso. Sinta sua raiva, sua dor, sua tristeza e alegria, e coloque tudo isso na dança. Viva a música, sinta ela. Cada nota, cada som, cada harmonia precisa ter o seu corpo vibrando da ponta do cabelo até o dedo do pé. E então, só então, você vai superá-la.

...

No dia seguinte seria a audição final pra definir quem conseguiria o papel de Clara. Camille se apresentou e nada de Félicie chegar. Odette mal pregou o olho de preocupação. Quando chegou, implorou para que a deixassem dançar,  mas caiu duas vezes por conta do nervosismo e Mérante foi obrigado a dar o papel para Camille.

As condições de Mérante foram claras e Félicie teria que deixar a Ópera. O coreógrafo se retirou e as outras duas riram da vitória. No palco, a menina chorava, e da platéia Odette também lamentava.

Até que ouviu a voz de Régine e o grito de Félicie. A mulher estava arrastando-a pra fora do prédio.

— Ah não...

Odette caminhou o mais rápido que pôde, mas nas condições em que se encontrava era impossível impedir. Quando chegou na entrada da Ópera, Régine já havia colocado Félicie numa carruagem. A menina gritava seu nome.

— Por favor…- Odette implorava para que Régine não fizesse aquilo. — Félicie!!- seu coração doía ao ver a menina partir contra a vontade.

— Você nunca mais a verá.- disse a mulher vendo o sofrimento dela mais uma vez. — E claro, está demitida.

Odette nem ligou para o emprego perdido, só queria Félicie de volta. Nunca pensou que fosse amar uma criança assim. Esse tempo todo que passou treinando a menina que mal conhecia, foi o suficiente para a mesma se tornar especial pra ela. E não poder fazer nada fez com que se sentisse uma inútil.

O que faria agora?