Ainda marionete. escrita por Secret


Capítulo 1
Aceitação.


Notas iniciais do capítulo

Eu nem sei mais o que eu estou fazendo.



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                Mais um Halloween chegou, nada demais, não é?

                Talvez pra você, mas, para alguém, é uma data muito especial...

                Para vários alguéms, na verdade. A maioria das pessoas os chama de "monstros", mas isso com certeza não é educado, certo? Eles são apenas... Seres especiais.

                E esses seres especiais adoravam o Halloween (ou Dia das Bruxas, fica a sua escolha) porque, bem, é a única época do ano que o véu entre os dois mundos, o nosso e o deles, está fino o bastante para ser ultrapassado. Então eles aproveitam e, selando sua aparência, se misturam entre os humanos e se divertem.

                Para outras pessoas, essa data é ainda mais especial. Mais especificamente, para uma pessoa chamada Ezekiel... Ok, ele já não é mais exatamente "uma pessoa", e sim uma marionete viva, mas você entendeu o que eu quis dizer. Enfim, Ezekiel já foi humano, mas isso foi há muito tempo... E essa é outra história. Digamos apenas que ele era um rapaz imprudente e influenciável que, por algumas escolhas erradas, recebeu uma punição. Se foi justa ou não, não cabe a mim decidir.

                Ezekiel está bastante empolgado com esse Halloween em especial porque, bem, era o primeiro Halloween que ele participaria desde que foi... Punido, por assim dizer. Ele não fazia ideia de quantos anos havia passado no mundo humano, mas, no mundo em que vivia, parecia muito tempo. Muito tempo sem ver outros humanos. Muito tempo sem andar normalmente pelas ruas. Muito tempo sem ter qualquer companhia além de Oliver.

                Quem é Oliver? Bem, essa é uma excelente pergunta. Digamos que ele e Ezekiel tem uma relação... Complexa. De um modo simples, se Ezekiel é uma marionete, Oliver é seu mestre. "O Mestre das Marionetes", como é conhecido, foi quem sequestrou e torturou Ezekiel, ainda humano, para torná-lo uma marionete viva como punição pelo "mau comportamento" do garoto. O que ele talvez não contasse era o fato de acabar se apaixonando pela nova marionete temperamental...

                Em suma, depois de vários obstáculos e frustrações, os dois entraram numa espécie de relacionamento. Chame como quiser, namoro, casamento, união estável, dominação e submissão, amor... Eles nunca deram realmente um nome para isso. Oliver ama Ezekiel quase obsessivamente, já que é a primeira pessoa viva que realmente pensa nele como outra pessoa, não como uma marionete, um objeto. O amor de Oliver é instável, obsessivo, bipolar, compulsivo e absolutamente verdadeiro. Já Ezekiel... Digamos que ele levou um bom tempo para se acostumar a ver Oliver menos como "a pessoa que o sequestrou, torturou e transformou numa marionete" e mais como "um companheiro", mas, no fim, acabou retribuindo a afeição, seja pela falta de opções, seja por ver que o sentimento do outro era sincero...

                Mas, ei, estamos nos desviando do assunto, não? Ezekiel está empolgado porque esse é o primeiro Halloween que ele vai participar com Oliver. A primeira vez que voltaria a ver seu lar depois de tanto tempo. Convenhamos, isso é bem especial.

                "Então, vamos?" Oliver sorriu e lhe estendeu a mão, Ezekiel a tomou sem pensar duas vezes, um gesto que se tornou natural com o tempo.

                "Claro" Ele sorriu.

                Para ir ao mundo humano, Oliver havia disfarçado Ezekiel do mesmo modo que sempre se disfarçava: com uma camada de um material desbotado e macio que lembrava um pouco borracha, mas com uma textura que quase se passava por pele. Pele muito pálida, mas pele. Era bem mais aceitável que a pele de madeira, pelo menos... Ezekiel passou muito tempo se admirando no espelho com o disfarce.

                Quando ele era humano, sua pele era corada, não pálida, mas, mesmo assim, ele parecia humano de novo. Sem a pele de madeira que o delatava, sem a cor antinatural de ébano. Apenas... Mais uma pessoa no mundo.

                "Ei, você está bem? Está quieto..." Oliver comentou, chamando sua atenção e o tirando dos devaneios. "Estamos quase chegando" Comentou depois de um modo mais alegre.

                "Ah, claro, tudo bem" Ezekiel sorriu sem convicção "Só meio nervoso..."

                "Não se preocupe, vai dar tudo certo. É só mais um Halloween, vai ser muito divertido pegar doces juntos!" Ele apertou a mão de Ezekiel com confiança e o beijou na bochecha como um gesto pacificador.

                Eles andavam sozinhos, já que os demais "colegas" de Oliver não gostavam sequer de chegar perto dele. Em outros anos, Oliver costumava forçá-los a aceitá-lo mesmo assim, mas, dessa vez, ele tinha Ezekiel. Para que se forçar em um grupo hostil se ele pode ir com seu amigo e amante? Era tão mais divertido fazer um passeio a dois de qualquer forma.

                Logo ambos chegaram à fina camada de neblina, o único sinal da divisão entre os dois mundos, e a atravessaram sem problemas. Oliver estava empolgado como sempre, com seu traje extravagante, seu tapa-olho e sua sacola em forma de abóbora esperando para ser preechida com doces variados. Ele amava o Halloween. E amaria ainda mais compartilhá-lo com Ezekiel.

                Mas ele devia ter suspeitado que algo estava errado quando Ezekiel soltou sua mão...

                *

                "Que tal começarmos por essa casa?" Oliver sugeriu com um sorriso. Eles já haviam chegado às ruas movimentadas e se misturavam facilmente no ir e vir de crianças e pré-adolescentes pedindo doces. Talvez parecessem um pouco velhos demais para isso, mas, tirando isso, a camuflagem era perfeita. Isso fazia Ezekiel se sentir tão... Bem.

                "Claro, parece ótimo" Ele concordou meio no automático, as mãos postas nos bolsos. Oliver ou não percebeu o tom ou preferiu ignorar, afinal, era a primeira vez que Ezekiel voltava a ver seu mundo, ele merecia um tempo para processar tudo.

                Absorto em pensamentos, Ezekiel pressionava os polegares contra os demais dedos, as mãos ainda escondidas nos bolsos. Era estranho sentir algo que não fosse madeira e, mesmo que não fosse realmente pele, era perto o bastante. Era macia. Parecia... Natural. Ele precisava fazer uma boa pressão com os dedos para conseguir realmente sentir algo e as sensações mais sutis como temperatura ou toques leves eram perdidas, mas, mesmo assim, parecia natural. Certo.

                Ezekiel passou pela primeira rua praticamente no automático. Sorria, dizia "doces ou travessuras", seguia Oliver, repetia o processo. Simples assim. Ele apreciava cada detalhe daquela noite, o que consumia bem mais dua atenção que o mero ato de pedir doces... Ele via as crianças correndo de um lado para o outro e pensava se conhecia alguma, apreciava o fato de estar rodeado de pessoas, de se misturar entre elas, e via as casas, prédios e ruas tentando compará-las às suas lembranças. Ele tinha a impressão de que muita coisa havia mudado desde que ele saiu.

                "Você parece mais uma marionete assim que com a pele de madeira" Oliver sussurrou no ouvido dele em certo ponto e ele se sobressaltou. Não tinha percebido que Oliver estava assim tão perto dele...

                "O que quer dizer?"

                "Me seguindo pela rua sem pensar, repetindo 'doces ou travessuras' quando eu digo, nem percebendo quando eu falo com você... Você nunca pareceu tanto uma das minhas marionetes" Oliver sorriu docemente, mas Ezekiel não tinha certeza do quanto o sorriso era verdadeiro "Completamente sem vontade própria" Completou e tocou a ponta do nariz de Ezekiel como se ele fosse uma criancinha.

                Ezekiel não sabia ao certo o que responder.

                Por sorte, ele não precisou.

                "Então, quer escolher a próxima casa que vamos? Quem sabe assim você se anime um pouquinho mais..." Oliver sugeriu e passou um braço pelos ombros de Ezekiel casualmente. O garoto ficou tenso sob o toque que mal sentia, mas não protestou.

                "Claro..." Disse no tom mais casual que conseguia e apontou para uma casa qualquer. No meio do caminho, conseguiu se desvencilhar do abraço de Oliver e os dois continuaram caminhando lado a lado, mas com alguma distância.

                Mal sabia Ezekiel que a escolha feita ao acaso poderia ter bastante influência no desfecho da noite...

                *

                "Doces ou travessuras?" De novo, a frase típica... Dessa vez Ezekiel não a falou do modo automático de antes, mas, mesmo assim, sua voz não tinha a mesma empolgação de Oliver.

                Quem atendeu a porta foi uma garota, aparentando a mesma idade de Ezekiel, talvez um ano mais nova, vestida como a Batgirl. Ela sorriu e distribuiu os doces, mas, antes que fossem embora, fez uma pergunta:

                "Que fantasias legais! Nunca vi essas antes... O que são?"

                Oliver simplesmente sorriu satisfeito. Ele gostava quando humanos elogiavam sua "fantasia"... Talvez porque suas roupas antiquadas não recebessem muitos elogios no seu mundo.

                "Sou O Mestre das Marionetes" Ele disse simplesmente e fez uma leve reverência para ela, o sorriso nunca deixando seu rosto.

                Então o olhar dela se voltou para Ezekiel e o garoto se remexeu desconfortável.

                "Eu... Não sou nada específico, na verdade" Desconversou, a garota apenas sorriu para ele e, aparentemente, aceitou a explicação.

                Oliver e Ezekiel se viraram para ir embora e continuar a pedir doces até a noite acabar. E tudo poderia ter ficado por aí... Se a garota não tivesse pedido permissão da mãe para ir pedir doces também e os seguido.

                Fazer o quê? Eles atiçaram sua curiosidade.

                *

                "Oi de novo!" A garota os cumprimentou em outra casa, em outra rua. Ambos ficaram surpresos, mas de modo diferente. Enquanto Ezekiel se sentiu meio desconfortável, Oliver estava apenas curioso e empolgado. Não era incomum para o último fazer "amizade" com alguns humanos apenas naquela noite, simplesmente por diversão, já o primeiro simplesmente se sentia ameaçado com aquela garota, talvez por ela parecer curiosa demais, fazer perguntas demais, ou apenas pelo modo que ela olhava para ele... Não parecia certo.

                "Olá" Foi Oliver quem cumprimentou, sempre com seu sorriso cativante. "Decidiu pedir doces também?"

                "É sim" Ela retribuiu o sorriso e exibiu a sacola, ainda meio vazia, mas com alguns doces no fundo. "Posso acompanhar vocês?"

                "Claro, por mim tudo bem" Oliver concordou prontamente. "E quanto a você, Ezekiel?" Indagou para o garoto que, até o momento, havia ficado calado.

                "Ah? Sim, claro... Tudo bem..." Ele concordou automaticamente.

                E assim a dupla virou um trio.

                No caminho, a garota-batgirl fazia algumas perguntas. Ela não sabia o que atraía tanto sua atenção nesses garotos, mas com certeza havia algo. Talvez o fato de ela nunca os ter visto antes... Que foi explicado facilmente por Oliver ao dizer que eles só estavam passando a semana na casa de um primo e voltariam para casa logo após o Halloween. Não era a primeira vez que ele usava essa mentira e provavelmente não seria a última... Mas era sempre divertido.

                Ela ainda fez uma ou outra pergunta, puxou um ou outro assunto, e sempre era respondida por Oliver, o que apenas aumentou sua curiosidade quanto a Ezekiel... Fazer o quê? Ela tinha uma quedinha pelos misteriosos e calados. E aquele garoto parecia interessante de um modo estranho, como se tivesse algo a esconder...

                Enquanto vagavam pelas ruas pedindo doces, Oliver ainda tentou pegar a mão de Ezekiel vez ou outra ou passar o braço por seus ombros, mas Ezekiel sempre se afastava sem dizer uma palavra. Ele apenas... Não queria tanta proximidade com Oliver. Não agora pelo menos. Ele ainda via cada detalhe da Terra, da cidade, das pessoas... E, nesse momento, estar perto de Oliver era apenas um lembrete do que ele havia perdido. Uma prisão.

                Já Oliver se sentiu frustrado, mas não questionou. Ezekiel só precisava de um tempo... Ou, ao menos, era o que ele repetia a si mesmo. Só um tempo... Não tinha nada a ver com ele. Ele só... Não estava acostumado a vagar pelas ruas humanas e não pertencer a elas. Era uma sensação muito nova, muito diferente.

                Ele só precisava de um tempo.

                Falando em tempo, Oliver se esqueceu de mencionar um detalhe importante para Ezekiel... O tempo no mundo deles passava levemente diferente do tempo humano. Passava mais devagar. O que significa que um ano deles era bem mais no mundo humano... Ezekiel percebeu isso quando viu um cartaz com a data completa escrita, incluindo o ano em que estavam, e calculou que havia sido transformado há onze anos.

                Era muito tempo.

                Isso explicava por que não viu ninguém conhecido...

                Onze anos. Ele era uma marionete há onze anos. Onze anos longe de amigos e família... E eles passaram onze anos sem ele também. Devem ter ficado tão preocupados. Sua mãe então? Deve ter se desesperado. O que será que acharam que houve com ele?

                De repente, ele se sentiu meio culpado. Ele não pensava em sua família há tanto tempo...

                E, é claro, a garota que os acompanhava tinha que escolher esse momento de crise interna para puxá-lo para o lado e fazer perguntas.

                "Qual é a sua fantasia?" Perguntou de novo. Talvez esse fosse o assunto que mais a intrigava... Afinal, o garoto usava roupas do século retrasado e provavelmente usou maquiagem para deixar a pele tão pálida, mas, mesmo assim, alegava não ser "nada específico" ou "não ter uma fantasia".

                "Já te disse, não é nada" Repetiu. "Agora melhor nos apressarmos ou vamos nos perder do Oliver" Completou. Afinal, a rua que estavam era mais movimentada e Oliver, de vez em quando, se empolgava em passar no maior número possível de casas e se esquecia de esperá-los.

                "Tem medo de se perder dele, é?" Ela provocou, mas era só brincadeira.

                Até que ele não respondeu.

                "Que foi? Não me diga que você tem!" Dessa vez foi mais incredulidade que brincadeira e, quando Ezekiel desviou o olhar para o lado, ela apenas riu "Ai meu Deus, você com certeza tem! Sério? Você parece mais velho que ele... Achei que você era o irmão mais velho"

                "Irmão?"

                "É, vocês são irmãos, não são? Quer dizer, ele fica tão grudado em você... Parece até meu irmãozinho quando quer andar comigo."

                "Ah... Não exatamente"

                "Oh, desculpe. Erro meu. O que vocês são então?"

                Ezekiel hesitou.

                "Ele é... Meu primo" Improvisou.

                A Batgirl não parecia muito convencida, mas deixou passar.

                "Ok... Que tal darmos um perdido no seu primo um tempinho então?" Ela sorriu travessa para ele e inclinou o corpo um pouco para frente, invadindo levemente seu espaço pessoal.

                Não que Ezekiel ainda tivesse muita noção de espaço pessoal... Afinal, ele vivia com Oliver.

                "Uh... Não acho uma boa ideia, na verdade..." Ele desconversou e fez menção de alcançar Oliver, mas ela segurou sua mão.

                "O que foi? Não vai dizer que está com medo, Zek? Aliás, posso te chamar assim? Ezekiel soa tão formal..."

                "Ah, tá, claro, pode me chamar assim" Ele olhou desconfortável para suas mãos juntas. "E, ah... É melhor continuarmos andando ou não vamos pegar doce nenhum"

                "Oh... Achei que gostaria de fazer algo mais interessante..." Ela insinuou. "Mas, se está com tanto medo..."

                "Ei, eu não tenho medo de nada!" Ele exclamou sem pensar muito, uma vaga lembrança dessas mesmas palavras surgiu no fundo de sua mente, mas ele ignorou.

                "Ótimo. Então não tem problema irmos num lugar rapidinho, certo? Ou tem que pedir permissão do seu primo?" Ela sorriu desafiadora.

                Obviamente, ele não resistiu.

                "Claro que não! Eu mando em mim mesmo!"

                "É assim que eu gosto" Um sorriso aprovador se formou em seus lábios e ela o pegou pela mão. Os dois saíram da rua movimentada e foram a uma mais isolada e quieta.

                Oliver levou umas três casas para dar pela falta de Ezekiel (e da guria que os seguia, mas mais de Ezekiel) e, quando percebeu, imediatamente se voltou para procurá-lo. A rua movimentada atrapalhava um pouco o serviço, mas após algum tempo, ele percebeu que Ezekiel não estava mais ali.

                Querendo ou não, seu olho vermelho começou a cintilar por debaixo do tapa-olho. Ezekiel já estava estranho, então, uma hora, simplesmente some... Nada de bom poderia vir disso.

                Bem, restava apenas procurar por ele. De novo. Exatamente como nas vezes que ele tentava fugir de si, ainda nos primeiros meses como marionete. Naquelas vezes, o lobisomem ou outro ser costumavam ajudá-lo, mas agora seria simplesmente uma perda de tempo procurá-los.

                Afinal, Oliver tinha um pequeno segredo: ele era muito bom em achar coisas que o pertenciam. E Ezekiel era a marionete dele. Dele.

                *

                "Onde estamos?" Ezekiel indagou enquanto a seguia. De novo, a cena parecia familiar, mas ele ignorou a sensação.

                "Nas ruas comerciais, que ficam fechadas a essa hora. É bem mais quieto aqui, né?"

                "É, acho que sim... Não tem ninguém" Disse um pouco nervoso, mas tentou esconder o sentimento com uma máscara de indiferença.

                "Ora, não me diga que está com medo de ficar sozinho comigo? Relaxa, eu não mordo" Ela riu.

                Ele retribuiu com uma risada forçada.

                "Então... Posso te fazer uma perguntinha?" Ela disse de modo manhoso.

                "Ah, tá... Vá em frente"

                "Qual é a sua fantasia?"

                "...De novo isso? Já te disse, nada específico..." Desconversou "Por que isso é tão importante para você mesmo?"

                "Nada, nada..." Ela tentou soar tranquilizadora "Eu só queria saber a fantasia do cara tão misterioso que eu vou beijar" Sorriu e, num impulso, colou seus lábios.

                Sim, ela era meio atrevida.

                Ezekiel simplesmente congelou, sem saber ao certo o que fazer ou o que estava acontecendo para começar.

                E, é claro, Oliver tinha que escolher esse momento para chegar.

                Seu olho vermelho agora brilhava com fúria, parte da luz aparecendo mesmo através do tapa-olho. Mesmo assim, ele sorriu tranquilamente e se aproximou a passos lentos.

                "Olá" Ele os cumprimentou gentilmente, ganhando a atenção dos dois "Eu estava procurando vocês"

                "Uh... Oi" A garota respondeu incerta, se afastando um pouco de Ezekiel, mas ainda perto. Se por um lado estava chateada por ser "interrompida", por outro ela sentia que reclamar não era uma boa ideia. Havia uma atmosfera perigosa no ar...

                Já Ezekiel apenas arregalou os olhos e pensou brevemente se havia uma rota de fuga possível e quanto tempo conseguiria de vantagem se abandonasse a garota. No fim, desistiu da ideia antes mesmo de tentá-la. Fugir de Oliver era sempre inútil.

                Enquanto Oliver se aproximava lentamente dos dois, como uma cobra pronta para dar o bote, mas com medo de espantar a presa, Ezekiel só conseguiu pensar em uma coisa para fazer. Ele se aproximou um pouco da batgirl e sussurrou em seu ouvido:

                "Desculpa"

                Ela o olhou confusa.

                "Pelo quê?" Sussurrou de volta.

                "Então... Ele é meio que... Meu namorado?"

                "QUÊ?" Disse nem tanto num sussurro.

                Oliver continuava com seu passo lento, mas constante. Logo alcançou os dois no fim da rua deserta. A fúria em seus olhos apenas aumentou ao vê-los sussurrando um para o outro.

                "Então, quem vai me explicar o que está acontecendo aqui?" Apesar do tom gentil, era óbvio que não era uma pergunta.

                "Olha, Oliver, me desculpa, eu não sabia que vocês estavam juntos e..." A moça tentou se explicar, mas Oliver a cortou.

                "Claro que não sabia" Disse simplesmente. "Mas isso não muda o que você fez, não é?" Sorriu.

                "Desculpa, sério! Eu prometo que vou embora e vocês nunca mais tem que me ver! Eu nunca mais vou fazer isso!" Nem ela sabia por que estava tão nervosa, mas algo em seu interior dizia que ela tinha que correr. Agora. Fugir.

                "Não se preocupe, eu sei que você não vai fazer isso de novo" Ele explicou de um modo afável demais e então se voltou para Ezekiel "Quanto a você, se afaste. Agora. E espere po mim, sim? Agora eu quero ter uma conversa com nossa amiguinha..."

                Ezekiel engoliu em seco e fez o que foi mandado, se afastando dos dois e indo até o outro lado da calçada. Era longe o bastante.

                Oliver sorriu abertamente para a garota, mas não era um sorriso afável. Era um sorriso homicida. Perigoso. Ela tentou se afastar, mas ele a segurou pelo braço com uma força dolorosa.

                "Ei, olhe para mim..." Oliver a provocou e, quando ela o fez, viu seu olho vermelho-sangue e inumano. Oliver havia retirado seu tapa-olho, de modo que o olho azul contrastava com o vermelho e brilhante. "Gosta do que vê?"

                "O que-O que é você?!"

                "Ora, achei que já tinha respondido isso... Sou O Mestre das Marionetes" Ele a apertou um pouco mais e, por um momento, ela achou que ele fosse quebrar seu braço.

                Quem dera fosse apenas isso...

                Ezekiel fechou os olhos. Ele não tinha estômago para ver essa cena... Apenas ouvi-la já lhe dava arrepios. Ele conseguia imaginar a expressão impiedosa de Oliver e o rosto assustado da garota. Então, num certo momento, entre os pedidos desesperados da moça e as respostas calmas e falsamente gentis de Oliver, um som alto e repentino de algo quebrando foi ouvido e, junto a isso, os pedidos desesperados pararam.

                Ezekiel teve coragem de abrir os olhos e se arrependeu quase imediatamente. A sua frente, o corpo inerte da garota estava estendido no chão, a cabeça virada em um ângulo nem um pouco natural e uma poça de sangue vermelho escuro se formando rapidamente.

                Se Ezekiel ainda tivesse um estômago funcional ou mesmo tivesse comido algo naquela noite, ele provavelmente teria vomitado. Mas, como ele não tinha, apenas deu alguns passos para trás instintivamente.

                "Nem pense em fugir. Ainda nem comecei com você" Oliver disse calmamente, mas não olhou para ele. Seus olhos ainda estavam fixos no corpo imóvel. A cena lhe trazia estranha e bem-vinda satisfação.

                Ezekiel apenas ficou congelado no lugar, sem saber o que fazer, sem saber para aonde ir. Ele permaneceu imóvel e, quando você não toma uma decisão, o mundo a toma por você.

                Oliver parou de admirar sua obra de arte e caminhou tranquilamente até Ezekiel, recolocando o tapa-olho para cobrir seu olho diabólico e passando um braço pelos ombros de Ezekiel. Dessa vez, ele não lutou contra o toque.

                Ezekiel gostaria de dizer que estava aliviado por Oliver estar agindo "normalmente", mas ele ainda conseguia ver o brilho vermelho abafado pelo tecido preto do tapa-olho. Aquilo não era o fim.

                "Vamos pra casa" Oliver disse simplesmente.

                "Mas... A noite não acabou ainda!" Ezekiel tentou enrolar. Ganhar tempo.

                Oliver não pareceu impressionado pela desculpa.

                "Mas acabou pra você" Sorriu sem humor algum.

                *

                Os dois voltaram a passos dolorasamente lentos para casa. Mesmo que Ezekiel mal sentisse o toque de Oliver o segurando pelo caminho, ele jurava que o contato queimava.

                Mesmo quando chegaram à mansão, Oliver não o largou. Apenas retirou o tapa-olho e o conduziu até um dos muitos quartos do andar superior. Um que Ezekiel conhecia, mas desejava esquecer. Um com correntes presas à parede.

                "Se importa em ficar em pé encostado à parede?" Oliver perguntou educadamente, mas Ezekiel sabia que era uma ordem.

                Mesmo assim, seus pés não se moveram, plantados firmemente ao chão ao lado de Oliver.

                "Ora, vamos lá, não faça isso mais difícil do que tem que ser" Oliver o empurrou gentilmente em direção à parede, como que o encorajando.

                Ezekiel deu alguns passos hesitantes. Se lhe fosse possível, seu coração estaria acelerado e seus membros, tremendo. Mas ele não tinha mais esses luxos. Apenas o medo era o mesmo de quando era humano.

                "Muito bem" Oliver o elogiou quase sarcasticamente "Agora fique quietinho, sim?"

                E então ele foi acorrentado à parede.

                Não que ele já não estivesse esperando por isso àquela altura do campeonato...

                "Então, Ezekiel, você se comportou mal hoje. E isso me deixou magoado" Oliver explicou tranquilamente, mas o brilho vermelho de seu olhar o traía. "Agora eu vou ter que te ensinar uma lição..."

                Oliver foi até uma mesa no canto da sala, que continha diversos instrumentos, a maioria afiados, e pegou um simples estilete de ponta fina, se aproximando do garoto logo em seguida.

                "Bom, fique bem quietinho e não vai se machucar... Ainda. Entendeu?" Ezekiel apenas assentiu e fechou os olhos, preparado para o pior. "Não, de olhos abertos" Ele ordenou. Ezekiel obedeceu. "Muito melhor"

                Então Oliver passou o canivete suavemente pela bochecha de Ezekiel, cravando uma linha perfeita através da pele falsa, mas apenas roçando suavemente na madeira por baixo. Ezekiel fez uma escolha sensata (pelo menos uma vez na vida) e ficou calado, evitando até o menor movimento.

                Só quando Oliver terminou com suas bochechas e queixo e começou a trabalhar na parte superior de seu rosto, ele teve coragem de falar:

                "Por que está fazendo isso?" Praticamente sussurrou, esperando que sua voz não estivesse tão trêmula quanto ele esperava.

                Oliver sequer desviou o olhar de seu trabalho para encará-lo.

                "Porque eu quero ver você. Você de verdade. Fique quieto ou eu vou acabar cortando a madeira também"

                "...Essa pele não sai sozinha? Você disse que-"

                "Eu sei o que eu disse. E ela sai sozinha depois de uns dois ou três dias, mas eu não quero esperar"

                "Eh... Por que não?"

                Dessa vez, Oliver parou o trabalho hábil para olhá-lo nos olhos. O olhar penetrante de Oliver era desconfortável, mas Ezekiel o sustentou.

                "Porque" Ele disse devagar, como se explicasse a uma criança "acho que você precisa lembrar o que você é. Agora calado."

                Ezekiel engoliu em seco, mas não disse mais nada.

                Oliver voltou a retirar a pele falsa tira por tira, pedaço por pedaço, num serviço que exigia destreza e atenção. Quando terminou, após várias horas, sorriu para si mesmo. Era outro trabalho perfeito.

                "Volto logo. Se comporte" Ele declarou e saiu tranquilamente pela porta.

                Quando o som abafado dos passos ficou bastante distante, Ezekiel deu um puxão experimental na corrente que o prendia, mas ela permaneceu firme e inabalável.

                Talvez, no passado, ele tivesse tentado se contorcer e forçar seu escape, mas, agora, ele apenas aceitou e esperou a volta de Oliver. Era mais provável que ele arrebentasse o próprio braço do que arrebentar a corrente... E, além de doer muito, isso enfureceria Oliver.

                Não que ele já não estivesse bem furioso...

                Logo Oliver voltou, trazendo consigo um espelho de mão, e sorriu ao ver Ezekiel ainda parado nas correntes. Não é que o garoto era capaz de aprender no fim das contas?

                "Quero que olhe" Ele explicou e posicionou o espelho na frente de Ezekiel, refletindo seu rosto completamente "O que você vê?"

                Ezekiel apenas passou o olhar do espelho para Oliver e de Oliver para o espelho, tentando entender a razão de tudo aquilo, mas se manteve quieto.

                "Então?" Oliver o incentivou. "O que vê?"

                "Uh... Eu?"

                "É, é você... E o que você é?"

                "Eu sou... Eu" Ezekiel afirmou hesitante.

                "Resposta errada"

                Então Oliver foi até sua mesa de instrumentos e, deixando o estilete de lado, pegou uma faca um pouco mais pesada. O estilete era perfeito para trabalhos delicados, mas, algo um pouco mais... Punitivo, era melhor uma boa e simples faca.

                Ele andou até Ezekiel e tocou a ponta da faca levemente na pele de madeira do braço do garoto.

                "Te dou mais uma chance. O que você é?"

                Ezekiel não respondeu.

                Essa não era a resposta que Oliver queria, então ele cravou a faca em seu braço e observou com deleite enquanto o mel que era seu sangue escorria pela ferida. Ezekiel estremeceu de dor, mas ficou calado.

                Às vezes, ele achava que seria melhor não ter nenhum nervo remanescente.

                Oliver sorriu sadicamente.

                "Vamos, olhe bem para o reflexo, o que você é?"

                "Eu" Ele insistiu.

                Oliver simplesmente abriu outro corte em seu braço, um pouco mais profundo que o anterior.

                "Vamos lá, pense um pouco... Eu não perguntei quem é você, perguntei o que é você" Oliver sorriu encorajador, mas ainda segurava a faca rente a sua pele.

                De certa forma, essa era uma ação ambígua típica de Oliver.

                "O que é você?" Repetiu tranquilamente.

                Ezekiel encarou seu reflexo. De certa forma, ele havia se acostumado à pele de madeira, mas, depois de passar algum tempo se sentindo humano, era difícil aceitá-la de novo. As feições eram as mesmas, assim como todos os detalhes, a única diferença era o material.

                Era uma grande diferença.

                "Eu sou eu" Repetiu teimoso. Ele sabia a resposta que Oliver queria, mas ainda tinha algum orgulho para proteger. Alguma independência para mostrar.

                "Você gosta de complicar as coisas, não?" Oliver deu de ombros e cravou a faca em seu outro braço. Ezekiel gemeu de dor, mas não mudou a resposta.

                Então Oliver sorriu e, deixando a faca cravada em seu corpo, se afastou.

                "Tudo bem, acho que você precisa de algum tempo para pensar. Me avise quando estiver pronto" Disse alegremente.

                Ezekiel pensou que ele apenas iria embora por algumas horas, mas, ao contrário de sua expectativa, ele apenas se dirigiu a uma das paredes e, se encostando nela, esperou.

                Nenhum dos dois disse uma única palavra.

                E o tempo passou.

                E passou.

                E passou.

                Ezekiel não entendeu o que Oliver pretendia com aquilo. Ele queria apenas dar um gelo nele? Se era o caso, por que esperar na mesma sala? Não fazia sentido.

                Isso é, até que ele viu os insetos.

                *

                Ezekiel olhou para os insetos se aproximando lentamente, atraídos por seu "sangue" doce espalhado no chão, e depois olhou para Oliver, que observava a cena casualmente, quase sem interesse.

                Ele planejou aquilo.

                Insetos eram um problema. Tanto no mundo humano quanto nesse. Mas, se você é uma marionete viva, esse problema se torna levemente mais complicado... Por quê? Simples, porque, quando se tem melado no lugar de sangue, qualquer corte é um convite para pequenos insetos. E, acredite, ter pequenas criaturas rastejando dentro de você está longe de ser uma experiência agradável.

                Ezekiel se lembrava da última vez que aconteceu com ele... Na primeira e última vez que ele não deixou Oliver consertá-lo depois de uma tentativa falha de fuga. A pior parte não eram formigas ou besouros ou outros seres rastejantes que podiam entrar em sua pele. A pior parte eram as moscas.

                Afinal, mesmo não rastejando para dentro dele, moscas tinham um interesse diferente nele: por ovos. Pois é, as moscas simplesmente achavam os cortes o lugar ideal para uma incubadora. Estreito, escuro e cheio de alimento. O local perfeito para as larvas. E ter larvas rastejando por dentro de seu corpo era muito mais desagradável que qualquer outro ser, porque elas eram jovens e ávidas para ver o mundo. Se arrastavam de modo constante e buscavam uma saída.

                Da última vez, Ezekiel gritou quando começou a cuspir larvas vivas. Pequenos seres grotescos e cambaleantes se impelindo para fora de si. Foi Oliver quem o consertou da última vez... Mas ele não parecia muito propenso a ajudá-lo agora, não enquanto seu olho vermelho o observava sadicamente.

                Os cortes de Ezekiel não fechariam sem ajuda, isso era óbvio. Sem pele, sem músculos, sem cicatrização. E a trilha doce levava diretamente a seu interior... Os primeiros insetos alcançaram o começo da trilha, ainda no chão, e a provaram enquanto outros insetos se juntavam à festa. Formigas, besouros, até lacraias, uma miscelânea de artrópodes e invertebrados ávidos por seu "sangue".

                Oliver, ainda apoiado na parede e o observando, sorriu tranquilamente para ele, mas não disse uma única palavra.

                Os insetos continuaram sua marcha lenta, torta e constante.

                Ezekiel deu mais alguns puxões experimentais nas correntes, que não cederam um único milímetro. Oliver sorriu um pouco mais largamente ante a tentativa inútil.

                Então a primeira formiga alcançou um dos cortes. Era pequena, mas isso não importava muito na hora. Ezekiel tentou sacudir o braço para expulsá-la, mas foi inútil. Ele estava quase totalmente imobilizado, os movimentos restritos demais. A corrente, como sempre, não se abalou pelos puxões agressivos.

                Então outra formiga, dessa vez maior, se aproximou de outro corte e, o margeando, foi percebida pelos nervos expostos. Ezekiel sentiu o desagradável rastejar com muito mais nitidez do que gostaria.

                Besouros e lacraias começaram a escalar suas pernas, seguindo o rastro doce. Mesmo que não os sentisse tão claramente quanto as formigas, ele sabia que estavam lá. E estavam subindo.

                As formigas passaram a se aventurar dentro dos cortes, não mais os margeando.

                "Tá bom!" Ezekiel quebrou o silêncio, quase gritando "Eu digo, só faz isso parar!"

                Os insetos continuavam sua escalada lenta. Oliver sorriu e o encarou.

                "Tudo bem... Mas, antes, o que você é?" Perguntou calmamente, ainda apoiado na parede, sem se mover um milímetro para ajudar Ezekiel.

                Oliver, no fundo, era um sádico.

                "Eu sou..." Uma leve hesitação, o último resquício de orgulho. Mas, quando desconforto, desepero e fragilidade aparecem, o orgulho dificilmente é prioridade. "Uma marionete" Admitiu por fim, num fio de voz.

                Oliver agarrou um frasco em cima da mesa de instrumentos e deu alguns passos despreocupados em direção a Ezekiel. O olho demoníaco ainda faíscava.

                "Pode repetir isso?" O sorriso nunca o abandonava.

                "Eu sou uma marionete!" Ezekiel já não ligava mais, ele só desejava o fim de tudo aquilo. Logo.

                "Muito bem" Elogiou docemente e abriu o frasco, o deixando ao nível dos olhos de Ezekiel. "Isso vai arder um pouco, mas vai eliminar qualquer coisa que tenha entrado em você. Entendido?"

                Ezekiel assentiu avidamente. Ele só queria que aquele rastejar parasse.

                "Mas, antes" Oliver o encarou com o mesmo sorriso doce ",uma última pergunta. A quem você pertence?"

                Mesmo com os insetos se aproximando ávidos de seus cortes e rastejando por seu braço e mesmo pescoço, Ezekiel não respondeu. Aquilo foi golpe baixo. Até mesmo para Oliver.

                "Então?" O encorajou. Uma lacraia encontrou o caminho sob sua pele.

                Ele não respondeu.

                Oliver não perdeu o sorriso.

                "Talvez precise de mais algum tempo para pensar..." Ele fez menção de se afastar e voltar a seu ponto de observador junto a parede.

                E então Ezekiel ouviu um zumbido.

                E outro e outro.

                Os seres voadoras sentiram o doce aroma e se aproximaram de sua fonte.

                Moscas.

                Moscas repugnantes zumbindo em seu ouvido e pousando em suas feridas.

                Se contorcer era inútil.

                Elas começaram a sugar o doce de seus cortes, tocando em seus nervos no processo. O roçar das patinhas e asas era insuportável.

                A ideia de ovos e larvas era aterrorizante.

                O zumbido baixo era ensurdecedor.

                "Você" Disse po fim. "É você! Feliz?"

                Mesmo sendo inútil, Ezekiel voltou a se forçar contra as correntes numa tentativa sofrida de fazê-las sair de seu corpo.

                Oliver não teve pena.

                "Não, não... Quero a frase completa"

                Ezekiel já nem pensava, apenas obedecia.

                "Eu pertenço a você! Agora faz isso parar!" Oliver continuou o observando, sem fazer um único movimento para cessar seu sofrimento. Ezekiel, no meio dos pensamentos embaralhados e overdose de sensações, completou: "Por favor!"

                Então Oliver, sem cerimônia alguma, derramou o conteúdo do frasco sobre seus cortes e deixou o excesso escorrer por sua pele. A ardência fez Ezekiel gemer, mas foi muito mais bem-vinda que aquela movimentação de várias patinhas em seu corpo. Quando o arder passou, não havia mais rastejar, zumbido ou nada. Os insetos apenas... Se foram.

                Ezekiel suspirou aliviado.

                Mas não havia acabado ainda. Afinal, Oliver ainda não o soltou.

                "Agora fique bem quietinho e eu vou fechar os cortes, sim?" Oliver "pediu" delicadamente (como se Ezekiel tivesse alguma escolha) e, descartando o frasco vazio sobre a mesa, pegou outro, ainda cheio, e uma lixa.

                O novo frasco tinha a boca mais larga que o anterior e um conteúdo mais viscoso. Ezekiel também já o conhecia bem até demais... Era o que Oliver usava para reparar qualquer corte e imperfeição. A substância viscosa, em contato com o ar, endurecia e ficava indistinguível da madeira. A lixa servia para a finalização, para deixar a superfície igual ao restante da pele, sem que um único sinal do remendo aparecesse.

                Oliver escolheu o corte mais profundo e , antes de repará-lo, cravou seus dedos nos nervos expostos. Ezekiel estremeceu de dor e surpresa.

                "Só quero deixar claro, você é meu. Só meu. Não se esqueça disso, sim?" Dessa vez Oliver não estava sorrindo. Ezekiel assentiu lentamente, mortificado. "Excelente" Oliver voltou a sorrir adoravelmente, como se nada tivesse acontecido, e retirou os dedos da ferida, lambendo-os para limpá-los.

                Ele apreciava bastante o sabor do sangue alheio. Especialmente quando era doce.

                Os minutos seguintes foram passados em silêncio. Ezekiel não tinha forças ou coragem de abrir a boca, Oliver estava entretido com os consertos e com a perfeição necessária. Ezekiel ainda era sua obra-prima no fim das contas.

                Depois de outro trabalho realizado com habilidade e destreza, Oliver guardou seus instrumentos e, decidindo que era o bastante por hora, retirou as correntes que prendiam Ezekiel. O garoto caiu no chão de joelhos.

                Oliver se ajoelhou no chão ao lado dele e acariciou levemente seus cabelos de modo afetuoso, sorrindo delicadamente.

                "Viu? Não foi tão ruim. Agora por que você não vai até nosso quarto e descansa um pouco?" O brilho de seu olho demoníaco desvaneceu, tornando-o um vermelho escuro e opaco e ressaltando seu olho azul e gentil.

                Ezekiel pensou brevemente em dizer algo, responder, retrucar, qualquer coisa para rebater o irônico "não foi tão ruim". Mas, no fim, a exaustão e o pouco bom senso venceram e ele se retirou, ainda sentindo os toques fantasmas dos dedos de Oliver em sua nuca, tão gentis... Nem pareciam os mesmos que se cravaram em seus nervos apenas pela ênfase.

                Mas eram.

                Oliver era assim. Uma contradição ambulante. A personificação da dualidade.

                Ezekiel chegou à cama que dividia com Oliver a passos cambaleantes. Ele tinha perdido muito... Sangue. Se ainda fosse humano, teria desmaiado pela falta de circulação antes mesmo que os insetos o alcançassem.

                Mas ele não tinha mais essa sorte.

                Ele não tinha sequer a sorte de desmaiar de exaustão. Por isso, por mais que desejasse esquecer o que houve e abraçar a inconsciência, o processo não foi assim tão simples e rápido. Afinal, marionetes não precisam dormir. Podem, mas não precisam. O que torna o processo bem menos natural. Não bastava cair no sono, era preciso forçá-lo.

                A noite de Halloween passou, a madrugada silenciosa dominou o ambiente e foi expulsa pelos primeiros raios de sol dourados da manhã e, nesse tempo todo, Oliver não se juntou a Ezekiel na cama. Ele tinha planos bem mais interessantes que dormir... Então, enquanto o garoto repousava, ele se focou em outro trabalho. Algo que ele não fazia há muito tempo.

                Uma nova marionete.

                *

                Ezekiel acordou com o sol da manhã entrando pela janela. Perto de si, encontrou Oliver sentado na cama luxuosa segurando uma bandeja de café da manhã e sorrindo calorosamente para ele.

                "Bom dia" Oliver o cumprimentou.

                Ezekiel sabia, por experiência própria, que era melhor responder.

                "...Bom dia" Ele se forçou a uma posição mais ereta, sentando-se ao lado de Oliver.

                "Então, dormiu bem?" Antes que Ezekiel pudesse responder, ele continuou: "Te trouxe comida. Diga 'ah'."

                Oliver continuou com a expressão tranquila e afetuosa e, apoiando a bandeja na cama, pegou uma colher de prata e a mergulhou na tigela que trazia. Ezekiel logo reconheceu a substância espessa, infelizmente... Era uma espécie de xarope, por assim dizer. Um caldo grosso, muito açucarado, enjoativo e que lembrava vagamente mel. Era como o líquido que preenchia suas novas veias. Desde que virou uma marionete, Ezekiel só comia doces, não conseguia comer outra coisa, e mesmo isso era raro, já que, em geral, não precisava comer. Oliver costumava ser gentil o bastante para lhe dar bolos, doces, biscoitos, tortas... Enfim, formas alternativas de conseguir açúcar quando era necessário.

                Beber aquele xarope enjoativo era como tomar o próprio sangue.

                Oliver percebeu os olhos de sua marionete estudando a substância consistente que enchia a colher.

                "Eu sei que não é muito agradável, mas você perdeu muito sangue ontem... Não seria prático te dar um bolo ou uma torta, seu corpo vai absorver esse xarope muito mais fácil. Eu poderia te dar um doce, mas saímos sem nenhum do Halloween, lembra?" Provocou "Além do mais, você não está merecendo agrados, está? Pense nisso como remédio" Oliver explicou pacientemente "Agora abra a boca, sim?"

                "Eu... Posso tomar sozinho" Ezekiel tentou.

                Oliver não perdeu o sorriso.

                "Não te perguntei se podia, te pedi para abrir a boca" Disse simplista "Vamos lá, não se comporte como uma criança birrenta... Nunca tive muita paciência com desobediência" Acrescentou sem mudar o tom de voz.

                Ezekiel abriu a boca antes que a ameaça velada se tornasse algo mais explícito. Foi uma boa decisão. Oliver sorriu satisfeito e começou a alimentá-lo com aquele melado grosso e desagradável. Uma colher por vez.

                Provavelmente o mais irritante era o som de aviãozinho que ele fazia a cada nova colherada.

                Se Ezekiel conseguisse vomitar, ele o teria feito antes mesmo de chegar à metade da tigela.

                Quando, finalmente, terminou o "café da manhã", Oliver pediu para que ele se levantasse e se arrumasse para conhecer alguém.

                Ezekiel não tinha um bom pressentimento... Mas fez o que foi pedido. Depois que o enjoo inicial de tomar uma tigela de xarope passou, Ezekiel começou a se sentir melhor. Perder sangue não o fazia desmaiar ou algo do tipo, mas o deixava fraco, vazio. Se sentir vazio era bem pior que sentir ânsia de vômito por excesso de açúcar.

                Quando terminou de se arrumar, Ezekiel desceu as escadas até a sala de jantar, onde Oliver o esperava sorrindo.

                Ele jurava que um breve lampejo vermelho cruzou o olhar de Oliver quando Ezekiel viu a nova "convidada". Era uma maionete. Uma nova marionete.

                Uma marionete idêntica à Batgirl. A que foi assassinado, por culpa de Ezekiel, na noite de Halloween.

                Oliver caminhou casualmente até Ezekiel e passou um braço por seus ombros.

                "Não vai cumprimentar nossa visitante? Achei que tinha te dado mais educação" Comentou sadicamente.

                *

                Depois disso, a nova marionete começou a conviver com eles. E Oliver fazia questão de mantê-la por perto em todos os momentos. Ezekiel se sentia desconfortável em simplesmente olhar para ela, as feições eram perfeitas, idênticas nos mínimos detalhes, mas, mesmo assim, era uma mera cópia. Um lembrete do que houve. Um lembrete de seu erro.

                A nova marionete passou a cozinhar para eles, mesmo que tecnicamente não precisassem comer, e se sentar com eles à mesa até que a hora da refeição acabasse. E isso se repetia em todas as refeições, Oliver garantia. Todas elas. E Ezekiel aturava a presença calado, com medo de questionar a nova "criação" de Oliver.

                Isso é, até que um dia Oliver o chamou casualmente e perguntou se Ezekiel sequer imaginava como as marionetes se moviam.

                "Ah... Pelas suas cordas, certo?"  Ezekiel respondeu desconfortável. As antigas marionetes de Oliver o deixavam apreensivo justamente pela falta de expressão e pelos fios fosforescentes que as animavam.

                "É sim, mas já se perguntou o que elas são?"

                "Uh, na verdade não"

                "Mesmo? Bem, vou te contar mesmo assim. A resposta é bem simples na verdade... Almas" Explicou tranquilo.

                Ezekiel sentia que aquilo era uma armadilha, mas não é como se essa sensação já o tivesse parado...

                "Almas?"

                "É, é a forma mais simples de animar um corpo. Com uma alma"

                "Então... Suas cordas são... Almas?"

                "É, mais ou menos isso. Mas não almas inteiras. Almas intactas tendem a ser teimosas... Você, por exemplo" Alfinetou. "Não... Para marionetes comuns, eu preciso rasgar as almas até que se tornem fios sem vontade própria, então as prendo ao boneco e as comando. Simples assim, vê?"

                Ezekiel engoliu em seco e apenas assentiu. Oliver sorriu e prosseguiu:

                "Sabe por que estou te contando isso?"

                Ezekiel negou.

                "Bem... Eu gosto de autenticidade. Por isso, uso as almas originais nas minhas marionetes. Então a sua amiguinha ali" Ele apontou para a nova marionete "é animada pela própria alma, feita em pedaços e amarrada a esse corpo"

                Oliver observou a expressão de Ezekiel e, quando achou que o garoto tinha entendido a mensagem, sorriu.

                "Bem, agora eu vou indo. Que tal fazermos um passeio? Poderíamos levá-la também" Sugeriu feliz.

                "Não" Ezekiel disse sem sequer pensar. Aquilo era errado. Muito errado.

                Era uma alma. Uma alma rasgada e presa. Uma vida condenada. Por um erro dele.

                Era tão errado.

                "O que disse?"

                "Eu disse que não" Ele insistiu, já preparado para o pior.

                "Como quiser" Oliver deu de ombros, não parecendo preocupado com a "rebeldia" dele. "Também podemos ficar em casa com ela, se é o que prefere".

                Ezekiel se viu sem muita escolha a não ser aturar a presença dela dia após dia, a todos os momentos possíveis. Sem escapatória.

                E assim o garoto passou meses convivendo com aquela... Coisa. Oliver nunca mais "puniu" Ezekiel diretamente, mas o obrigava a ficar perto dela sempre que podia, como se esfregasse seu erro na sua cara. Era seu modo cruel de dizer "a culpa é sua". Ezekiel estava sendo bem-tratado... Mas ele ainda tinha uma alma inteira, ela não. Ela devia estar sofrendo. E esse sofrimento era presenciado por ele dia após dia.

                Era uma tortura mais enlouquecedora que a dos insetos.

                Até que um dia ele ficou farto daquilo.

                "Você não vem jantar?" Oliver o chamou, como em todas as noites. E a marionete sem vida estava, como sempre, sentada bem a sua frente, exposta onde qualquer um podia vê-la.

                "Não" Ele cruzou os braços.

                Oliver se levantou calmamente e andou até ele, invadindo seu espaço pessoal.

                "Não foi um pedido"

                Ele permaneceu teimoso.

                "Não. Eu não vou jantar com ela"

                "E por que não?"

                "Porque isso é cruel!"

                Oliver deu mais um passo para frente e Ezekiel teve que recuar, mas continuou de braços cruzados e olhar firme. Oliver pareceu pensar por um minuto.

                "Hm... Tudo bem então. Se a despreza tanto assim, quebre-a" Ofereceu e, estalando os dedos, fez com que sua marionete andasse até Ezekiel e ficasse parada, imóvel, completamente a sua mercê. "Divirta-se".

                *

                Ezekiel hesitou.

                "...O quê?"

                "Ora, se não a quer, quebre-a, faça-a em pedaços" Oliver encorajou. "Eu não poderia me importar menos"

                "Mas..." Ele buscou uma desculpa, qualquer uma "Você é O Mestre, você as faz, então é você que deve quebrá-las, não?" Tentou. Não parecia uma desculpa convincente, mas foi a única que conseguiu.

                Oliver ainda não parecia impressionado.

                "Já quebrei todas as minhas marionetes por você" Ele lembrou "É sua vez de sujar um pouco suas mãos. Quebre-a" Já não parecia uma sugestão, mas uma ordem velada.

                Ezekiel congelou. O que era mais cruel, permitir que aquilo "vivesse" com a alma em pedaços e sem vontade própria ou matá-la a sangue frio? Ele passou os dedos experimentalmente pela pele de madeira dela, era muito dura para se quebrar com as mãos nuas. Parecendo prever o pensamento, Oliver entregou a ele uma faca de prata com a ponta bem afiada e uma resistência considerável.

                O garoto não sabe quanto tempo passou encarando a faca e a marionete, mas, para ele, pareceu uma eternidade. Oliver observava, mas não moveu um músculo para interferir. Ezekiel roçou a faca pela pele da marionete levemente, mas não fez um único arranhão. Oliver sorriu.

                "Vai ter que ser um pouco mais bruto se quiser quebrá-la" Constatou.

                Ezekiel suspirou, mas não respondeu.

                Depois de vários minutos, tentou de novo, com um pouco mais de força. Dessa vez, um pedaço da marionete lascou, mas nenhum grande dano foi feito.

                "Se ela ainda fosse humana, eu chamaria isso de tortura..." Oliver comentou alegremente "Sabe, matá-la corte por corte. Mas faça como achar melhor"

                Ezekiel não sabia se tinha coragem.

                "Não posso só... Enterrá-la ou jogá-la no fundo do lado ou alguma coisa assim?"

                "Não, não, não... Você tem que aprender a lidar com seus problemas, e não simplesmente ignorá-los. Além do mais, não acha que isso seria mais cruel?" Oliver sorriu sádico, seu olho vermelho brilhava timidamente.

                Ezekiel não conseguia. Não mesmo. Ele não queria ser igual a Oliver, destruir friamente e sem hesitação, se divertir com a dor alheia. Ele não queria matar.

                Mas, ao mesmo tempo, não queria condenar uma marionete a existir.

                Era uma escolha difícil.

                Então ele tentou apelar para o lado gentil de Oliver. Podia ser uma esperança vã e tola, mas qual esperança não é?

                "Você não pode... Me ajudar? Por favor?".

                Oliver admite que não contava com essa. Era difícil negar algo quando Ezekiel fazia aquela expressão indefesa...

                "Não vou quebrá-la por você"

                Difícil, mas não impossível.

                "Não precisa quebrar, só... Me ajudar" Ezekiel insistiu. "Por favor?"

                Era obviamente trapaça. Um modo de escapar das consequências. Uma fuga. Mas... Oliver achou que podia permitir isso, só daquela vez.

                "Tudo bem" Ele segurou as mãos de Ezekiel com as suas próprias e aplicou um pouco de pressão na mão que segurava a faca, fazendo o garoto segurá-la com firmeza. "Mas ainda é você quem vai fazer".

                Ezekiel assentiu e Oliver guiou seus movimentos. Aplicando pressão, aumentando a velocidade e o grau de brutalidade. Em certo momento, Ezekiel fechou os olhos e apenas deixou Oliver guiar cegamente seus movimentos, mas este parou assim que notou.

                "Não, não... Já estou te ajudando, então você precisa pelo menos olhar" Ele declarou afável e Ezekiel voltou a olhar para aquela cena grotesca.

                O corpo da marionete estava no chão, em pedaços, destruído. Todos os membros espalhados pelo cômodo e apenas a cabeça ainda inteira, os olhos sem vida fixos neles.

                "Agora, acho que você pode finalizar" O Mestre das Marionetes sorriu "É simples, apenas crave a faca entre os olhos com força e a cabeça deve se partir em duas. Totalmente destruída." Ele deixou Ezekiel segurar a faca de prata sozinho e gesticulou encorajador para os restos da marionete.

                Era o golpe final.

                Ezekiel segurou a faca com força e, sem pensar muito, apenas deixou seu corpo agir por instinto. Afinal, Oliver o havia mostrado repetidamente o movimento necessário para quebrar uma marionete. A força, a pressão, a velocidade, até mesmo o ângulo. Era só repetir o mesmo movimento. Só que, dessa vez, sozinho, sem ajuda alguma.

                Quando deu por si, ele segurava a faca cravada na cabeça de madeira sem vida. Logo uma rachadura grande se alastrou e ela se dividiu em duas, ambas as partes caíram ao chão com um baque surdo.

                Acabou.

                E ele deu o último golpe.

                Oliver o parabenizou, mas Ezekiel se sentia horrível. Simplesmente horrível.

                Ele a matou.

                *

                Os dias passaram indiferentes.

                Oliver voltou a agir "normalmente" com Ezekiel. Ou, ao menos, tão normal quanto ele podia ser. Sem mais planos, esquemas ou torturas veladas... Apenas o normal.

                Mas Ezekiel ainda se sentia culpado.

                Oliver tentou ignorar e ver se esse era um daqueles problemas que os humanos resolviam sozinhos... Mas, aparentemente, não era. Ezekiel começou a ficar mais calado e fechado e, de certa forma, até mais obediente. Uma hora, Oliver achou aquilo simplesmente irritante. Era como ter uma marionete quebrada, mesmo que em perfeito estado.

                "Me diz qual é o problema" Disse simplesmente em uma noite qualquer enquanto estavam na cama, ambos acordados.

                "Não tem probl-"

                "Eu sei que tem um problema. E Perguntei qual é" Oliver explicou. "Apenas responda"

                "...Não"

                Oliver riu.

                "Então agora você vai ficar contra mim? Mesmo?"

                Depois de passar semanas sem sequer questionar Oliver, parecia uma mudança não justificada. Por que Ezekiel só ficava contra si quando ele queria ajudar? Ela quase hilário.

                Ezekiel não respondeu.

                "É a garota, não é?"

                "....É"

                Oliver suspirou.

                "Você não a matou, eu a matei" Ele parecia ter uma estranha satisfação com a última parte. "Você apenas impediu que a alma dela ficasse presa. De certa forma, é o herói. Apenas acabou com sofrimento desnecessário"

                Ezekiel ainda não parecia convencido. Oliver passou um braço por seus ombros e, abraçando-o, continuou:

                "Você cometeu um erro, você pagou por ele. Acabou. Pode remoer o quanto quiser, não vai mudar nada"

                Acredite se quiser, isso foi Oliver tentando ser empático.

                Ezekiel tentou se esquivar do abraço.

                Oliver colocou um pouco mais de pressão no aperto.

                "Não foi culpa sua" Ele tentou novamente. Ezekiel ainda não parecia convencido, mas ao menos não tentou mais desfazer o abraço.

                O tempo se encarregaria do resto.

                *

                Um ano se passou.

                Um ano pode até não enterrar muita coisa, mas com certeza ajuda.

                Ainda mais quando não se tem muitas opções... Oliver passou mais algum tempo tentando confortar Ezekiel e, uma hora, o garoto começou a superar. Nem que fosse por forças externas... Superar era superar.

                Ele ainda achava que a matou, e talvez estivesse certo, mas aquilo simplesmente não importava mais. Ele não podia se torturar para sempre.

                Principalmente com Oliver o vigiando de perto para garantir que ele não o faria. Apenas Oliver podia torturá-la (e sempre por razões didáticas...), ninguém mais. Nem ele mesmo.

                E tudo voltou ao eixo normal.

                Mas logo aquela época do ano voltou... O Halloween. Normalmente, Oliver começava a falar da data dias antes, mas, dessa vez, ficou quieto. Ezekiel decidiu trazer o assunto à tona ele mesmo durante um dos passeios dos dois.

                "Então..." Começou "O Halloween está chegando..."

                "É, está" Oliver respondeu com frieza.

                "E... Nós vamos?"

                Oliver parou o passeio para encará-lo, um leve brilho vermelho se insinuando em seu olhar.

                "Não"

                "Ah... E por que não?"

                "Ora, você sabe muito bem"

                Nenhum dos dois falou mais no assunto.

                Até que o dia do Halloween chegou.

                E Ezekiel ficou parado na janela vendo todos os outros seres aproveitarem a chance de sair... Mesmo com a primeira experiência péssima, Ezekiel sentia falta do mundo humano. Sentia falta de se misturar a uma multidão. De se sentir humano.

                "Você quer muito ir, não quer?" Oliver apareceu de repente atrás do garoto, o sobressaltando.

                "Uh... Não, tudo bem..." Ele desconversou. Oliver não ficou convencido.

                "É, você quer" Constatou. "Realmente precisa desapegar de lá... Aquele não é mais seu mundo. Esse é. Aqui é sua casa" Afirmou e envolveu a cintura alheia com seus braços.

                "Eu sei. É só que..."

                "Que?"

                "...Nada"

                Oliver ficou ali com ele, observando os outros saírem aos montes para se divertir e, por fim, tomou sua decisão.

                "Tudo bem. Podemos ir"

                "...Quê?" Ezekiel não tinha certeza se acreditava no que ouviu.

                "Podemos ir" Oliver repetiu "Mas com uma condição..."

                *

                E assim os dois voltaram ao mundo humano. Pele falsa que lembrava um pouco borracha, roupas antiquadas que se misturavam perfeitamente às fantasias, sacolas de doces em mãos. Tudo como manda o script.

                Oliver estava com seu inseparável tapa-olho e uma sacola em forma de abóbora como sempre. Ezekiel apenas usava suas roupas de sempre.

                A única diferença era um acessório em particular...

                Uma coleira.

                Uma coleira simples, como as usadas por cães, presa firmemente ao pescoço de Ezekiel. Obviamente, quem segurava a guia era Oliver... Essa foi sua condição para irem ao mundo humano. Sua condição para "confiar" em Ezekiel, ao menos por hora.

                Era humilhante? Sim. Desconfortável? Um pouco. Impedia que se misturassem completamente à multidão? Bastante. Mas foi a condição de Oliver e Ezekiel a acatou.

                Em uma determinada casa, um garoto alguns anos mais novo que Ezekiel o observou com curiosidade.

                "Qual é a sua fantasia?" Indagou ingenuamente.

                Ezekiel espiou Oliver pelo canto do olho e, quando teve certeza que não seria puxado pela coleira (o que já tinha acontecido naquela noite...), decidiu responder. Oliver, na verdade, estava muito interessado na resposta.

                O garoto se impediu de dar a resposta automática de "nada específico" e, com um sorriso resignado, disse:

                "Uma marionete".


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Notas finais do capítulo

:)



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