The view from the outside escrita por Crow


Capítulo 1
Capítulo 1




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Era meados do Mês das Chuvas quando num bar, entre risos, cantorias e muita cerveja estava um jovem que parecia estranhamente alheio à toda essa atmosfera. Quem o visse ali, sentado sozinho e comportado numa mesa bem no canto, com olhos que viajavam velozmente de um lado ao outro do recinto, poderia achar que estava doente ou intoxicado além da conta; se comportava como um animal acanhado, seu rosto uma mistura de cautela e curiosidade.

Numa mesa pouco mais ao centro da sala estava um grupo de 6 amigos a conversar com um homem alto, gordo, provavelmente muito forte, que não parecia conhecê-los. O jovem o observava sem muito interesse: viu-o entrar pela porta dos fundos há quase meia hora, vestido como um miserável, e desde então ele passava de mesa em mesa para contar sua história e pedir alguma coisa. Ninguém tinha muita paciência para escutá-lo, e ele só não havia sido chutado para fora porque tinha o dobro do tamanho da maioria das pessoas ali.

Esse tipo de ocorrência era comum nos distritos menos privilegiados de Karnaca. É verdade que a situação já esteve bem pior, naquele tempo em que o verdadeiro Luca Abele ainda era o duque por exemplo, mas ainda ia levar um bom tempo até tirarem a maioria do povo da miséria, e enquanto isso os mendigos seguiam pedindo rotineiramente suas esmolas.

—- Me diga então, por que não arranja um trabalho? -- uma moça magra e morena, entre os 6 amigos sentados na mesa onde o mendigo se encontrava, perguntou. O jovem solitário conseguia ouvir partes do diálogo em meio à barulheira habitual do bar.

—- Oh minha jovem, e quem vai querer contratar um velho imundo como eu? -- ele respondeu. Nem era tão velho assim. -- Não sou educado em nada, não sou habilidoso em nada, teria de primeiro aprender, entende…?

—- Eu ensino -- ela tirou algo do bolso e jogou sobre a mesa. Um cartão, provavelmente. -- Preciso de voluntários no Estrela do Norte. Não tenho condições de pagar recrutas, mas dou moradia e alimento no barco. Trabalhando bem, rendendo bem, será promovido e terá um salário.

    —- Mas e a família, minha jovem, como fica? Minha pobre esposa e meus dois filhos lá em Gristol, preciso encontrá-los em breve, ou…

    —- Tanto faz -- ela pegou o cartão de volta. -- Segue teu rumo então, some daqui.

    Segurando o velho chapéu em frente ao peito, lentamente o homem se virou e pôs-se a caminhar tão timidamente quanto seu tamanho permitia por entre as mesas, procurando por alguma que ainda não tivesse visitado. Encontrou a do garoto estranho lá no canto.

    —- Boa noite, meu jovem… desculpe interromper sua noite, mas se você tiver um minuto…

    —- ...claro -- o rapaz ergueu o olhar e esboçou um sorriso fraco.

    —- Meu nome é Jaeger, tenho 52 anos e dois filhos pra criar…

    O rapaz pareceu ouvir atentamente à toda aquela história de alguém que foi atrás de uma promessa de emprego em Karnaca mas sofreu um golpe e agora não consegue mais voltar para a sua terra natal, sendo que sua mulher e dois filhos o esperam lá, e agora precisa de esmola para comprar uma passagem de barco. Soava convincente, ele tinha de admitir. O homem falava com um pesar e constrangimento quase reais. Quase.

    —- Eu gostaria de te ajudar, senhor... Jaeger... -- o rapaz enfim relaxou a postura e apoiou as costas no encosto da cadeira, os braços cruzados sobre o peito. -- ...Mas não tenho certeza se apóio suas intenções ao voltar para a sua família.

    —- Perdão?

    —- Há 10 anos você foi preso por matar o amante de sua esposa. Mas as prisões ficaram lotadas durante a primeira parte do regime do nosso querido Duque e agora decidiram liberar os presos de bom comportamento. Você foi um deles, não foi, Anis? É Anis? Ou Anias? Não me lembro -- o jovem pegou um dos três copos de cerveja que descansavam sobre sua mesa, o único que ainda tinha algum líquido, e bebeu. O mendigo escutava sem dizer uma palavra. -- De toda forma você foi liberado há pouco tempo e agora pretende conseguir dinheiro para voltar e ver sua esposa em Gristol, sim, mas não para ajudá-la, e sim para matá-la.

    O silêncio do mendigo por alguns segundos denunciou que era verdade, mesmo que ele tenha vestido novamente a máscara de inocência e tentado se explicar.

    —- Anias...? Não sei quem é esse. Eu sou Jaeger, e estive preso sim, mas por roubar pão…

    —- Sei, sei. -- Batendo o copo agora vazio na mesa, o rapaz olhou para o lado e ergueu uma mão. -- Ei, Billie! Me traz mais uma!

    —- Moleque -- O mendigo rosnou, se aproximando a ponto de quase tocar o rosto do rapaz com a barriga, e falou baixo. -- Quem é você? Polícia? Um bruxo…?

    —- Nenhum dos dois. Eu só -- agora sim seu sorriso parecia legítimo. -- sei muitas coisas.

    —- Eu sou Jaeger -- o mendigo repetiu, olhando nervosamente ao redor. -- E se você disser a qualquer pessoa que não sou, eu vou...

    —- Vai o que? Preso de novo?

    Numa onda de fúria irracional, incapaz de pensar se havia outra saída para que não fosse preso, Anias aceitou seu destino e socou o rosto do jovem com tanta força que derrubou-o da cadeira. Imediatamente o bar inteiro voltou a atenção para os dois.

    —- Eu vou preso, e você vai morto -- ele tirou do caminho com brutalidade a cadeira que havia ficado vazia entre os dois, enquanto o jovem ainda recuperava a consciência jogado no chão. Com um puxão ele ergueu o jovem pelo colarinho e começou a armar outro soco quando sentiu algo pontudo atingir-lhe o pescoço.

    —- Bons sonhos -- uma voz feminina falou, baixo, em seu ouvido, e essa foi a última coisa que ele ouviu antes de desmaiar ali mesmo, caindo no chão com um estrondo.

    A essa altura, todo mundo no bar já havia feito um círculo em torno da cena. A mulher que o havia sedado era negra, esguia, de vestes vermelhas e um tapa-olho sobre o olho direito. Percebendo que os olhares dos fregueses agora estavam sobre ela, e que o rapaz estava muito bem vivo apesar de baqueado, ela se dirigiu a todos:

    —- Agradeço a preocupação, mas o show acabou. Os dois vão ficar bem.

    —- O que você fez com ele? -- Perguntou alguém. De fato, ninguém tinha visto de onde diabos tinha saído um dardo sedativo, e onde ele estava agora. A impressão era de que a moça havia derrubado o homem com apenas um esbarrão.

    —- Está sedado -- ela respondeu e mostrou o frasco vazio. -- Vai durar algumas horas, e ele acordará enjoado, mas vai ficar bem. -- e pôs-se a ajudar o rapaz caído a ficar de pé, apoiando o braço dele em volta de seu pescoço porque ele ainda estava com as pernas bambas.

    Sob o olhar silencioso de todos, a moça deixou um punhado de moedas sobre a mesa e carregou o rapaz para fora sem dizer uma palavra. Excepcionalmente nessa noite não estava chovendo, mas o vento era úmido e o chão ainda tinha poças da chuva anterior, nas quais o rapaz entorpecido pisava sem perceber e se encharcava todo.

    —- Mas que raios, garoto -- a mulher disse, claramente se esforçando para mantê-lo de pé enquanto andava. De longe ele parecia miúdo por algum motivo, mas na verdade era alto e pesado. -- Você está proibido de beber se é incapaz de ficar de bico fechado, está me ouvindo? E com apenas três copos de cerveja comum, céus…

    —- Eele eshtava mentinndo -- o garoto tentou responder. -- eu sshabia que eshtava mentinn….

    —- Que se foda, você não tem mais poder sobre as pessoas! Você pode ser espancado até a morte numa dessas, ou pior, podem desconfiar da sua história!

    —- Mash eu shei… de tuudo…

    —- Você não sabe de nada, garoto. Seus trocentos anos como Outsider significam bosta nenhuma no mundo real. Agora vem, fique de pé sozinho que eu preciso abrir a porta.

    Billie Lurk era uma mulher esperta e acostumada a vestir disfarces e apagar rastros, mas com uma companhia tão desastrada - e teimosa - quanto aquele garoto, estava ficando difícil. Teriam de se mudar em breve, pois esse havia sido já o terceiro incidente envolvendo o garoto e seu mau hábito de achar que é intocável. Mas por essa noite ficariam ali, naquele velho apartamento alugado de uma senhora cega que morava logo acima.

    "Amanhã teremos uma longa conversa e decidiremos o que fazer", pensou Billie enquanto ajudava o rapaz a entrar em casa. Com um resmungo, trancou a porta. "Esse idiota..."


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