Deus dos Erros escrita por Dramoro


Capítulo 6
Vozes de Madeira


Notas iniciais do capítulo

Hello people! Se vocês leram até aqui, acredito que estejam gostando da história. Portanto, continuarei postando capítulos periodicamente. Espero que gostem :)



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Os rangeres das portas eram o coro quiróptero de uma caverna de abandono, ninho dos esquecidos. Otávia entrou em uma das salas do prédio abandonado no qual residia. Era um cômodo consideravelmente grande, o chão empoeirado um dia já estivera cheio de cubículos de escritório, mas agora sustentava apenas algumas paredes de plástico derrubadas e tapetes de papéis cimentados pelo tempo. Em seu centro havia uma fogueira pequena irradiando do interior de um balde de ferro uma pira improvisada por um ser humano tosco com roupas rasgadas e uma barba adolescente suja, longa, e cheia de buracos.
— Olha quem chegou. – comentou Leonardo, que estava sentado em uma antiga máquina de xérox, vendo a garota adentrar o salão.
No outro lado do cômodo, uma mulher muito velha de cabelos alvos se levantou do chão e olhou para Otávia com um sorriso banguela. Faltava apenas um de seus colegas de casa.
— Onde está Marcus? – perguntou a garota.
O sorriso da velha banguela se transformou em uma boca aflita e repuxada, mas ela ainda assim não pronunciou uma única palavra.
— Procurando pelo novato. Ele sumiu da festa. – explicou Leonardo recolocando seus óculos escuros.
— Eu sei. – contou Otávia fazendo com que Leonardo arqueasse uma sobrancelha. – Ele estava comigo.
— Hum… vamos chamar o pirralho então. – Leonardo pulou da máquina de xérox fazendo-a tremer.
Imediatamente o jovem mendigo olhou para trás, em busca do autor do movimento. O fantasma foi até uma porta na extremidade sul da sala e fez com que ela se fechasse e se abrisse duas vezes. Um sinal ao qual o jovem já havia se acostumado. Ele saiu de perto do balde flamejante e passou pela porta que Leonardo abrira, assim chegando a escadas largas com corrimões enferrujados, os quais Leonardo fazia tremer de minuto a minuto, guiando o jovem indigente através do som até que chegassem a uma porta do terceiro andar.
O menino já sabia para onde deveria ir. Ele entrou no terceiro andar e seguiu por um corredor sujo até chegar à pequena sala com desenhos rabiscados na parede. Um retrato dos fantasmas do lugar.
— Qual? – perguntou o jovem esticando a mão em direção à parede rabiscada.
Leonardo então tocou em seus dedos e os guiou até o desenho de um menino baixo e gordinho.
— Certo. – assentiu o garoto, tirando uma vela e um isqueiro dos bolsos. – Vou chamá-lo.
Ele levantou uma pequena chama faiscada, queimando a base da vela e prendendo-a ao chão antes de acender seu pavio. Então o mendigo se ajoelhou e fechou as mãos como se fosse fazer uma oração para enfim dizer sua prece:
— Marcus dá um pulo. Marcus dá um pulo. Marcus… dá… um pulo…
A vela se apagou, e calafrios percorreram o corpo do jovem indigente indicando a presença ausente de quem invocara. Estava diante de Marcus, e mesmo sem poder vê-lo, sentia sua respiração falsa e cadavérica.
— Por favor… - tremulou o mendigo. – Vai me dar um sonho bom? Um com… comida?
— Vou. – sussurrou Leonardo ao ouvido do jovem. – Não se preocupe. Não vai sentir fome esta noite.
— Outro sonho com comida? – criticou Marcus observando o jovem. – Desse jeito ele vai acabar se juntando a nós de verdade.
— Já imaginou o Maquinista como fantasma? Vai fazer todo mundo se cagar. – brincou Leonardo voltando às escadas com Marcus.
— E vai comer a merda de tanta fome. – complementou Marcus. – Mas enfim, por que me chamaram? O novato conseguiu voltar para cá?
— Não. – chegaram ao salão maior. – Acho que a Otávia pode explicar melhor.
Otávia baixou a cabeça ao ver os amigos entrando no cômodo.
— O que você sabe? – perguntou-lhe Marcus.
— Charles está com o amigo. Parece que Nepecrapto o fez achar que o Solstício de Inverno era hoje. – explicou. – Ele achou que pudesse ser visto.
— Ingênuo. – comentou Leonardo cruzando os braços fortes.
— Ele não tem culpa. É aquele maldito… temos que nos livrar dele. – Otávia defendeu.
— Não podemos mexer com os tutores. Você sabe muito bem disso. – relembrou Marcus.
— É. O dono deles não ia gostar nem um pouco.
— E não é como se tivéssemos poder pra isso. Ainda mais quando se trata de Nepecrapto. Não. Isso está fora de questão. Tudo que podemos fazer é não o deixar sozinho. – propôs Marcus. – Tutores não aparecem quando não estamos sós.
— “Geralmente”. – ressaltou Otávia. – Mas ele não vai querer vir pra cá agora. O amigo tinha um tabuleiro ouija.
A velha que até então estava imóvel começou a puxar os cabelos e fazer uma expressão muda de gritos.
— Esse garoto… - riu Leonardo tirando os óculos para limpá-los. – Nunca vi um novato fazer tanta merda no primeiro mês.
— Pois nós vimos. – resmungou Marcus ironizando-o com o olhar. – Isso não é bom. Não é à toa que esses jogos quase nunca funcionam. Exigem energia demais de nós, e quando não temos o suficiente…
A Velha cobriu o rosto com as mãos como se estivesse com medo ou chorando.

—… L… I… Z… - leu Heitor vendo a garrafa se mexer independentemente da vontade de sua mão que a segurava. – Eu também estou. – disse com um sorriso nostálgico.
Do outro lado do mundo, na dimensão morta, a mão de Charles segurava a mesma garrafa e guiava seus movimentos traçando uma conversa sobre a madeira do tabuleiro. Sempre vira esse jogo como algo imbecil e nada assustador, uma estratégia fraca de filmes de terror que nunca impressionava ninguém. Agora que o experimentava de uma perspectiva diferente, entendia que aquilo realmente não era para ser assustador, mas sim esperançoso. Pequenos momentos de felicidade entoados letra a letra.
Porém, não era exatamente assim que Heitor se sentia. Charles estava ciente de que a felicidade viva afastava os mortos, portanto, não poderia estar ali se fosse o caso. Seu amigo ainda estava muito embriagado e sob o efeito retardatário dos cigarros que fumara. Talvez nem estivesse consciente de aquele jogo era real, talvez imaginasse que fosse tudo uma alucinação, um sonho saudoso. E mesmo que não fosse assim, Heitor não podia vê-lo. Talvez o estivesse machucando ainda mais. Talvez…
— Eu… eu sinto muito, Charles. Eu… não devia ter te abraçado. É minha culpa. – despejou sua confissão acompanhada de suas lágrimas.
— Não é culpa de nenhum de nós. – disse Charles sabendo que não poderia ser ouvido. – Nunca foi.
O menino fantasma se concentrou e forçou a garrafa a se mover da letra Z para letra R, partindo para mais outras cinco letras até soletrar “RELAXA”. Depois repetiu o processo e com muito esforço formou as palavras “VOCÊ” e “INOCENTE”.
— Não acho. Mas tudo bem. Não vou discutir com você. Não hoje. – Heitor limpou as lágrimas dos olhos. – Sinto sua falta.
Charles tentou soletrar “TAMBÉM”, mas não conseguiu passar do “M”, estava muito cansado para isso. Sentia-se como uma lanterna, falhando em sua tarefa à medida em que sua energia se esgotava. Ainda assim, seu amigo entendera a mensagem.
— Você está sozinho? Esteve aqui esse tempo todo? Está “bem”?
Como eram perguntas que exigiam apenas uma confirmação, o fantasma conseguiu respondê-las movendo a garrafa de “SIM” para “NÃO” e novamente para a primeira opção. Porém, a última resposta era quase uma mentira. Não estava nada bem. Estivera deprimido até aquela noite, quase cometera algo imperdoável, sofrera ferimentos em sua própria alma e sua visão tremulava minuto sim, minuto não.
— Queria vê-lo… tenho tanta coisa pra perguntar… pra dizer. – Heitor fitou o nada a sua frente, esperando estar olhando para Charles. – Você não vai embora, vai?
— Não quero. Mas não sei se consigo ficar. – respondeu Charles movendo a garrafa para “NÃO” e depois para a letra “S”, como se dissesse “não sei”.
— Espero que fique. Nada é a mesma coisa sem você. – disse quase em um sussurro. – Seria melhor se eu tivesse morrido junto.
— Claro que não, seu imbecil! Não seja idiota! Não faça nenhuma besteira! – Charles voltou a garrafa rapidamente para a palavra “NÃO”, fazendo com que a garrafa tremesse sobre ela.
Depois forçou a garrafa a soletrar PAIS.
— Meus pais estão um saco. Não me deixam fazer nada. Mas acho que não posso culpá-los.
“LAIZA” – soletrou Charles.
— Não temos nos falado muito. Não depois do seu funeral. – Heitor sorriu cabisbaixo. – Nossa, que coisa estranha de falar. Você estava lá?
Charles queria responder que sim, continuar a sua conversa de madeira, mas sentia-se arder em uma febre cruel. A mesma sensação que tivera ao ouvir seu irmão rindo. Logo, logo, seu tempo acabaria, e havia algo que ele queria perguntar. Então com a paupérrima força que ainda lhe restava soletrou: “OTÁVIA”.
Heitor franziu o cenho em confusão. Então arqueou as sobrancelhas com a chegada de um esclarecimento.
— Távi… ela, ela está com você? – perguntou olhando ao redor em busca de Otávia. – Estão juntos agora? Ela pode falar também?
— Eu quero saber… quem ela é… - disse Charles sentindo seus olhos pesarem mais do que chumbo.
A febre ácida que o acometia começou a dissolver seu corpo fantasmagórico, desmantelando a pele e a carne em farelos de fumaça seca. Entretanto, desta vez, Charles não sentia dor, não era a alegria que o queimava e não possuía forças para dar à agonia.
— Não… - sussurrou ao ver-se desaparecendo. – Heitor…
Ele soltou a garrafa e tentou tocá-lo, mas seus dedos tornaram-se parte da névoa.
— Charles? Você está aqui? Por que não responde? – questionava Heitor desesperado, vasculhando o ar com seus olhos. – Charles?!! CHARLES!
O som de seus chamados esvaneceu juntamente com Charles, ambos enterrando suas existências em lembranças inebriadas. Não havia mais corpo ou alma, apenas um nada albino e ofuscante. Estava afundando em um oceano de luz que transformava qualquer pensamento ou ação em bolhas, as quais emergiam para longe da mente em tempo veloz. Ali, os minutos confundiam-se com os milênios, e antes que um único segundo de fato encontrasse seu sucessor, algo surgira na imensidão.
Como um balão que perdia seu ar, pouco a pouco Charles via o chão se aproximar. O que antes era uma tela vazia agora era tingido com pinceladas de cor. Primeiro o mórbido preto, sangrando suas trevas sobre quatro paredes imensas de madeira. Depois o celeste anil, alagando o terreno com um extenso lençol ondulado, um lago de tecido. Tangenciando seu perímetro interior havia dois jardins de flores rosadas e brancas que se encontravam em dois pontos opostos. Em seu centro erguia-se sobre altos alicerces de madeira negra um altar feito do mesmo material, sobre o qual se deitava um corpo de terno com claros cabelos encaracolados. E ao seu lado o fantasma de Charles reapareceu.
Charles ainda não entendia muito sobre o mundo no qual fora cuspido após ser mastigado pela morte, mas podia palpitar que aquele lugar de alguma forma era seu leito final, o interior de seu caixão.
— Um necrotério… - disse a si mesmo lembrando-se do que Marcus havia falado sobre seus caixões serem um tipo de “lugar morto”.
Ele olhou para seus arredores e para si mesmo. Estava novamente com as roupas que morrera, cobertas de sangue. O altar parecia ter uma camada de vidro por cima, e toda vez em que Charles dava um passo, uma foto de algum momento de sua vida se abria no altar, como em uma tela de celular sensível ao toque. Ele caminhou observando o retrato de seus primeiros passos, seguido por imagens do nascimento de seu irmão, e da morte da sua primeira madrasta. Fotos nunca realmente tiradas. Caminhou até que o barulho de passos alheios aos seus próprios alcançou seus ouvidos.
— Bela foto. – disse Otávia subindo uma escada que se espiralava até o topo do altar.
Charles olhou para baixo e viu uma foto sua e de Heitor em um parquinho, eles abraçavam as pernas de alguém em uma época em que eram apenas crianças.
— Não me lembro desse dia. – disse Charles franzindo o cenho.
— Eu sei. – comentou Otávia. – Tem que ter mais cuidado, Charles. Vai acabar se… bem, vai acabar pior do que estamos agora.
— Por que não me disse? – questionou Charles fazendo com que a foto mudasse com um novo passo. – Sobre esse lugar, e o que aconteceria se eu continuasse com Heitor.
— Sinceramente, eu achei que você fosse durar mais tempo lá. Preferi deixar vocês conversando enquanto podiam, e depois eu iria buscá-lo. Mas…
— Eu fui mais fraco do que você achava. – completou.
— Sim. Não estou querendo te ofender, um dia atrás você quase foi devorado por um Curumim. Eu deveria ter imaginado que não estava tão bem assim. Me desculpe.
— Não se preocupe com isso. Eu sei que eu sou inconsequente. É só que… - respirou fundo. – Achei que ele me veria.
— O Solstício de Inverno acontece em vinte e um de junho. Estamos muito longe disso. E não é tão simples assim. Se os mortos pudessem aparecer sem mais nem menos nesse dia, não acha que o mundo já teria notado? – indagou. – Tem que ter cuidado, Charles. Muito cuidado. Principalmente com Nepecrapto.
— Você parece saber muito sobre ele. E eu ainda não entendi o porquê de você estar na casa do Heitor. Quando vai me contar isso tudo? Pretende me contar alguma coisa pelo menos?
— Tudo ao seu tempo. Mas não se preocupe em relação a Heitor. Eu acho que não vou mais vê-lo.
Charles arregalou os olhos.
— Eu não… não estou preocupado com isso. Não viaja. – retrucou. – É só que eu não sei quem você é, e ele parece que sabe. Perguntei de você e ele te chamou de “Távi”. Vocês se conheciam?
— Isso é meio óbvio, não? Enfim, depois eu explico isso melhor, não é nada demais. Agora temos que ir embora daqui.
— Por quê? O que tem de errado em ficar aqui? O que é aqui afinal?
— Nossos caixões são necrotérios, como falamos a você antes. É um templo, nesse caso o seu templo. Nós não podemos morrer de novo, então quando perdemos nossa forma voltamos para perto de nossos corpos.
— E se eu não tivesse mais um caixão? No Brasil só ficamos enterrados por três anos.
— Charles, eu não tenho tempo para ficar explicando essas coisas. Vamos embora. – insistiu Otávia começando a descer os degraus da escada espiralada.
— Achei que aqui fosse seguro. – comentou descendo atrás dela.
— É seguro. Mas não é bom para um fantasma ficar sozinho e cercado por memórias de uma vida que nunca mais vai ter. Não é saudável ficar aqui. Ainda mais para você. – ela cutucou seu peito no local de sua marca.
Charles estava cansado de tantos segredos, mas sabia que Otávia continuaria evasiva até que voltassem ao prédio abandonado. Além do mais, se ela se recusasse a falar, bastava retornar a casa de Heitor quando estivesse mais forte e então pedir explicações a ele.
Os dois desceram a escada espiralada até chegar ao fundo do Templo de Charles. O chão era coberto por um lençol azul, porém, essa era apenas a superfície de uma imensa piscina gelada que se abria como gelatina ao mais leve toque.
— Você deve gostar muito de flores. – comentou Otávia observando altos crisântemos rosa e lírios brancos nas margens da piscina. – Muito mesmo.
— Não vou nem tentar negar. – sorriu Charles seguindo-a pela água. – Pena que não podemos ficar muito tempo aqui. Achei tão bonito. Mas tudo parece ser perigoso. Nunca me senti tão ameaçado quando estava vivo.
— E morreu aos dezesseis anos a algumas quadras da sua casa. – ironizou. – Alguns fantasmas duram milhares de vezes mais do que isso. Não faz mal estar alerta.
Depois de alguns minutos, os dois falecidos chegaram a um dos dois pontos onde os jardins se encontravam. O espaço entre as flores emoldurava uma porta de cristal com um beiral negro de madeira. Nela estava escrita:
Charles Correia
22/07/2000 – 15/10/2016
Adorado filho, inestimável amigo e idolatrado irmão.
“Se eu morrer jovem, deite-me em uma cama de rosas. Mande-me embora com as palavras de uma música de amor”.

— Você está dançando. – riu Charles ao ver que Otávia dava pequenos meio-giros enquanto lia o epitáfio.
— Gosto dessa música. – sorriu. – Você tem uma boa família.
— É. Eu tinha.
O menino baixou o olhar, tomado por uma melancolia perigosa que fizera a marca em seu peito ficar pesada. Realmente não era saudável ficar ali, por mais bonito que fosse. Era hora de ir. Tornou sua postura ereta e encarou o epitáfio na porta com coragem, mas foi surpreendido por algo novo brilhando atrás de suas palavras.
— O que é isso? – perguntou Charles apontando para a porta.
O terror entalhou cada traço arqueado que agora compunha a face de Otávia.
— Um agouro… – sussurrou incrédula.
Atrás da porta de vidro havia uma pomba feita de chamas brancas, trazendo consigo um presságio de guerra.


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Notas finais do capítulo

Se você gostou por favor me deixe saber para que eu continue motivado a escrever esta história. Até o próximo capítulo!



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