Deus dos Erros escrita por Dramoro


Capítulo 3
A Marca dos Divididos


Notas iniciais do capítulo

Helo people! Meu nome é Vinícius Dramoro e eu sou escritor amador de terror fantástico. Vou deixar semanalmente capítulos deste original por aqui. Espero que gostem!



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Dedo por dedo, tom por tom, e cada pensamento. Todos banhados em ácido, corroendo-se no esvanecer. Mesmo a após a morte, o medo não só se fazia presente, mas também não deixava espaço para nenhuma outra emoção. Charles olhou ao redor, procurando em desespero por Nepecrapto, mas o crápula não estava lá. Havia o abandonado. Assim como todos os outros. Pior que todos os outros.
O menino ofegou e tentou correr para fora da casa, mas assim que pisou no chão sua perna esquerda se esmigalhou, dando luz a centena de cacos pálidos que evaporavam logo após o parto. Berrou com a sensação lancinante. Sabia que não possuía um corpo, que tudo aquilo era apenas uma projeção de sua mente, mas a dor de desaparecer, o sofrimento de ser esquecido era mais insuportável do que qualquer tipo de male físico.
— Não… - balbuciou Charles vendo seu braço esquerdo e seu pé direito começarem a se destruir.
Estava tão perto da porta… talvez conseguisse se arrastar e fugir. Mas era isso que queria? Aquela era sua casa. Era um morador tanto quanto os outros. Por que então Charles teria de fugir? Podiam ter começado a esquecê-lo, mas ele ainda estava ali. Não permitiria… não, não permitiria… Uma nova emoção chegava ao mundo de seu coração. Mais ácida que a alegria dos vivos, mas quente que as chamas do Sol, e ao mesmo tempo gélida como um cadáver podre.
— Não… - repetia Charles focando seu olhar como uma mira de arma. – Não… não… NÃO!!!
Como se o tempo voltasse, traços de fumaça saíram do chão e juntos reformaram seu corpo de fantasma. A ardência dos risos ainda estava em seu ser, como peçonha nas veias, porém, não era o único veneno. Algo rasgou sua imagem de dentro para fora, dilacerando uma pequena parte de seu peito esquerdo com uma luz índigo escura. Mas não importava. O menino não desviaria seus olhos agora. Não. Agora ele iria ser lembrado.
— Esta é minha casa… - disse Charles olhando para Ágata. – Minha casa. MINHA!!!
Então a imagem em preto e branco de um homem de chapéu e bigode em uma fábrica tomou lugar na tela da televisão, poucos segundos antes que a mesma queimasse em estática.
As risadas pararam. Não havia mais graça. Ágata ofegava e segurava a mão de Fábio, o choque estampado em seus claros olhos castanhos.
— Cara… o que foi isso? – perguntou alarmada.
— Deve ter dado problema no sinal. – disse Fábio calmo, mas sem tirar os olhos da estática.
O garoto havia sido afetado de outra forma, não estava com medo ou assustado, mas intrigado. Não se importara muito com a estática, mas com a imagem que a precedeu.
— Eu acho que eu vi o Charles Chaplin… - disse Fábio.
Ele e Ágata ficaram parados olhando para televisão por um momento, então Fábio balançou a cabeça e disse.
— É. Deve ser mesmo um problema de sinal. Trocou até o canal. – constatou.
— Eu acho melhor eu ir agora. – disse Ágata claramente ainda impressionada. – Não me sinto muito bem.
— Tudo bem. Eu levo você.
As crianças saíram da casa sem mais delongas, deixando Charles sozinho e a salvo finalmente. A raiva em seu coração aos poucos se aquietava, mas a profundidade da dor em seu peito esquerdo permanecera acordada. O menino ofegou cansado com o esforço e olhou para baixo.
— O quê…? – disse a si mesmo.
Ele esticou a blusa para frente e viu uma marca delineada em sua pele. Um círculo acompanhado por um traço fino, longo e triangular no topo, e por uma semicircunferência aberta na base.

— Muito bem. – disse Nepecrapto apoiando sua bengala próxima ao rosto de Charles. – Bela tatuagem.
— O que é isso? – perguntou Charles tentando se sentar com dificuldade.
— Isso é um “esquizograma”. Existem treze deles e apenas os fantasmas que não conseguem se desapegar dos vivos os recebem. – explicou Nepecrapto. – Tenha muito cuidado.
— Por quê? O que isso faz? E por que comecei a desaparecer? – questionou.
— Eu disse que a morte não pode viver. A alegria e felicidade dos vivos são inóspitas para nós. Quanto à marca… bem, você logo vai descobrir o que ela faz.
— Mas você… - tentou dizer Charles, mas a imagem de Nepecrapto começara a se fundir com as sombras da casa.
— É uma pena… realmente é… - então desapareceu.
Charles permaneceu sentado no chão da cozinha, refletindo sobre tudo que acontecera, até que Fábio retornou a casa. Ele havia dito seu nome. Charles Chaplin obviamente não era ele, mas era seu nome. De alguma forma, em meio ao desespero e a raiva, Charles havia encontrado um jeito de ser lembrado.
Aquele dia havia chegado ao fim, e mais uma vez Charles passara a noite ao lado do irmão. Sempre que o garoto dormia, um símbolo se iluminava como luz negra na parede. Tinha a forma de um pegador de sonhos verde com três pingentes de penas. Era sempre incandescente e forte, mas naquela noite sua luz estava um pouco mais fraca, e um de seus pingentes havia desaparecido, seja lá o que isso significava. Mas uma coisa era certa, Charles fizera contato, interagira com o mundo dos vivos. Não pararia agora.

Fábio acordara no dia seguinte com uma surpreendente sensação de paz. Durante várias noites fora atormentado com pesadelos violentos. Mas não naquela noite. Desta vez sonhara com seu irmão: uma cena ainda fresca em sua mente de Charles sentado ao seu lado tirando fotos enquanto Fábio dormia. Era uma ideia reconfortante, sempre se sentira bem perto do irmão, sempre. Diziam que, quando era um bebê tinha um choro forte e terrível, a única coisa capaz de apaziguá-lo era o colo de seu irmão.
Fábio sorriu ao pensar naquilo, mas então se lembrou de que Charles não estivera mesmo ali. Seu irmão estava preso a máquinas em um quarto de hospital e era quase certo que nunca mais acordaria. Um fato que azedaria qualquer sonho ou lembrança boa que tivesse com Charles.
Seu sorriso faleceu em uma única lágrima.
— Chega! – disse a si mesmo esfregando os olhos, não iria passar outra manhã chorando.
Levantou-se, escovou os dentes, tomou banho e trocou de roupa. Quando foi até a cozinha, percebeu que não havia nada posto sobre a mesa, e provavelmente não haveria, não pela vontade de Júlio. O pai de Fábio demorava muito mais do que ele para levantar, e nem sempre se alimentava pela manhã. Quando o fazia, quase não comia ou falava e estava evidentemente ficando mais magro. “Charles nunca deixaria o Pai ficar assim” – pensou Fábio.
Resolveu então preparar o desjejum. Pegou duas tigelas brancas e colocou na mesa após enchê-las de leite e cerais redondos de chocolate. Fez duas torradas amanteigadas para cada um e as deixou ao lado das tigelas. Não era muito bom em cozinhar, então refizera as torradas até que ficassem perfeitamente douradas.
— Pai? – chamou Fábio batendo na porta do quarto de Júlio. – Eu fiz o café-da-manhã. Vem comer!
O garoto teve de chamá-lo mais algumas vezes até que, enfim, seu pai abrisse a porta. Ele estava vestido apenas com calças de correr e tinha olheiras escuras e profundas. Saiu de seu quarto sem dizer uma palavra sequer e demorou muito até chegar à cozinha. Fábio podia ver que ele estava tentando. Tentando por Fábio.
— O que é isso? – perguntou Júlio parado na saída do corredor que dava para cozinha.
— Cereais e torrada… você não gosta? – perguntou Fábio franzindo o cenho.
Júlio suspirou e olhou de forma intensa para o garoto, a decepção nítida em seu rosto.
— Nunca mais faça isso. – resmungou seriamente enquanto voltava para o seu quarto.
— Mas o que eu fiz? – perguntou triste e espantado. – Ué…?
Sem entender nada, Fábio virou-se para cozinha e então arregalou os olhos. Havia uma terceira tigela posta à mesa, e não fora Fábio quem a colocara lá.
— O quê…? – deu um passo para trás.
Não podia ser coincidência… primeiro a televisão, e agora isso. Linha por linha os pensamentos de Fábio teciam uma ideia perigosa.
— Charles…? – disse Fábio olhando ao redor como se seu irmão estivesse ali, mas não via ninguém.
Não via ninguém, porque não havia ninguém, e isso o enfurecia. Ele pegou a tigela extra e a jogou na parede, quebrando parte de sua borda. Então apanhou sua mochila e saiu de casa sem nem tocar na comida que havia preparado.
Mas… e se houvesse alguém? Essa pergunta o acompanhou pelo resto do dia. Pela primeira vez não conseguira se concentrar nas aulas, o que não era de seu feitio. Fora embora para casa sem falar com ninguém, nem mesmo com Ágata. Várias vezes olhou para trás e para os lados durante o caminho. Começara a fazer isso depois que Fátima havia lhe contado como seu irmão havia se machucado, desde então estivera em estado de pânico, sempre imaginando que havia alguém à espreita, mas nunca havia.
Chegando ao portão de casa, viu Fátima se despedindo de Júlio.
— Eu sei que você sente falta dele, mas não faça isso de novo, Fábio. Seu pai ficou muito magoado. – pediu Fátima após lhe dar meia dúzia de sermões sobre segurança.
A visita dela parecia ter animado um pouco seu pai, pois ele estava bem vestido e claramente havia tomado um banho. Até sorrira para Fábio e o abraçara quando o vira. Júlio não havia preparado nada para o jantar, então pedira uma enorme pizza de calabresa.
— Arruma a mesa enquanto eu pego a pizza, tudo bem? – pediu Júlio amavelmente ao ouvir a buzina de uma moto.
— Claro, pai. – concordou Fábio sorrindo.
O menino foi até um armário ao lado da pia e procurou por uma toalha de mesa, mas não havia nenhuma lá. Imaginando que estivessem secando na corda ou algo assim, ele foi até a área da casa e as encontrou jogadas no chão.
— Eu, hein… - disse Fábio recolhendo as toalhas e as arrumando para que pudessem ser guardadas apropriadamente.
Quando retornou à cozinha encontrara o mesmo Júlio da manhã, com um semblante irritado e magoado.
— Por que você fez isso, Fábio? Por quê? – perguntou Júlio com os olhos lacrimejando.
Em cima da mesa estavam dois livros de química abertos. Pertenciam a Charles.
— Não fui eu… - tentou dizer Fábio.
— Eu pedi! Pedi! Você quer tanto me machucar assim?! – vociferou Júlio de maneira trêmula.
O homem deixou a caixa de pizza em cima da pia e saiu da casa.
— Pai… não… - disse Fábio chorando e sem saber o que fazer.
O garoto olhou mais uma vez ao redor, em busca de uma explicação, em busca de…
— Não… Não é ele. – disse Fábio cabisbaixo. – Ele nunca faria… Nunca.
Charles observou enquanto seu irmão corria para seu quarto, batendo a porta com raiva. Não importava o que fizesse, os sinais que deixasse, eles não acreditavam… estavam sempre tristes, como se esquecê-lo e superá-lo fosse a única coisa capaz de fazê-los felizes. Queriam esquecê-lo, viver sem ele.
— Mas não vão. – disse Charles enquanto veias escuras saltavam em seu pescoço, avançando cada vez mais pelo seu corpo.
Naquela noite ele visitou seu irmão mais uma vez. Fábio havia se enfiado debaixo de duas cobertas, mesmo não estando frio, e chorara silenciosamente até ser engolido por um sono cansado e melancólico. Charles olhou para parede próxima à cama, o símbolo do pegador de sonhos mais uma vez apareceu. Sua luz era tão fraca que quase não existia e restava apenas um pingente de pena. Charles aproximou o rosto do de seu irmão, então o terceiro pingente se apagou.
O mundo ao seu redor derreteu em tons de verde, amarelo e branco. Um corredor tomara o lugar do quarto de Fábio e agora o menino estava sentado em um banco de madeira do corredor da escola. Era seis anos mais novo do que era agora, e seus pés não alcançavam o chão. Seu pai havia se esquecido de pegá-lo na escola, ou era isso que Binho achava naquela, mas não havia problema. Charles havia chegado e cuidaria dele agora.
No fundo do corredor, distante e ao longe seu irmão sorria. Era muito mais velho do que deveria ser naquela época, mas não fazia diferença, ainda era Charles, o sonho ainda era bom.
— Vamos! – chamou Charles mostrando o caminho.
Fábio saltou do banco e começou a segui-lo, mas a cada passo que dava, mais distantes ficavam um do outro.
— Vamos, Binho! Estou te esperando! – disse Charles perto da porta de saída. – Venha!
Então Fábio começou a correr, não iria deixar que seu irmão fosse embora sem ele.
— Me espera… - sussurrou Fábio abrindo saindo pelo portão de casa.
Seus olhos estavam abertos para superfície do mundo, mas sua mente ainda estava imersa em seu doce sonho.
— Vamos Binho… Não quer vir comigo? – sussurrou Charles ao seu ouvido enquanto caminhava ao seu lado.
— Eu quero… eu quero… me espera… - repetia Fábio.
Então finalmente alcançou seu irmão, chegando à porta de saída da escola. Charles afagou seus cabelos e lhe deu um abraço. O verdadeiro fantasma sorria parado ao seu lado em um ponto de ônibus. Aquele ponto de ônibus, onde saíra de sua própria vida.
— Só mais um passo… vamos… - sussurrou Charles vendo um carro vindo em alta velocidade. – Vamos, Binho… Vamos para casa. Juntos.
— Vamos. – repetiu Fábio com a mão levantada como se estivesse sendo guiado.
Sua perna se levantou, mais um passo e estaria com seu irmão, só mais um passo, então…
— Binho? – chamou alguém.
Apenas uma pessoa chamava o irmão de Charles daquele jeito além do próprio Charles.
— Heitor? – disse Charles ao ver o menino se aproximando ao lado de uma garota alta e muita magra.
Vê-lo ali vivo e se recuperando era mais surreal do que a própria morte. Fábio caíra no chão e o carro passara ao seu lado sem atingi-lo. A conexão entre os irmão havia acabado.
— Binho! Fábio?! – chamou Heitor eliminando rapidamente a distância entre os dois.
Ele agarrou Fábio e o sentou no banco do ponto de ônibus. Fábio acordou desnorteado, demorando vários minutos para entender onde estava.
— O que você estava fazendo aqui a essa hora da noite? – perguntou Heitor abalado. – Você quase foi atropelado, seu imbecil!
— Eu… eu… estava seguindo Charles. Ele… estava me chamando. – contou Fábio confuso.
— É verdade? – perguntou outro alguém. – Você realmente ia fazer isso?
Charles olhou para frente e viu a menina que andava ao lado de Heitor. Ela estava olhando para Charles, podia vê-lo.
— Não use isso. – disse a menina apontando para o peito do fantasma. – Não com eles. Não com quem você ama.
O garoto olhou novamente para a marca em seu peito, dela surgiam várias veias enegrecidas que pouco a pouco começavam a clarear, assim como seus pensamentos. Charles finalmente entendeu o que havia tentado fazer naquela noite. Nunca em vida ou em morte sentira tanta dor. Ele não sabia quem era a garota, ou o porquê de ela poder vê-lo, e naquele momento não se importava. Achou a névoa nas ruas e mergulhou nelas, criando um caminho para o lugar do qual nunca deveria ter saído.
— Já de volta? – perguntou Nepecrapto parado do lado da porta do quarto hospitalar. – O que aconteceu?
Charles o ignorou e passou pela porta com tanta velocidade que a fez tremer. Estava tão revoltado que se sentia capaz de explodi-la. Precisava acordar, precisava voltar. Acordaria! Voltaria! Mas quando entrou no quarto sua raiva foi barrada. Júlio estava de joelhos ao lado do leito segurando sua mão.
— Filho… por favor, acorda. Por que você não acorda? – chorava seu pai.
As veias da marca regrediram completamente. Charles sabia o que tinha que fazer. Ele se aproximou de seu corpo e os aparelhos ligados a ele começaram um único e eterno apito.


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Notas finais do capítulo

Se você gostou por favor me deixe saber para que eu continue motivado a escrever esta história. Até o próximo capítulo!



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