Solitude escrita por Lillac


Capítulo 1
Acreditar




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Quando Percy pensava em apocalipses zumbis, honestamente, não pareciam tão ruins. Ele pensava em séries e filmes, desenhos animados e histórias em quadrinhos. Claro, haviam os momentos tristes nessas histórias também — como aquela morte mais recente na última temporada de The Walking Dead, ou aquela policial no penúltimo arco de Highschool Of The Dead (embora ele não tivesse tanta certeza assim de quantas pessoas haviam de fato lido o mangá. Ou o levado a sério, na verdade) —, mas, na maior parte do tempo, as histórias giravam em torno de sequências de ação incríveis e impecáveis, armamentos pesados, a necessidade do trabalho em equipe e longos monólogos sobre a essência humana e o que os diferenciava daqueles monstros irracionais.

Se fosse ainda mais otimista, poderia até pensar em um épico e — questionavelmente genuíno — romance, que nem em Sangue Quente (sim, ele havia lido o livro. E não, ele não ia reconhecer Meu Namorado é um Zumbi como uma adaptação digna).

Percy gostava de ficção, ok?

Bem, o mundo real não era uma ficção. E certamente não havia nada de fictício em assistir enquanto Will desesperadamente tentava desinfecionar o corte de cinco centímetros de profundidade no braço de Connor com os últimos farrapos de gaze que haviam conseguido pegar da enfermaria antes de toda a ala oeste da escola ser ocupada.

Will era a imagem do desespero, honestamente. Seus dedos tremiam, calejados e doloridos. Restos de sangue seco e pele acumulando-se por baixo das unhas. Havia uma mistura nojenta de saliva, fuligem e suor grudada em seu rosto, de poucos minutos atrás, quando a equipe de Piper retornara da fornalha com uma Thalia semiconsciente sendo trazida por cima do ombro de Luke — o outro ombro claramente deslocado — e Piper basicamente expelira o que parecia ser um estoque dois meses de cinzas na cara dele.

As coisas estavam ficando difíceis, para dizer simplesmente. E Will não era exatamente uma boa representação de limpeza hospitalar.

Percy ajoelhou-se ao lado dele no chão puído e fedorento. Estavam todos abarrotados no que havia, dois três atrás, sido o auditório da escola. Ficava no terceiro andar, então era mais fácil de manter os... céus, zumbis longe. Haviam feito uma barricada com mesas, cadeiras, lousas arrancadas de paredes e uma quantidade suspeita de fita isolante.

Leo, o responsável por aquele pequeno pedaço de genialidade, parecera muito satisfeito consigo mesmo no primeiro dia.

Leo estava acordado há 72 horas. Setenta das quais ele passara fazendo remendos na barricada e rezando a todos os deuses que ela não cedesse antes de...

Bem, antes do resgate. Supondo que houvesse um. A caminho.

Lacy Tanaka, meia-irmã mais nova de Piper, aproximou-se dele sem que Percy percebesse. Quando ele notou a garotinha sentada ao lado dele, abraçando sua mochila lilás, quase teve um ataque cardíaco. Seus olhos voaram por ela rapidamente, procurando algum ferimento, mas ele não encontrou nada. Como que lendo os seus pensamentos, Lacy pronunciou-se:

— Eu só queria saber se você está bem...

Percy deixou um sorriso cansado escapar. Com uma mão, afagou o cabelo castanho no topo da cabeça dela, um nó formando em sua garganta. Lacy tinha pouco mais de doze anos. Deveria estar na ala leste, com o resto das crianças do fundamental, quando aquele pesadelo começara. Mas, por um artifício do destino, Silena, a mais velha dos irmãos, havia entrado em uma briga com Thalia mais uma vez, e as duas haviam sido chamadas na diretoria. Afrodite dissera que passaria lá para assinar a advertência, e, como já estava perto do horário de saída, pedira que os filhos esperassem junto com Silena.

Mitchell, Drew, Silena, Piper e Lacy não chegaram a ver a mãe naquele dia. Ou no próximo.

Percy mordeu a parte de dentro da bochecha até sentir o gosto de sangue. Se não fosse por aquilo, Lacy teria...

Lacy teria morrido com todas as crianças do setor leste.

— Percy? — Jason aproximou-se.

— Um minuto — o rapaz mais baixo pediu. Ele virou-se na direção de Lacy e disse: — aqui é a ala médica, ok? Fica ali do outro lado, junto com a Rachel.

“Ala médica...” Percy repetiu para si mesmo, incrédulo. Ele podia malmente chamar aquele lugar de auditório quanto mais tentar achar subdivisões inexistentes ali. Mas não era aquilo que a garota precisa ouvir.

Lacy piscou confusa, mas obedeceu, caminhando até o outro lado. Percy lançou um olhar cúmplice para Rachel, recostada, que costurava vários pedaços de gaze rasgada em uma só bandagem. A ruiva compreendeu, e estendeu um braço para Lacy segurar quando a garotinha se aproximou. Com um suspiro quase derrotado, Percy pôs-se de pé novamente. Jason estava recostado em uma coluna encardida. Ele não parecia nada com o protótipo de galã adolescente que havia sido até três dias atrás. Dois cortes escurecidos ocupavam a extensão de seu antebraço, onde ele havia sido atingido por uma ponta descapelada de um fio de cobre, enquanto corria com Leo e Frank para o auditório, no primeiro dia. Sua camiseta roxa era apenas uma memória do que havia sido um dia, manchada de sangue e rasgada nos ombros. O cabelo na lateral esquerda do seu crânio havia sido cortado o máximo possível, para facilitar o trabalho de Will para costurar o enorme corte que ele adquirira no dia anterior. Ele ainda insistia em usar os óculos, embora uma das lentes estivesse rachada na ponta, e a armação torta. O rosto, suado e oleoso, parecia estar permanentemente contorcido em uma carranca preocupada e ansiosa.

— O que foi?

— Annabeth e Reyna querem falar com a gente. Eu acho que é importante.

Percy limpou a garganta seca.

— Ultimamente, o que não é?

Jason não sorriu, mas permitiu-se um levantar simpático de sobrancelhas.

Eles caminharam juntos, passando por adolescentes e jovens adultos encolhidos nos colchonetes que haviam pegado da sala de dança no segundo andar — a mesma jornada na qual Percy conseguira um olho roxo — tossindo e gemendo de dor, corpos suados e febris. A cena toda fazia com que Percy sentisse-se horrível. Gostaria de poder, de algum modo, fazer mais do que já estava fazendo.

Reyna e Annabeth estavam de pé no único canto recluso e relativamente privado do auditório, onde o estoque de comida era mantido e vigiado: a antiga sala de som. No primeiro dia, eles haviam tentado — e conseguido! — usar o sistema de rádio para se comunicar com a polícia, que dissera que estava caminho.

Percy não gostava de pensar no que poderia ter acontecido.

Percy conhecia Reyna, até certo ponto, antes de toda aquela tragédia. Era a melhor amiga de seu primo, Nico, e às vezes ia com eles à livraria na qual se reuniam para jogar RPG de mesa, embora sempre ficasse em uma poltrona mais afastada, folheando algum livro de filosofia. Ela sempre tivera, na opinião dele, um olhar obstinado e sério, mas os últimos três dias a haviam transformado de maneira sem-igual. O moletom cinzento que ela sempre usava havia sido utilizado no dia anterior para limpar um... acidente envolvendo comida estragada e um adolescente com estômago fraco. Reyna não pareceu se importar — estivera mais preocupada com as consequências que um resto de comida não digerido deixado ali poderia causar à saúde já abalada dos sobreviventes.

Assim como todos os outros, estava coberta de arranhões, roxos e ralados por toda a parte visível de seu corpo. Os braços cruzados em frente ao peito e a expressão dura faziam dela um quadro ainda mais intimidante do que já era antes.

Infelizmente, depois de ver frente-a-frente uma horda de mortos-vivos arrancando pedaços de carne de seus colegas de sala, Percy não conseguia achar muitas outras coisas assustadoras.

Ele sentia falta, embora não houvesse se passado nem uma semana, de como a vida era antes.

Annabeth era o melhor exemplo disso. Eles não eram amigos, mas possuíam um pacto de mútua implicância que perdurava desde o fundamental. Era um jogo engraçado para os amigos de ambos: Percy era bom em comentários sarcásticos, enquanto Annabeth era capaz de destruir verbalmente qualquer argumento que ele pudesse usar.

Três dias atrás, ele estaria fazendo alguma observação desnecessária sobre alguma coisa boba, como um resto de molho de macarrão no rosto dela, e ela retrucaria com alguma opinião assertiva sobre a altura dos jeans de Percy — ou, se estivesse sentindo-se particularmente maléfica, sobre a estampa da cueca dele.

Naquele dia, Annabeth foi direto ao ponto:

— A comida está acabando.

Percy fechou os olhos por apenas um momento, para suspirar, e, quando os abriu novamente, viu uma Annabeth cansada o encarando de volta. Ela não dormia a quase tanto tempo quanto Leo, e possuía olheiras profundas que se estendiam abaixo de seus olhos avermelhados. Ela fizera parte da “tropa” que fora até a fornalha buscar carvão — o inverno em Nova Iorque era rigoroso, e uma das garotas mais nova sofrera de hipotermia no primeiro dia. Com o prédio sem energia, eles não tinham outra opção que não fazer uma fogueira todas as noites.

Percy não pudera ir com eles: havia ido com Jason e Luke até o deposito. O que fora a experiência mais assustadora e derradeira de sua vida. Não haviam sido capazes de retornar com mais do que dois sacos de comida: todos os alimentos frescos haviam apodrecido. Sem falar que... a pessoa responsável pela dispensa não havia sido capaz de fechá-la antes de...

Enfim. O fato é que haviam mais do que um ou dois seres indesejáveis entre os queijos e pães.

Percy não estava surpreso. Haviam cerca de cinquenta pessoas ali. A prioridade era Lacy, e então os feridos, e por fim os relativamente saudáveis. Não era apenas a comida que estava acabando: o suprimento médico que haviam conseguido roubar da enfermaria também.

— E o que nós fazemos? — perguntou.

Annabeth abaixou o olhar.

— Racionamos. Mais ainda. Se diminuirmos a quantidade de comida por pessoa, talvez dure mais dois ou três dias.

— Mas...?

— Mas — ela continuou —com essa quantidade de energia, não seríamos capazes de ir e voltar de nenhum lugar. Só poderíamos ficar aqui e... e esperar.

— Então, basicamente, o nosso plano A? — Jason questionou.

Era verdade. Depois de ver o horror com seus próprios olhos, Percy não estivera mais tão animado assim para fazer parte de uma épica história apocalíptica. Eles haviam planejado reunir o maior número possível de sobreviventes no auditório e aguardar até que o resgate chegasse.

Quando a ficou claro que tal resgate não aconteceria tão cedo assim, Annabeth e Reyna tomaram as rédeas.

— Basicamente. Eu só... — Annabeth fechou os olhos, sua testa enrugando-se enquanto ela pensava. — Eu não sei como falar isso a eles. Nós já não estamos comendo quase nada. Dois garotos do primeiro ano morreram tentando arrastar o bebedouro do segundo andar para cá, e mesmo assim, estamos quase todos desidratados. Como eu posso dizer para eles que as coisas vão ficar ainda piores?

Percy respirou fundo, sem saber o que dizer. Annabeth parecia tão... frustrada. E ele entendia. Porque ele estivera lá quando os dois garotos morreram. Ele entendia como era se sentir responsável pelo sofrimento dos outros, e não poder fazer nada.

— Você não precisa — Jason deu um passo para frente —, eu vou falar com a Piper e com a Silena. Elas podem dar o aviso. Você sabe que elas têm um jeito com esse pessoal.

— Jason, eu... — Annabeth foi interrompida por uma tosse momentânea antes de retomar à sentença: — eu não posso pedir isso delas. É minha responsabilidade.

— Annabeth — ele colocou uma mão no ombro dela — nós estamos todos tentando sobreviver. Não é responsabilidade apenas sua. E nós somos seus amigos.

Annabeth tentou protestar, mas Reyna a interrompeu:

— Eu concordo, na verdade. A Piper vai saber o que dizer. E, se alguém discordar, eu tenho certeza que a Thalia pode dar um jeito neles — ela abriu um pequeno sorriso.

Percy e Annabeth riram em conjunto, mas o pouco fôlego não permitiu que a risada durasse muito. Isso, e outro detalhe. Embora Reyna houvesse dito aquilo como uma piada, e Percy não suspeitasse que a garota fosse tomar alguma atitude imprevista, ele temia, em seu âmago, que aquela situação deplorável mexesse com a cabeça de alguém. Era impossível dizer quando um daqueles adolescente se ergueria e questionaria a liderança delas. E, se isso acontecesse, o que eles fariam?

Isso era, no entanto, uma preocupação para depois. Reyna apertou amigavelmente o braço de Annabeth e disse, para Jason:

— Vamos, eu vou com você. E Annabeth, você deveria descansar. Thalia e Luke estão muito preocupados.

Com isso, eles se retiraram. Assim que a porta foi fechada, Annabeth despencou, apoiando-se na antiga mesa de som. Percy apressou-se para o lado dela.

— Você consegue dormir?

A pergunta parecia aleatória, mas Percy ouviu a indagação por trás dela: os pesadelos deixam? A resposta era simples:

— Não.

Ele olhou para a garota. Annabeth não parecia frágil ou machucada, mesmo quando sua voz soava tão quebradiça e exausta. Ela usou uma mão — a que estava enrolada em uma bandagem, ele notou — para afastar uma mecha de cabelo loiro do rosto e perguntou, sem olhar para ele:

— Você acha que nós vamos sobreviver?

Percy engoliu em seco, sentindo a garganta áspera. Em um só impulso, ergueu uma mão e apanhou a que ela ainda tinha, pousada sobre a testa. Annabeth enrijeceu por um momento, surpresa, mas, quando ele enlaçou os dedos lânguidos com os calejados dela, a garota relaxou. Com o polegar, ele afagou delicadamente a costa da mão da garota, sentindo o pano maltratado da bandagem sob a sua pele.

— Eu quero acreditar que sim.

Percy achou que o sorriso dela, ali e naquele momento, era razão o suficiente para tentar.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, comentários são sempre apreciados. Até a próxima!



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