Two Shots escrita por wateru


Capítulo 1
First Shot




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Doutor Cullen, salve meu filho. Prometa que irá fazer tudo o que estiver ao seu alcance para mantê-lo vivo, não importa se pelos métodos convencionais ou... Por seu dom especial. O senhor me disse que esperava desde o início por uma chance de provar a si mesmo todas as teorias que vem estudando. Não me deixe ir com essa culpa de não ter ajudado meu próprio filho como deveria. Use sua maldição para o bem. Essas foram as últimas palavras de Elizabeth Masen, morta em 14 de outubro de 1918, no Saint Anthony Hospital, em Chicago/Illinois. Ela foi vítima da gripe espanhola, pandemia que dizimou um quarto da população estadunidense na época.

 

O trecho acima foi extraído do diário de Carlisle Cullen, médico nascido na década de 1640, em Londres, Inglaterra. Filho de um pastor anglicano, tornou-se vampiro em uma das caçadas lideradas por ele a um grupo de “aberrações” nos esgotos londrinos. O interesse pela medicina surgiu da vontade de ajudar as pessoas, utilizando seu estado incomum para aprender mais e aprimorar seu autocontrole, tornando-se diferente até mesmo para a sociedade dos vampiros. O Dr. Carlisle, como é conhecido na sociedade médica, foi um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina em 2025 pelo isolamento do gene mitocondrial responsável pelo “envelhecimento natural” do corpo humano, utilizando o pseudônimo de Adolf Darmenstadt. Outra descoberta importante do Dr. Cullen foi a utilização do agave-azul, matéria prima da tequila, no tratamento da influenza espanhola. Em seus diários, ele narra sua rotina médica e, dentre outras coisas, relata os obstáculos que enfrentou durante o surto da terrível doença em 1918:

 

Como médico, sinto-me de mãos atadas. O mundo foi pego de surpresa, e o momento é o pior possível. Como vampiro, sinto-me omisso. Séculos já se passaram depois do que aconteceu, mas ainda me sinto despreparado. Não posso, simplesmente, transformar todos em vampiros. Não enquanto houver outra escolha. Meus estudos com o agave estão indo bem, mas nada conclusivo, nada que possa realmente ajudar.

(Chicago/Illinois, 15 de outubro de 1918)

 

Seu primeiro contato com o agave-azul (ou agave tequilana) foi na primeira metade do século XIX. Após uma temporada na Itália, Carlisle rumou ao Novo Mundo. Em Jalisco, estado do México, morou durante muito tempo com a tribo tiquila, grupo indígena remanescente dos astecas, que fugiram após a invasão da tropa espanhola de Hernan Cortés, décadas antes:

 

Por sorte, havia aprendido, na Espanha, um pouco do dialeto nahuatl, que os astecas utilizavam. Assim, foi mais fácil aprender sobre sua cultura e sua história, quando tive contato com os nativos. Diziam eles que aquela era Aztlan, o local de onde seus antepassados saíram para povoar o sul mexicano. Após a investida de Cortés, os sobreviventes fugiram, voltando à sua terra de origem, onde seriam esquecidos pela história e voltariam a viver em paz. A tribo manteve todos os rituais e doutrinas de seus ancestrais, sacrificando sangue humano aos deuses e arrancando o coração de qualquer forasteiro que ousasse fazer contato. Talvez por isso essa tribo seja mantida em segredo até hoje.

 

Meu caso foi diferente: fui encontrado em uma caverna próxima à aldeia dos tiquilos. Alguns homens haviam saído para buscar alimento, e meu refúgio ficava próximo a uma nascente. Como aquela região era desértica, locais com água atraíam os nativos. Eu fui encontrado ao amanhecer, enquanto tomava banho. Meu corpo reluzia por causa do sol, e o brilho chamou a atenção de dois índios que faziam a ronda por aquela região. Ao se aproximarem, notei que não eram civilizados, e não tive medo. Rebati o espanto dos dois com uma expressão austera e amigável. Eles chegavam mais perto, parcialmente de cócoras, com os braços abertos, armados com lanças e contemplando a luz no meu rosto. Eu continuava inerte, sem demonstrar hostilidade.

 

Os dois homens pararam a alguns passos de onde eu estava. Lentamente, encostaram as lanças e os rostos no chão. Com a mão esquerda fechada, começaram a esmurrar o solo sincronicamente e repetir um verso cada vez mais rápido: tonatiuh tahtll nanahuatzin, tonatiuh tahtll nanahuatzin, tonatiuh tahtll nanahuatzin... Demorou um pouco até eu entender o que acontecia ali: eles acreditavam que eu era Nanahuatzin, o ser mitológico que, segundo os códices, deu origem ao povo asteca quando se jogou na grande fogueira de Teotihuacán (daí a expressão tonatiuh tahtll – o Pai Sol). Com muita dificuldade para fazê-los me entender, pedi para que me levassem ao lugar onde moravam. Não me espantei quando, ao chegar, todos da aldeia fizeram o mesmo sinal de reverência a mim. Enquanto o sol ia surgindo do horizonte, eu brilhava cada vez mais. Parecia que aquele povo estava, o tempo todo, esperando a minha chegada.

 

Como todo deus asteca, eu fui temido e adorado. Sabia que nunca encostariam um dedo em mim, a não ser que eu negasse minha identidade divina. Me matando ou não – pois tudo seria uma questão de técnica – eu estaria preso àquela tribo eternamente. Mesmo parecendo um tanto desleal alimentar esperanças daquela forma, seria melhor que eu me deixasse levar por um tempo, até saber o que fazer. A embriaguez de ser venerado, no entanto, não permitiu que eu me recordasse de todas as peculiaridades da cultura dos tiquila.

 

Naquele mesmo dia, após a refeição matinal, veio a mim o líder daquelas pessoas. Após fazer a devida reverência, entoou algumas frases confusas, das quais eu entendia apenas algumas palavras soltas, e, à medida que eu tentava compreendê-las, ia ficando mais e mais assustado: deuses, colheita, trabalho, prosperidade, sol, terra, povo, sacrifício... Sangue. Logo surgiu um grupo de 16 homens, trazidos por um sacerdote e amarrados pelos punhos, balbuciando uma oração de louvor a mim (digo, ao deus que eu representava). Aquilo estava prestes a ser um dos espetáculos mais cruéis que eu já assistira em toda a minha vida.

 

Eu, que desde o início busquei uma resposta à minha crise existencial, me perguntando o que poderia ser feito para salvar pessoas ao invés de matá-las, estava presenciando um massacre horrendo. Os guerreiros, um a um, eram colocados em um altar à minha frente, amordaçados e presos a cordas, enquanto o sacerdote amolava a itztli (lâmina de obsidiana) e um assistente despejava um líquido grosso sobre o corpo e a boca do guerreiro. Desta vez, o sacerdote proferia uma oração a Mayáhuel, agradecendo pela grande provisão de maguey naquele ano. Minha cabeça estava confusa, eu tinha a impressão de já ter ouvido essas palavras antes, mas não me lembrava do seu significado. Meus pensamentos foram interrompidos com um grito agudo. O homem deitado no altar à minha frente teria o coração removido em poucos segundos, e aquele órgão, ainda pulsante, seria oferecido a mim. Foi quando eu me lembrei de tudo: aquilo era o sacrifício do pulque.

 

Já havia lido, na Europa, sobre Mayáhuel, a deusa da embriaguez. Diz a lenda que ela desceu à terra para ser possuída pelo deus Quetzalcóatl, na forma de ramas de uma planta bifurcada. Sua avó, um demônio antigo, foi até onde Mayáhuel estava e despedaçou a planta na qual ela havia se transformado. Quetzalcóatl, com remorso por ter sido o causador daquilo, enterrou as ramas restantes no chão, e daí nasceu a maguey – chamada pelos europeus de agave (a matéria-prima da tequila). A partir disso, as pessoas passaram a oferecer o pulque (bebida fermentada de agave) como sacrifício aos deuses. Tantas coisas iam passando em minha cabeça, naquele momento, que eu acabei não notando a retirada do sétimo corpo de cima do altar. O cheiro de sangue misturou-se aos meus pensamentos, e tudo pareceu acontecer muito rápido.

 

Lembro-me de conversar com alguns colonizadores que estavam acabando de voltar à Espanha com novidades do continente recém-descoberto: a mais inusitada era uma bebida chamada pelos espanhóis de aguamiel (por seu sabor adocicado). Muitas décadas já tinham se passado, quando foi divulgada uma técnica de destilação do mexcalmetl – que era como os índios chamavam a agave tequilana. Daí, surgiu o vinho de mezcal. Mais algumas destilações, e surgiria a tequila, batizada em homenagem à cidade na qual se iniciou seu processo de produção. Para aquela tribo tão abraçada aos costumes, ela ainda era a bebida dos deuses. E eu, por enquanto, não tinha o direito de recusar uma oferta. Afinal, eu era um deus.

 

Não demorou muito para que eu aprendesse o dialeto nahuatl por completo e me sentisse mais à vontade para falar com o povo. Meu primeiro decreto foi que acabassem os sacrifícios humanos. O sacerdote ainda me interpelou, alegando que a água preciosa era o combustível para que o sol pudesse nascer todos os dias, era ele que garantia a fartura nas colheitas e fazia a engrenagem do mundo funcionar. Mas eu já havia pensado em tudo. Disse, com a voz impostada e convicta, que os deuses agradeciam e aceitavam de bom grado todas aquelas oferendas, mas havia um sacrifício muito mais eficaz, e que deixaria os deuses muito mais felizes: ofertas de tomatl, hoje conhecido pelo mundo como tomate.

 

Lembrei-me que meus estudos na Itália apontaram essa região como a origem da produção agrícola do tomate. Sabia que, por lá, havia muitos, e, aproveitando-me da cor vermelho-sangue de seus frutos, notei que aquela era a decisão perfeita a ser tomada. O sacerdote, então, tomou minhas palavras como verdadeiras e transmitiu instruções ao povo. Percebi que aquela seria uma nova página na história dos tiquilos. Após vir para a cidade, algum tempo depois, lembrei-me dessa inusitada idéia e criei uma bebida à base de tequila e suco de tomate em homenagem a esse episódio – bebida essa que, hoje, é bastante apreciada em Jalisco: chama-se sangrita. Nada mais oportuno.

(Tequila*/Jalisco, 15 de junho de 1874)

 

*Após a convivência com os tiquilos por algumas décadas, Carlisle passou algum tempo em Tequila – cujo nome foi inspirado na tribo que se situa próxima à cidade. Lá, ele registrou tudo o que havia aprendido com os indígenas durante sua estada. Nessa mesma época, ele iniciou seus trabalhos científicos com medicina alternativa.

 

Os diários do Dr. Cullen não deixam claro o tempo exato em que ele permaneceu na tribo tiquila, mas um estudo aprofundado das anotações permite inferir que ele tenha passado duas gerações (aproximadamente 60 anos) estudando o modo de vida dos nativos, e, principalmente, seus conhecimentos de medicina:

 

A tribo prosperava, já que não havia mais aquele número absurdo de sacrifícios humanos. O povoado dos tiquilos cresceu, mais tarde tomando o porte de uma vila indígena. Não se pode dizer, contudo, que haja uma contribuição significativa do aumento da expectativa de vida, já que meus conhecimentos médicos não adicionaram muita coisa à sabedoria ancestral deles. E eu garanto que aprendi muito mais com eles.

 

Havia um curandeiro excêntrico na vila. Ele vivia rindo, e considerava todas as doenças como um castigo divino, que, entretanto, poderiam ser tratadas com recursos da natureza e um pouco de maguey. Foi por essa obsessão do médico-feiticeiro em tratar tudo com a bebida fermentada que eu me interessei em estudar as supostas propriedades curativas do agave. Eu o analisava, enquanto ele benzia o doente, emitia sons ininteligíveis e procurava conversar com o deus responsável por aquilo. Após o prognóstico, ele enchia uma cuia com aguamiel e misturava com o ingrediente específico: milho, valeriana, raiz de jalapa, salsaparrilha, passiflora, tomate ou sal marinho – esse último me deixou confuso, já que, naquela região, sal era um ingrediente bastante incomum.

 

– De tempos em tempos, os homens mais resistentes da tribo vão ao litoral para buscar sal marinho. Esse é um conhecimento herdado dos nossos tataravós, e, pra falar a verdade, é o único que realmente funciona. Esses outros ingredientes só tem sustância, só são bons pra alimentar mesmo – confessou o curandeiro. Aproveitei a deixa para ensinar o significado da palavra placebo a ele.

 

De fato, minhas pesquisas mais recentes indicaram grandes propriedades curativas no sal marinho, mas, na época, não entendia por que seu uso era o mais difundido no povoado. Quando o benzedor identificava que a doença era um castigo do deus Tlazolteotl, ou seja, uma enfermidade mortal, logo a vítima era tratada com maguey e sal. Em outras ocasiões, tive a oportunidade de testemunhar algumas aplicações da combinação tequila/sal no tratamento de resfriados, inflamações e crises de asma. Os estudos ainda são bastante vagos, visto que o sal possui efeitos colaterais, como o inchaço e o enfraquecimento do corpo. No caso dos tiquilos, como as doses eram bem administradas, não havia reações adversas.

(Tequila/Jalisco, 13 de agosto de 1874)

 

De acordo com os diários do Dr. Cullen, o [relativamente] curto período em que conviveu com a tribo tiquila foi mais produtivo para suas pesquisas médicas do que todo o tempo no qual morou em países como Espanha e Itália. A sabedoria ancestral utilizada pelos selvagens ajudou Carlisle a entender, na prática, preceitos da medicina que ficavam, antes, somente na teoria. No entanto, ele diz, em suas anotações, sentir-se mal por aprender anatomia daquela maneira – vendo corpos desovados sem anestesia; eles possuíam uma destreza cirúrgica e um nível de perfeição impossível de passar despercebido pelos olhares de um médico com dois séculos de profissão (Columbus/Ohio, 04 de janeiro de 1911). Quanto às outras áreas do conhecimento, ele diz ter sido excitante. Era uma surpresa por dia. Foi por isso que me interessei por fitoterapia: nunca havia imaginado que as plantas, e a medicina natural, em geral, pudessem ser tão benéficas ao ser humano. Mas minha vontade, realmente, era sair correndo e contar a todos a maior descoberta de todas aquelas décadas: a combinação de sal e maguey – ou tequila, tanto faz. Hoje, sei que o principal componente ativo do agave continua preservado após os inúmeros processos de destilação do vinho de mezcal. Minha esperança é que, um dia, essa descoberta possa me ajudar a salvar vidas.

(Monterrey/Nuevo León, 25 de fevereiro de 1885)

 

Carlisle viajou por toda a América do Norte, dos séculos XIX ao XXI. Durante suas viagens, atravessou o México, os Estados Unidos e o Canadá. Sua busca incansável por novas informações sobre o aparente poder milagroso da tequila o levou a várias cidades pequenas do México e do oeste estadunidense:

 

A cidade de Roswell, recém-fundada, tem um dos barmen mais carrancudos com os quais já havia conversado. Mas ele tem experiência: já havia trabalhado em um bar na grande Albuquerque, e possui um conhecimento incomum sobre tequila. Seu nome é Henry Walker, e afirmou ter inventado uma nova maneira de apreciar a bebida: o drinque que ele batizou de puñetazo – palavra espanhola para soco. Era uma simples mistura de tequila com limão – uma pequena variação de outra bebida que eu já conhecia (que também era um misto de álcool com limão): o que os espanhóis chamam de ponche. Punch, na origem inglesa; o mesmo que soco. Não muito original da parte do barman... Mas, no dia em que o visitei, eu estava tão interessado nas histórias dele que não tive coragem de confrontá-lo com essa verdade. Mesmo que fosse pouco original, suas palavras me inspiraram:

 

– Tequila com limão, meu filho, dizem que espanta os maus espíritos.

 

Aquilo foi como uma fisgada em minha mente – lembrei-me de tudo o que havia passado na tribo tiquila, inclusive as palavras do benzedor excêntrico. Já tivera, antes, a oportunidade de conhecer um viajante de origem brasileira, que me apresentou à caipirinha, outra bebida temperada à base de álcool e limão (dizia ele que era um santo remédio). Não pensei duas vezes, e chamei o barman:

 

– Quero mostrar um drinque novo para você. Também usa tequila e limão, mas há um ingrediente a mais. Por acaso, o senhor tem sal?

 

Aquele momento foi mágico. Eu estava, pela primeira vez, transmitindo tão nobres conhecimentos. O barman ouviu tudo, depois me viu fazendo aquele ritual rapidamente e fez o mesmo em seguida. Após engolir o sal e beber a tequila com limão, o velho homem fez algumas caretas, bateu o copo no balcão e soltou uma baforada de ar. Deu mais uma encarada no copo e disse:

 

– Nossa! Se o meu drinque é um soco, esse seu é um balaço!

 

Balaço... Gostei do nome, sabia? Mas... Vamos ver... Será que soa melhor em inglês? Hum... Shot! E então, que tal? Shot, shot, shot... O que acha? – perguntei, fingindo estar dando tiros de revólver com meus dedos indicadores, enquanto ele curtia um início de embriaguez. Ele riu e assentiu com a cabeça.

 

– Mais um brinde, então... Ao SHOT do rapaz aqui! – e nós continuamos bebendo tequila e rindo ao mesmo tempo. Até aquele momento, a única benfeitoria real de todos aqueles estudos médicos foi para um barman esquisito. Eu ainda espero, pacientemente, o dia no qual poderei usar o shot para curar as pessoas – e talvez o velho Henry possa ser meu primeiro multiplicador nessa empreitada.

(Roswell/Novo México, 1893)


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