Sortner escrita por MonaLisa


Capítulo 3
Escolha




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Sherlock revirava os olhos observando Lestrade andando de um lado para o outro dentro do quarto do hospital, com as mãos nos bolsos da calça cinza e a expressão descrente.   

― Desde quando sabe? ― o Inspetor perguntou agitado. ― Por que não me contou?

O detetive revirou os olhos de novo, provavelmente pela décima vez naquela noite.

― Não contei porque não o conhecia ― respondeu entredentes, impaciente.

― Então como o encontrou?

― Ele é o irmão de Harriet Watson, foi ela que me avisou que ele ia atrás do pai. John ser meu... par... é mera coincidência.

Não conseguiu conter uma careta de desgosto.

― Você não acredita em coincidência ― Lestrade retorquiu com o obvio.

― Melhor que acreditar em destino ― Sherlock resmungou massageando o ombro.

Lestrade esboçou um sorriso, um amplo e brilhante sorriso.

― Isso é ótimo!

― É? ― Sherlock arqueou as sobrancelhas.

― Claro! Você finalmente encontrou seu par, como pode não ser ótimo?

O detetive ponderou a seriedade naquelas palavras. Como poderia não ser ótimo? Questionava-se justamente o contrário. Como aquela situação poderia ser ao menos aceitável? Passou anos de sua vida pedindo para que seu par não surgisse em seu caminho, rezando para qualquer entidade que pudesse ouvi-lo mesmo que tal ato ultrapassasse todos os seus limites lógicos e sensatos. Nunca quis um Sortner, sempre esteve muito bem sozinho, a ausência de amigos e sua constante fuga da família lhe proporcionavam o foco necessário para os casos, os estudos e principalmente suas pesquisas, sem preocupações, sem aflições, sem perguntas insistentes e presenças inconvenientes.

Pouco se importava se seu par precisava de uma companhia que o completasse ou qualquer besteira desse nível, Sherlock só conseguia pensar nas reações que aquela união causava nas pessoas e principalmente no desejo constante que um tinha em estar perto do outro, em protegê-lo.

Era o único vício pelo qual não estava disposto a ceder.

― Não.

Lestrade o olhou confuso, o sorriso sumindo e suas sobrancelhas se unindo.

― O quê?

― Não é ótimo, na verdade é um problema.

― Um Sortner nunca é um problema, Sherlock.

― Sim, o caso Bowker mostra bem isso ― o detetive ironizou, levantando-se.

― Hanson Downer estava desesperado e foi impulsivo, como qualquer outra pessoa seria para salvar quem ama. Ele não arriscou a vida só por causa do elo ― Lestrade argumentou sugestivo.

― Mas é o elo que está fazendo Helen definhar ao lado da cama dele.

― Não vai ao menos ver John? Saber se ele está bem?

Sherlock paralisou. Estava pronto para abrir a porta e colocar a maior distância possível entre ele e John, mas sim, precisava admitir que queria se certificar com os próprios olhos que o loiro estava bem, fora de perigo, no entanto, sabia que não deveria.

Precisava lutar para manter sua vida exatamente como a conhecia.

Nós vamos ― respondeu enfático. ― Ele ainda é vítima e testemunha, não? Precisa responder perguntas, como todo mundo.

Dito isso, afastou-se com as mãos escondidas no sobretudo e a expressão inabalável no rosto.

Sherlock não viu, mas Lestrade reabriu o sorriso e digitou euforicamente algumas palavras para o noivo antes de acompanhar o mais novo.

***

O quarto de John não era longe, na verdade era no final do mesmo corredor. Aproveitando-se da determinação cega para manter tudo e todos longe, Sherlock sequer parou para questionar à enfermeira se a visita estava liberada. A pobre mulher, com cabelos bem presos e rosto redondo, segui-o tagarelando até que ele abriu as portas abruptamente, assustando o paciente.

― Desculpe por isso, Doutor Watson ― a mulher tentou explicar. ― Esse homem não-

― Tudo bem, Patrícia ― John a interrompeu gentilmente. ― Esse é o Sherlock.

A enfermeira arregalou os olhos como se aquilo mudasse tudo – e talvez mudasse, abriu e fechou a boca diversas vezes, intercalando o olhar rapidamente entre os dois antes de finalmente conseguir falar.

― Perdão, Sr. Holmes, não foi minha intenção atrapalhá-lo.

Regra: Nunca impeça um Sortner de ver e/ou visitar seu par.

Sherlock apenas lhe lançou um olhar frio e, em silêncio, observou-a sair quase correndo do quarto.

Correção na regra: Nunca impeça Sherlock Holmes.

― Desculpe pelo susto, Sr. Watson ― Lestrade sorriu amarelo, fechando a porta.

― Doutor Watson ― Sherlock corrigiu se aproximando, assimilando o que a enfermeira disse com o pouco porte físico de John. Estava acostumado a lutar, mas somente quando necessário. ― Afeganistão ou Iraque?

― Afeganistão ― John respondeu tentando se levantar.

― Não deve se mexer tanto.

― Se vou responder perguntas sobre meu pai, quero fazer sentado.

Sherlock suspirou e pegou uma cadeira, sentando ao lado da cama, notando Lestrade fazer o mesmo. Quando John sentou e as pontadas incômodas finalmente cessaram em seu ombro, o detetive decidiu começar a extinguir sua curiosidade.

― Como sabe meu nome?

― Jornal ― John respondeu sem hesitar. ― Foi a primeira coisa que eu vi depois que sai do aeroporto: seu rosto em muitos jornais.

― E como soube sobre seu pai?

John hesitou tamborilando os dedos no lençol branco.

― Doutor Watson, precisamos de respostas ― Lestrade insistiu abrindo seu bloquinho de anotações. ― Qualquer coisa que ajude a explicar o que aconteceu.

― Apenas John, por favor ― o médico pediu. ― Mycroft me contou. 

Sherlock piscou com força uma última vez antes de voltar a olhá-lo e franzir o cenho com incredulidade.

― Mycroft Holmes? Meu irmão? ― certificou-se antes de trocar um olhar igualmente confuso com Lestrade, que parecia tão surpreso quanto ele.

John acenou levemente, concordando, e continuou:

— Eu estava em uma cidade pequena tentando entrar em contato com meus superiores. Esperei por quase uma semana antes de responderem meu chamado. Então, uns três dias depois um carro foi me buscar e quando entrei no avião particular, Mycroft já estava me esperando.

— Não achou a situação nem um pouco estranha? — Lestrade perguntou confuso.

— Claro que sim — John deu de ombros — Mas meus superiores disseram que alguém do Governo ia me buscar, então eu não questionei. Apesar de ficar bem mais aliviado quando vi quem era.

— Conhecia Mycroft antes disso? — Sherlock questionou curioso.

— Sim… — o médico respondeu hesitante, como se não tivesse certeza de que realmente deveria falar — Nos conhecemos há anos.

— Anos? — Lestrade verificou descrente — Tem certeza?

— Eu ainda nem estava na faculdade quando nos tornamos amigos.

— Amigos? — foi a vez de Sherlock se surpreender — Mycroft não tem amigos.

John hesitou novamente, molhando os lábios com certo nervosismo. Sherlock não precisava da ajuda do elo para criar conclusões.

― Vocês foram íntimos.

Dizer em voz alta foi mais incômodo do que imaginou, mas o detetive não poderia perder a oportunidade de descobrir um pouco mais. Houve um tempo, muitos anos atrás, que desconfiou do seu irmão. O homem sempre bem vestido e afiado, mental e verbalmente, estava inegavelmente mais distraído e consequentemente descuidado. Logo imaginou que Mycroft poderia estar assim devido a algum problema em especial, mas quando ousou perguntar e o viu corar, teve certeza de que esse problema era um alguém.

Então esse alguém era John?

― Íntimos é uma palavra muito forte ― o médico tratou de corrigir ― Nós éramos amigos e por um momento ficamos confusos, mas decidimos que a amizade era o melhor caminho. E realmente foi. Principalmente para ele que teve a chance de encontrar alguém muito melhor que eu.

― De quem está falando? ― Lestrade questionou rapidamente, subitamente sério.

John lhe lançou um olhar confuso e, como se fosse o obvio, respondeu:

― De você, é claro. Você é Greg, o noivo, não é? Falamos tanto sobre você que é impossível não reconhecer.

O silêncio tomou conta enquanto o ciúme se dissipava dos olhos de Lestrade e era substituído por um outro sentimento qualquer que envolvesse carinho. No entanto, o mesmo não aconteceu com Sherlock.

Não estava realmente incomodado por Mycroft ter escondido um amigo, possível namorado, durante todos esses anos. Compreendia como um sentimento novo como aquele pode tê-lo confundido e o distraído por semanas, talvez meses, e com certeza lembraria dessa informação quando a implicância se fizesse presente entre eles, mas tudo mudava quando esse mesmo amigo era o seu par.

Tinha que ser justamente John Watson?

Isso só fazia seu coração bater mais forte, irritado com a verdade implícita nas palavras que John acabara de revelar. Afinal, era impossível o loiro estar com Mycroft por tanto tempo e o mesmo não desconfiar de nada, não preencher as lacunas com o obvio. É claro que Mycroft sabia, nesse tempo todo, que John era seu par.

― Sherlock ― John chamou, olhando-o com cautela.

Maldito elo que compartilha o que eu não quero!

― Ele sempre soube ― revelou quase sussurrando ― Mycroft sempre soube que você era meu par.

Não foi uma pergunta, mas John se sentiu na obrigação de responder:

― Descobri assim que entrei na sua casa pela primeira vez, Mycroft estava comigo, mas...

― Mas... ― Sherlock incentivou irritado.

A adolescência sempre unanimidade na lista de complicações extensas em uma vida, mas para Sherlock foi mais que isso, foi um tormento, um Inferno que ocorria dentro da sua própria mente que praticamente se partiu em dois pontos opostos. Foi quando realmente notou o quanto podia machucar as pessoas com algo que fazia naturalmente e foi o único momento que realmente considerou trancar aquela parte sua, tornando-se então tão normal quanto se esperaria de um adolescente. Durante muito tempo sentiu dor ao magoar as pessoas e se importou verdadeiramente com isso, chorou silenciosamente várias noites quando percebia que não conseguia ser diferente mesmo que tentasse avidamente, gostou de algumas pessoas na mesma proporção que odiou outras e se viu completamente sozinho quando na verdade só queria gritar por algum afeto.

Agora notava o quanto fora ridículo e o quanto suas lágrimas foram inúteis, mas ainda era impossível negar que poderia ser diferente. No meio daquela confusão de hormônios, racionalidade e análises dedutivas de tudo o que via... ninguém, nem uma mísera pessoa, enxergou sua confusão e o aceitou. Todos queriam que mudasse, que fosse mais gentil, que fechasse a boca e parasse de assustar as pessoas. Ninguém queria o verdadeiro Sherlock.

Mas e se alguém o fizesse?

Mas e se nem o mesmo seu par, nascido para ser sua perfeita combinação natural, quisesse esse Sherlock?

Não! Você não vai mudar por ninguém!

― Mas Mycroft não deixou ― John finalmente respondeu, despertando-o.

― Não deixou? ― Sherlock franziu o cenho ― Como assim não deixou?

― John!

O gritou assustou o trio que automaticamente olhou na direção da porta, por onde entrou uma mulher de cabelos loiros e bagunçados esboçando um grande sorriso.

― Harry? ― John desacreditou antes de ser envolvido em um abraço forte.

Sherlock imediatamente sentiu uma pontada no ombro e não conseguiu conter uma careta que foi acompanhada de uma reclamação dolorosa de John.

― Ah, desculpa, desculpa ― Harry pediu se afastando, mas sem perder o sorriso ―  Eu me empolguei, desculpa.

― Você não devia estar com Mycroft? ― John perguntou ainda surpreso.

― Eu não pude contê-la ― Mycroft anunciou se encostando no batente da porta, apoiando o guarda-chuva em uma das pernas ― Assim que ouviu sobre sua volta, a Srta. Watson praticamente saiu correndo. Temi que ela fugisse durante a noite, então viemos o quanto antes.

― E fez bem ― Clara concordou surgindo ao lado dele.

― Fez bem mesmo, ninguém consegue controlar esse furacão ― John brincou fazendo a irmã revirar os olhos ― Obrigado, Myc.

O apelido fez Sherlock lembrar do que realmente queria fazer quando encontrasse o irmão e, sem se dar o trabalho de explicar, apenas saiu andando para fora do quarto e arrastou Mycroft consigo. Não alimentaria seu Palácio Mental sem informações completas.

― Vai me explicar tudo e seja completo ― exigiu parando na outra ponta do corredor, bem longe do quarto onde John estava.

― Então seja mais especifico ― Mycroft tentou inexpressivo.

― Não banque o estúpido comigo, Mycroft ― Sherlock rosnou entre dentes, impaciente ― Por que não me contou sobre John? Por que não me disse que conhecia meu Sortner?

O mais velho suspirou e fitou algum ponto no chão, o que incomodou Sherlock. Foi tão difícil assim dizer a verdade na época? Fora tão inumano e incorrigível que não merecia nem a chance de tentar ter um parceiro?

― Você teve uma adolescência tão complicada, Sherlock... Eu vi o quanto estava sofrendo ― Mycroft respondeu com a voz rouca, quase indiferente ― Temi que alguém tão sentimental piorasse tudo e contei isso a ele. Você já estava tão confuso, tão... transtornado com o que não podia controlar.

― E não pensou, nem por um mísero momento, que um parceiro me ajudaria? Afinal, não é esse o dever dele?

― E você o ajudaria? ― Mycroft o cortou secamente ― Seria capaz disso, Sherlock? Teria empatia o suficiente para ser capaz de ajudar alguém além de si mesmo?

Sherlock paralisou, entorpecido com aquelas palavras. Verdades, puras e dolorosas.

― Fez isso por ele? Para salvá-lo de mim?

― Não! Fiz isso por você!

Mycroft se interrompeu e respirou fundo, piscando rapidamente antes de continuar:

― Escute-me, Sherlock, eu poderia ficar aqui e explicar tudo a você, detalhe por detalhe, cada decisão e qualquer besteira sentimental que queira, mas Moriarty está soltou por aí, usando Henry Watson como marionete. Temos problemas maiores e sabe disso!

― Por sua causa! ― Sherlock acusou ― Você deixou ele escapar!

― Eu sei! ― Mycroft rosnou em resposta, segurando o guarda-chuva com mais força ― Posso cuidar disso, mas preciso que mantenha John protegido. Ele não vai aceitar ficar confinado em algum lugar tão pacificamente quanto a irmã.

Sherlock o olhou com deboche e sentiu vontade de dizer que o irmão não seria útil nem cuidando do próprio velório, muito menos na busca de um criminoso tão ardiloso quanto Moriarty, mas se calou. Não era o momento de ser explosivo e espontâneo.

― Certo, mas eu vou cuidar disso porque você é um inútil ― Sherlock garantiu firme antes de dar as costas ao irmão e voltar ao quarto.

Nova regra: se quer as coisas bem feita, faça você mesmo.


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