Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 18
Perigos da infância




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— Talvez eu só pareça uma criança. Talvez na verdade eu seja apenas um capetinha loiro que veio aqui por vingança.

Nisso, meu irmão José apareceu e o rapaz, não querendo se expor perto de um menino maior, resolveu se afastar, dizendo em sorriso irônico:

— Podemos brincar mais tarde.

— Acho que você não gostará de minha brincadeira.

 

Perigos da infância.

 

Talvez como por alguma ajuda divina, já na manhã seguinte os senhores Manoel Rodrigues e dona Marcelina, com seus mais de sessenta anos de idade, começaram a trabalhar conosco ali naquela fábrica de tijolos e por mais sorte ainda, começaram a trabalhar paralelo a nós.

O senhor Manoel adorava tagarelar o tempo todo e com certeza adorava crianças como crianças, portanto tornarmos amigos dele foi a coisa mais fácil do mundo. Quer dizer: eu já sabia da amizade que construiria com tal casal simpático, o maninho Regis não sabia e baseado no que acontecera com o filho deles, estava assustado com tal homem conversando bastante ao nosso lado.

No momento em que o casal de idosos se afastaram para a casa da filha, que também era na olaria, em busca de um café quentinho, aproveitei para conversarmos em família:

— Regis, você está com medo de conversar com o senhor Manoel…

— Eu não! — negou o maninho.

— Está sim! Não tenha medo dele! Lembra do que conversamos? Este casal de velhinhos será os dois melhores amigos de sua infância. Eles são bons e adoram crianças. Faça de conta que hoje você acaba de ganhar mais dois avós especiais.

Quando os dois retornaram, dona Marcelina estendeu-me um pequeno embrulho, dizendo:

— Trouxe para vocês! Está uma delícia.

Ao abrir o embrulho, me deparei com três pequenas roscas de cocos caseira, as quais repartimos entre irmãos e agradeci entusiasmado:

— Puxa! Obrigado! É o que a gente mais gosta!

— Cuidado com minha bruxinha malvada — ironizou o homem. — Ela costuma encher a pança de criancinhas magrinhas com guloseimas, depois que elas engordam, minha bruxinha levam elas pra casa, colocam no tacho e faz um lindo ensopado com sabor de crianças deliciosas.

— Não temos medo — neguei confiante. — Vamos ficar fortinhos e quando formos levados para a beira do tacho de água fervendo, empurraremos o marido da bruxinha malvada e faremos um grande ensopado de vovô saboroso para encher ainda mais nossa pança.

— Ih! Não vai dar certo — negou ele. — Essa carne de velhinho aqui já tá tão velha que não cozinhará nunca! É preferível roermos os ossinhos como cartilagens de menininhos pequenos. E se forem gêmeos, mais saborosos ainda.

— Vê lá, seu marido de bruxa!

Pensei um pouco e senti que esta última frase nem pareceu brincadeira. Saiu como ofensa a uma mulher que só quis ser agradável.

— Desculpe, dona Marcelina — pedi arrependido. — É brincadeira! A senhora não é bruxa! Tá mais para uma deusa protetora.

— Vai brincando com ela! — continuou o homem.

— Pare de ofender sua mulher! — protestou Regis. — Ela é muito boa.

— Nossa, você também fala! — ironizou o homem. — Achei que fosse mudo!

— Claro que eu falo! Pra que é que eu tenho boca?

— Pra comer bastante e beijar as garotas!

— Beijar garotas?! Iéca! Não faço essa porquisse não!

— Não gosta de garotas? — ironizou o senhor Manoel.

— Eu não! Credo!

— Por que não?!

— Porque a varinha verde da mamãe canta na bundinha magra dele! — emendei.

— É verdade que o senhor e sua mulher vai ser meu melhor amigo? — perguntou inocentemente o maninho.

Talvez nenhum dos dois esperasse por uma pergunta assim. Ele parou de brincadeiras, olhou para a mulher e respondeu:

— Bem… se tem uma coisinha especial que estes dois velhos aqui adoram, depois de rosquinhas de cocos, são bichinhos sapecas do tamanho de vocês.

— Antes das rosquinhas de cocos, velho — corrigiu dona Marcelina.

— É! — analisou o homem. — Rosquinhas de cocos a gente pode fazer ou comprar. Bichinhos sapecas do tamanho de vocês é preciso conquistar.

— Como sabe que somos… sapecas? — estranhou Regis.

— São crianças! — Ironizou o homem.

— E como será que a gente faz pra se deixar conquistar? — Insistiu o maninho.

— Eu tenho uma receita infalível! — aleguei.

— Qual? — franziu o nariz, o maninho.

Atravessei o canteiro que separava a gente do casal simpático…

— Essa! — abracei primeiro a mulher, dando-lhe um beijo na face, depois abracei o homem.

O maninho relutou um pouco. Não era habituado a isso. Nem eu era. Mas era esperto. Quer dizer… vivido. Na realidade eu não estava forçando nada. Só estava antecipando as coisas e era para uma grande causa. O casal de velhinhos estava mesmo predestinados a se tornarem os melhores amigos do maninho. Eu só estava mesmo antecipando. E não muito. Alguns minutos.

Regis fez o mesmo que eu. José não. Se achava grande demais para coisas bobas.

O casal de velhinhos se emocionaram e se viram presos de verdade, pelos fortes laços do coração.

A partir de então, irem para o trabalho teria uma razão a mais e os finais de semana pareceriam serem mais longos.

Para nós meninos nem tanto. Apesar de sermos e termos cativados os queridos vovôs, nossa vida não era assim uma rotina, pois crianças tem a vidinha simples repleta de atividades novas a todos os momentos e cada coisa aconteceria em seu devido momento. Não foi assim com o rabugento vovô Alfredo? E a bondosa vovó Aurélia? Com certeza os dois estão lá torcendo para que o portão da rua se abra e a gente entre correndo pela porta da sala, abraçando-os para curar a ferida da saudade.

É! Acho que se pensarmos assim, na verdade estávamos sendo até malvados sem querer. Criávamos amor e ternura dentro de corações de pedra e depois não retribuímos do jeito que se faz necessário. Não por maldade, mas por falta de ter como. Sendo apenas crianças, tínhamos dificuldades de viajarmos sozinhos, com isto não conseguíamos cumprir aquilo em que a raposa disse ao pequeno príncipe: “a gente se torna responsável por aquilo que o coração cativa”.

                                          ©®©

Na manhã de sábado, como a gente não trabalhava e estávamos em época de muito frio, acabei levantando da cama quase nove horas, vestindo imediatamente uma calça comprida e uma blusa de inverno, encontrando a seguir minha mãe na cozinha.

— Mamãe, a senhora não vai ver o papai no hospital? — intimei-a.

— Não! — negou ela prontamente. — Por quê?

— É que faz três dias que ele está internado e com certeza ninguém foi visitá-lo.

— Não se preocupe — alegou ela naturalmente. — Ele está bem.

— É tão triste ficar no hospital sem receber uma visita sequer.

— Não liga pra isso não! Seu pai adora ficar sozinho.

— Não adora não! Se ele adorasse nunca convidaria os amigos para jogarem baralho.

— Fique tranquilo, que logo ele estará em casa.

— A senhora não irá visitá-lo?

— Me arrume um carro que eu irei — ironizou ela.

— Chame o Vicente pra levar a senhora com a charrete. Ele não cobra muito caro.

— Eu não irei lá! Seu pai voltará logo pra casa.

— Se a senhora não ir lá, eu irei!

— Criança não entra em hospitais.

Segui para o banheiro, onde, depois das necessidades de todas as manhãs, inclusive escovar os dentes, voltei para a cozinha, tomei um copo de leite com café e pão caseiro.

Cinco minutos antes das onze horas estava na fila da recepção da Santa Casa de misericórdia, aguardando a minha vez de solicitar entrada para o horário de visitas, das onze às treze horas.

— Moça, em qual quarto está o meu pai? — perguntei à recepcionista.

— Seu pai está internado? — Perguntou-me.

— Sim! —Fui incisivo como quem diz “se ele não estivesse internado eu não perguntaria qual seria o quarto”.

— Você não poderá visitá-lo — negou ela.

— Por favor! Faz três dias que ele está aqui e ninguém nunca veio vê-lo. Me deixe ir lá, só um pouquinho!

— Sinto muito, mas eu não posso! São ordens restritas da administração.

— Me deixe falar com a administração.

— Não vai adiantar — negou ela prontamente. — Pelo que vejo você não tem mais do que dez anos. Crianças não entra em hospitais.

— E se eu ficar doente?

— Aí então você será obrigado a entrar. Porém, estando saudável não poderá entrar, exatamente para não ficar doente.

— Eu preciso ver o meu pai — pedi com jeitinho cativante. — Estou com muitas saudades dele.

— Tão logo seu pai receberá alta e estará de volta em casa. Infelizmente aqui no hospital você não poderá vê-lo. Não adianta insistir. Me dá licença que preciso atender outras pessoas.

— Me deixe ir ver ele. Por favor! Só um minutinho de nada!

— Crianças não entra em hospitais! Me dá licença.

Afastei de lado para que ela realmente atendesse a fila enorme que se fazia atrás de mim.

Menos de cinco minutos depois só restava eu e duas outras menininhas, que teriam sido deixadas ali enquanto suas mães entraram para visitar alguém.

Levantei-me, seguindo de volta à recepcionista, que antes que eu dissesse algo, já negou:

— Nem adianta insistir pois eu não posso deixa-lo entrar e como você me parece um garoto esperto deve saber muito bem o porquê.

— É pra mim não pegar bactérias.

— Pois é! E como eu não quero vê-lo internado em nosso hospital, não vou deixa-lo entrar. E olha que não sou a bruxa malvada! — riu ela. — E nem a madrasta má.

— Eu estou morrendo de saudades de meu pai. Meu coração está com tanta dor.

— Me diz o nome de seu papai que eu irei até lá, direi que esteve aqui e trago notícias dele.

— Isso não adianta — neguei convicto. — Você irá só até no primeiro corredor, demorará alguns minutos, depois voltará aqui e dirá “seu pai está muito bem, receberá alta logo e disse que te ama muito”.

— Não farei isso! — riu ela. — Peço ao seu pai para me dizer alguma coisa que só você sabe o que é. Então você saberá que estive lá.

— Mesmo assim não adianta. Meu coração continuará com saudades.

— Desculpe. Aqui no hospital você não poderá entrar. São restrições não só nossas, mas de todo o sistema de saúde que visa proteger garotinhos arteiros como você.

— Não sou arteiro! — protestei. — Sou santinho até demais!

— Acredito! Vá pra casa e reze pelo papai, pois logo ele estará com você.

— Não vou pra casa! — neguei sentando-me na ala de recepção. — Ficarei aqui até que me deixe entrar.

— Você é quem sabe!

Por quase duas horas fiquei ali sentado, a princípio ao lado das outras crianças, depois, como elas se foram, acabei ficando sozinho, ou acompanhado por algumas pessoas que ali chegavam e logo desapareciam pelo corredor, ao terem o passe de entrada liberado.

— Garoto — chamou-me a mesma moça. — O horário de visitas se encerrou, portanto, você deverá ir embora pra casa, pois se antes não podia entrar, agora é que não poderá mesmo.

— Vou aguardar o horário de visitas da tarde.

— A visita da tarde será só as dezessete horas — surpreendeu-se ela. — Ainda faltam quatro horas!

— Não têm problemas! — dei de ombros. — Eu espero.

— Não adianta, garoto! Eu não poderei te deixar entrar a tarde também!

— Ouça! — pedi, sentindo as lágrimas marejando o canto dos olhos. — Faz três dias que não vejo papai. Você já ficou longe de seu pai?

— Sim! Faz dois meses que não vejo nem ele e nem minha mãe. A gente mora longe.

— Mas você não é criança! Criança sente saudades, sabia?

— Eu sabia sim! Adultos também sente saudades! Mas tem hora que a gente tem que superar este sentimento. E às vezes é bom sentirmos saudades, pois o reencontro se torna mais gratificante.

— À tarde você deixa eu ver o meu papai, só um pouquinho?

— Não sei! Acho que não!

Ela se afastou para o corredor interno da Santa Casa e eu permaneci ali sentado.

Claro que mais quatro horas por ali, além das duas que já se passaram sem ter o que fazer iria demorar uma eternidade.

Tomei uma revista antiga que estava sobre uma mesa no canto e a folheei sem muito interesse.

Dez minutos depois, a mesma recepcionista retornou ao seu posto e calada continuou seus afazeres.

Depois de outra meia hora, eu já teria folheado todas as revistas e jornais que ali se encontravam e percebia que o grande relógio ali da recepção parecia que estava parado.

Já teria calculado que ainda faltava cento e noventa e cinco minutos para as cinco horas da tarde, onze mil e setecentos segundos.

Um homem alto, branco, magro, de cabelos escuros, apareceu na recepção, vindo direto ao meu encontro, dizendo:

— Quem é o menininho teimoso que insiste em querer entrar no hospital, mesmo sabendo que não pode?

— Sou eu mesmo! — concordei.

— O que você quer fazer no hospital? Quer uma amostra grátis de injeção na bunda?

— Eu topo, se o senhor deixar eu ver o meu papai.

— Não se pode permitir a entrada de crianças em hospitais.

— E se eu entrasse escondidinho?

— Eu perderia o meu emprego assim mesmo — riu o homem.

— O senhor é o administrador?

— Digamos que eu seja o provedor!

— Acho que é a mesma coisa — franzi o nariz. — Não é?

 — Pode se dizer que sim! Venha comigo. Vamos conversar em minha sala.

O acompanhei, entrando no segundo hall de entrada e depois de dez passos adentramos ao tal escritório da administração. Ele me entregou um par de luvas plásticas descartáveis, dizendo:

— Coloque isto.

Depois me entregou uma capa plástica especial.

— Use-a.

A seguir uma máscara de pano branca.

— Pode usar.

— Vai me transformar em médico? — insinuei rindo.

— Quem sabe! Qual é o nome de seu pai?

— Antônio Albuquerque dos Anjos.

— Então você é um anjinho?

— Às vezes dizem que sou capetinha! Mas não sou!

— Me acompanhe.


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