Myosotis escrita por Lyria Danis


Capítulo 2
O que pesa sobre si


Notas iniciais do capítulo

* Capítulo editado em 30/04/2018.

Demorou mas foi. Agradeçam à minha Beta, Hel, que fez um milagre neste capítulo. Eu alterei a capa, vocês viram? Achei que ficou melhor, rsrs.
Sem mais demora, vamos ao capítulo 2 de MYOSOTIS, a coisa mais dolorosamente prazerosa que teve o desprazer de ser escrita por mim.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/756991/chapter/2



2
O QUE PESA SOBRE SI

O que me ofereces é quente e pulsante,
Mas eu já me esqueci de como cuidar.
Não me dê, pois,
Eu vou acabar por matar.

 

Maroo recuperava a consciência por breves segundos durante os dias que se passaram. Ele conseguia manter algum sentido de espaço, pois reconhecia o lugar que estava, mas nunca demorando mais que alguns segundos acordado antes de cair novamente no sono. Em alguns momentos, ele via o teto branco do quarto; em outros, o céu através da porta de vidro da sacada. Mas muitas vezes, ele via pairando ao seu redor uma mulher de cabelos loiros.

Elina observava como Maroo tentava ficar acordado, mas sem sucesso. Possuía alguma preocupação, pois a temperatura de seu corpo era mais quente que o normal, entretanto, constante. Apesar dos remédios para febre que administrava, ela não baixava. Durante os breves momentos de consciência ela tentava conversar com ele, mas nunca recebia respostas além de murmúrios confusos. Por um lado, isso era bom, pois fez Carmen relaxar a preocupação em torno de Elina estar ao lado de alguém perigoso. Por outro lado, indicava que ele estava mais machucado do que ela pensava anteriormente. Entretanto, a melhoria dele era significativa.

Toda vez que iria trocar os curativos, ela percebia que estavam cada vez mais curados. Nos três dias que ele estava lá, a ferida em seu abdômen havia curado significativamente, e ela se sentiu um tanto assustada por isso. Resolveu manter esse segredo de Carmen, junto com as presas que ele possuía. Este também foi o principal motivo pelo qual discordou da ideia de Carmen chamar um médico em segredo para verificá-lo.

No quinto dia de inconsciência de Maroo ela começou a se preocupar de verdade. A ideia de chamar um médico pareceu ser boa, e ela tinha um arrependimento de não ter feito isso antes. Talvez, com dinheiro o suficiente, a informação de ele ser um humano tão diferente ou, até mesmo não ser humano, poderia não sair dali. Também estava consciente de que os outros funcionários da casa, a não ser Carmen, estranhavam o fato de não terem permissão para entrar no quarto dela, fosse para limpeza ou qualquer outra coisa.

Ela olhou fixamente para o rosto do homem adormecido tentando pensar na melhor sequência de ações. Nenhuma opção parecia boa o suficiente.

— Talvez um banho me dê alguma ideia.

Elina entrou no banheiro espaçoso e acendeu as luzes. Pôs-se a retirar as roupas enquanto pensava em Maroo. Era completamente surreal o fato de que ele tinha um tipo de cura acelerada, e também presas. Isso não devia ser possível a nenhum humano — se fosse, ela não teria ficado com uma lesão crônica. Suspirou. Não havia nada o que fazer. Ou o homem estava sob efeito de fortes drogas, ou ela estava louca.

Foi até a banheira adaptada, que possuía uma lateral mais alta que a outra. Inclinou-se na lateral mais baixa e usando os apoios, subiu no assento da banheira, pressionou a alavanca para descê-la numa mecânica semelhante a da gangorra, até que finalmente estivesse na horizontal. Ligou a torneira de água quente e relaxou, esperando a banheira encher.

Não fazia sentido ela sentir quase que uma necessidade de salvá-lo. Não fazia sentido que confiasse nele. Despejou sabonete líquido na água e usou a esponja para esfregar o corpo. Apesar de preocupada, estava feliz que naquele momento não sentia dor alguma. Aproveitando uma sensação de relaxamento físico que dificilmente tinha, ela fechou os olhos e encostou-se à banheira. O pensamento que teve antes de adormecer foi o mesmo que dominara sua mente nos últimos cinco dias — o que tinha acontecido com Maroo?

Elina abriu os olhos assustada. Apesar de não saber onde estava, a resposta pareceu brotar em sua mente: cela dos sequestradores. Remexeu-se, mas amarras prendiam firmemente seus pulsos, pernas e barriga. Parou de tentar se soltar quando viu três homens vestidos de branco e de máscaras. Eles tinham sangue salpicado em seus uniformes e ela sabia que estavam ali para conseguir mais.

— Já está preparado para nos dizer de onde você veio?

Elina sentiu sua boca abrir, mas a voz que saiu não foi a dela.

— Não tenho nada a dizer para malditos como vocês.

Um dos homens se aproximou e ela viu que ele tinha olhos azuis.

— Deveria. Nós podemos continuar com isso para sempre.

Ela não respondeu.

A situação era atordoante; ao mesmo tempo em que sabia que a situação ocorria com ela, também não parecia que era. Ela sentia e vivia tudo, mas não tinha controle sobre o próprio corpo.

— Você apareceu dentro de uma caverna supostamente desabitada por dois milênios. Como fez isso?

Seu coração batia acelerado e ao tensionar os músculos do abdômen sentiu muita dor. Olhou para a própria barriga e ficou chocada com o que viu: um abdômen sangrento e masculino.

— Ele vai manter silêncio, senhor — outro homem que estava presente falou, aproximando-se e analisando o corpo preso. — A sua recuperação diminui a cada dia. Suponho que estamos estressando o corpo o suficiente para diminuir suas atividades defensivas.

— Provavelmente sim. Retire o sangue e vamos analisar.

Elina viu o homem se aproximar mais e furar dolorosamente algo que não identificou contra seu braço, repentinamente uma súbita fraqueza a acometendo.

— Inicie.

O terceiro homem de branco se aproximou e Elina não pôde entender o que ia acontecer até que sentiu uma terrível dor no joelho esquerdo. Rangeu os dentes até sentir o gosto de sangue, mas não gritou. A dor martelava forte e o seu joelho pulsava ao mesmo tempo em que os nervos se contorciam numa dor fina e disparava choques por toda sua perna, à beira do insuportável.

— Vamos ver como vai estar amanhã — o aparente líder deles falou. — Anote todos os processos de cura de lesão óssea.

— Certamente, senhor.

— Nós sabemos o que você é, monstro. Mas precisamos que você fale.

Elina acordou com um susto, remexendo-se bruscamente e derrubando um pouco de água para fora da banheira. Seu coração estava acelerado e a água gelada machucava sua pele. O pesadelo não fazia sentido, mas parecia completamente realista. Sentiu uma dor pulsar em seu joelho e instintivamente o olhou, contudo não havia lesão. Este pesadelo não era uma repetição de seu passado como muitas vezes tinha, mas dava tons completamente aterrorizantes ante o aspecto realístico da situação. Estava no corpo de um homem que parecia muito com Maroo e conseguiu sentir tudo o que ele sentia.

— Maroo! — falou alto após finalmente se lembrar dele.

Devia ter passado horas ali. Retirou o tampão da banheira e deixou todo o líquido esvair-se e após a banheira estar vazia, destravou o mecanismo e usou os apoios para voltar à cadeira de rodas. Amarrou rapidamente um roupão em sua cintura e saiu do quarto, não se esquecendo de amarrar o revólver em sua coxa.

Quando Elina saiu para o quarto suspirou aliviada ao ver que Maroo ainda dormia. O coração dela pesou em tristeza, provavelmente sonhou com uma experiência de tortura por estar muito impressionada com os machucados do homem, apesar de ter parecido incrivelmente real.

Olhou através da janela e viu que a lua estava alta. Foi até a porta da sacada e abriu-a, deixando que a brisa fria da noite adentrasse e refrescasse o ambiente, quando escutou gemidos. Virou na direção do som e viu Maroo resmungando coisas ininteligíveis em seu sono.

— Maroo? — ela chamou, mas não teve resposta.

Aproximou-se do homem e viu a expressão dele tomada pela dor. Ele rangia os dentes mostrando os caninos e suor escorria por suas têmporas. Os músculos de seu corpo estavam tensos, parecendo imobilizado em sua inconsciência. Os pulsos estavam apertados ao lado do corpo e ele apenas balançava a cabeça de um lado para outro parecendo agoniado.

Era um pesadelo e algo dentro dela dizia ser o mesmo que ela tivera momentos atrás.

— Não pode ser. — murmurou para si mesma. — Ei, acorde — Elina falou enquanto sacudia um dos braços dele. — Ei!

Nenhuma resposta.

— Maroo! — Ela o chacoalhou pelos ombros, mas sem resposta.

Estalou a língua, preocupada. Encostou a mão na testa dele e sentiu o corpo ainda quente. Provavelmente ele estava alucinando, e era péssimo o fato que ele ainda estava tão doente após cinco dias. Será que ele iria morrer antes de ela ter a chance de perguntar sobre qualquer coisa?

Elina se sentiu derrotada, não havia nada mais que ela pudesse fazer além de torcer para sua recuperação. Então tentou acalmá-lo da única forma que conhecia: tocou o peito dele com a palma da mão e então começou a acariciá-lo ali, sentindo a pele quente de maneira anormal sob a sua.

— Está sonhando com o que aconteceu com você? — ela perguntou, mas sua resposta foi um grunhido agoniado. — Você não está mais lá, está aqui agora. Não há necessidade desse medo.

Elina se sentiu estranha por alguns instantes, mas logo aquela sensação foi substituída por uma satisfação quando ele pareceu se acalmar um pouco. Mudou suas mãos numa carícia de cima para baixo, indo desde o final do pescoço dele até o início do estômago.

— Eu era assim também. Desde quando me machuquei até meus vinte anos, sempre tinha pesadelos horríveis da morte dele. Doía muito, dentro e fora do pesadelo. Mas depois de um tempo, sua morte aparecia cada vez menos nos meus sonhos e cada vez menos até hoje, onde eu às vezes posso me permitir esquecer que um dia os tive.

O olhar de Elina se perdeu e ela continuou a realizar as carícias de forma quase automática, absorta em suas lembranças. Era de certa forma confortante falar sobre isso com alguém. Talvez seja pelo fato de ele ser um estranho ele possa dar um conforto que outras pessoas não podem, ou talvez por ele estar inconsciente e não ter lembranças disso após acordar.

— Eu estava sentindo muita dor depois de ter sido baleada e gritei por ajuda por muito tempo, me disseram que foi um dia inteiro. Ninguém veio me ajudar, mas eu era a diversão deles. Até que ele conseguiu de alguma forma escapar das amarras e correu até mim para me ajudar. Só que ele morreu por causa disso.

A mão dela fazia carinhos constantes, como se estivesse confortando-o perante a própria tragédia. Os batimentos cardíacos dele haviam diminuído o ritmo um pouco mais, sendo mais constantes e compassados. Entretanto, ainda pareciam pulsar dolorosamente contra o peito.

— Era para eu ter ficado calada, assim ele nunca iria tentar me ajudar. Mas não consegui, eu estava sofrendo. — Sua mão parou com a carícia e pressionou com um pouco mais de força a pele sobre o coração. — Deve ser por isso que eu te ajudei.

Elina o viu suspirar e a expressão do rosto suavizar-se. Parecia que o pesadelo dele tinha chegado ao fim. Ela o viu, em choque, entreabrir os olhos carmesim e fita-la por alguns segundos antes dele tentar abrir a boca. Mas nenhuma palavra saiu, e novamente ele voltou a dormir, como se nunca tivesse acordado em primeiro lugar.

Ele não teria ouvido... Teria?

Provavelmente não. E se sim, bem, duvidava que ele pudesse se lembrar. Tentando ignorar o desconforto de ter se exposto de tal forma, ela recolheu a mão do peito dele e olhou para o colchão no chão. Estava sem dor desde quando foi ao banho, não queria que a dor retornasse... O colchão era muito baixo, o esforço para se deitar nele poderia fazer doer novamente. Então ela olhou para a cama e viu o enorme espaço que sobrava.

—--

A primeira coisa que Maroo sentiu ao despertar foi o cheiro de flores. O aroma o penetrou com força, alcançando o nível da inconsciência, fazendo-o duvidar se provinha de sonhos ou da realidade. Então veio a dor. Não muito forte, mas o suficiente para puxá-lo de volta aos seus sentidos e fazê-lo lembrar.

Tortura. Perseguição. Chuva.

Ele ouviu um suspiro ao seu lado e girou a cabeça lentamente em direção ao som.

Elina.

Ela estava lá, ao lado dele, dormindo. Os cabelos loiros caíam sobre os ombros, contornando o rosto branco. Ela estava com o rosto virado para ele alguns centímetros de distância. Então ele percebeu que o cheiro vinha dela.

Pôde assisti-la começar a acordar. As sobrancelhas loiras franziram e ela mexeu o nariz, finalmente abrindo os olhos diretamente para Maroo. Ele sentiu surpresa se misturar com fascinação perante a visão das íris incrivelmente azuis.

Elina o encarava em choque, mas aos poucos as feições mudaram para sobriedade.

— Você está bem? — Elina quebrou o silêncio primeiro, notando como o homem ao lado dela a fitava sem dizer nada.

Maroo demorou alguns instantes para poder formular uma resposta.

— Você me ajudou.

— Sim.

Elina, discretamente, colocou a mão sobre a coxa e sentiu o coldre com o revólver e se sentiu mais segura. Ela esperou pelo despertar dele por seis dias, e teve a maldita sorte de isso acontecer na noite em que resolveu que era seguro dormir na cama com ele. 

— Eu achei que você fosse morrer — ela continuou a conversa, tentando perceber qualquer intenção ruim da parte dele.

Não poderia se mexer muito bruscamente ou ele poderia atacá-la. Também não poderia baixar muito sua guarda, ou ele poderia atacá-la também.

— Obrigado — ele respondeu, com seus olhos queimando para ela.

Ele podia atacá-la. Mas ele iria?

Imediatamente Elina sentiu todas as perguntas que formulou durante a semana morrerem em sua boca. O homem na frente dela estava abatido e machucado. Ele não conseguia falar sem a voz falhar, e parecia tão sincero que ela não podia fazer nada.

— De nada?

Elina piscou algumas vezes e tirou o cobertor de cima de seu corpo. Sentou-se e se arrastou um pouco pelo colchão e se posicionou para sentar na cadeira de rodas. Maroo observou as pernas pálidas que se posicionaram sobre o apoio para os pés da cadeira.

Ela decidiu que não poderia baixar sua guarda tão completamente dessa forma. Não iria dar um tempo fácil para ele.

— Você prefere responder as minhas perguntas enquanto come ou posso fazê-las agora? — A voz de Elina soou autoritária no quarto.

Maroo apoiou as mãos na cama para se sentar na cama e sentiu uma vertigem forte. Ele piscou algumas vezes até recobrar o controle de seus movimentos, encarando a mulher que o observava com atenção.

— Meu nome é Maroo. Eu não sou desta região. Dias atrás... — Ele franziu as sobrancelhas em confusão. — Assim que eu cheguei fui sequestrado e torturado. Consegui fugir de alguma forma, mas eu não conseguiria... — Ele pausou por um momento, como se estivesse escolhendo as palavras. — Eu te vi na varanda e vim até você.

Era como ela pensava, afinal. Ele foi torturado por dias a fio.

— Hoje é o sexto dia que você está aqui.

Maroo franziu o cenho, então finalmente tudo fez sentido.

— E se eu gritasse por socorro? Os seguranças da propriedade viriam rapidamente e te prenderiam ou até mesmo você morreria.

Ele lambeu os lábios secos e respirou fundo. Sentia-se tão cansado...

— Então este seria meu destino.

Elina arregalou os olhos surpresa ante a resposta do homem. Era como se ele não tivesse nada a perder.

— Então se eu pegasse meu revólver e te acertasse um tiro, você não faria nada por que simplesmente é destino?

Maroo deu uma risada seca.

— Se estivesse em condições, claro que eu correria por minha vida. Mas acontece que eu não consigo nem me mexer direito. — Ele fechou os olhos e apoiou a cabeça no encosto da cama.

Elina o observou de forma incrédula enquanto a sensação desconfortavelmente familiar de culpa a acometeu; ele claramente mal podia falar e ela estava jogando tudo sobre ele. Estava completamente em conflito entre os seus instintos e sua racionalidade. E quando ela achou que ele não diria mais nada, foi surpreendida:

— Minha vida... Está em suas mãos...

O coração dela falhou uma batida.

E então, um sentimento que há muito ela não tinha retornou calmamente a superfície, de modo quase inexistente. Discreto, porém pesado, ela sabia que não se livraria dele tão facilmente.

Minha vida está em suas mãos.

Naquele momento, ela decidiu que iria proteger este peso que estava sobre si.

— Você quer comer?

Maroo a encarou com alguma surpresa, mas rapidamente assentiu.

— Eu me sinto fraco.

Elina sorriu.

— Só consegui te dar líquidos.  Essa fraqueza é fome. — Então ela foi até o interfone e solicitou o café da manhã.

Ao retornar, Maroo a observava com atenção.

— Deixe-me colocar um travesseiro atrás. — Elina segurou o travesseiro e empurrou entre Maroo e o encosto da cama. — Pronto.

Maroo não sabia o que pensar. Ela era, obviamente, uma boa pessoa. Era bonita também. Mas ao mesmo tempo, emanava uma energia de austeridade que ele nunca vira em alguém. Parecia serena e séria; ao mesmo tempo, extremamente gentil. Entretanto, em momento algum duvidou que houvesse uma arma debaixo do vestido dela.  Não conseguia pensar muito bem com a fraqueza que sentia, mas ele concluiu que apesar de ter a mobilidade reduzida, a força que aquela mulher transmitia era poderosa.

Talvez fosse por causa disso que ele tinha ido até ela? Fora o magnetismo?

— O quê? Não existe portador de deficiência onde você mora?

Maroo ficou em confusão por um momento.

— O quê?

— Você está me encarando muito. Achou estranho eu ser assim?

O homem de cabelos vermelhos encarou Elina por alguns momentos, compreendendo o que ela dizia. “Este é um ponto sensível”.

— Eu só me pergunto por que você ajudaria alguém como eu.

Antes de Elina poder responder, ouviu-se batidas na porta.

— Senhorita, é Carmen. Trouxe seu café da manhã.

— Pode entrar.

A porta abriu-se e Carmen entrou levando um carrinho com o café da manhã.

— Bom dia, senhorita Elina. Eu trouxe o café conforme pediu.

— Não tem para quê tanta formalidade, certo? — Elina respondeu, balançando a mão. — Traga aqui. Nós estamos mortos de fome — ela falou e olhou para Maroo com um sorriso.

Maroo curvou levemente a cabeça em concordância. Carmen levou o carrinho até perto da cama, e os dois jovens prontamente começaram a se alimentar. A empregada percebeu como o homem na cama observava a comida algumas vezes antes de morder, como que para ter certeza de que estava tudo bem. O que este imbecil pensa que está fazendo? Acha que a comida tem veneno?, Carmen pensou.

— Podem comer. Eu vou fazer todas as perguntas. — Então Carmen cruzou os braços, tentando parecer ameaçadora e encarou Maroo com uma expressão carrancuda. — Que merda você veio fazer aqui?

Elina e Maroo pararam de comer e olharam chocados para a mulher.

— Sério. Que porcaria é essa? Você simplesmente entra pela varanda e acha que está tudo certo fazer isso? Você poderia ter morrido. Pior, você poderia ter deixado a senhorita em apuros! — ela falou rápido em um fôlego só. — Merda, você ainda pode. Está entendendo? Diga-me, pelo amor de Deus, que você não é um bandido desgraçado...

Maroo pegou um dos pães e mordeu de forma automática, mastigando lentamente enquanto escutava as palavras de Carmen. Após engolir, ele bebeu um pouco de água. Elina se manteve em silêncio.

— Você não vai me responder? Cacete, será que eu vou ter que chamar os seguranças?

O homem de cabelos vermelhos suspirou fundo.

— Eu posso explicar tudo para Elina, mas ela decide para quem contar.

Elina congelou e arqueou as sobrancelhas e virou na direção de Maroo. Que porcaria ele está falando?

— Não me ferra! — Carmen falou num tom mais alto. — Você quer ser chutado daqui?

— Carmen, calma... — Elina terminou seu suco e limpou a boca com um guardanapo. — Eu não vou expulsá-lo enquanto estiver machucado.

Carmen arregalou os olhos, parecendo aturdida.

— Elina, você simplesmente não pode abrigar alguém que não conhece...

— Ele não é mau — a loira respondeu com um sorriso sem graça. — Veja, depois de quase uma semana ele acordou. Não é bom?

— Não estou certa de que isso seja algo bom...

Carmen observou a jovem de forma conformada. Andou para sair do quarto, mas antes de girar a maçaneta da porta ela virou-se para Maroo.

— Faça qualquer besteira e mesmo que eu seja demitida, eu me livro de você.

— Carmen!

Sem se demorar mais, Carmen abriu a porta e saiu do quarto. Elina suspirou resignadamente.

— Agora estamos sozinhos.

Maroo mirou os orbes azuis de Elina e sentiu seu coração acelerar. Pôs uma mão no peito e olhou para baixo, tentando identificar a razão por trás daquela taquicardia. Se não foi causado pelos machucados, apenas aquela mulher poderia ser a causa. Ela exercia um magnetismo forte e ao mesmo tempo muito familiar.

Por um momento, passou por sua mente os ensinamentos de seu povo. A Grande Rainha era uma mulher encantadora que bastava olhá-la para se submeter a sua majestosa presença. Não era culpa de ninguém esse sentimento, e sim uma reação aos poderes intrínsecos dela. Ele imaginou que se ele tivesse encontrado Sua Majestade em algum momento, teria reação semelhante.

Ele franziu as sobrancelhas, como se o entendimento chegasse. Talvez, apenas talvez... Não seria possível.

 Elina foi até o carrinho e pegou algumas pedras de gelo, enrolando num dos panos.

— Você tem uma coisa horrível no seu joelho e precisa colocar gelo.

— Certo. Obrigado.

Elina entregou a bolsa de gelo para Maroo e voltou a comer uma maçã. Ele levantou o cobertor e expôs as calças que vestia, e franziu as sobrancelhas quando se deu conta que não era a calça que tinha vestido antes. Olhou da calça para Elina algumas vezes de forma questionadora.

— Não fui eu. Foi a Carmen — Elina respondeu dando de ombros, enquanto mastigava mais um pedaço da maçã cortada.

Maroo deu de ombros como se não se importasse, e simplesmente colocou a bolsa de gelo sobre o joelho dolorido.

— Mas eu fiz outra coisa.

Maroo arqueou uma sobrancelha.

— Que coisa?

Ela não o respondeu e ele não insistiu. Continuaram a se alimentar em silêncio. Elina, aparentemente, muito focada em suas mastigações ensaiadas. Maroo a observava pelo canto dos olhos, como ela comia realmente de forma lenta e educada. Ele contou silenciosamente a quantidade de mastigações que ela fazia antes de engolir e percebeu que havia um padrão: a cada mordida, ela mastigava dez vezes. A cada três mordidas, ela bebia um pouco do suco e toda vez que fazia isso, usava um guardanapo sobre os lábios.

— Você está fedendo — ela simplesmente disse.

Maroo cheirou os ombros e confirmou o que ela dizia com uma careta.

— É verdade.

Elina meneou a cabeça, demorando seu olhar pelo corpo machucado dele. Ela hesitava.

— Você tem presas?

Maroo engasgou com a água que bebia e tossiu algumas vezes.

— O quê?

— Sabe, eu vi sem querer.

Maroo a observava constrangido.

— E você cura muito rápido, apesar de ter tido uma febre que não baixava de jeito nenhum por... cinco dias, eu acho?

Merda.

— E a cor dos seus olhos não é comum. Você nasceu assim?

Maroo observava em silêncio, assustado. Por favor, que você não insista em saber...

— Você é um vampiro?

Ele não esperava por esse desenvolvimento.

— Isso é um grande não.

Elina pareceu indignada.

— Como não? Eu tinha certeza! Como você pode simplesmente chegar aqui como se houvesse mergulhado numa banheira de sangue e ainda pular a altura de um andar inteiro debaixo de chuva?

— Vampiros são pálidos e só conseguem beber sangue. Como você acha que eu conseguiria comer pão?

Os ombros da loira desceram em cômica decepção. Não passou despercebido que ele não negou a existência de vampiros.

— É verdade... Mas talvez um lobisomem?

Maroo negou, estupefato.

— Eu vim de um povo guerreiro que possui capacidade de cura rápida. Estes caninos, conforme a história contada pelos daemuns é o meio que nosso povo tem de combater sem armas. Nosso corpo e energia são nossas armas e nosso escudo, se assim for necessário.

Maroo não deveria ter dado essa quantidade de informação, mas ele simplesmente não conseguiu parar e derramou informações sigilosas para ela, não percebendo até ser tarde demais.

— Daemuns?

Ele a olhou, hesitante, antes de finalmente falar.

— Não me pergunte mais, por favor. — Ele temia que se ela insistisse, sua boca funcionaria sozinha novamente.

Elina assentiu a contragosto. Em outra situação, seria absurdo o fato de que ela estivesse aberta a possibilidade de existência sobrenatural, mas diante de Maroo, ela percebeu que era possível que ele não fosse humano. Então cruzou o carrinho com a refeição, foi até a cama e lentamente aproximou a sua mão pálida ao corpo dele. Tocou-o de forma quase inexistente ao lado do curativo no abdômen, o sentindo hesitar em reação. A pele estava tão quente quanto os outros dias. Então ela percebeu que seus pensamentos estavam perto da verdade.

— Não é febre, não é?

Demorou alguns segundos para receber uma resposta.

— Nosso corpo esquenta como reação a cura.

— Então não é vampiro.

— Não.

— Nem lobisomem.

— Correto.

Elina, vendo a inquietação do homem diante de tantas perguntas, escolheu não forçá-lo mais a dar respostas que ela não tinha totalmente certeza de que deveria saber.

— Eu estou realmente grato. — Maroo olhou no fundo dos orbes da mulher. — Não tenho mais o que dizer além disso.

Elina sorriu timidamente.

— Não sou o tipo de pessoa que nega ajuda.

— Então foi por isso que você fez isso?

— Sim?

Então Maroo entendeu.

Ela simplesmente era uma boa pessoa. Devia ter sido por isso que foi guiado até ali. A Deusa deve ter entendido que ele precisava de salvação, então o levou até a pessoa que poderia proporcionar isso. Imediatamente a sensação angustiante que pesava em seu peito diminuiu, sendo substituída por um forte senso de dever.

— Eu preciso te retribuir.

Elina o olhou e ouviu alarmes disparando por sua mente.

— Fique bem — ela respondeu, olhando para as próprias mãos. — E depois parta.

Maroo assentiu sobriamente, olhando para as mãos da mulher. Ela mexia seus dedos nervosamente, e ele se perguntou se havia dito alguma coisa errada.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!