A Viagem de Sara escrita por Carol Coelho


Capítulo 6
Parte 6 - Olhos Estrelados


Notas iniciais do capítulo

boa leitura :3



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/754384/chapter/6

(No capítulo anterior...)

— Todos se vão sempre! E é só isso que eu sei causar! — a mulher gritou. Sara ouviu o vaso que abrigava a planta se partir. Nessa hora, Milena corria com ela na direção da árvore cinzenta e monótona, deixando para trás o grito que precedeu mais um último suspiro daquela mulher que era a pura insuficiência. Tudo o que se ouviu depois foi uma porta se partindo e o rosnado feroz de um animal enjaulado que finalmente estava livre.

***

Ao entrarem na árvore, tudo se distorceu em uma mistura de luzes fortes e escuridões profundas antes de tomar seu lugar em uma relva macia. Por alguns segundos, achou que estivesse no primeiro dos mundos que visitara novamente, mas ao olhar em volta percebeu uma casa coberta de madressilvas por inteiro. O cheiro era familiar e o barulho da cachoeira também. A casa se equilibrava na beira de um precipício de frente com a enorme queda d'água desembocando em um riacho agitado. O ar era úmido e a árvore da qual ela saiu era coberta por limo e flores pequenas muito coloridas.

Uma senhora de cabelos muito brancos e pele alva abriu a porta amarela e as saudou com um sorriso muito simpático. Sara entrou na casa logo atrás de Milena e ambas se sentaram à mesa. O interior era aconchegante. Uma prateleira de livros se estendia por todos os cômodos da casa com muitos volumes, todos em capa dura, com as lombadas praticamente implorando para que Sara corresse seus dedos por elas só para sentir as letras pretas, douradas e prateadas em relevo sob seus dedos. Aquele lugar trazia à tona uma sensação gostosa porém dolorosa. Sem dizer palavra, a senhora depositou na mesa uma bandeja com um bolo grande demais para três pessoas.

— E então, meninas, o que me contam? — a senhora perguntou com uma voz rouca e fragilizada pela idade, balançando a cabeça. Seu sorriso rejuvenescia seu rosto, que já parecia diferente do que Sara viu na entrada. A senhorinha e Milena miravam Sara em expectativa de sua resposta.

— Bem, eu tenho sonhos insanos — comentou, um sorriso meio sem graça brincando com os lábios.

— Sonhos, menina? — a senhora riu. — Sonhos, não. Sonhos nunca! — riu mais uma vez, agora com escárnio. — Sonhos! — repetiu uma vez mais, agora indignada.

Sara a olhou sem entender.

— Ora, sonhos! — repetiu novamente como se a palavra a ofendesse.

— Ok, então — concordou Sara assustada pela reação da velha. — Talvez alucinação. Eu tomei esse chá e...

— Alucinação! — a senhora gritou, furiosa. — Você consegue acreditar, Milena? — perguntou indignada para a criança, que apenas balançou a cabeça em negação e sacudiu os ombros, num claro sinal de desistência. — Mas esse chá... — a mulher pareceu interessada em saber mais sobre o chá, se acalmando de súbito.

— Meu médico me receitou. Para insônia — esclareceu.

— Insônia, hã? Não consegue dormir, então? Não consegue sonhar? — disse de forma lenta, saboreando a última palavra.

— Não — respondeu Sara, se retesando na cadeira, tomando consciência de muitas coisas.

— O que te aflige? — perguntou a senhora. Sara não conseguiu responder. Sentiu os olhos ardendo e os fechou. Em suas pálpebras cerradas, um desfile passou, desde a mulher nua no lago, o casal deprimido com a forca na árvore, a jovem ansiosa no mundo excessivo, a voz incorpórea na praia, a mulher insegura que se escondeu atrás do vaso de planta e essa senhora tão familiar e aconchegante de um jeito doloroso.

Sara abriu os olhos marejados e um soluço lhe escapou por entre os lábios. A senhora a sua frente tinha os próprios olhos cheios de lágrimas e um sorriso pleno no rosto. Ao mirar com maior intensidade o rosto da mulher, viu que ela não tinha íris ou pupila. Haviam cores intensas em seus olhos e sua pele e tampouco seus cabelos eram alvos. Era negra como a noite e ela parecia jovem uma vez mais. Quando falou, sua voz soou grave e poderosa.

— Existe um passo a mais para finalizar essa jornada. Um passo maior do que todos os que você já deu na sua vida até esse exato momento — disse de uma forma calma. A mulher se levantou e estava nua em pelo, mas Sara não se sentiu constrangida com a nudez ou humilhada pelo belo corpo. Foi guiada pelo corredor onde a estante percorria para uma porta fechada que parecia tremer. — Entre somente se estiver pronta.

Sem pensar duas vezes, a mulher segurou a maçaneta que parecia estar em brasa em suas mãos. Bastou uma olhada para os olhos estrelados da mulher e toda a coragem que precisava invadiu seu corpo.

Sara enfrentou naquela sala todos os seus mais loucos medos. Não seria justo fazer uma descrição com meras palavras de um momento tão solene como aquele. Tudo o que basta saber é que Sara brigou bravamente com cada um de seus maiores temores e saiu da sala. Não saiu vitoriosa. Não saiu inteira. Não saiu nem um pouco bem. Mas enfrentou seus fantasmas. E saiu da sala. E isso é tudo o que importa. Apenas Milena a esperava do lado de fora e ela nem cogitou perguntar pela mulher.

— Vamos embora daqui — pediu, assustada. Milena a pegou pela mão e então elas correram em direção ao quintal dos fundos da casa. Ao olhar para a cachoeira gigante, pensou ter visto um rosto na queda d'agua por um milésimo de segundo, mas tão rápido quanto esse pensamento veio, ele foi embora. Guardou em sua garganta a pergunta que desejava fazer para Milena e, juntas, adentraram uma última árvore frondosa. Os galhos pareciam sussurrar seu nome de forma acalentadora. Mais uma vez o espaço se distorceu à sua volta e Sara se viu novamente no labirinto de ruas tortas ao relento. Se viu sozinha. Chamou três ou quatro vezes por Milena antes de aceitar sua solidão. Nem tentou voltar para a casa de madeira com a porta pela metade para procurar a menina e seguiu sem medo de se perder pois sabia que todas as ruas dariam na saída se assim desejasse. Agora sabia um pouco mais sobre como domar aquele labirinto. Chegou por fim na porta. Olhou para trás e viu as ruas tortas e a casa ao longe, enevoada, opaca, quase desaparecendo na névoa ou na própria irrealidade. Os clarões ainda brilhavam esporadicamente no céu sem emitir ruído. Com um suspiro resignado, ela abriu a porta e luz a cegou por alguns instantes. Quando sua visão normalizou, viu o teto de sua casa. A luz invadia o cômodo pela cortina entreaberta e o som da TV ligada no canal de culinária preenchia o ambiente. Um sonho, como já sabia que era. Apenas um sonho muito, muito estranho e vívido. Mas nada além de um sonho. Sara suspirou.

Jogou as cobertas para o lado, recolheu o copo outrora quente da mesinha de centro e o depositou na pia da cozinha. Ao olhar para a porta da frente, assustou-se ao vê-la entreaberta, deixando entrar o vento da rua. Sara a fechou e se virou franzindo as sobrancelhas. No caminho para o banheiro, olhou-se no espelho do corredor e seus olhos brilharam com milhares de estrelas que sumiram quando ela piscou. Então, ela viu todos os rostos que conheceu em seu sonho passarem por suas íris e ao fazer isso soube que, em verdade, havia sido uma viagem. Soube que todos eram ela e ela era todos. Soube que sonhos eram ensinamentos sobre nós que tentávamos passar a nós mesmos. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

chegamos ao final do conto. espero que vocês tenham gostado dessa estória, muito obrigada aos que acompanharam



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Viagem de Sara" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.