A Viagem de Sara escrita por Carol Coelho


Capítulo 2
Parte 2 - O Mínimo da Felicidade


Notas iniciais do capítulo

oooi c: mais uma parte aí fresquinha pra vocês. espero que gostem, boa leitura.



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(No capítulo anterior...)

Tudo o que via pelo caminho a agradava: as flores, os animais, até mesmo os insetos. Não viu nenhuma outra árvore pelo caminho, apenas pequenos arbustos e plantas rasteiras. Parecia ser um lugar completamente desabitado e tudo estava calmo. Um laguinho cercado de pequenas flores parecia chamar por Sara, então ela se encaminhou para lá e se sentou à margem. Seus dedos se esticaram para tocar a água que deveria estar em uma temperatura perfeita quando, de súbito, uma voz feminina grave a surpreendeu.

— Não toque na água! — foi tudo o que foi dito. Na mesma hora, Sara puxou a mão de volta.

***

— Oi? — disse porém não obteve resposta. Sara prendeu os cabelos loiros em um rabo de cavalo e seus olhos azuis rasgaram o ambiente, em súbito alerta. Milena não estava mais em seu campo de visão, tampouco a árvore, e não havia mais ninguém por perto. Seus dedos se precipitaram na direção do lago novamente porém antes que eles tocassem a superfície, as águas se agitaram e uma mulher nua pulou delas.

— Não toque na água! É perigoso tocar na água aqui — adverteu novamente. Sara a observava com os olhos arregalados de susto. Os cabelos da mulher eram completamente brancos em contradição com o rosto jovem e chegavam até os pés que flutuavam acima da água. Sua pele era clara e parecia brilhar levemente abaixo das gotículas de água. Sara se levantou de pronto e deu alguns passos para longe do lago. — Nunca entenderei porque as pessoas temem a mim, ora pois — comentou a dama displicente.

— Quem é você? — perguntou Sara.

— Ora, quem és tu pergunto eu. Chegas assim, entrando em meu mundo sem mais nem menos e ainda se achas no direito de indagar-me sobre quem sou — disparou a mulher com uma confiança invejável, a examinando com os olhos escuros.

— Desculpe — gaguejou Sara. — Não sabia que esse mundo era só seu.

— Esse e muitos outros — gabou-se a mulher, assentando-se em uma pedra com os pés na água. Queria saber mais sobre aquele mundo.

— Eu sou Sara — disse, na esperança de que a mulher lhe informasse seu nome, porém ela nada disse. Permaneceu em silêncio, sentada na pedra, a encarando com os olhos semicerrados, como se a desafiando a questionar qualquer coisa.

Sara então não falou mais nada. Sorriu polidamente para a mulher e continuou andando enquanto a ouvia bufar atrás de si em desaprovação pelo seu pouco caso. A arrogância da mulher a fez querer andar para longe, então foi o que fez. A grama parecia ficar cada vez mais verde e macia.

Nenhum outro lago apareceu no caminho e a macieira continuou sendo a única árvore que ela viu desde que chegou. Nenhum outro ser, além dos animais, se fez presente em seu caminho. Ela se entreteve brincando com uma lagarta por alguns minutos, porém logo sentiu a necessidade de explorar mais. Estava num estado de espírito de extrema paz e bem estar e a caminhada, apesar de cansativa, era satisfatória para seu ser. Sentia-se plena.

Distraída que estava, não contou os minutos enquanto andava, mas de repente, se deparou novamente com o lago e a mulher sentada na pedra. Olhou para todos os lados, estranhando.

— Já retornaste? — indagou a mulher. — Congratulo a ti pela sua primeira volta ao mundo.

— É um mundo pequeno — Sara comentou sentando-se afastada da mulher, resignada em ter aquela companhia, uma vez que já havia explorado o mundo todo.

A mulher puxou uma fruta de dentro de uma cesta que simplesmente aparecera ali. Era uma fruta muito estranha, em um formato de abacaxi porém muito, muito maior e exalava um cheiro doce.

— Os prazeres são reduzidos em sua ... — antes que a mulher pudesse terminar, Milena a interrompeu.

— Sara?

— Aqui — avisou. Milena se sentou ao seu lado no lago, cumprimentando a mulher com um aceno de cabeça. — Vocês se conhecem?

— Sim — as duas responderam juntas de forma simples. Com um suspiro frustrado, Sara entendeu que não conseguiria mais informações sobre quem elas eram ou que lugar era aquele ou o que estava fazendo ali. Lembrou-se da fala de Milena e de seu avô. "Você faz perguntas demais".

Calou-se de pronto e se ateve a observar os arredores com atenção, tentando memorizar os sentimentos gostosos que tinha sobre aquele lugar. A sensação morna em sua pele e a grama abaixo de se pareciam vivas demais, reais demais para serem parte de sua imaginação. Perdida em suas divagações, não ouviu a conversa rápida entre Milena e a mulher nua.

— Vamos? — Milena perguntou, a cutucando no ombro levemente para chamar sua atenção. Ela se sentiu automaticamente impelida a seguir Milena e, sem questionar, levantou-se.

— Bem, adeus — disse para a mulher nua.

— Adeus? — debochou se levantando e voltando a flutuar acima do lago. — Tola... — disse, com sua voz ficando gradualmente mais distante enquanto ela se dissolvia na água.

Milena puxou Sara novamente para a macieira e ambas entraram pela porta, saindo em um ambiente totalmente desolado e frio, muito diferente do calor que Sara esperava encontrar na casa do tronco da árvore. O céu era escuro e nublado e todas as construções estavam ruindo, cobertas de limo. Ao olhar para trás, ela viu que a árvore da qual havia saído estava morta e decadente. Suas raízes eram retorcidas e quebradiças e não haviam folhas em seus galhos. O vento castigava a paisagem sem vida e desprovida de cor. Sara sentiu um peso tomar conta de todo seu corpo, que clamava por uma cama e uma xícara de café que a manteria acordada.

Antes que pudesse perceber, Milena havia descido os poucos degraus de pedra e já enveredava pelas ruas destruídas como se conhecesse bem aquele lugar, mas Sara jamais conseguiria imaginar o que tal garota simpática poderia querer em um lugar pavoroso daqueles.

— Milena? — chamou, a acompanhando com alguns passos de distância. Seus chinelos chapinhavam na sujeira do chão e ela se sentia profundamente incomodada. — Para onde estamos indo? Que lugar é esse?

Sua mente já havia abandonado questões como "O que está acontecendo?" e "Eu vou conseguir voltar para casa?" e só se focava no presente momento. Milena seguiu em silêncio pelas ruas vazias, onde nem seus passos produziam som. A ausência de ruídos estava para deixar Sara louca. Perdera totalmente a noção do tempo. Haviam andado minutos? Horas? Dias? O céu continuava do mesmo jeito, estagnado, sem vida, como tudo naquele lugar. Jamais pensou que pudessem existir tantos tons de cinza e talvez nem existissem mesmo. Só sabia que estava andando há muito tempo e aquele lugar não era pequeno como o anterior. Era enorme. E vazio. Durante o caminho todo, Sara procurava por elementos que comprovassem a veracidade do lugar e a cada passo no chão duro, a cada pedra que ia parar embaixo de seus pés, ela tinha mais certeza de que não estava dormindo. Essa percepção a assustou um pouco, porém ela não deixou de andar.

Milena parou de subito, fazendo Sara, que estava distraída olhando as ruínas, chocar seus corpos.

— Desculpe — pediu Sara. Milena nada disse.

Apenas apontou para um figura triste e solitária alguns metros a frente, sentada em um balanço de pneu atado a uma árvore, tão sem vida quanto a primeira, da qual haviam saído. Sara se aproximou lentamente, pulando sobre o singelo fio d'água, que talvez tenha sido um riacho em algum momento do passado, e chegar ao topo do pequeno monte onde o homem e seu balanço triste na árvore ficavam. Os braços do homem sangravam e suas olheiras eram profundas, como se nunca houvesse dormido e sua vida fosse uma eterna insônia. Ao vê-la, sua postura caída se endireitou, como se dessa forma pudesse disfarçar o estado desesperador e desesperado em que se encontrava. Sara sentiu pena, porém sabia em algum lugar de si que não poderia ajudá-lo. Manteve uma distância confortável e não abriu a boca.

Um barulho fez-se ouvir, quebrando todo o silêncio e chamando a atenção de Sara para uma casa que nem sabia que estava ali. Uma mulher muito magra saiu fumando um cigarro e segurando uma vassoura em uma mão e uma lata de lixo na outra. Seus cabelos eram de um vermelho opaco e os fios estavam muito desgrenhados, presos em um rabo descuidado. O lixo foi despejado no pequeno córrego imundo que se encontrava do lado direito da casa, que acabava no fio d'água que Sara pulara. A mulher colocou a lata de lixo e a vassoura apoiados na parede do lado de fora da casa e levantou o olhar. Seus olhos eram tão fundos quanto os do homem e eles bem que poderiam ser irmãos. Sara sentia-se pesada e desanimada e temeu que nunca mais saísse dali. Afastou-se a passos trôpegos de volta para Milena que a puxou pela mão para dentro da casa. Sara tentou pará-la e dizer que não queria entrar ali, porém o bolo que se formava em sua garganta a impedia, então ela foi simplesmente levada. Ali tudo era muito calado e soturno.

A casa era pequena. Uma chama pequena e pálida crepitava em uma lareira de tijolos. A cada corrente de ar, que simplesmente não tinha origem, a chama frágil se apagava por alguns minutos e depois voltava a queimar por si só. O sofá da sala era gasto e haviam muitos buracos por onde o estofamento encardido escapava. Um cachorro magro e abatido roía um osso a um canto, perto do fogão, onde a mulher chorava silenciosamente dentro de uma caçarola e misturava às lágrimas todos os tipos de temperos que Sara conhecia e desconhecia. Incrivelmente, a mistura cheirava muito bem, porém não bem o suficiente para disfarçar o cheiro das lamparinas de querosene apagadas que vazavam pelas paredes dando uma aparência gordurosa ao papel de parede descascado. A casa decadente combinava com todo o resto cinza de paisagem que havia ali.

— Esse mundo é grande — uma voz grave disse de uma forma surpreendentemente frágil, pontuando a frase com um suspiro. Sara se virou e viu o homem entrando pela soleira da porta. Era mais alto do que parecia, tanto que precisou abaixar sua cabeça para passar pelo batente. Sua aparência era abatida: ombros curvados, passos inseguros e olhos marejados. Foi tudo o que ele disse. Então se sentou na mesa, flexionando os braços longos e unindo as palmas em uma oração silenciosa e o silêncio era tudo o que havia.

Sem ousar dizer palavra, Sara e Milena se sentaram à mesa. A mulher enxugou as lágrimas em um pano sujo e seus braços frágeis levantaram a caçarola que parecia grande demais, e a depositou na mesa. A cadeira era dura e incômoda. Ninguém disse nada e o silêncio foi quebrado pelos soluços altos da mulher, que afundou o rosto nas mãos. Com um suspiro resignado, o homem se levantou e abraçou a mulher pelos ombros. Sara se sentiu obrigada a desviar o olhar. Aquela cena era algo muito pessoal. A boca do homem não parava de se mexer, sussurrando algo repetidas vezes no ouvido da mulher.

Milena olhava aquilo com normalidade, como se visse isso acontecendo todos os dias, e talvez realmente visse. Esse pensamento assustou Sara.

— Quero ir embora — Sara disse embolada pelo choro amargo, tirando Milena de suas divagações. A menina não parecia nem um pouco afetada pela aura pesada do local. Pressionando os lábios juntos, simplesmente levantou-se e puxou Sara pela mão. Assim que elas passaram pela porta, ouviram um grito grave e revoltado.

— Me desculpa! Me desculpa! Pelo amor de Deus, me perdoa! — o homem repetia sem parar em um tom alto, sendo interrompido apenas por soluços violentos que escapavam por sua boca.

Sara então se permitiu algumas lágrimas enquanto Milena a arrastava para a árvore do balanço novamente. De um lado, o balanço onde o homem estava sentado. Ao dar a volta, Sara se deparou com uma corda. Na corda havia um laço de forca. Milena abaixou-se e passou por entre as raízes da árvore. Sara achou que não fosse conseguir, porém seguiu a menina e se surpreendeu ao sentir que as raízes se afastavam para sua passagem. Após uma brevíssima sensação de queda, estava em pé em frente a um portal circular que dava para um cenário muito colorido, porém não um colorido bonito como o do primeiro local. Um colorido forte e agoniante.

Sara estreitou os olhos assim que passou pelo portal, com toda aquela claridade machucando suas retinas habituadas à opacidade do ambiente anterior. Por falar no ambiente anterior, esse era o total oposto: cheio de cores vibrantes e sons, porém tudo muito excessivo. Ela já não sentia o bolo em sua garganta e o ambiente era cheio porém não era confortável, muito menos aconchegante. Não havia paz, porém também não era o caos. Era só um lugar turbulento.


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