A Queda escrita por sandsphinx


Capítulo 5
Capítulo IV




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A grama pinicava um pouco suas costas, mesmo que através da túnica, mas era confortável o bastante para que Morzan se deitasse no chão para aproveitar alguns minutos sob o sol forte. Ele tinha os olhos bem fechados para evitar a luz, e ouvia Alexis e Aleifar lhe contarem, em sussurros baixos, sobre Liam, o noviço humano que supostamente fora afastado deles por ter descoberto magia cedo demais.

“Ele vai estudar sozinho agora,” Alexis confidenciou, “para não nos distrair e não nos fazer passar vontade de aprender magias.”

Magia, Alexis,” seu irmão corrigiu. “Não fale no plural.”

Morzan sorriu um pouco. “Como vocês sabem que é por isso que ele foi afastado? Alyva não contaria algo assim para vocês dois, contaria?”

Foi Aleifar quem respondeu. “Alyva não nos conta nada,” disse, se referindo a sua mestra, uma elfa de cabelos escuros e talvez trezentos anos. “Nós a ouvimos conversando com outro elfo, aquele com cabelos tão loiros que parecem brancos e que tem um dragão cinza bem escuro. Fäelan, acho que ele se chama. E por qual outro motivo afastariam algum aluno de nós? Nunca acontece.”

“Fäelan?” Morzan repetiu, franzindo as sobrancelhas, e abriu os olhos para encarar os gêmeos. “Você estavam espiando ela quando falava com Fäelan?”

“Ideia de Aleifar,” Alexis afirmou, abaixando ainda mais a voz ao falar. Seus cabelos loiros brilhavam como ouro na luz do sol, caindo em cachos sobre seus ombros. “Fiquei assustada o tempo todo, consegue imaginar? Ele é terrível, com aqueles olhos tão escuros, e dizem que é completamente impiedoso.”

“É claro que não.” Seu irmão estava sentado ao seu lado, o queixo apoiado nos joelhos. “Ele só é inteligente, e um ótimo guerreiro e feiticeiro. Não sei por que você ouve esses rumores absurdos, Alexis.”

“Não sei,” Morzan ponderou. “Tem algo de errado sobre ele, tenho certeza. Ele é tão frio, e não do jeito normal dos elfos, não daquele modo educado e distante. Fäelan pode gelar seu sangue só de olhar para você, não acha?”

“Metaforicamente, você quer dizer?” Aleifar perguntou, empinando o nariz.

Morzan revirou os olhos; ele se achava tão importante quando usava palavras compridas. “Ele não seria capaz de realmente gelar seu sangue com um olhar, seria? Ninguém tem poderes assim.”

“Se você tem medo de um elfo qualquer, Morzan...”

“Não tenho medo dele, isso seria ridículo. Só acho que deveríamos ficar fora de seu caminho.” Ele fechou os olhos mais uma vez. “Raëd também o acha estranho,” concluiu.

Seu dragão diria aquilo aos dois ele mesmo caso não estivesse tão longe, caçando nas campinas ao redor da cidade. Morzan examinava o horizonte a sua procura a cada poucos minutos, esperando que Raëdsel voltasse; gostaria que saíssem voando juntos ainda antes do anoitecer.

“Falando em pessoas estranhas,” Aleifar continuou, “como está aquele menino que agora estuda com você?”

“Sim, nos conte sobre ele,” Alexis pediu. “Está chato, ter que compartilhar lições?”

Morzan não chamaria de chato. Aquela primeira semana não sendo mais o único estudante sob a tutela de Oromis fora, mais do que tudo, diferente. Não era que Morzan estivesse acostumado a estar sempre sob seu olhar vigilante – o elfo frequentemente o deixava com uma lição e ia cuidar de seus próprios afazeres –, mas que ainda teria que se acostumar a vê-lo explicando algo diferente para um garoto mais novo, às perguntas incessantes de Brom, a ter alguém vindo a ele com dúvidas e pedidos de ajuda. Era mais fácil para Raëdsel, já que Saphira ainda era jovem demais para participar das lições de Glaedr.

Mas ele descobria que gostava do menino.

“Você acha Brom estranho?” perguntou a Aleifar, não de todo surpreso.

“Você não?” ele devolveu. “Já reparou no que ele faz toda vez que entra ou saí de um cômodo? É estranho.”

“É diferente,” Alexis disse, talvez apenas para suavizar as palavras do irmão. “Sabe por que ele faz isso, Morzan?”

“Deve ser algo que ele aprendeu em casa,” Morzan respondeu. “Algum tipo de superstição.”

Ele reparara nos hábitos de Brom também; não só como o menino batia duas vezes no batente de cada porta por qual passava, mas também como ele costumava separar um pouco de comida toda refeição para deixar sobre a janela em uma oferenda aos espíritos. Quando Morzan lhe dissera que espíritos não comiam – não que ele soubesse, pelo menos – e que talvez houvesse ratos em Kuasta, Brom parecera apenas confuso e um tanto magoado, e ele decidira por desistir do assunto.

“Cavaleiros não deveriam ser supersticiosos,” Aleifar opinou. “Devemos nos basear apenas na lógica e na razão, e acreditar apenas naquilo que podemos provar.”

“Você parece um elfo falando,” Morzan disse, “e sabe que eles permitem que Cavaleiros humanos mantenham suas crenças, se quiserem. Adayanna é uma que faz oferendas para seus deuses todo mês, e reza todos os dias, e ela é respeitada por todos.”

“Talvez deuses sejam reais,” Alexis adicionou. “Já pensaram nisso? E mamãe acredita neles, Aleifar. Acho que ela ficaria triste se ouvisse o que você está falando agora.”

Aleifar estalou a língua. “É isso o que você pensa?”

“Acho que nenhum cuidado é pouco. Não tem porque arriscar a ira dos deuses à toa, afinal.” Ela pareceu hesitar um instante. “O que seus pais achavam, Morzan?”

Ele não abriu os olhos ao responder. “Que é inegável que existam forças maiores do que nós, quaisquer que elas sejam, e que nossas vidas não terminam com a morte. Eles não eram muito específicos sobre isso tudo.” Mas Astrid costumava tecer guirlandas de flores toda semana, ele se lembrava, e as deixar no altar de um deus diferente de cada vez. Sua irmã apreciara todo mito e lenda que chegara a seus ouvidos, e sempre se dera ao trabalho de repetir tudo para Morzan. “Não acho que isso importe, de qualquer forma.”

“Por que não?” Alexis perguntou em uma voz muito baixa.

“Não temos como saber, não é mesmo? Só podemos afetar o que acontece em nossas vidas, e parece besteira passar tempo rezando quando podemos trabalhar para conseguir nossos objetivos.” Ele se sentou, tirando uma mecha dos cabelos escuros da frente dos olhos. “E a morte sempre me pareceu muito final.”

Alexis o observava com um pequeno vinco entre as sobrancelhas loiras e os lábios cheios entreabertos, talvez sem saber o que dizer. Ela se aproximou um pouco, no entanto, estendendo uma mão para tocar os cabelos de Morzan. “Você tem um pouco de grama... Posso?”

Ele permitiu que ela puxasse algumas folhas secas que se prenderam aos fios finos e as deixasse cair de volta ao chão. “Obrigado, Lex,” disse, e sorriu.

Aleifar desviara os olhos, e ergueu o queixo na direção do castelo. “Olhem.”

Brom andava ao lado de Oromis pelo corredor, com certeza o distraindo com dezenas de perguntas; o elfo não parecia se importar, no entanto, o respondendo paciente como sempre. Morzan desconfiava que ele apreciasse o interesse de seu mais novo aluno, talvez considerando suas dúvidas prova de sua dedicação ou até mesmo a promessa de um futuro Cavaleiro de muito valor. Aleifar riu baixo ao ver Brom pausar, solene, antes de sair para os jardins, e bater duas vezes com os nós dos dedos no arco de pedra. Mas o menino mais novo só percorria o gramado com os olhos azuis, sem fazer ideia de que era observado.

“O que ele está procurando?” Alexis perguntou.

“Por mim,” Morzan respondeu, se levantando.

Ignorando a provocação de Aleifar e o chamado manhoso de Alexis, ele cruzou o jardim para ir de encontro a Brom e seu mestre. Cumprimentou Oromis primeiro, como deveria, e esperou o elfo se afastar antes de sorrir para o garoto. “Quer se sentar conosco?”

Brom voltou os olhos claros na direção de onde Alexis e Aleifar estavam sentados. “Acho que ele não gosta de mim.”

“Aleifar?” Morzan não seguiu seu olhar. “Ele não gosta de ninguém. Mas Lex é legal, e você precisa conhecer os outros estudantes humanos para não correr o risco de só falar com elfos.”

Ele ainda parecia hesitar. “Eu gosto dos elfos.”

“Você pode gostar deles,” Morzan concedeu, encolhendo os ombros. “Mas isso não te faz menos humano.”

Brom ergueu os olhos para ele. “Não,” disse, parecendo quase decepcionado, e aquilo era algo que Morzan nunca entenderia. Sabia o que era ver como os elfos pareciam estar no centro da Ordem – talvez não oficialmente, mas ainda assim – e se sentir curiosamente excluído, mas querer ser um deles ao invés de simplesmente estar em seu lugar? Não era um sentimento de que ele compartilhasse.

Se forçou a sorrir, apoiando uma mão no ombro do menino para guiá-lo pelo gramado. “Aleifar e Alexis ouviram um rumor,” disse, “sobre o noviço que foi afastado. Dizem que ele descobriu como usar magia por acidente, consegue imaginar? Eu gostaria de poder fazer isso, acabar por usar um feitiço sem nem mesmo ter a intenção. Deve ser incrível.”

Aleifar ouviu essa última frase, e ergueu o rosto para eles. “Você pode ser bom, Morzan, mas não é tão bom assim.”

Morzan só riu. “Tenho certeza de que serei um feiticeiro excepcional.”

“Provavelmente,” Lex concordou, mas ela mudou de posição como se desconfortável. “Às vezes eu penso que não vou me destacar em nada.”

Estranhamente, foi seu irmão quem respondeu. “Talvez não,” ele disse, seu tom tão suave quando poderia ser, vindo de Aleifar. “Mas você tem a vantagem de também não ser ruim em nada, Lexi.” Então ele empinou o nariz, se fazendo de importante, e adicionou, “Pessoalmente, eu quero me dedicar a afiar minha mente.”

Brom se sentou ao lado deles, devagar e cuidadoso, e ousou perguntar, “Para ficar mais inteligente?”

Aleifar riu. “Deuses, não. Isso parece terrivelmente chato, não acha? Quero fazer de minha mente minha melhor arma, do único jeito que importa.”

“Ele está falando de lutas mentais,” Morzan explicou. “Invadir a mente dos outros para os controlar, coisas assim. Ainda não aprendemos isso, também, mas temos contato com as mentes de nossos dragões porque faz parte de nosso vínculo.”

O garoto loiro sacudiu a cabeça, porém. “Não é bem isso que eu planejo. Não lutar, não exatamente.”

Morzan o fitou, curioso. “O quê, então?”

Aleifar só sorriu, e não respondeu. Em vez disso, se deitou na grama e apoiou a cabeça no colo da irmã, fechando os olhos verdes para protegê-los do sol. Alexis tocou seus cabelos, distraída, deixando escapar um suspiro, e Morzan se voltou para Brom mais uma vez.

“Quer que eu te acompanhe até nossos dormitórios?” perguntou, cansando da conversa com os gêmeos. “Depois vou sair para voar com Raëd.”

Eles fizeram seu caminho pelos corredores e jardins do palácio, e ele ouviu sem realmente prestar atenção enquanto Brom lhe contava sobre tudo o que aprendera em sua primeira semana como Cavaleiro. Ele parecia tão empolgado com suas lições e o mundo de conhecimento que de repente se tornara tão acessível, mas Morzan já se acostumara com tudo aquilo há muito tempo. Sorriu ao ouvir que o que Brom mais gostara de estudar fora História, porque, além de magia, era certamente o que havia de mais interessante.

“Só espere começar a aprender a lutar,” Morzan disse, sorrindo também. “É ainda mais divertido.”

“Acha que vou ser bom?” Brom perguntou, a voz baixa, maravilhada, e carregada de expectativa.

“Depois de um pouco de treino, acho que sim,” ele respondeu. “Por que não seria?”

O menino só sorriu em resposta, e se despediu com um aceno ao subir as escadas que levariam a seu quarto – com certeza também aproveitaria de algum tempo com Saphira. Morzan, por outro lado, se recostou contra a parede de pedras e ergueu os olhos para o céu azul, contando os segundos.

Sentiu a presença de Raëdsel antes de o ver, é claro, aquela sensação agradável e familiar de suas mentes se tocando. Está atrasado, tentou repreender, mas estava tão satisfeito com sua volta que falhou miseravelmente em tornar seu tom até mesmo um pouco mais sério. Era mais difícil com pensamentos, de qualquer jeito.

Estou?, veio a resposta, e Raëd estava claramente achando graça. Ele surgiu detrás de uma das paredes do castelo, grande e vermelho e glorioso, e Morzan não o esperou terminar de pousar antes de correr para ele.

Tocando a testa em seu focinho, os olhos fechados, brincou, Vamos fugir, Raëd. Podemos virar foragidos e criar um pequeno império criminoso, e ninguém poderá nos impedir. Quem estaria a nossa altura, quando somos dragão e Cavaleiro?

O dragão bufou, o sopro de ar quente bagunçando os cabelos de Morzan. Talvez os outros dragões e Cavaleiros? Ele empurrou seu ombro com o focinho. Não está desejando morrer, está?

Morzan riu. Só estou entediado.

Ele se afastou para subir nas costas do dragão, a sela já pronta para recebê-lo, e Raëdsel não esperou que terminasse de prender as fivelas à sua perna antes de levantar vôo, se erguendo acima do castelo, da proeminência de pedra que cobria Ilirea, de todo o mundo.

Mais alto, Morzan pediu, e eles subiram mais e mais, até que o ar se tornou frio e rarefeito e difícil de se respirar. Ele se abaixou para se deitar contra as costas de seu dragão, fechando os olhos, e sorriu, contente só por estar em sua companhia.

Eles estavam, finalmente, sozinhos.


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Notas finais do capítulo



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