Pandora escrita por Calpúrnia


Capítulo 1
O começo e o fim


Notas iniciais do capítulo

E eu estou postando mais uma história original.

Esse conto foi escrito no ano passado. Veio de algum lugar dentro de mim (aquele lugar que teima em mergulhar em mares). Eu gosto bastante dele, porque foi puramente pessoal, e se tornou um favorito entre tudo que já escrevi.



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1.

O começo e o fim

Escrito por G. de Oliveira

 

O começo estava em apenas um pensamento, aquele em que eu desejei poder me livrar de todos os meus medos. O fim estava naquele sentimento queimando o meu peito numa mistura de raiva e amor. Todos os meus modos de viver consistiam em andar, andar e andar, um tédio que cobria meus olhos. Eu estava cega quando pensei que a vida segue para uma única direção.”

 

Era o feriado de Independência. As pessoas estavam andando de um lado para o outro, comendo, rindo e conversando. O hino nacional tocava ao fundo, demonstrando que a nação deveria se lembrar de como fomos salvos por pessoas importantes, e aquele som era a prova disto. Particularmente, eu não me importava muito com aquilo; eu sabia que era uma comoção falsa. Lembro-me apenas de estar andando de um lado para outro, comprando algumas comidas e observando o movimento. Quieta e sem-graça, como diriam meus amigos.

Vem! Eles vão acender a fogueira.

No mesmo instante, as pessoas começaram a se aglomerar para chegar ao local da fogueira. Desde algum momento na história humana, queimar a fogueira no dia da Independência virou um costume. Nunca havia participado ou visto algo assim, mas fui uma das últimas a chegar ao local. Todos já estavam na expectativa, mãos à frente do rosto como se estivessem rezando, os olhos brilhando, os pequenos sorrisos nervosos. Era curioso como o ser humano pode ser tão transparente e inocente mesmo quando não possui a inocência.

Vi quando alguns homens se aproximaram. Eles eram os encarregados de acender a fogueira. Eles não pareciam empolgados, apenas estavam ali porque ganhariam algo; provavelmente alguns trocados. Era a Independência, afinal de contas. A animação nas pessoas cresceu consideravelmente, o que é um fenômeno bem interessante de se observar.

Aos poucos, o som do crepitar apareceu. As chamas foram subindo numa velocidade impressionante. O espetáculo havia começado e, para todos, era algo magnífico.

De repente, havia apenas o silêncio. Era um silêncio tão sufocante, e material, porque uma agulha poderia quebra-lo sem qualquer esforço. No ar, eu sentia medo, admiração e miséria. O fogo é tão poderoso, com sua forma de queimar, machucar e destruir qualquer coisa que aparecer. Ali, eu pude ver o fogo destruindo paredes, sentimentos, pensamentos, sensações. Era lento e doloroso, mas silencioso. Uma cobra.

— É incrível, não? A forma como as pessoas temem o que pode destruir seus medos.

Este foi, provavelmente, o momento que eu nunca pude esquecer em minha vida. Fosse quem fosse aquela pessoa, eu sabia que estava certa, e sabia também que fazia parte daquela frase, assim como ela. Aquelas palavras foram diretas em meu coração, destruindo algumas partes dos meus pensamentos, e eu só conseguia olhar a forma como o fogo complementava cada letra.

— Não deveriam. — eu disse, tranquilamente. — Ter medo é natural.

— Medo de destruir seus medos. — repetiu. — Não acha interessante?

— Idiota, talvez. Os medos não morrem.

Senti quando aquela pessoa olhou-me. Não parecia tentar me analisar nem decifrar, mas eu sabia que ele sabia que eu estava mentindo. Ele sabia que eu sentia os mesmos medos. No fundo, eu só não queria perder meus medos, porque eles me mantinham viva. Eu não era nenhuma divindade, não pertencia a nenhuma parte particular do mundo. Apenas uma humana tentando encontrar modos de viver. E ainda assim, eu desprezava os humanos ao meu redor.

Eu não o olhei. Meus olhos estavam atraídos ao fogo, aquelas labaredas subindo cada vez mais alto no céu noturno. E as pessoas continuavam hipnotizadas por aquela força, uma onipotência que ninguém estava acostumado. Como a energia que era, parecia estar sugando cada parte de cada pessoa ali presente. Mesmo distraída com o espetáculo, eu ainda sentia o ar se movendo de acordo com as labaredas, queimando, machucando, arrancando.

— Dói? — ele perguntou.

— Um pouco. — eu respondi calmamente. — É fogo, afinal de contas. Queima.

— É claro. — ele riu. — Mas você não sente medo.

— Por que eu teria? É apenas fogo. Deus não pode me achar aqui.

O silêncio voltou a reinar. Sei que sou malvada quando digo coisas ruins sobre Deus, mas é sempre tão instantâneo. Ele queimava dentro de mim, numa mistura de raiva e ressentimento, arranhando a minha esperança. Não nos damos bem. A pessoa a meu lado pareceu perceber, porque riu confortavelmente, como se soubesse que era verdade e não ligasse para isso.

— Cuidado com as palavras, garota. Vai acabar queimada como uma bruxa.

— Talvez eu seja uma. — sorri.

Virei-me para vê-lo. Não fiquei surpreendida em encontrar olhos negros me encarando. Sua expressão era suave, porém seus ombros estavam pesados demais para alguém que aparentava tanta tranquilidade. Eu não poderia ver, mas sentia o peso, sabia o que estava acontecendo. Acho que foi assim que meu coração disparou e eu entendi que fui encontrada.

Minha essência é ser o que sou. Bem e mal, substância inanimada que não apenas existe, mas vive. Sangue correndo, vibrando no vermelho e no azul. Diante daqueles olhos negros, percebi que eu, na verdade, sou coisa. Coisa forte e corrente, sobrevivente, animal. Sou metade inteira. E não sou nada, no final das contas, porque fugindo dos meus medos e sonhos, virei oca. Não sei se sou real.

— Você não deveria ter medo de si.

— Eu sou o que sou, afinal de contas. — murmurei. — Medos, inseguranças e sangue.

— Isso é ruim.

— Isso é ótimo. Pelo menos sou, e por enquanto isso basta.

O homem de olhos e pele negra olhou-me uma última vez. Ainda que parecesse pesado em seus ombros, seu olhar parecia muito mais satisfeito. O fogo parecia diminuir cada vez mais e as pessoas se dispersavam como se nada tivesse acontecido. Elas simplesmente conversavam entre si, rindo e contando piadas. Era o dia da Independência, afinal de contas. Uma pátria livre.

Estava na hora de ir embora. Porém, antes, voltei-me para o fogo. Pequenas faíscas ainda existiam ali, apenas para demonstrar que não era o fim. Mesmo que mínimo aquele fogo ainda queimava minhas entranhas e aquecia meu coração. Suavemente, eu sentia como a raiva borbulhava, dando espaço para algo que eu nem ao menos sabia existir. O fim era assim.

Era uma bela noite também. Usei uma rota diferente para chegar a casa. Era o dia da Independência, afinal de contas.


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