Contra o Vento escrita por Carol Coelho


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Recomendo essa trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=YOZZomkMZLk
Boa leitura :3



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O gelo derretia dentro do copo, tornando o uísque aguado. A perna de Vicente se mexia nervosamente enquanto seu cérebro procurava algo para dizer. As vezes era muito difícil juntar as letras para formar palavras e juntar palavras para formar frases. Esse era um desses momentos e tudo o que ele queria era que sua tensão acabasse logo.

O relógio que se pendurava de forma precária sobre a parede de madeira do bar tiquetaqueava, o lembrando de seu horário. A noite lá fora estava enevoada e alguns postes na rua estavam sem luz. O vidro sujo e embaçado da janela tornava as formas que transitavam na rua tão tardiamente quase em vultos. Ao final da longa rua havia o píer. Abaixo do píer, a areia e o mar, ou sua casa, como Vicente gostava de chamar nos últimos anos. Gostaria de ter evitado a praia por mais tempo, porém não podia ignorá-la agora pois já eram nove da noite. Estava quase atrasado.

Engoliu o uísque aguado mesmo, só para não jogar seu dinheiro fora. A bebida não lhe trouxe a coragem que esperava que fosse trazer, porém ele desconfiava que nada no mundo traria. Preferia enfrentar noites terríveis em alto mar no meio de uma tempestade do que encarar o que viria a seguir. Se forçou a levantar da cadeira de madeira, como praticamente tudo naquele bar antigo, e se encaminhou para a porta, que fez o sino acima dela retinir anunciando sua saída.

Andou lento e ansioso pela rua de paralelepípedos vendo a vida noturna sempre agitada da cidade povoada por alguns conhecidos que cumprimentava com simples acenos de cabeça. Não queria falar com ninguém. Queria chegar na praia e resolver o quanto antes tudo o que tivesse para resolver. Queria se livrar das pendências naquele lugar, queria ser livre, desbravar o mar, sem amarras, mas sabia que não seria fácil. A caminhada pareceu durar mais do que o normal e ainda assim ser menor do que Vicente desejava. Quando suas botas pesadas não estavam mais batendo em paralelepípedos e sim fazendo barulho sobre as vigas de madeira, ele suspirou. O píer era iluminado por várias lâmpadas e se estendia por uns 50 metros. Suas beiradas eram cercadas e alguns comerciantes vendiam pipocas, bebidas e doces para as pessoas que transitavam.

À esquerda, a escada que descia na direção da areia da praia não parecia convidativa. Ele desceu se arrastando, piscando os olhos para os adaptar a crescente ausência de luz. Quando chegou na base, demorou um pouco para levantar o olhar, mas quando o fez, ele a viu. Era realmente ela em um vestido branco que parecia brilhar, com os cabelos negros soltos sendo sacudidos em todas as direções pelo vento forte que emanava do mar, passando as mãos nos braços descobertos para amenizar o frio. Maria era sua única pendência naquela cidade. Parecia confiante e impositiva, pronta para ralhar com ele por suas atitudes infantis de anos atrás como uma professora severa faria, e com toda a razão. Mal podia acreditar que ela realmente havia vindo ao seu encontro. Ele hesitou, apreciando aquela cena por alguns minutos antes de iniciar sua tortuosa caminhada na direção da mulher que o esperava.

Ela o ouviu antes de o ver. Não o cumprimentou, esperou que falasse.

— Sinto tanto — foi tudo o que disse. Ela demorou alguns minutos antes de responder.

— Eu também sentia e então você se foi.

Ela não ousava olhar para ele ainda pois temia fraquejar tão cedo.

— Eu estava machucado — ele se justificou.

— Eu também estava.

Ninguém disse nada. As ondas do mar agitado e escuro quebravam à sua frente, quase chamando Vicente para si e a mulher ao seu lado era a âncora que o mantinha em terra firme. O manteve por muito tempo, no sentido figurativo e literal.

— Por que voltou? — ela quis saber com a voz forte porém mal conseguindo sustentar o próprio corpo sobre os pés.

— A minha culpa quase afundava meu barco todos os dias de tanto que pesava.

— Então não deveria ter ido nunca — sussurrou em um fio de voz, finalmente se rendendo e virando para encará-lo com sua máscara altiva se quebrando e mostrando uma mulher machucada e triste. — Não devia ter sumido assim, Vicente. Desaparecido totalmente sem avisar e se manter sumido por três anos!

Ele não ousou abrir a boca pois sabia que a mulher brigaria com ele e ele deixou-a ter seu momento de descontar a raiva, pois era assim que eles funcionavam, porém nessa noite tudo parecia levado ao extremo e estava sendo mais difícil do que ele imaginou que seria. Ela era sua âncora literal e figurativa e eles sempre funcionaram bem dessa forma. Em um belo dia ele havia desancorado, sumido por três anos e em outro belo dia se sentiu forte para retornar à sua âncora, mas sem se ancorar novamente. Voltou só para lhe dizer que não havia afundado e que ainda se importava com ela, que ainda pensava nela. Sabia que tinha algumas justificativas para dar, mas em sua cabeça era algo simples então por que esse momento estava sendo tão difícil? Ele lutava para encarar seus olhos marejados e não olhar para o chão como um menino culpado. Perante o silêncio dele, Maria continuou.

— Todos os dias eu acordava imaginando onde você estava, se já teria morrido, se estava bem. Imaginava o que estava acontecendo com você.

Maria fechou as mãos em punho para impedi-las de acariciar o rosto de Vicente que exalava culpa. Vicente ponderou com os olhos fechados suas atitudes. Havia as justificado com sua mágoa, pesar e tristeza porém jamais imaginaria que sua, justamente a sua distância deixaria Maria mal daquela forma.

— Até hoje eu não entendo por quê — sussurrou nervosa, passando as mãos pelos cabelos e voltando a mirar o mar com os braços cruzados sobre o peito. — Se voltou somente por culpa, sugiro que parta assim que o sol raiar, pois eu te perdoei no momento em que você partiu. — confessou.

Vicente sabia o que viria a seguir e tentou parar a mulher.

— Maria...

Ela não lhe deu ouvidos.

— Eu te amava, Vicente.

Ele fechou os olhos com força.

— Ainda amo — e soltou uma risada amarga, agora deixando suas lágrimas escorrerem pelas bochechas. — Mas você não me deve nada. É livre para fazer o que quiser, claro. Nunca me deveu nem nunca me deu satisfações. Eu jamais as poderia cobrar, afinal.

— Nunca quis te machucar — afirmou. — Mas é o que eu faço, Maria — confessou.

Maria não lhe deu ouvidos. Afirmaria até a morte que Vicente era o homem mais íntegro e bom que já havia conhecido, não importava o que acontecesse. Sabia que a insegurança, a tristeza e esses sentimentos todos o haviam transformado naquele homem mas também sabia que o Vicente que conhecera ainda estava lá em algum lugar. Inacessível, porém lá. E ela nunca desistiria dele. Por mais forte que o vento soprasse seu barco para longe, ela ainda estaria ali.

— É só o que eu sei fazer. Eu estava mal, Maria — disse, em derrota. — Não queria te deixar mal junto comigo.

— Sempre preferi estar mal com você do que estar bem sozinha. E você também. O que aconteceu, Vicente? — ela exigiu saber, se virando para ele novamente. Seu rosto brilhava com as lágrimas e Vicente sentiu o impulso de tocá-la e secar suas lágrimas tomar conta de si, porém não podia fazê-lo. Não podia alimentar a esperança de que tudo ficaria bem. Havia voltado para a cidade com um propósito: resolver suas pendências. Depois iria embora. Iria embora para sempre da cidade, da vida de Maria. Partiria de uma vez a corrente que prende o barco à âncora, assim ambos seriam livres.

— Maria, quero que me escute — ele disse, lhe segurando os ombros e a fazendo olhar em seus olhos. O choque das íris claras dela em contraste com as de Vicente que beiravam o preto parecia fazer eletricidade surgir ao redor dos dois. — Não fale. Apenas ouça.

Ele soltou seus ombros e passou as mãos nervosas pelo cabelo. Era o primeiro contato físico que tinham em três longos anos.

— Quando eu te conheci, eu estava em um poço muito, muito fundo, cheio do mais puro desespero pois eu não sabia quem eu era, o que eu queria, o que a vida me reservava. Éramos jovens, cheios de expectativas sobre tudo e tínhamos medo pois éramos jovens e cheios de expectativas sobre tudo. A vida mal começara. Sei que você também não estava passando por seus melhores dias. Conseguimos sobreviver juntos a maioria deles.

As lembranças de longas caminhadas naquela praia ou pelo centro da cidade tomaram conta da mente de Maria. Todas as sensações que sentira, todos os pensamentos que tivera. Tudo parecera tão bom, tão certo, tão eterno. Tão especial.

— Eu não sei em que momento você resolveu enfiar nessa sua cabeça teimosa que eu era uma ótima pessoa e que seria uma ótima ideia se apaixonar.

— Para... — Maria tentou detê-lo. Essas lembranças eram dolorosas. Ela fechou os olhos.

— Não, me escuta — por mais difícil que fosse, ele precisava terminar o que havia começado sem pretensão. — Em algum momento acho que eu correspondi também, não sei ao certo. — disse confuso com uma risadinha nervosa e sem graça. — Mas a culpa não é sua, Maria. A culpa é minha que percebi meus erros tarde demais e percebê-los foi outro erro, que pareceu romper uma barragem. A água veio e devastou tudo.

Maria se lembrava bem de quando tudo começou a dar errado.

— Todas as coisas horríveis que podiam acontecer com alguém aconteceram comigo, uma atrás da outra. Tudo foi de mal a pior com uma velocidade inacreditável e você sabe bem disso.

— Vicente — Maria tentou pará-lo mais uma vez, porém ele estava determinado a encerrar as coisas com a maior sinceridade possível. Ele não lhe deixou continuar.

— Eu tentei somente me afastar por alguns dias. Sei que deixei a todos preocupados. Mas eu não queria machucar mais ninguém. Então, ela morreu e... — a voz de Vicente morreu também nesse ponto e um violento soluço lhe escapou os lábios. — Eu não podia mais ficar aqui, Maria. Eu só te machucaria mais e mais se eu ficasse. Então, numa bela manhã, antes da cidade acordar, eu roubei o barco do meu avô — doía nela ouvi-lo descrever sua fuga com tanta neutralidade, ou o máximo de neutralidade que o choro permitia. — E fui embora.

O silêncio se fez presente, pesado. Maria também estava entregue às lágrimas. Os dias ensolarados estavam frescos em sua memória ainda. Os dias cinzas também.

Eles jamais conseguiriam precisar quanto tempo durou aquele momento que, apesar da ausência total de contato físico, era muito íntimo. As lágrimas rolavam de maneira nem um pouco graciosa ou delicada. Pareciam pequenas brasas queimando-lhes as faces e fazendo arder os olhos.

— Você sabia que eu estava machucada também, Vicente

— Nós temos jeitos muito diferentes de lidar com as coisas, Maria.

— Acho que isso diz tudo, não?

E dizia mesmo.

O confronto estava terminado. O passado havia finalmente sido deixado no passado. Ambos sabiam o que aconteceria no futuro: Vicente partiria novamente, dessa vez para sempre. Nenhum dos dois ousou dizer uma palavra sobre o presente. Ele era assustador pois estava sobre eles. Era assustador pois não era uma lembrança ou uma expectativa. Era assustador pois não é possível se preparar para o que já está acontecendo. A praia estava vazia e as ondas ainda rebentavam com violência na areia.

Nenhum dos dois estava preparado para o que veio a seguir. Nenhum dos dois saberia dizer como o desejo súbito de contato cresceu dentro de seus corpos. Começou com um abraço firme e inocente que ninguém planejou, um abraço como os de antigamente, quando um consolava o outro depois de um dia ruim. Depois do abraço, um beijo menos planejado ainda. E o resto talvez seja só história de pescador mesmo.

***

Maria acordou sozinha na praia com os raios fortes e quentes de sol batendo em seu rosto, envolta em uma jaqueta com um cheiro forte de mar, madeira e creme de barbear. A areia sob si já estava quente. Maria se sentou e jogou a jaqueta para o lado. Ela não chorou. Mirou o mar e o pequeno barco de pesca era somente uma silhueta distante no horizonte, se afastando da cidade. Aceitou em silêncio a situação. É difícil ir contra o vento quando ele está muito forte.


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Notas finais do capítulo

Obrigada você que leu até o final ♥ Se puder deixar um review vou ficar muito grata, é sempre bom saber o que vocês acham. Fiquem na paz, tmj



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