Meu Anjo da Guarda escrita por Milady Sara


Capítulo 5
Adeus




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Rachel entrou no quarto com uma bandeja repleta de comida e um sorriso forçado no rosto. Hannah havia se recusado a sair de seu quarto naquela tarde e a noite. Era impossível culpá-la, então Rachel estava fazendo de tudo para que ela se sentisse melhor e pudesse esquecer logo a noite anterior, mesmo que com aquele machucado, inevitavelmente levaria algum tempo. Mas ela era uma criança, iria superar e seguir em frente com seu sorriso e sua linda presilha de coelho.

A mãe colocou a bandeja em cima da cama e sorriu para a filha, que estava agarrada aos joelhos, sem dizer uma única palavra desde que ela chegara.

— Seu jantar, meu amor. – falou, mas recebeu de volta apenas um olhar inexpressivo. – Sei que ontem foi uma noite difícil, mas agora tudo vai voltar ao normal, certo? – de novo, olhar inexpressivo. – Er... Se precisar de mim, eu vou estar lá embaixo.  – e saiu do quarto, se sentindo a pior mãe do mundo por não pode alegrar sua filha, aquilo afinal era sua culpa, cabia a ela dar um jeito de consertar.

Dentro do quarto, o amigo de Hannah saiu de trás das cortinas da garota lentamente, como sempre fazia. Movimentos lentos e às vezes imperceptíveis, dobrando suas finas pernas com cuidado. Ele a contemplou. Sua pobre criança... Seu rosto tão puro e inocente parecia agora tomado pelos pecados de seu desprezível genitor. Ela comeu seu jantar sem muita vontade, a comida descendo seca por sua garganta, o que era incomum, já que macarrão com ervilhas era seu prato favorito. Ela bebeu do copo de suco, mas realmente parecia que tudo de comestível ia lutar para entrar em seu organismo.

Ele sentou-se ao lado dela, e apelou mais uma vez. Para que viesse com ele, deixasse tudo aquilo para trás e tivesse a vida que toda criança merecia. Em seu lar, sua mansão, cheia de crianças como ela, que agora eram felizes e sem preocupações que para começar elas nem deveriam ter.

— Não vai precisar. – disse ela. – A senhorita Sinclair vai vir me buscar. Ela prometeu que ia me ajudar. – mas talvez ela não pudesse. Por mais bem intencionada que tal mulher realmente fosse, talvez ela não pudesse fazer nada. – Para com isso, ela pode ajudar sim! – e voltou sua atenção para a comida, enquanto ele a observava com tanta ternura quando sua face sem rosto permitia transmitir.

~*~

Amanda respirou fundo e bateu na porta da casa. Sentiu que apertava demais o papel que trazia em suas mãos e que era melhor parar antes de destruí-lo. Logo, passos pesados se aproximaram da porta e um homem alto e moreno a abriu e em seguida a olhou nos olhos, um segundo depois eles brilharam de esclarecimento quando ele pareceu lembrar quem ela era.

— Senhorita Sinclair. – proferiu Ben River quase como se quisesse parecer sedutor e simpático ao mesmo tempo. – O que a trás aqui há essa hora?

— Senhor River. – ela estava em pânico, mas mesmo assim estendeu o papel que trazia na frente do rosto dele. – Eu vim para buscar a Hannah. Fui levada a crer que aqui não é um ambiente adequado para ela então fui autorizada pelo juiz a leva-la comigo. – ele pegou o papel das mãos dela e parecia realmente estar lendo. – Já que os agentes do conselho tutelar estão resolvendo um problema em um orfanato nas redondezas, eu estou autorizada a leva-la comigo. – essa era a pior parte, ela achava que apareceria ali com um carro preto e vários empregados públicos, mas era apenas ela. A baixinha e loira Amanda Sinclair, que não conseguia intimidar nem o menor dos cães. Enquanto ele lia o papel, ela pôde ver Hannah aparecer na escada atrás dele e observar a situação. Por fim, Ben a olhou de novo e amassou o documento na frente de seus olhos.

— Nenhum juiz vai me dizer com quem minha filha pode ou não ficar. – ele falou entredentes e jogou o documento amassado no chão. – Quer tirar ela de mim? – ele perguntou irônico, deixando seu rosto a centímetros do dela. – Então quero ver você tentar sua sapatão nojenta. – e fechou a porta. Amanda ficou estática por alguns instantes, sem acreditar que aquilo havia acontecido mesmo.

— Senhor River! – ela bateu na porta com toda a sua força e raiva crescente. – Eu tenho autoridade para leva-la!

Eu já disse!— ele gritou de dentro da casa. – Quero ver você tentar!

Amanda sentiu seu rosto ficar vermelho de tanta raiva. Fazia muito tempo que não era tão desrespeitada! Ele queria vê-la tentar?! Pois então ela tentaria, ela e uma força policial especialmente raivosa que não gostava nada de alcoólatras que perpetuavam o estereótipo do caipira americano. Logo depois de desamassar o documento da melhor forma que podia ligou para o telefone de Todd.

Alô? Mandy? O que foi?— ele perguntou do outro lado da linha.

— Todd, eu preciso de você e de quantos policiais você puder trazer na casa dos River AGORA! E se o pessoal do conselho tutelar tiver voltado melhor ainda. – falou ela quase sem respirar. -Você tem que prender Ben River e me ajudar a tirar a filha dele dessa casa.

O quê? Por quê? O que aconteceu?

— Violência doméstica, contra uma mulher e uma criança, desobediência de ordem judicial e como se não bastasse, homofobia.

Estou a caminho.

— Por favor, rápido. – acrescentou ao ouvir sons estranhos vindo da casa.

~*~

— Eu já disse! – Ben gritou de dentro da casa. – Quero ver você tentar!

Logo depois de gritar com Amanda através da porta, ele se virou e viu Rachel a alguns passos de distância e Hannah na escada. Ele olhou para a pequena com uma fúria que ela jamais havia presenciado, o ar saiu de seus pequenos pulmões ao se perceber alvo daquele olha assassino. Em seguida, Ben avançou na direção da filha, mas Rachel se jogou sobre ele, o empurrando para a sala e impedindo de subir a escada.

— Ben, não! – ela disse o empurrando para longe da escada com todas as suas forças. Um som de porta batendo foi ouvido vindo de um dos quartos.

— Essa pirralha andou falando o que não devia para quem não devia Rachel! – berrou Ben segurando os braços da mulher e depois a empurrando de volta. - Se ela acha que teve uma surra ontem, hoje ela ver o que é uma surra de verdade. –e se precipitou novamente para o caminho do andar de cima.

— NÃO! – Rachel se colocou no primeiro degrau da escada, olhando o marido nos olhos. A respiração dele lembrava a de um touro pronto para atacar, encarando-a fundo em seus olhos. Ela não se permitiu fraquejar, mordeu o lábio inferior para que ele parasse de tremer e esticou os joelhos para não desabar com o próprio corpo.  

— Você vai me desobedecer, Rachel? Tem certeza? – falou ele de modo ameaçador.

— O que quer que você queira fazer com ela, pode fazer comigo. – disse firmemente.

— Se é o que você quer. – finalizou ele entredentes, antes de segurá-la pelo queixo.

~*~

Hannah tropeçou em suas sandálias quando subia as escadas e elas acabaram caindo de seus pés quando ela se pôs de pé novamente e bateu com força a porta de seu quarto, o coração mais acelerado do que nunca, seu rosto latejando, como se voltasse a doer apenas com a lembrança da noite anterior e o medo de aquilo se repetir. Senhorita Sinclair não ia conseguir, não ia.

A pequena se virou e viu seu amigo, tenso, virando a cabeça de lado como quem pergunta o que aconteceu, mas tendo certas suspeitas do que fora. Entre os arquejos da pequena, uma frase saiu de seus feridos lábios, a frase que ele tanto queria ouvir e que finalmente lhe fez pensar que agora sim, ela ficaria bem.

— Me tira daqui, me leva com você. – ela disse rapidamente. – Não me importa para onde, só me tira daqui, por favor, por favor. – correu e se agarrou as pernas dele. – Não deixa o papai me machucar de novo.

~*~

Rachel subiu as escadas se apoiando na parede, sem nenhum equilíbrio e sentindo o gosto de sangue em sua boca. Havia visto Ben subir, mas aparentemente ele havia ido para o quarto deles lavar as mãos ensanguentadas, porém mesmo assim, ela estava desesperada, precisava ver Hannah e saber que ela estava bem, dizer que ficaria tudo bem, mas quando abriu a porta do quarto, sentiu suas pernas fraquejarem e sua respiração parar.

Ali ao lado de Hannah, estava o que deveria ser um homem, mas definitivamente não o era. Homens não eram tão altos, magros, pálidos e principalmente, tinham rosto. Não uma superfície perfeitamente lisa e branca que ao olhar fixamente, Rachel pensou que fosse ser engolida por um sentimento de mais puro terror. Caiu sentada no chão, duvidando que fosse conseguir se levantar, tentando sussurrar o nome da filha.

O mundo parecia se distorcer conforme ela não conseguia desviar o olhar daquela face pálida, lembrou de todas as surras que já havia levado de seus pais, seus irmãos, seus namorados e de seu marido. A dor dos chutes, tapas e socos voltava e parecia que ela sofria aqueles golpes todos novamente, conforme os rostos de seus agressores piscavam em sua visão conforme ela escurecia e eles pareciam cada vez mais próximos, seus sussurros falando todo tipo coisa horrível.

A figura sem rosto se aproximou, parecia pronto para pular em cima dela e cortar-lhe a garganta, mas sua filha se adiantou e colocou-se entre os dois. Mandando-o parar e em seguida virando-se para a mãe.

— Esse é o meu anjo, mamãe. Eu sei que você achava que ele era faz de conta. – o tal “anjo” tinha Rachel fixa em seu olhar invisível, ela não conseguia desviar e conseguiu sentir seus olhos lacrimejando devido o tempo que estava sem piscar. – Ele vai me levar embora, para um lugar bom. Você não precisa mais se preocupar, tá? A senhorita Sinclair vai cuidar de você, mas tem que obedecer ela direitinho. – ela lhe deu um beijo na testa, segurou a mão da criatura e os dois passaram por cima de sua figura aterrorizada, sangrenta e chorosa.

Ela se virou enquanto eles desciam as escadas, tentou chama-la, mas sua voz não saia. Conforme o estranho ser se afastou tudo de ruim que ecoava em sua mente também se foi. O que estava acontecendo? Quem era aquele homem? Por que ele estava levando sua filha? Por que ela não conseguia ir atrás dela...?

Rachel se deitou no chão, sentindo lágrimas descerem por seu rosto junto com suas últimas forças.

— Rachel...? – ouviu a voz de Ben a chamar. Olhando para cima, ela o viu observando o quarto vazio. – Cadê. A. Hannah? – ele perguntou pausadamente, mas ela não sabia responder. Rangendo os dentes, ele avançou para cima dela.

~*~

Seu amigo a conduzira pela porta dos fundos, para que fossem embora pela floresta. Os dois andavam devagar, conforme suas longas pernas permitiam. Apenas quando pisou na grama úmida do início da floresta do fundo de seu jardim, Hannah percebeu que estava descalça. Olhando para seus frágeis e desprotegidos pés, ela se preocupou. Não sabia quão longa seria a caminhada, seus pés poderiam ficar machucados.

Olhando para trás ela lembrou de seus sapatos azuis em seu quarto. Mas não queria voltar lá. Uma fina e fria mão lhe fez carinho na bochecha boa, e olhando para seu amigo, ele lhe disse que pegaria seus amados sapatos, ela apenas teria que esperar um pouco. Ele logo voltaria. Com um sorriso, ela concordou e o viu entrar de volta na casa.

Ele entrou devagar, tomando cuidado com cada passo, para não denunciar sua presença, mas ao se aproximar da escada ouviu um ruído, vários na verdade. Vários baques surdos. Subindo os primeiros degraus, ele pôde ver o que acontecia exatamente na frente do quarto de Hannah.

Rachel tinha seu rosto, ou o que restava dele sendo esmagado pelos punhos pesados e furiosos de Ben. O sangue escorria pela escada, Rachel já não estava mais viva, mas ele não parava, socando a cabeça sem vida de sua esposa com um olhar insano.

Mesmo quieto, Ben sentiu seu olhar invisível, e ao erguer os olhos e vê-lo, a reação de sempre ocorreu. Olhos arregalados, respiração parada e medo, muito medo percorrendo seu ser inteiro.

Finalmente. Hannah não estava ali para pedir clemência pelo traste. Ele poderia finalmente acabar com aquele homem que conseguia ser mais monstro do que ele mesmo, como desejava desde o primeiro dia que pisara naquela casa. O alcoólatra desprezível era o motivo de ele ter ido lá e seria um prazer imensurável livrar o mundo da presença dele.

Ben não sentiu medo, sentiu pavor. Sentiu vontade de chorar e correr ao mesmo tempo, ele era novamente uma criança, com um avô carrancudo lhe colocando uma espingarda na mão e apontando para criaturas lhe mandando tirar suas vidas sem razão nenhuma, apenas para enchê-las de serragem e pendurar nas paredes onde elas o olhariam condenando-o por suas mortes eternamente, não importava onde fosse na enorme casa.

As paredes pareciam derreter e apodrecer, animais mortos piscavam em sua visão, seus olhos esbugalhados o fitando, o culpando. O chão se tornou gritos de dor e as paredes se encheram de famintas aranhas, o mundo se distorcia diante dos olhos de Bem.

A face do pavoroso homem sem rosto então começou a se abrir, exatamente na metade, revelando a maior e mais horrenda boca que ele já vira. Fileiras infinitas de dentes, se estendendo pela garganta e além, e desse além, surgiam tentáculos feitos da mais pura escuridão. Os membros da criatura pareciam se quebrar enquanto ele se encolhia e então pulava para cima dele, e a última coisa que Ben sentiu foi medo enquanto sentia cada fibra de seu corpo ser rasgada em mordidas e puxões, e a certeza de que até que sua alma deixasse de existir, ele sentiria aquela dor a cada segundo, e ela apenas pioraria.

~*~

Todd arrebentou a porta de uma vez, arma em punho, junto com outros quatro homens igualmente fardados e armados.

— Espalhem-se, achem a criança! – instruiu ele quando entraram e os homens se espalhavam pela minúscula casa.

— Chefe! – gritou um homem do andar de cima. – Tem corpos aqui!

— Fique aqui, Mandy. – Todd falou para a amiga quando subia a escada.

Amanda sentiu vontade de vomitar ao ver o sangue chegar ao pé da escadaria e correu para o jardim para pegar ar fresco. Por quê? Ela havia feito tudo certo... Hannah não podia ter morrido, não podia. Então ela vomitou. A comida meio digerida e a bílis rasgando sua garganta e fazendo sua boca pegar fogo antes de enfim saírem deixando os dentes dela com um gosto ácido de ferrugem.

Ela respirou fundo e ao erguer a cabeça limpando o canto sujo de sua boca, ela a viu. Hannah e... Seu “anjo”...? Mas como era possível...? Ele era imaginário... Não era...? A vontade de vomitar subiu novamente por todo seu esôfago, mesmo que ela não tivesse mais nada para expelir.

Ele calçava nela seus adorados sapatos azuis com flores brancas. Deus, ele realmente não tinha rosto. A criança sorria para ele e mesmo sem rosto parecia haver ternura em como ele a tratava.

Amanda os encarava sem saber o que fazer nem como reagir. Então ele a olhou, se é que isso era possível sem olhos. Apenas parado com a cabeça virada em sua direção imóvel. Ela não conseguia parar de olhar, suas orelhas ignoraram todo o barulho que os policiais faziam ás suas costas.

Logo, Hannah repetiu o gesto do amigo, ela sorriu e acenou para Amanda, como se estivesse feliz, como se o mundo finalmente fosse tudo aquilo que ela desejava que fosse. Olhou para o homem de terno, segurou sua mão e os dois se viraram e desapareceram floresta adentro.

Amanda sinceramente precisava de todo o vinho do mundo agora.


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Notas finais do capítulo

E aqui se encerra essa história!
Capítulo bem difícil também, nunca tinha escrito algo de medo e talz, o que acharam?
Obrigada a você que leu :3.
Link original da imagem do começo >>> https://matex98.deviantart.com/art/Slenderman-321969565



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