Domingos escrita por Paloma Machado


Capítulo 1
Domingos


Notas iniciais do capítulo

Esta história pode causar aversão a carne XD

Boa leitura.



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Domingo, 17 de janeiro, 20h00.

 Pelo que me lembro, foi quando tudo começou.

Um homem puxou a gaveta e me pegou. A luz tênue embaçava minha visão, impedindo-me de ver claramente onde eu estava, mas aos poucos pude distinguir os legumes coloridos ao meu lado e o barulho de algo fritando em uma panela; também pude sentir o frio de uma pedra de mármore e a leve onda de calor que emanava da chama de um fogão.

Ele abriu a geladeira e retirou uma bandeja de isopor com um peito de frango dentro, rasgou o fino plástico que a envolvia e colocou o pedaço de carne sobre uma tábua, bem próximo de mim. Depois de dois ou três minutos finalmente me acostumei com a luminosidade e então pude me localizar.

Tratava-se de uma pequena cozinha, sofisticada e reluzente; a pia de inox brilhava como se fosse nova, os utensílios perfeitamente organizados sobre o balcão e os alimentos dispostos em ordem de preparo. Tive pouco tempo para analisar o ambiente, pois ele logo me pegou pelo cabo e lançou-me em direção a carne bege.

Eu nunca havia passado por algo tão horrível. Sentir o fio de minha lamina cortar aquela carne fria e mole me fez ter pesadelos. Mesmo depois de limpa e guardada, eu nunca mais voltaria a ser a mesma.

 

Domingo, 14 de fevereiro, 20h03.

 Quase um mês havia se passado desde aquela experiência terrível, quando achei que superaria, fui retirada outra vez da gaveta. Lá estávamos novamente, naquela cozinha bela e organizada. Desta vez não havia muitas coisas sobre o balcão, apenas uma taça de vinho branco e alguns temperos.

Ele abriu a geladeira e meu coração gelou. Um pacote de carne vermelha com formato redondo foi pego e colocado ao meu lado. O homem olhou para a panela e deu um leve tapa sobre a própria testa, saiu apressado da cozinha indo em direção ao quintal.

Essa era minha chance, juntei todas as minhas forças para sair dali, porém meu desespero foi tanto que acabei caindo na cuba da pia. Ele logo voltou, com um maço de cheiro verde em mãos, olhou-me confuso e depois me colocou novamente sobre a tábua. Abriu o pacote da carne, despejando-a em uma panela com óleo quente; foi quando suspirei de alívio. A cebolinha e a salsinha foram lavadas e eu as cortei em pequeninos pedaços.

Talvez ele tivesse se arrependido da crueldade acometida a mim. Era no que eu queria acreditar.

 

Domingo, 20 de março, 20h27.

Ouvi a porta batendo e chaves sendo jogadas sobre a mesa. Eu estava mais calma, no entanto, ainda com receio do que me aguardava.

Ele estava com pressa, acho que havia se atrasado. Colocou água para ferver e ligou o forno elétrico, jogou uma sacola de mercado sobre o balcão e pegou uma bandeja de bistecas suínas. Fechei os olhos e tranquei a respiração, um tempo se passou e nada me aconteceu. Voltei a abrir os olhos e então vi as bistequinhas temperadas dentro de uma forma sendo levadas para assar.

O homem lavou batatas e cenouras, usou-me para descascá-las e cortá-las em belos cubos. Ouvi a campainha tocar e um arrepio percorreu-me o corpo; já havia ouvido das outras vezes, mas nunca tinha visto quem entrava. A porta se abriu e uma bela mulher apareceu, usava um vestido delicado, os cabelos arrumados e uma maquiagem que deixava seu olhar sedutor. Ela deixou a bolsa sobre o sofá e se sentou em um dos bancos altos para observar o rapaz cozinhando; ele beijou seus lábios docemente e ofereceu-lhe uma bebida.

Então ele cozinhava para ela uma vez por mês? Romântico.

 

Domingo, 17 de abril, 20h32.

Ele não veio pra casa, era aniversário dela, acho que foram jantar fora.

Decidi ir explorar um pouco. Saí da gaveta por conta própria e pulei sobre a pia, tomando cuidado para não escorregar. A casa não era muito grande, mas espaçosa para apenas uma pessoa. As cores das paredes, tapetes e almofadas eram neutras, uma decoração contemporânea, quadros com molduras largas enfeitavam os cômodos.

Passei um longo tempo observando tudo, talvez mais de uma hora. De repente um barulho vindo da cozinha me despertou, apressei-me para ver o que era.

— Olá? – perguntei olhando ao redor. – Quem está ai?

— Oi, desculpe-me, acabei caindo – uma espátula levantou-se sobre o balcão.

— Você está bem? – fui até ela para ajudar.

— Sim, não se incomode, já vou para o meu lugar – ela se preparou para voltar ao gancho.

— Espere! – pedi sem hesitar. – Você não quer conversar?

— Conversar? – ela me olhou como se eu estivesse delirando.

— Sim. Bem... Estamos aqui há tanto tempo, pensei que seria legal bater um papo – ri nervosamente.

— Eu não quero ser grossa, mas para o seu próprio bem, volte para o seu lugar – ela disse pendurada na parede.

— Como assim? Eu... – ouvi o barulho da tranca da porta, pulei para dentro da gaveta e a fechei.

O que ela quis dizer com aquilo?

 

Domingo, 15 de maio, 20h05.

Sai da gaveta decidida a entender o que havia acontecido.

— Ei! Você! - chamei a espátula.

Ela não respondeu.

— Sei que está me ouvindo – aquilo me chateava.

— O que você quer? – ela finalmente respondeu.

— Eu não entendi o que você disse da última vez – disse com expressão confusa.

— Volte para seu lugar – ela repetiu – e aconselho que faça isso agora.

— Eu ouvi o que você falou, mas não entendi o que isso quis dizer – expliquei.

— Eu vi como você ficou aterrorizada na primeira vez. Se você acha que se livrou, não se engane, apenas começou – ela disse com total frieza.

— O que começou? – meu batimento acelerou.

Ouvimos o barulho da tranca novamente.

— Se você quer mesmo saber, fique ai como uma tola – ela deu um sorriso medonho e se calou.

O homem entrou cantarolando, parecia muito feliz, mal conseguia conter o sorriso. Ele dispôs as compras no balcão e lavou as mãos.

— O que você faz aqui? – ele perguntou me olhando. – Será que me esqueci de guardá-la? Tanto faz...

Ele pegou três pimentões coloridos e os lavou, retirou as sementes e me usou para cortá-los em fatias. Eu estava feliz, aquilo era muito bom, certamente um belo prato sairia naquela noite. Pensamento infeliz. Ainda cantarolando ele retirou bifes vermelhos e ensanguentados de uma vasilha, colocou-os sobre a tábua e me pegou com as mãos sujas.

— Já que está aqui.

 Depois de picar o primeiro pedaço de carne eu desmaiei, não aguentava aquilo. Acordei um tempo depois, já limpa e guardada, ainda tremia um pouco. Como ele pode fazer aquilo outra vez?

— Eu avisei – ouvi a espátula logo acima.

Aquela espátula maldita.

 

Domingo, 19 de junho, 20h45.

Eu ainda estava em choque.

Desta vez um pedaço de carneiro foi preparado. Deixei que me usasse sem fazer qualquer esforço contra, eu não estava em mim, minha mente mantinha-se o mais longe possível daquela realidade.

— Não adianta fingir que nada está acontecendo, uma hora você vai ter que aceitar. – A espátula disse com deboche – quem sabe no fim você até acabe gostando.

Ela estava louca?! Alguém precisava ariar seu cérebro.

A bela mulher apareceu novamente. Beberam e riram durante toda a noite, e acabaram dormindo no sofá.

 

Domingo, 17 de julho, 20h13.

 No fim acabei seguindo o conselho da espátula maníaca. Esforcei-me para aguentar toda aquela chacina, foi extremamente exaustivo.

Para me distrair comecei a prestar atenção na conversa dos dois que jantavam. Eles pareciam ter se conhecido na festa de Ano Novo, uma paixão que vinha durando por vários meses. Ela tinha 25 anos, modelo fotográfica, indo bem na carreira. Apesar de não dizer claramente, ele parecia não gostar muito daquilo; era deveras ciumento.

 

Domingo, 21 de agosto, 20h47.

Desta vez havia sido menos cansativo, a carne de peixe era mais fácil de cortar e mais limpa, apesar do cheiro desagradável. Devo admitir que a barca de sushi ficou realmente atrativa, mas talvez fossem necessárias muitas garrafas de saquê para digerir tudo aquilo.

A conversa foi sobre planos de viajem, faculdade... Mas assim que ela começou a falar sobre os amigos, ele torceu a cara e mudou de assunto. Logo depois foram para o quarto e eu para minha gaveta.

 

Domingo, 18 de setembro, 20h07.

Desta vez ela veio mais cedo, iria ajudar no preparo do jantar.

Não sei dizer o que fizeram, mas eu havia cortado muitos tipos de carnes, aparentemente havia me acostumado com aquilo, mas ainda não gostava. Eles jantaram e depois assistiram a um filme.

— Fofo não é? – manifestou-se a espátula.

— Sim... – concordei, por obséquio.

— Pena que não vai durar muito mais... – ela jogou no ar.

— Oi?! – olhei incrédula, mas ela já não prestava mais atenção.

Aquela espátula sabia de alguma coisa, e eu tinha o pressentimento de que não era nada de bom.

 

Domingo, 16 de outubro, 20h19.

Ele entrou e bateu a porta com força, jogou as coisas sobre o sofá e passou direto pela cozinha. Ouvi o barulho da água saindo do chuveiro.

— Parece que hoje não teremos jantar – a espátula deu uma risadinha.

— Me diga. O que você sabe? – perguntei sem rodeios.

— Nada... – ela desviou o olhar.

— Não se faça! Você faz esse joguinho toda vez – disse irritada.

— Oh querida! Eu só não quero estragar a surpresa – ela piscou.

Sorte dela que eu não a alcançava, caso contrário teria a estrangulado ali mesmo.

 

Domingo, 20 de novembro, 20h53.

 Desta vez ela veio, acho que fizeram as pazes.

— Ela voltou, viu só? – eu disse me achando um pouco.

— Como todas as outras, minha cara – a espátula riu sarcástica.

— Todas as... Outras? – olhei para a louca.

— O que? Não me diga que você achou que ela era a primeira? – ela riu de minha inocência.

Franzi a cara envergonhada.

— Olhe só. Ela não foi a primeira e nem será a última – ela disse como se tivesse absoluta certeza.

— Como pode saber disso? – questionei.

— Preste atenção – ela indicou o casal.

Em poucos minutos eles estavam discutindo. A moça contou que iria acampar com os amigos e o homem explodiu em raiva na hora. Ela levantou para ir embora, ele segurou seu pulso, machucando-a.

— M-mas o que ele está fazendo? – eu estava perdida.

A jovem deu um tapa no rosto dele e foi embora chorando.

— É sempre assim... – resmungou a espátula.

— Por que teve que ser assim? – fiquei realmente triste por eles.

— Porque eu não sei, mas posso afirmar que ainda não acabou, não para ele pelo menos... –lá veio ela com mais um de seus enigmas.

Eu temia pela bela mulher. O que aconteceria depois?

 

Domingo, 18 de dezembro, 20h00.

O homem entrou sério em casa, no entanto agia com calma.

Organizou as compras sobre o balcão, como de costume, colocou a panela no fogão e pegou os utensílios. Fez um belo prato de salada, com direito a uma flor de tomate. Petiscava um queijo fresco acompanhado de vinho tinto, colocou um CD para tocar e começou a cantarolar pela cozinha. Estranhei a demora em preparar a carne, talvez fosse algo especial, uma reconciliação.

Depois de moer vários temperos e adicionar condimentos a alguns legumes em uma travessa de vidro, ele finalmente tirou a carne da sacola. A primeira impressão que tive foi de que era carne de porco, talvez um pernil, mas não... A pele era mais fina e macia, a carne mais vermelha, e teve uma coisa que me chamou a atenção. De todas as carnes que eu havia cortado naquele ano, aquela era a única que estava morna.

Ele terminou o preparo do jantar e arrumou a mesa, serviu-se e sentou para comer. Desta vez a bela mulher não apareceu.

 

E foi assim que tudo terminou... Para ela, claro.

Pois para mim, havia apenas começado.


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Notas finais do capítulo

Não se acanhe, diga o que achou :3

Beijos.



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