Sunday Shoes escrita por lovegood


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Olha só, faz mil anos que eu não postava algo aqui. Essa não é a minha primeira oneshot relacionada ao Stephen King, mas foi particularmente difícil de escrever, porque já faz uns três anos desde que eu li IT. É um livro que mexeu muito comigo desde o começo e eu sempre pensei em escrever algo relacionado a essa magnífica obra, mas a falta de coragem sempre foi maior. No final do ano passado, entretanto, a emoção de finalmente ter assistido a uma adaptação recente boa de uma das melhores obras de Sai King me moveu a escrever isso aqui. A inspiração da história em si se deu por outra obra de King, "Novembro de 63", que inclui uma cena com o Richie e a Bev.
Era pra ser uma one curtinha, mas acabou sendo um pouco maior do que o esperado. Eu preferi manter o período dos anos 80 igual ao do filme, e não do livro, porque, sinceramente? É uma época mais fácil para se situar uma história, e uma época da qual eu tenho mais conhecimento, do que os anos 50. E também porque, como eu já disse, a memória do livro não está tão recente em minha cabeça.
A dinâmica entre o Richie e a Beverly sempre me atraiu muito (e a ausência dela no filme foi algo de que senti falta), então espero ter escrito algo que faça jus. A premissa em si é bobinha, mas eu queria escrever algo mais fofo mesmo... esses dois já passaram por perrengues demais por causa de um certo palhaço demoníaco.



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Quando Beverly Marsh olhava para Richie Tozier, ela nunca sabia ler suas expressões.

Ela olhava para aqueles olhos enormes, ampliados pelas grossas lentes dos óculos que cobriam metade de seu rosto, e não sabia dizer o que se passavam neles.

Ela tentava olhar por trás de sua expressão risonha, por trás de seu constante meio sorriso piadista, e não encontrava nada. Tudo que Beverly sabia sobre Richie parava nas piadas sujas, nos palavrões que ornamentavam todas suas frases, nos constantes insultos à mãe do Eddie, nas suas diversas imitações.

Para mais além, nada havia. Era como se Richie fosse um quadro em branco.

Beverly Marsh se sentia intrigada e frustrada por isso. Ela queria saber mais sobre Richie, afinal de contas, ele não era seu amigo? Não fazia parte do Clube dos Otários? Tudo bem, ela podia não saber de tudo sobre os outros meninos – mas pelo menos conseguia ler algo em suas expressões. O carisma que tornava Bill Denbrough o líder natural do grupo,

(às vezes, Beverly olhava para Bill e um súbito e inconsciente lampejo passava por sua mente, fazendo-na imediatamente pensar em todas as coisas que poderia sacrificar por ele)

a serenidade e extrema maturidade nos olhos de Mike Hanlon. O carisma escondido por trás da inicial fachada reservada de Stanley Uris, a devoção na expressão de Ben Hanscom,

(Cabelos de fogo

como brasas no inverno.

Meu coração queima.)

a lealdade por trás da expressão asmática e hipocondríaca de Eddie Kaspbrak. Fazia pouco tempo que Beverly os conhecia, é verdade, mas ela os amava. Os eventos dos últimos meses, que os uniram de uma forma que ela nunca havia pensado ser possível antes, provavam isso.

No entanto, quando Beverly Marsh olhava para Richie Tozier, ela não sabia o que pensar. Uma coisa era certa: a sua habilidade de fazer as pessoas rirem era única. Beverly o admirava por isso: a propensão para o humor parecia ser inerente à figura magra e desajeitada de Richie. As expressões fluíam de sua boca com a ferocidade de um lince, de maneira incomparável. Era um talento natural, algo que ele fazia parecer incrivelmente fácil. Por outro lado, a facilidade em despejar palavras ácidas e fazer delas um próprio show muitas vezes se transformava na capacidade mais plena de transmutar o riso em irritação, principalmente quando Richie se dirigia a pessoas de fora do Clube dos Otários. Bip-bip, Richie, era a única coisa que os Otários conseguiam dizer, nesses momentos em que os limites eram ultrapassados.

Na maioria das vezes, ao ser repreendido, o semblante de Richie não mudava. Ele se aquietava – ainda mais quando fossem Eddie ou Stan a mandá-lo calar a boca –, mas a atitude brincalhona parecia permanecer.

Na maioria das vezes. 

Porque Beverly nunca se esqueceu de alguns momentos, em que Richie se aquietava e seus olhos enormes se dirigiam ao chão, como se ele não quisesse que os outros os encarassem por muito mais tempo. Richie sabia disfarçar bem, mas Beverly percebia. Por uma fração de segundo, a garota via naqueles olhos a expressão mais crua de insegurança.

Aquilo apertava o seu coração.

 

 

Quando Richie Tozier olhava para Beverly Marsh, ele nunca sabia ler suas expressões.

Ele olhava para seus cabelos flamejantes e olhos claros, e não conseguia nem ao menos pensar no que poderia estar passando por sua mente.

Beverly Marsh era linda, isso era verdade, e não era nem um pouco como os rumores – iniciados pelo grupo daquelas desgraçadas lideradas por Gretta Keene e fomentados ainda mais pela gangue de Henry Bowers, é claro – a faziam parecer. Richie se lembrava muito bem de como Beverly parecia reluzir, deitada despreocupada sob a luz do sol e vestida apenas com suas roupas de baixo, naquele dia em que os Otários haviam se divertido no lago. Ele se lembrava de como os outros garotos também a observavam, e não os culpava. Não havia como desviar o olhar, de qualquer forma – Bev parecia carregar consigo um imã inexplicável, que puxava a todos, como um buraco negro em formação.

Havia um nível de atração que Richie sentia, sim, mas ele mesmo sabia reconhecer que não era o mesmo tipo de atração que Bill e Ben sentiam, por exemplo. O magnetismo que parecia puxá-lo em direção à Bev se dava muito mais por uma espécie de… fascínio? Não sabia explicar direito, mas sabia que queria conhecer a garota em sua essência. Apesar de bondosos, os olhos de Beverly carregavam um certo pesar, possivelmente construído ao longo dos anos pelas mãos de ferro de um pai controlador e abusivo. Ao pensar nisso, ele tinha vontade de vomitar.

Mesmo que ele e Bev já fossem amigos há certo tempo, Richie às vezes sentia como se houvesse uma cortina entre ambos, impedindo-os de se conhecer de verdade. Parte da culpa disso era do próprio Richie, visto que ele mesmo escondia suas inseguranças dos amigos. Ele, no entanto, preferia ignorar essa parte. Era muito mais confortável enterrar os pensamentos obscuros bem no fundo de sua cabeça, em um lugar em que tentava tornar inalcançável. Era muito mais fácil dizer a seus amigos que seu maior medo era de palhaços, pois pelo menos esse era um conceito palpável.

Tudo bem, até certo ponto Richie tinha medo de palhaços. Todos eles eram feios e assustadores e, pelo amor de Deus, quem foi que algum dia pensou que crianças os achariam engraçados ou bonitinhos? Isso lhe dava arrepios, de fato. Mas ele não podia contar aos outros sobre os verdadeiros pensamentos que o mantinham acordado nas noites insones; não podia falar sobre o que havia visto naquele quarto escuro da casa da Rua Neibolt, quando aquela coisa

(Pennywise, o palhaço dançarino!, ecoava aquela voz estridente, apesar das memórias estarem lentamente se apagando de sua mente)

o atormentara, mostrando-lhe sua própria foto num cartaz de desaparecidos, mostrando-lhe seu próprio cadáver, personificado em um boneco dentro de um caixão. Não apenas Richie estaria morto – sua boca também estava costurada. Ele seria silenciado e esquecido, e ninguém mais se importaria com ele… Richie tentaria gritar, falaria milhões de palavrões e obscenidades sobre a mãe dos outros, traria à tona uma infinidade de vozes distintas, mas qual seria o objetivo? Visto que ninguém o escutaria?

(pare de pensar nisso pare de pensar nisso pare de pensar nisso)

E, assim, Richie não teria mais o controle de seu próprio destino. Ele cairia para sempre, no vácuo infinito, cercado apenas pelo silêncio e sem conseguir ouvir o som de seus próprios gritos de socorro. Porque ninguém se importava com ele, nem sua família, nem Bill ou Beverly ou Ben ou Eddie ou Stan ou Mike

(pare de pensar nisso PARE DE PENSAR NISSO)

e de repente Richie sentiu como se estivesse se afogando em um mar de claustrofobia, sufocando-o, sendo devorado de dentro para fora, com a voz da Coisa ecoando em sua cabeça e vendo apenas balões vermelhos e Georgie e Betty Ripsom e Patrick Hockstetter vagando mortos pelos canos do esgoto e cartazes de desaparecidos com a inscrição RICHIE TOZIER – 13 ANOS DE IDADE abaixo de uma foto sorridente sua, pare de pensar nisso pare de pensar nisso pare de pens–

— Richie!

A voz que o chamou foi como um estalo, chamando-o de volta para a realidade. Richie deu um salto, aprumando o corpo como reação involuntária ao susto levado. Com o devaneio, não havia percebido que havia enterrado a cabeça entre os joelhos e colocado as mãos sobre os ouvidos.

O ataque de pânico foi aos poucos se dissolvendo e Richie se viu sentado no banco da praça central de Derry, próximo à enorme estátua de Paul Bunyan que parecia apenas trazer um nível de poluição visual ainda maior à cidade. Suas mãos caíram ao lado do corpo magro. Um rastro de suor descia por baixo de sua camiseta.

— Você está bem? – Richie se deparou com Beverly, sentada ao seu lado, com uma ruga de preocupação marcando sua testa. Ainda meio atordoado, ele assentiu. A princípio, a linha não desapareceu da testa da garota. Ela olhou para um lado, depois para o outro, um tanto furtiva, e aproximou-se de Richie, agora com a voz mais baixa. – Foi algo relacionado com a… Coisa?

Richie assentiu outra vez, ajeitando nervosamente seus óculos. Sua garganta estava seca. Sentiu Bev prender a respiração por um breve momento. Depois de alguns longos segundos de um silêncio tenso, Richie conseguiu falar:

— Foi só um devaneio. Nós já o derrotamos, Bev.

Ela engoliu em seco e concordou com a cabeça.

— Eu sei. Mas é estranho… parece que estou me esquecendo das coisas que aconteceram. Você também?

— Sim – a voz de Richie saiu meio estrangulada. – Mas acho que até prefiro esquecer certas coisas. Parece que o mau tempo em Derry já passou. Eu sinto que a gente vai ter que voltar um dia para se livrar dessa merda de novo, mas não agora.

Beverly soltou um murmúrio de concordância. Alguns segundos depois, para a surpresa de Richie, a garota passou um de seus braços por cima de seu ombro, num gesto cúmplice. Richie ajustou os óculos outra vez na ponte do nariz e apoiou um braço desajeitado na cintura da ruiva.

Tornou a olhar o rosto de Beverly. Ela sorriu com os lábios ainda fechados. Ele retribuiu o gesto e perguntou a si mesmo como um dia pôde ter duvidado dela,

(quem foi que convidou a Molly Ringwald para o grupo?, ele havia dito e ela lhe mostrara o dedo do meio)

ao mesmo tempo em que aquele sentimento de fascínio platônico voltava à sua mente. Entretanto, ainda não conseguia decifrar sua expressão.

 

 

Beverly Marsh não entendia quem era Richie Tozier na maioria dos dias, e aquele não era exceção. No entanto, isso teria de ser deixado de lado pelo menos pelos próximos minutos, enquanto estava parada no corredor da escola e viu o rapaz de óculos sair do banheiro. Aquele seria o único momento em que conseguiria fazê-lo o convite – o dia letivo acabara de chegar ao fim e logo todos os Otários se reuniriam no Barrens. Beverly não teria outra chance de estar a sós com ele, e, pelo amor de Deus, aquele era o último dia para fazer as inscrições.

Ela não tinha certeza se ele realmente aceitaria o seu convite, mas isso não lhe incomodava. A questão era que, dentre os Otários, Richie parecia o mais apropriado a ser convidado, ainda que os outros provavelmente aceitariam se tivessem a chance.

Beverly olhou para trás outra vez, em direção à parede do corredor, onde estava colado um enorme cartaz, e inspirou fundo.

4ª COMPETIÇÃO ANUAL DE DANÇA DE DERRY

JUNTE SEU PAR E FAÇA SUA INSCRIÇÃO!

— Richie? – chamou Beverly, assim que o rapaz passou por ela no corredor. Ele se aproximou com um meio sorriso, ajustando os óculos na ponte do nariz. Apesar da garota não conseguir ler suas expressões com a frequência que gostaria, aquele meio sorriso era bem conhecido. Significava que ele estava prestes a fazer uma cena.

Richie pôs a mão na frente da barriga e fez uma reverência profunda em direção à Beverly, seu torso fazendo um ângulo de noventa graus em relação às pernas. Nessa posição, ele não conseguiu ver os olhos da ruiva revirarem, muito menos o riso que passou por seus lábios.

— A que devo essa magnífica honra, ó vossa excelência? – disse ele em falsete. A voz era tão ridícula que dessa vez Beverly foi incapaz de conter uma gargalhada, o que aliviou um pouco o nervosismo de chamá-lo para ser seu par de dança. Richie voltou a se aprumar, ajeitando outra vez os aros grossos dos óculos. – Vai ao Barrens mais tarde?

— Vou sim – assentiu. – Então, Richie. Eu queria saber se você está livre daqui a duas semanas. Sábado à noite, sendo mais específica.

Richie dramaticamente franziu o cenho e pôs a mão no queixo, como se refletisse por um tempo mais longo do que o necessário. Foi apenas quando Beverly sentiu seus próprios globos oculares revirarem – de forma quase involuntária, como sempre fazia em relação às ceninhas de Richie Tozier – que ele respondeu:

— Na verdade eu tinha marcado uma sessão de sexo selvagem com a Madonna no Derry Town House, mas ela vai entender se eu adiar alguns dias. Por você eu sempre abro exceções, señorita. – Beliscou a bochecha de Beverly com a ponta dos dedos.

— Porra, Richie, não faz isso – a ruiva afastou a mão do rapaz com um tapa, mas ainda sem disfarçar a risada. Ele sorriu ainda mais e, para a surpresa da garota, parou de lhe encher o saco.

— O que tem daqui a duas semanas?

Beverly não respondeu, apenas apontou para o cartaz atrás de si. Richie apertou os olhos para lê-lo, o que não era mesmo necessário, visto que as letras eram garrafais. Ela percebeu que aqueles olhos diminuindo de tamanho no esforço de ler o cartaz, mas ainda ampliados pelas grossas lentes, faziam Richie assumir uma aparência engraçada.

Nesses poucos segundos em que Beverly analisou seus olhos, ela se perguntou o que se passavam neles, e não soube nem no que pensar. Uma onda de incerteza começou a descer por suas costas.

Richie abriu a boca para responder. Beverly respirou fundo.

E então eles foram interrompidos por uma figura que passou entre os dois, empurrando-os agressivamente para cada lado. Por pouco não caíram no chão.

— O que está fazendo, putinha? – esganiçou a voz de Gretta Keene. Beverly sentiu seu rosto esquentar de raiva; tinha a consciência de que sua pele devia estar da mesma cor de seus cabelos. – Está se preparando para tirar a virgindade do quatro-olhos?

Gretta explodiu na boca uma bola de chiclete.

— Ah é, eu já tinha me esquecido que você já fez isso naquela nojeira que é o Barrens. Bem como o resto dos seus amigos perdedores, não é?

Beverly estava prestes a abrir a boca para dar àquela vagabunda o que ela bem merecia,

(mais tarde Beverly Marsh teria um pouco de vergonha, mas naquele momento teve um certo prazer em imaginar a filha do farmacêutico sendo devorada por aquele palhaço – como ele se auto-intitulava, mesmo? Ela não conseguia mais se lembrar)

mas foi o próprio Richie quem respondeu em seu lugar:

— Por que você não vai chupar o seu pai, Gretta? Já que ele não consegue controlar o próprio pau quando vê meninas da nossa idade?

O rosto de Gretta se contorceu numa careta de ódio, enquanto Beverly não fez questão de esconder um riso de escárnio. A primeira se limitou a mostrar-lhes o dedo do meio, andando em direção à saída fumegando de raiva.

Richie estendeu a mão e trocou um high-five com Beverly, ambos sorrindo cúmplices. Estavam outra vez sozinhos no corredor.

— Ei, Bev?

— Hm?

— Vamos esmagar todo mundo nesse torneio de dança.

Beverly encarou os olhos de Richie. Apesar de não entender muito bem o que se passava neles, dessa vez não se importou.

 

 

Richie Tozier não entendia quem era Beverly Marsh na maioria dos dias, e aquele não era exceção.

Não entendeu o porquê de a garota ter chamado justamente ele para ser o seu par na competição de dança, mas achou melhor não perguntar, porque talvez nem Beverly soubesse responder. Dentre os Otários, acreditava que Mike poderia ser um melhor dançarino, mesmo que nunca fosse admitir isso em voz alta.

De qualquer modo. Se Beverly é quem o havia escolhido, quem era Richie para dizer que outra pessoa seria melhor?

E o pequeno conflito com Gretta Keene no corredor fora o suficiente para fazê-lo se sentir animado. Não só animado, como extasiado. E quando Richard Tozier ficava extasiado, significava que ele iria até o fim. Não importava o que acontecesse.

— Ótimo! – ouviu a voz de Beverly exclamar ao seu lado, os dois ainda parados no corredor. – Vou deixar nossos nomes na secretaria. A gente se vê no Barrens, Rich. Prepare-se para os ensaios.

Beverly acenou para ele e começou a andar em direção à porta do corredor, o mesmo caminho o qual Gretta havia seguido. Richie acenou de um jeito meio bobo, imerso em seus próprios pensamentos. Observou a amiga de costas, conforme ela andava, 

(será que algum dia eu vou entendê-la?, pensou)

e naquele momento não pôde evitar sentir uma pontada do sentimento mais puro de afeição pela amiga. Sim, os dois destruiriam a pista de dança, nem que fosse necessário combater aquela coisa— como era mesmo o nome daquele palhaço? – para tanto.

— Ei, Richie? – Beverly havia se virado na direção dele, uma das mãos apoiada em uma das portas duplas do colégio. Richie teve de ajeitar os óculos outra vez. – Não vamos falar sobre isso para os outros. Seria legal se fosse uma surpresa, no dia.

Beverly lhe lançou uma piscadela e virou-se de costas, indo embora antes que Richie pudesse responder algo.

(Provavelmente não).

 

 

— Bev, New Kids on the Block é coisa de virgem. Não podemos dançar uma música deles!

Beverly não conseguiu segurar a risada ao ouvir o que saiu da boca de Richie. No entanto, teve de cobrir a boca com a mão ao ver que os olhos gigantes do amigo a encaravam como se não entendessem o porquê daquilo ser tão engraçado. 

A ruiva lembrou-se de que Ben havia retirado o pôster do grupo de trás da porta do quarto, e por isso teve de se recompor.

— Ok então, seu transudo. Você tem alguma sugestão?

 

 

George Michael, Richie? Sério mesmo? – exclamou Beverly, com um misto de incredulidade e riso na voz, parada na sala de estar da residência dos Tozier. – Desde quando isso?

Richie corou violentamente e correu para arrancar o LP que estava nas mãos de Beverly.

— E-eu não escuto isso! É dos meus pais!

Beverly riu ainda mais, murmurando um “a-hã”, enquanto Richie se atrapalhava para guardar o disco na caixa que ficava ao lado do sofá.

— Achei que você só escutasse rock ou algo assim, Rich – provocou a garota, começando a puxar um disco do ABBA. Richie lhe deu um peteleco na mão antes que ela pudesse retirar o LP da caixa, o que Bev respondeu com um tapa no ombro.

Não é meu, caralho!

Beverly poderia continuar a provocá-lo, mas parou, ao perceber o quão constrangido Richie estava. Ele havia corado até as orelhas e empurrava seus óculos na ponte do nariz com frequência tal que aparentava ser até um tique. Não podia negar: ver Richie sem a habitual atitude de olhe-como-estou-um-passo-a-frente-de-você era um tanto aliviador, às vezes. Mostrava que havia algo, de fato, naqueles olhos enormes, algo além da máscara que ele utilizava para o mundo exterior.

Era até fofo vê-lo em tal estado de… vulnerabilidade? Beverly não tinha certeza se essa era a palavra certa, mas parecia ser a mais próxima. Ela encolheu os ombros por um momento e encarou Richie nos olhos, tentando – de certa forma – reconfortá-lo:

— Rich, eu estava zoando. Eu até gosto do ABBA. Mamma mia, here I go again, my my, how can I resist you?

— Acho que é melhor procurar outro lugar para ensaiar – ele murmurou, puxando-a em direção à porta de entrada da casa. Não comentou em voz alta, mas reparara que Beverly tinha uma voz bem bonita. – Se bem que vai ser difícil achar um lugar que nenhum dos Otários percebam. Acho que o Eddie está suspeitando de algo, ele não para de me encher o saco.

Beverly revirou os olhos e, mal tendo sido arrastada para fora da casa dos Tozier, agarrou o pulso de Richie e puxou-o outra vez para a sala de estar.

— Richie, nós dois sabemos que o seu sótão é o único lugar decente que temos para ensaiar. – Ele lhe lançou um olhar que parecia dizer que a casa estaria indisponível caso Beverly o provocasse mais. – Eu juro que não vou ficar enchendo o seu saco por você gostar de George Michael.

Richie respirou fundo.

— Eu não gosto dele… – parou ao ver as sobrancelhas levantadas de Beverly. – Só de algumas músicas.

— Ah, tá.

Foi a vez de Richie revirar os olhos, movimento tal que era potencializado pelo efeito das lentes dos óculos. Beverly sorriu e lhe deu um soco de brincadeira no ombro. Ela sentia como se, aos poucos, estivesse quebrando a máscara de Richie e finalmente conseguindo olhar para dentro dele.

Ainda não completamente, entretanto.

 

 

— A gente podia dançar algo no estilo de Dirty Dancing, que tal?

Richie não estava falando sério, mas riu consigo mesmo ao ver os olhos de Beverly se arregalarem de horror ante à possibilidade de ele ter de levantá-la acima de sua cabeça.

— Você não é nenhum Patrick Swayze, Rich. Eu conseguiria no máximo ter um traumatismo craniano.

— E você não é nenhuma Jennifer Grey também, né, Bev?

— Eu nunca disse que sou!

Richie achava que Beverly era ainda mais do que a Jennifer Grey, mas não falou isso em voz alta. Ajustou os óculos desajeitadamente no rosto ao ter esse pensamento, o que fez Beverly encará-lo de forma engraçada, como se ela houvesse sentido que Richie tinha pensado em algo a mais do que falara.

Por um instante, seu estômago pareceu afundar ante o pensamento de que talvez Beverly fosse uma mutante, capaz de ler mentes. Será que ela estaria lendo seus pensamentos agora? Oi, Bev, tudo bem? Você está me ouvindo?

O silêncio que havia se instalado no ar se tornou um tanto constrangedor, quando Richie percebeu que a pausa se tornara muito grande, em todo esse meio tempo em que ele se perdeu em seus próprios devaneios. Beverly franziu o cenho, ainda encarando-o, mas com o canto dos lábios se abrindo em um sorriso.

Não, pensou, se ela lesse mentes não teria feito essa cara. Era uma expressão de quem não o estava entendendo – a maioria das pessoas, em algum ponto de suas vidas, fariam essa expressão quando Richie dissesse algo idiota –, mas, diferente das outras pessoas, o rosto de Beverly não exprimia aquela feição de pré-julgamento, que Richie tanto odiava. Bev estava confusa, de fato, mas era mais num sentido cômico, de quem achava graça daquela situação.

Na maioria das vezes, os outros simplesmente decidiam ignorar as atitudes de Richie, empurrando-o de lado e enxergando suas gracinhas como meras baboseiras de um adolescente problemático. Ocorrera tantas vezes que Richie conseguia enxergar esse sentimento nos outros sem que eles precisassem ao menos abrir a boca: um único olhar era o suficiente. 

Porém não Beverly. Seus olhos claros eram inquisitivos, mas não de forma agressiva. Ele teve a impressão de que Beverly Marsh fazia-lhe uma análise de raio-x, observando seus ossos. Pior, observando sua própria alma. Sentiu-se estranhamente vulnerável sob o olhar da garota. Percebeu que Bev queria entendê-lo.

Depois de tantos anos construindo uma identidade própria e digna de ser externalizada para os outros – Richie Tozier, o palhaço

(palhaço? havia algo de importante relacionado a um palhaço, algo muito importante, que fora importante para o destino dele e dos Otários, mas não conseguia mais se recordar)

da sala, o piadista, o Boca de Lixo, o imitador de vozes –, aparecia agora essa garota de olhos claros e cabelos flamejantes para desconstruí-lo de todas as formas possíveis, escavando-o a fim de encontrar o verdadeiro Richie Tozier. O Richie empático, risonho, que amava seus melhores amigos e que, apesar de tudo, era extremamente inseguro.

Não soube dizer se o fato de Beverly querer conhecê-lo de verdade o reconfortava ou o assustava. Talvez os dois.

— Que tal Footloose?— a voz de Beverly puxou-o de volta para a realidade. Richie pensou outra vez na ideia de a ruiva ser como uma estrela explodindo, formando um buraco negro que puxava tudo e todos em sua direção, algo acima de sua própria compreensão de leigo. – Tem um ritmo bom para se dançar, eu acho.

Richie assentiu.

— Acho que é uma boa.

Talvez ele se sentisse mais reconfortado se ele pudesse conhecê-la melhor também, mas já havia admitido para si mesmo que isso nunca aconteceria.

 

 

Richie Tozier e Beverly Marsh não eram coreógrafos de qualquer tipo, mas acreditavam estar fazendo um trabalho decente, considerando o tempo disponível até a apresentação – faltava apenas uma semana – e o fato de que nunca haviam dançado juntos antes.

A coreografia que criaram parecia ser uma mistura de diversos gêneros, nenhum dançado em sua integralidade: meio blues em alguns momentos, meio swing em outros, um improviso completo de passos harmonizados conforme o ritmo da música na maioria deles.

Eles começavam a dança separados, um ao lado do outro, em passos sincronizados. Da direita para a esquerda, da esquerda para a direita; estalando os dedos durante todo esse período. A batida forte da música, misturada aos acordes da guitarra, tornava necessário que o foco maior da dança estivesse nos pés. Era apenas no refrão que Beverly e Richie se juntavam, dando as mãos.

Richie tinha de se inclinar e os dois chutavam com o pé esquerdo, girando a cintura de forma a fazer com que eles fossem em direções opostas. Ainda de mãos dadas, se afastavam e Beverly voltava a se aproximar, girando para a esquerda, depois para a direita.

Na volta, entretanto, Richie errou o posicionamento das mãos, o que fez com que Beverly perdesse o direcionamento no último giro e esbarrasse com tudo nele. Os dois foram direto para o chão.

— Richie! – exclamou Beverly. – Você nunca consegue fazer essa parte direito!

Era verdade; o refrão estava sendo o maior obstáculo para o rapaz. Beverly logo se levantou e parou a música. Apertou um botão no boombox para rebobinar a fita, preparando-a para tocar novamente.

— Vamos, Rich. De novo.

Ela estendeu a mão para erguê-lo, mas Richie já havia deitado no chão e não dava sinais de quem gostaria de levantar tão cedo.

— Ah não, Bev! Pausa de vinte minutos. Já dançamos demais hoje.

Já faziam quase duas horas daquela tarde de sábado que eles estavam ensaiando. Era um dia quente e bonito; o raio de sol que passava pela janela do sótão da casa dos Tozier, combinado com o fato de que eles não paravam de dançar, fazia com que o ambiente parecesse um forno. Ainda deitado, Richie esfregou os olhos, secando o suor que se acumulava embaixo dos aros dos óculos. Conseguia também sentir o suor por baixo de sua camiseta, na parte de trás do pescoço e nas axilas, empapando o tecido cinza.

Beverly suspirou, igualmente cansada. Richie sentiu uma toalha sendo jogada na sua cara.

— Dez – disse Beverly. – Pode se secar. Você está suado e fedido.

— Isso porque você não viu como eu fico depois de comer a mãe do Eddie.

Bip-bip, Richie!— exclamou ela, ainda assim entre gargalhadas. – Que nojo!

A garota foi até a janela e a abriu, permitindo que uma corrente de ar fresco entrasse e deixasse a pele de Richie gelada. Esse repentino frescor fez com que ele fechasse os olhos.

Era um momento de paz.

O restante dos Otários não havia planejado se encontrar nesse dia, o que motivou Richie e Beverly a darem uma desculpa qualquer para eles e se encontrarem para ensaiar. Bill havia dito que precisava de ajuda em um projeto de história, portanto devia estar com Ben na biblioteca. Mike tinha de ajudar o avô na fazenda, e Richie se lembrava de ter ouvido Stan chamar Eddie para fazer algo relacionado com o seu hobby de observar pássaros. Era provável que os dois se juntassem mais tarde com Bill e Ben para irem ao fliperama.

Ainda de olhos fechados, sentiu quando Beverly se deitou no chão ao seu lado. Permaneceram quietos por um bom tempo. Numa das primeiras vezes em sua vida, Richie não se sentiu compelido a abrir a boca para falar qualquer merda a fim de preencher o silêncio. Para ele, o silêncio era quase sempre pesado, constrangedor, opressor. Isso o forçava a abrir a própria boca, ainda que nada de valor saísse de lá, num mecanismo automático e involuntário de evitar o vazio da quietude.

Mas não dessa vez. O silêncio dividido com Beverly era confortável e tranquilo, colocando Richie num estado de espírito que raramente sentia.

— Ei, Richie? – quem quebrou o silêncio foi Beverly. No entanto, a situação de paz ainda era a mesma. A voz dela era calma e macia.

— Hm?

— Obrigada por ter aceitado o meu convite. Percebi que eu ainda não tinha o agradecido.

Richie deu um tapa no ar, como se dissesse que não havia o porquê daquilo.

— Não tem de quê, señorita

 

 

— Vocês estão planejando fazer algo no sábado? – perguntou Beverly para os seis garotos

(cinco, na verdade, mas eles não sabiam que Richie já fazia parte do que ela estava falando)

que estavam sentados ao seu redor no Barrens, numa tarde tranquila de terça-feira.

A competição já estava aí, e Beverly começava a sentir a antecipação embrulhar o seu estômago. Olhou com o canto do olho para Richie, que agiu como se não soubesse do que ela estava falando. Pelo menos ele estava fazendo sua parte, o que deveria acalmá-la um pouco mais.

No entanto, não era isso que estava acontecendo. 

Olhou para cada um dos Otários, torcendo para que estivesse agindo naturalmente e eles não percebessem que na realidade ela estava ficando cada vez mais nervosa.

— A-acho que não – disse Bill, dando de ombros e fitando um pedaço de grama nas próprias mãos, com o qual brincava. Beverly reparou que sua gagueira parecia estar diminuindo. – Está p-pensando em algo?

— Sábado tem o show de talentos da cidade. Vi um cartaz dizendo que vai ter uma competição de dança junto – disse ela, tentando soar o mais casual possível. – Podíamos dar uma olhada… ouvi dizer que a dupla ganhadora da categoria juvenil tem direito a dois meses grátis no fliperama.

Todos os garotos se entreolharam, menos Richie. Este tentava esconder um leve sorriso no rosto.

— Por que a gente não se inscreveu, antes de tudo? – perguntou Stan, e todos riram. Beverly lançou um olhar de cautela para Richie, avisando-o para se conter e não jogar na cara de todos que ele estaria participando.

Richie teve de morder o lábio para não soltar a língua. Foi difícil, mas ficou quieto.

 

 

Sábado.

O auditório já estava enchendo de gente quando os sete membros do Clube dos Otários se encontraram na entrada.

Beverly havia chegado mais cedo e entrado pela porta dos fundos, deixando o vestido que usaria na apresentação com uma das mulheres que estava organizando o programa, em um dos camarins do teatro. Ela e Richie tinham de se encontrar com o resto do grupo na entrada, de forma a diminuir suspeitas. Sentariam-se com eles na plateia durante a primeira hora do show, destinada à apresentação miscelânea de talentos. Quando a competição de dança em si estivesse prestes a começar, teriam de arranjar uma desculpa para sair. Portanto, seria no mínimo estranho se ela já chegasse bem vestida. Havia apenas arrumado o seu cabelo e passado uma maquiagem básica, o que seria mais fácil de explicar, caso perguntassem.

Entretanto, Richie não tivera a mesma linha de raciocínio. Ao vê-lo, Beverly teve de resistir o impulso de cobrir o rosto com as mãos.

— Por que você está tão arrumado? – perguntou Eddie, parecendo roubar as palavras das bocas de todos ali presentes.

O cenho de Richie se franziu por um momento, e ele olhou para si mesmo. Vestia uma camisa lisa azul marinho e calças bem alinhadas. Não estava completamente destoante das outras pessoas de Derry, mas ainda assim a diferença com suas habituais roupas era considerável. Por um curtíssimo espaço de segundo, a boca de Richie se abriu em um curto O. Os rapazes não pareceram perceber, mas Beverly sim. Uma das maiores qualidades de Richie Tozier, no entanto, era sua mente ágil e extremo jogo de cintura, algo pelo qual Beverly ficou agradecida.

— Não ficou sabendo, Eds? Vou me encontrar com a sua mãe mais tarde! Aposto que o boquete dela é bem gostoso…

— Porra, Richie, cala a boca!

— Que “porra” o quê, você que perguntou, seu merda! – Richie ergueu a mão para Stan, em uma unilateral tentativa de receber um high-five. Stan apenas agarrou o pulso de Richie, puxando-o para baixo.

— Galera, isso não vai fazer diferença – interveio Beverly, enquanto a situação permanecia apenas na tradicional troca de farpas entre Eddie e Richie, e não se escalava para um cenário que pudesse levantar suspeitas. – Vamos entrar antes que acabem os lugares.

Richie deu um tapão no ombro de Eddie, que apenas ergueu o dedo do meio em resposta. Quando Bill, Ben, Stan, Mike e Eddie se viraram de costas para entrar no auditório, Richie se inclinou e Beverly teve de ler os seus lábios:

— Foi mal!

Ela apenas balançou a cabeça em resposta.

 

 

Depois de quarenta minutos do show, Beverly sentiu que estava na hora de sair dali. Ainda tinha de trocar de roupa e entrar para a concentração das duplas que dançariam. Inclinou-se para Mike, que estava sentado ao seu lado, e sussurrou:

— Ei, vou ao banheiro e depois vou comprar comida, ok?

Mike mal olhou para Beverly, apenas assentiu e murmurou algo de concordância. A ruiva sentiu-se agradecida pelo fato de ele estar imerso no que acontecia no palco, onde três garotas tocavam acordeão.

Richie, sentado mais adentro da fileira, olhou por cima do ombro e viu Beverly saindo de cena. Ótimo. Olhou para o relógio de pulso: esperaria mais cinco minutos – não seria seguro sair de imediato à partida de Beverly – e depois sairia com calma.

Calma, Tozier, pensou. Não precisa fazer uma cena.

Quatro minutos mais tarde, Richie contradisse seu próprio pensamento. Colocou teatralmente uma mão na barriga e cutucou Eddie, ao seu lado, assumindo a feição de doente mais convincente possível.

— Eds, estou com uma dor de barriga do caralho.

O rosto de seu amigo hipocondríaco se contorceu numa careta de nojo.

— Vai ao banheiro, antes que você tenha uma diarreia em cima de mim!

Richie assentiu, ainda fazendo caretas de dor, e levantou-se com o torso ainda inclinado para a frente, como se realmente houvesse um forte problema intestinal. Os outros logo perceberam e levantaram as pernas para que Richie passasse.

— Galera, acho que vou demorar um pouco no banheiro. Tomara que eu não entupa a privada…

— Vai logo! – disse Eddie em um sussurro duro. – Depois compra uma água de coco.

 

 

— Você acha que eles estão se perguntando onde nós estamos?

Já se passara quase uma hora desde que Richie e Beverly haviam saído da plateia para se arrumarem. O rapaz ajeitou os óculos e encolheu os ombros.

— Sei lá, provavelmente. Eu dei a entender que estava com uma diarreia forte, então talvez eles não liguem. Ou não. Sei lá, Bev, não tem mais o que a gente fazer.

Os dois seriam a última dupla a se apresentar, e a hora estava chegando – a dupla logo antes deles já estava no palco, e Richie e Beverly os observavam pela lateral. A apresentação consistia numa espécie de tango desajeitado.

Beverly apenas assentiu, com os olhos ainda grudados na dança que se desenvolvia mais à frente, roendo as unhas de forma (provavelmente) involuntária. Batia com a ponta de um dos pés no chão, num tique de nervosismo.

Richie respirou fundo e tirou a mão de Beverly da boca. Entrelaçou seus dedos com os dela.

— Bev, eu sei que dá um nervoso, mas vamos nos dar bem – Richie queria convencer mais a si mesmo do que a ela. – Vamos entrar no palco, dançar bem pra caralho, conquistar aquele troféu e esfregar na cara de todos esses filhos da puta, ok?

Beverly sorriu e um pensamento logo veio à tona na mente de Richie: caralho, como ela estava linda. Seu vestido rosa parecia o da Jennifer Grey em Dirty Dancing, e aquele antigo pensamento voltou-lhe à mente: que Bev era na realidade muito mais do que atriz. Se ela conseguisse superar o nervosismo nesse momento, Richie acreditava que a amiga seria capaz de dominar o mundo inteiro.

— Sim, Richie – sua voz soou determinada – nós vamos.

Beverly Marsh tinha o mundo aos seus pés.

 

 

Richie e Beverly entraram no palco e se posicionaram, um ao lado do outro, cabeças baixas e pernas levemente abertas, as mãos ao lado dos corpos. O palco ainda estava escurecido, de modo que a plateia não os tinha visto.

— E agora… na categoria juvenil, a última dupla da competição – ribombou uma voz feminina nos alto-falantes

(ah, pensou Richie, essa surpresa vai ser incrível)

(eu poderia vomitar agora mesmo, pensou Beverly)

— … Richie Tozier e Beverly Marsh!

Aplausos leves. Ao longe, a distinta voz de Eddie Kaspbrak, que ecoou por todo o teatro:

— O QUÊ? – seguida de risadas incrédulas altas, que Beverly acreditou serem de Mike e Bill.

A garota sentiu um aperto suave em sua mão, e sorriu na escuridão. Uma fração de segundo depois, a música começou a tocar. As luzes se acenderam e os dois levantaram a cabeça ao mesmo tempo; a forte batida de Footloose fez com que seus pés direitos começassem a se mexer. Primeiro para a direita, depois volta. Direita, volta. Para a frente, volta. Tudo isso enquanto estalavam os dedos. Repete. Então o pé esquerdo.

Quando Kenny Loggins começava a cantar, Richie e Beverly repetiam o movimento, mas agora um de frente ao outro.

Been working so hard

I’m punching my card

Eight hours for what?

Oh, tell me what I got

Voltavam a virar para o público, agora em pulos alternados, chutando o ar com um pé de cada vez. Os braços se mexiam livremente, mas ainda sincronizados, apenas seguindo o ritmo da música. Beverly sentia o nervosismo se dissipar aos poucos, seu sorriso e a confiança aumentando.

I’ve got this feeling

That time’s just holding me down

A guitarra voltava a tocar. Da direita para a esquerda, cruzando os pés; da esquerda para a direita.

I’ll hit the ceiling

Or else I’ll tear up this town!

Beverly inspirou fundo na última palavra. O momento chegava, e, pelo amor de Deus, esperava que Richie não errasse. No exato milésimo de segundo que a batida parava e o público parecia prender a respiração na expectativa do refrão, arriscaram uma pirueta, perfeitamente a tempo com a música.

O público vibrou – Beverly podia apostar que os gritos mais altos vinham de seus amigos.

Richie e Beverly finalmente se deram as mãos e se juntaram no refrão, 

(Now I gotta cut loose

Footloose, kick off the Sunday shoes)

emplacando giros e passos alegres, deslizando juntos. Soltavam as mãos por poucos segundos fazendo poses, juntando-se novamente logo depois. Beverly girou por baixo da mão de Richie entrelaçada com a sua; ao voltar, seus olhares se encontraram. Pôde ver uma linha de suor escorrer pela testa do rapaz, sob as luzes amareladas do palco, que se tornavam vermelhas, depois roxas, depois azuis. Mesmo com um sorriso radiante, os enormes olhos de Richie estavam concentrados. Era agora ou nunca.

Please, Louise, pull me off of my knees

Ainda de mãos dadas, Richie se inclinou. Os dois moveram a cintura e chutaram com o pé esquerdo, indo em direções diferentes. Deram um passo para trás, forçando os braços a se esticarem. Beverly girou: esquerda, direita.

Jack, get back, come on before we crack

Pela primeira vez, ambos estavam em completa sintonia com o outro. Richie não soube dizer se foi a adrenalina ou a alegria do momento, mas um desses dois fatores fez com que tudo corresse com perfeita graça e harmonia. Não pensava mais nos próximos passos, o que fez com que o nervosismo em errar o trecho seguinte desaparecesse por completo. Os gritos da plateia

(incluindo um “caralho, vocês são foda!” de Eddie, bem ao longe) 

estavam abafados; havia apenas Richie, Beverly e a música. Seus óculos escorregavam cada vez mais na ponte suada do nariz, mas não se importou. Sentia-se embriagado pela música.

Beverly girou embaixo de suas mãos novamente e, dessa vez, ao voltar, Richie soube o que fazer. Seus braços se posicionaram corretamente, de forma que ele conseguiu pegar a ruiva no colo e levantá-la junto de seu corpo,

(Lose your blues, everybody cut footloose)

girando e conseguindo parar bem a tempo. A plateia foi à loucura, mas Richie não teve tempo para processar tal informação. A música continuava e ele estava tão compenetrado que não havia como desviar a atenção para qualquer outro ponto. O êxtase era tal que o restante da coreografia passou como um flash: ao mesmo tempo em que foi tudo muito rápido, ele pôde saborear cada momento dos próximos três minutos. As luzes que trocavam de cores, cujo calor fazia o suor escorrer por baixo de sua camisa. O movimento da saia do vestido de Beverly, a cada vez que ela girava, hipnotizante. Dançavam com graça adulta e sorrisos juvenis.

Nos últimos segundos, Beverly correu na direção de Richie. Ele, de pernas entreabertas, estendeu as mãos. Ela não sentia mais medo, apenas a pura confiança no amigo: inclinou-se para trás, os dedos entrelaçados com os dele, e deslizou com perfeição por baixo de suas pernas. Levantou-se com extrema agilidade ao mesmo tempo em que Richie arriscava uma pirueta. Ele agarrou-a pela cintura e ambos levantaram as mãos livres para o ar, tornando os rostos para a plateia, em uma fabulosa pose no exato momento em que a música finalmente acabava.

Pausa. Na fração de segundo em que o ambiente fora tomado pelo silêncio, Beverly sentiu que poderia viver para sempre.

E, então, os aplausos. Mais altos do que nunca, com gritos agudos e assobios abafados. As bochechas de Beverly doíam de tanto sorrir. Ela se sentia poderosa, viva, e acima de tudo, feliz. Teve de apertar os olhos contra a luz do palco para discernir as figuras na plateia. Quando conseguiu ver as fracas silhuetas de seus melhores amigos

(não pôde ver com toda a nitidez, mas eles aplaudiam de pé, gritando e assoviando e possivelmente falando palavrões, Mike e Ben pulando de satisfação),

seu sorriso aumentou ainda mais, se é que isso ainda fosse possível. 

Richie sentia seu peito queimando, e não soube dizer se era o cansaço ou a satisfação que percorria toda sua figura alta e magra. Talvez os dois.

Saíram da pose e deram as mãos. Ergueram-nas ao alto e inclinaram-se para a frente, agradecendo ao público, que ainda aplaudia. Ao terminarem de agradecer, viraram-se na direção do outro. Quando Richie percebeu o que estava acontecendo, a figura pequena de Beverly já havia o engolfado num abraço quente, receptivo e entusiasmado. Ele correspondeu o gesto com igual energia. Sentia o peito de Beverly subir e descer de cansaço, bem como sua forte palpitação.

— Obrigada, Richie – disse ela contra o seu ouvido, com a respiração pesada –, por tudo.

Soltaram-se do abraço. O sorriso – de orelha a orelha, sincero, e não mais o típico sorriso debochado de canto – estampado no rosto de Richie acalmou o coração de Beverly. Ela se lembrou de todas as vezes que olhara para ele e pensara no quanto suas expressões lhe eram um enigma. Por trás das grossas lentes dos óculos, os enormes olhos do rapaz reluziam. 

Da mesma forma, Richie olhava para a garota e pensou no quão grandes eram os olhos dela. Claros, receptivos, inquisitivos. Lembrou-se da maneira como Beverly o olhava nos dias anteriores, querendo decifrá-lo, da mesma forma em que ele queria decifrá-la. Até os dias anteriores, o jovem sempre tivera medo de se abrir completamente para a ruiva. Tinha medo do que ela poderia desenterrar, mas tinha ainda mais medo do que ele mesmo poderia encontrar.

Mas não dessa vez. Sob as luzes quentes do auditório e cercados pelos aplausos da cidade de Derry,

(pela primeira vez em sua vida, Derry não lhe pareceu tão ameaçadora)

a sensação que Richie teve não foi de medo ou insegurança. Tampouco sentiu a necessidade de abrir a boca e dizer alguma obscenidade. Nessa noite, não precisara disto para chamar a atenção, e isso o fazia se sentir aliviado.

— Obrigado eu, Bev – murmurou. Ela provavelmente não o escutou, dado os aplausos que ainda ecoavam, mas conseguiu ler os seus lábios, visto que riu. O sorriso dela pareceu iluminar o mundo.

Naquela noite, quando Richie Tozier e Beverly Marsh se olharam, eles finalmente entenderam um ao outro.


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