Carabosse escrita por Nat King


Capítulo 6
Terceiro Ato - Parte III


Notas iniciais do capítulo

MAS QUEM É VIVO SEMPRE APARECE!! OLÁ, PESSOAL!! Saudades?? ♥

Aproveitando que Ice Adolescente, o filme da franquia YoI, foi anunciado, deixa eu chegar aqui rapidão colando meu angst, porque se a adolescência dos meus filhos russos não teve desgraça, aqui tem :v

Me perdoem de verdade pela demora, mas com o trabalho, fica muito difícil achar tempo para escrever, isso sem falar que eu dependo muito do meu celular, então né, um pouco cansativo escrever pelo tecladinho do telefone :'D Mesmo assim, TÁ AQUI, o novo, novíssimo e finalmente concluído terceiro ato! Espero que gostem!

Aviso: mais para o final do capítulo, terão dois diálogos acontecendo simultaneamente. Optei, para não confundir vocês, separá-los em itálico e negrito, mas, caso fique alguma dúvida, cola nos comentários e me avisem! Essas cenas também terão ambientações diferentes, que foram separadas pelo espaçamento, então, mais uma vez, bateu alguma dúvida, só perguntar!

Grande abraço e boa leitura!



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Terceiro Ato

Parte III

 

As poucas pessoas ao redor podiam ser facilmente ignoradas quando ele entrava para patinar. Envolvido pela música que só tocava em sua mente, o rapaz deslizava envolto pelas notas imaginárias, o elevar e descer de braços parecendo abraçar a composição que poderia ali ser qualquer uma. Maria não conhecia muito bem os pormenores técnicos da patinação artística, entendendo apenas superficialmente os elementos exigidos nas apresentações, mesmo assistindo junto a Yulia e Margosha, entusiastas do esporte, às competições televisionadas. Quanto mais o tempo passava, mais as duas se uniam, animadas com a contagem regressiva que revelaria Georgi em uma daquelas transmissões.

A garota podia entender o motivo; assistindo-o ali, apenas treinando, ele já era encantador, em uma apresentação séria como as que tinha assistido, deveria ser lindo. Era quase como os ensaios em collants simples e sem muito glamour, que antecediam as apresentações repletas de figurinos esvoaçantes e tutus adornados por pedrarias. Assistir o antes de uma apresentação, sempre tornava mais preciosa a apresentação que vinha depois.

Um deslizar de costas que a apavorava com a ideia de ver Georgi colidindo contra os baixos muros de contenção — ou algum outro patinador que usava da pista para treinar e se aquecer — e de repente a perna esquerda o impulsionava para cima, mais alto que os bailarinos profissionais em personagens como o Pássaro Azul de A Bela Adormecida, em rotações rápidas demais para seus olhos contarem. Duas? Três? Ela não teve tempo de raciocinar o que havia sido aquele triplo salchow, vendo-o emendar a finalização daquele salto com a serrilha na ponta das lâminas afundando no gelo para o lançamento de um toe loop, mais uma vez rápido demais para os dois giros no ar serem entendidos. Mal Georgi estava de volta ao gelo, a perna suspensa da finalização dobrou para trás, seus dedos seguraram a lâmina vazada e ele girou como a bailarina de plástico na caixinha de música que ela havia ganhado, presenteada por Margosha.

Pelo menos aquilo Maria sabia se chamar twizzle.

Terminada a sequência planejada para a segunda metade de seu programa livre, Georgi fechou as mãos em punhos e comemorou para si mesmo a quase perfeição dos passos que vinha treinando a exaustão para as competições que voltaria a fazer naquele ano, começando pelo Campeonato Russo. Yakov, elogiando a maturidade técnica de Popovich, estava confiante de que seu patinador conseguiria nota o bastante para competir no Campeonato Europeu, talvez até o Mundial, e também Victor fazia coro ao técnico, de forma bem mais expansiva e cheia de aplausos. Ele queria muito que um patinador de sua idade entrasse junto com ele naquele circuito de competições dominada por “velhos” de vinte e poucos anos, que nos jantares pós apresentações, só sabiam conversar sobre coisas chatas e desinteressantes, como filmes que Victor não tinha o mínimo interesse e chatices da fase adulta que ele não se via fazendo parte no futuro, como a alta do dólar ou a sonífera renovação de contratos. Com dezesseis anos, tudo o que Victor queria era se livrar dos contratos e patrocinadores o pressionando a conquistar mais que a quarta colocação do Mundial do ano anterior.

Rindo para si mesmo das reclamações cada vez mais dramáticas do amigo, Georgi acabou pego de surpresa quando viu os olhos avelã de Maria arregalados para ele, tal como sua boca aberta em surpresa. Ele não sabia que tinha uma plateia ali, exclusivamente para assisti-lo, principalmente Maria, que estava em São Petersburgo com Yulia para a seletiva do Instituto Vaganova. Os testes começavam naquela tarde e ele, no lugar da menina, estaria tremendo.

“Olá, Maria!” Gentil, ele a cumprimentou, patinando em sua direção. Recompondo-se da surpresa que foi assisti-lo, ela ajeitou a postura arduamente trabalhada pela prática diária da dança, seu maior orgulho, atualmente. “Como está com a seletiva de hoje?”

“Tremendo,” foi a sincera resposta em voz oscilante. Oh, bem, ela estava sabendo disfarçar muito bem o incômodo, diferente da primeira vez em que a conheceu.

“Bem, acho que não saberia como te ajudar…” confessou meio constrangido. Enchê-la de promessas de conquista não era a melhor saída, mas ele também não conhecia suas habilidades para poder soltar algum discurso pronto sobre ela saber quão boa era e qualquer frase genérica do tipo. Se havia uma coisa que Georgi sabia que podia ajudar, essa coisa era distrair-se o máximo possível. “Quando estou muito nervoso, tento ocupar minha cabeça com outra coisa, para não pensar muito no que me deixa preocupado,” aconselhou aquilo que havia sido orientado pela mãe quando criança e levado para o resto de sua vida. “Geralmente eu patino.”

Ele não tinha certeza se para Maria aquele conselho funcionaria, mas o tímido sorriso e a risadinha contida por ele, foram o bastante para relaxá-la mesmo momentaneamente.

“Mas você está sempre patinando.”

“É, acho que você me pegou…” Rindo, Georgi tentou disfarçar o rubor no rosto. Distrair-se da patinação enquanto patinava parecia mesmo o tipo de coisa que despertaria a risada alheia — e a sua própria, pensando bem.

A distração divertida de Maria não durou muito e ela abaixou os olhos para os pés, alinhados em primeira posição. Por mais que soubesse todos os passos de cor e suas piruetas tivessem melhorado de forma a arrancar aplausos de Yulia, ela não sentia-se boa o bastante para a vaga. Naquele leve mostrar de seus receios, Georgi conseguiu reconhecer sua versão mais jovem. De onde ele havia tirado forças para continuar?

“Sabe que às vezes um amuleto de boa sorte também pode ajudar?” Jovem e infantil em suas fantasias, aquele tipo de superstição mágica ainda chamava a atenção de Maria, voltando a prestar atenção no patinador. “A Nana aqui, foi um presente que eu ganhei quando criança,” mostrou ele, exibindo a ovalada pedra escura, fosca pelo tempo e uso. “Ela tinha uma frase escrita, que era muito inspiradora.”

“Seu pingente tem um nome?” Embora estivesse rindo, o sorriso era da mais pura admiração. Maria tinha adorado saber disso. “O que dizia a frase?”

“Eu não lembro direito… Não era em russo, mas sim japonês. Era algo sobre cair sete vezes, mas sempre se levantar, algo do tipo, significava ter força para começar de novo.” O brilho nos olhos da menina dobrou e isso também aumentou o sorriso de Popovich. “E sete, em japonês, é nana.” Descoberta aquela curiosidade, Maria sorriu ainda mais. “É a única coisa que eu me lembro da frase, então acabei a chamando assim. Acha bobo?”

“Não! Acho muito legal!” ela pensava se Yulia sabia disso. Aquilo era tão legal que ela queria contar para todo mundo!

“Eu também acho.” Em suas recordações, saudosas da infância em Moscou, ele podia lembrar-se do sorriso de Minako ao presenteá-lo com aquele colar, ao lado da simples, porém acolhedora, árvore de ano novo de Nikolai. “Para mim, Nana sempre representou força, então eu sempre a trago comigo.”

“Até nas apresentações?”

“Até nas apresentações,” concordou, apertando-a como há anos era seu cacoete. “Quer a força dela emprestada para hoje?”

A princípio, Maria hesitou, mas o fascínio com aquele pingente mágico foi o bastante para vencer a timidez rotineira. Cuidadosa, ela ergueu uma das mãos e segurou a pedra oferecida por Georgi. Estava morna pelo contato com a pele e um pouco pegajosa pelo suor resultante do treino intenso, mas Maria não notou nada daquilo. Ela estava maravilhada pelo sutil brilho azulado do pingente, escondido pelo polimento caprichado da pedra, um pedaço de céu estrelado discretamente colocado naquela jóia. O pingente brilhava por dentro e perceber isso significou muito mais para a menina do que Popovich pode compreender na hora.

“Gora, Masha!” Yulia, entrando no espaço do rinque de forma espalhafatosa, chamou pelos dois. “Como estão minhas pessoas preferidas?”

A pergunta envolveu tanto Plisetskaya quanto Georgi nas recordações da bem sucedida apresentação de O Quebra-Nozes. Aquele dia estava sendo repleto de nostalgia.

“Bem, só dando uma pausa no treino.”

“E você, Masha?” Com a voz bem mais suave, Yulia dirigiu a pergunta à aluna. Lembrar-se novamente do teste a ser realizado dentro de poucas horas, fez murchar a garotinha, até então distraída o bastante daquela preocupação. Carinhosa com Maria, Yulia alisou os longos cabelos com a ponta dos dedos, beijando o topo de sua cabeça. Georgi sempre entendeu aquele tipo de gesto como algo natural do carinho materno, o tipo de apego que qualquer um podia ver Yulia possuir com a menina. “Não fique assim, meu bem, o que tiver de ser, será,” garantiu, sem cobranças ou consolo, o tipo de neutralidade que ela precisava ouvir no momento. “Por que não começa a se arrumar? Acho que podemos cuidar do seu aquecimento antes de irmos.” Com um aceno, ela concordou, segurando a sacolinha de pano contra o corpo. Naquela bolsa sem fechos, Maria carregava o collant cor-de-rosa, a meia-calça de mesmo tom pálido e o par de sapatilhas, todo um sonho dentro de uma sacola.

“Com licença.”

Em silêncio, Yulia e Georgi assistiram ela correr até o vestiário feminino. Ele podia ver no olhar atento de Plisetskaya, que seu receio era bem maior ao de que a aluna não passasse na dura seletiva, era medo, um leve pavor genuíno que podia significar tanta coisa que Georgi tinha até medo de perguntar o que era.

“Yakov conseguiu uma sala para que eu pudesse ficar com Masha até o horário de sairmos.” A própria bailarina deu um jeito de interromper a insegurança presente, quando percebeu estar calada demais para sua normalidade.

“Espero que ela consiga.” Georgi incentivou, notando-a ligeiramente agitada. “Tem chances?”

“Tem, tem sim, Masha consegue ser delicada mesmo nos passos que exigem mais força, isso costuma agradar os avaliadores.”

“E esse seu tremor, é ansiedade por hoje, ou saudade de Yuri?”

Perguntar pelo herdeiro de Yulia sempre a fazia sorrir e Georgi sabia disso. Assim que ela ouviu o nome do filho, o sorriso alargou-se em seu rosto e a cabeça ocupada por um assunto tão amado, a afastava de qualquer preocupação existente.

“Meu Yura está lindo, uma bolinha ranzinza de pura fofura!” Como se estivesse com o filho no colo, ela abraçou a própria bolsa com força, o que fazia Georgi entender porque o menino estava sempre emburrado. “E tem se mostrado cada vez mais interessado em patinação, acredita? Achei que não passaria de uma fase, mas papai precisou levá-lo ao rinque local durante toda a semana passada!” Depois do alarde, ela suspirou, curvando-se sobre o muro de contenção. “Acho que em breve, nós cinco estaremos precisando nos mudar para São Petersburgo para ele treinar, hein?” Sorriu, piscando para o garoto.

“Eu iria adorar!” A ideia de ter sua família toda reunida em São Petersburgo o deixava tão empolgado quanto ainda era uma criança. Ele podia até mesmo considerar deixar o dormitório ocupado há pouco mais de um ano para voltar a morar em um apertado, porém animado e cheio de amor, apartamento de único cômodo. Sua mãe, Yulia, Nikolai e o pequeno Yuri; ter os quatro por perto parecia consertar aquele pedaço arrancado de sua infância, ajudando a curar a ferida deixada pela saudade de dez longos anos longe.

Espere, Yulia tinha dito nós cinco? Cinco quem?

Vendo a confusão de Georgi mudar sua expressão alegre para a confusa, a jovem não conteve a risada alta. Ela ainda teria a orelha puxada por dizer aquilo, e pelo próprio filho, se duvidasse!

“Certo, eu não sei se podia estar dizendo isso, porque não há nada confirmado ainda, mas acho que sua mãe está quase namorando.” Entregue a novidade, Yulia olhou para o lado, como uma criança arteira que acaba de falar o que não deve.

Oh.

Oh.

A última coisa que Georgi queria, naquele momento, era se mostrar contrário ou desanimado ao envolvimento amoroso de Margosha, mas sorrir não foi bem o que conseguiu. Não era nada a se fazer alarde, ela era uma mulher adulta e independente desde que ele se lembrava, divertida e atenciosa, uma pessoa querida no meio de trabalho e muito bonita, também, capaz de tirar elogios do mais variado tipo de pessoa, algo que quando ele era criança, não fazia muita diferença. Agora, pensando melhor, quantas vezes Margosha não devia ter recebido elogios com intenções subentendidas, imperceptíveis para a inocência do filho?

“Não faça essa cara, Gora…” riu Yulia. “Margosha é uma mulher maravilhosa, ela só ficaria sozinha se quisesse.”

“Sei disso,” rapidamente respondeu. Não queria passar por filho ciumento, já que esse não era um traço de sua personalidade. Bem, talvez um pouco, só um pouco. “Quem é? Eu conheço a pessoa?”

A pergunta foi cautelosa, quase como se ele estivesse pisando em campo minado. Sua careta, por outro lado, parecia à Yulia um enorme contragosto, uma expressão que a fazia pensar ter Georgi chupado um limão, bem como tinha feito com Yuri, apenas para tirar uma foto. O pai havia a repreendido, mas Plisetskaya sabia que nenhuma careta rotineira do filho seria igual à de sua primeira vez — e talvez última — com a fruta ácida.

“Sim e não; ele é pianista no Bolshoi, toca nas salas de ensaio. Você deve tê-lo visto quando pequeno, mas nem eu ou Margosha interagíamos com Andrei, ela por ter esbarrado com ele poucas vezes, eu porque estávamos sempre muito ocupados ensaiando.” A única informação absorvida de toda aquela explicação além do necessário, foi o nome da pessoa em questão; Andrei, é? “Foi tão bonito como eles se aproximaram!” Yulia continuou narrando aquela história de forma apaixonada, a enfeitando com cristais próprios e um pouco de exagero lúdico. “O pianista da orquestra se acidentou a caminho do teatro, então ele foi chamado faltando poucas horas para o espetáculo! Sem nenhum terno ou fraque que pudesse usar, empurraram o pobre homem, trêmulo até às sobrancelhas, para que sua mãe pudesse improvisar um paletó decente.” Saído da boca de Plisetskaya, a história parecia mesmo um romance pronto saído de uma banca de revista. “Oh, Andrei deve ter agradecido Margosha durante todo o tempo de costura até uma semana depois. Nervoso como estava, não sei como conseguiu levar quase três horas de Le Corsaire sem errar uma nota!” Popovich teria se impressionado, se não estivesse ainda lidando com toda aquela novidade. “Depois disso, ele passou a procurar mais pela sua mãe, sempre com a desculpa de estar grato… Ele até mesmo encontrou uma revista com uma matéria sua, de quando começou na categoria júnior, só para ter assunto com ela!” Olhando para os lados e rindo baixinho, Yulia acabou por confidenciar, sem nem pensar em guardar segredo. “Talvez eu tenha ajudado, mas ninguém precisa ficar sabendo.”

Continuando, animada com a novidade como se fosse com ela própria, Plisetskaya prosseguiu contando tudo o que sabia sobre o pianista, seus estudos na Bielorrússia, sua fluência em francês, um inusitado gosto por futebol americano e sapatos brancos, além dos olhos caídos e pele pálida que ajudavam a compor a aparência do homem que tentava, com sua simplicidade e voz baixa, conquistar o coração de Margosha.

Mas estaria ela feliz?

Aquela era a única coisa que importava a Georgi. Ele não tinha nenhuma ideia, nenhuma pista de como teria sido o decorrer e término do relacionamento de Margosha com a pessoa que não gostava nem mesmo de lembrar a existência, mas não ser reconhecido em cartório e tratado por Oleg como nada além do patinador que era, dizia o bastante sobre o fim daquela relação. Descobrir a verdade havia destruído suas ilusões e golpeado seu jovem coração, mas como teria sido para sua mãe, vivenciando a solidão e abandono na pele, quando tudo aconteceu?

Georgi não havia se recuperado do dano daquele coração partido, ainda. Recusando-se a se lembrar de Oleg, fez de Victor o único Nikiforov existente no mundo e digno de sua atenção e valorização, o jovem que sempre seria seu amigo — qualquer parentesco era logo expulso de sua mente apavorada com a verdade —, ignorando tudo o que havia acreditado e desejado ser quando crescesse, encobrindo a decepção com a mágoa de quem havia sido traído; terem machucado sua mãe era a maior das traições e não existia perdão para isso.

“Vou preparar a sala para Masha,” informou Yulia, mudando abruptamente de um assunto para outro. “Pode pedir para ela me procurar quando voltar? Ela já sabe onde é.”

“Claro. Bom ensaio para vocês e merde para a seleção.”

“Que quebre a perna!” agradeceu ela, antes de se retirar.

Esperando Yulia deixar o ginásio, imaginando que com ela suas preocupações também fossem embora, Georgi tentou voltar sua atenção para o gelo, montando em sua mente a sequência de saltos a serem novamente treinados, rever as anotações feitas por Yakov no planejamento de seu programa livre, adaptar o que foi desconsiderado e substituir pelas sugestões do técnico, todo um plano que funcionaria perfeitamente — no momento, apenas em sua cabeça. Ele estava muito confuso ainda para dar continuidade ao treino e duvidava que pudesse se distrair daquela agonia que pesava em seu peito.

Existia a grande probabilidade de Georgi estar tomando uma decisão equivocada ao tentar usar o nervosismo de outra pessoa para ignorar o próprio, mas na hora em que viu Maria deixar o vestiário, encolhida e apertando com força a alça da sacola, não pesou a validade de suas ações, inclinando-se sobre a mureta que contornava a pista, enquanto acenava efusivamente, tentando seu melhor sorriso. A garota não era a única pessoa ali tomada pelo nervosismo.

Movida por uma força de vontade que não a pertencia, Maria não oscilou nenhum passo em direção a Georgi, embora seu rosto contradissesse tamanho auto-controle. Ele podia dizer conhecer bem aquela expressão, a de uma pessoa que se pudesse se esconder atrás do próprio cabelo solto, o faria. Victor fazia disso, às vezes.

“Yulia pediu que você a encontrasse,” deu a informação meio incerto. Ela estava evidentemente mais apavorada do que antes de se trocar, como se dentro do vestiário tivesse visto uma assombração ou coisa pior. “Quer que eu a chame?”

“Não, por favor!” Os olhos estavam arregalados, mas a voz oscilante não condizia com o desespero.

“Tudo bem, não precisa ficar nervosa…” disse ele em voz baixa, ambas as mãos erguidas para conter de longe o tremor dos ombros mirrados. Ele percebeu que falar o óbvio, como sugerir que Masha devia se acalmar, não ajudaria de fato; não era como se ela já não soubesse disso, mas o que ele poderia fazer?

O jovem patinador não tinha nenhuma obrigação ali, mas apenas Georgi sabia como apoio fazia falta em momentos como aquele. Nem sempre uma pessoa podia se sentir confortável em buscar ajuda entre seus conhecidos — com o passar do tempo, o próprio Popovich parou de buscar por Yakov nos momentos de nervosismo —, vendo em um estranho a oportunidade de poder falar e desabafar com a certeza da imparcialidade de seus julgamentos — alguém de fora não te conhece o bastante para medir ou condenar seu medo.

“Você quer que eu te acompanhe até a sala?”

Com tudo aquilo em mente, ser gentil era a única oferta que Georgi se via capaz de fazer. Era uma preocupação a menos para Maria enfrentar sozinha, por mais banal que soasse acompanhá-la de um corredor a outro. Ele havia aprendido que por menos palavras trocadas que tivesse com Yakov nos momentos de nervosismo, ter com quem dividir o mudo desabafo de seus receios ajudava a aliviar a carga.

“Não posso ir sem antes arrumar meu cabelo…” murmurou Maria por trás dos fios lisos. Ela não estava sequer em condições de arrumar o próprio coque.

“Quer ajuda?” Desconfiada, ela estranhou a oferta sorridente. “Modéstia à parte, mas sou eu quem penteio a invejada cabeleira platinada de Victor Nikiforov em todas as competições realizadas na Rússia.” Posando de forma teatral, Georgi acabou tirando risos da mais nova. Victor sustentava o cabelo mais pedido dos salões que abrangiam a eurásia e, consequentemente, os trançados de Georgi acabavam saindo em uma revista ou outra. Quem sabe depois de sua aposentadoria definitiva ele não arriscasse nesse ramo? Já era outra oportunidade a ser somada ao corte e costura.

“Só preciso de um coque simples.” Pensando serem os penteados de Popovich requintados demais para uma seletiva como aquela, Maria diminuiu-se sem perceber, como era rotineiro de sua parte. Yulia estava sempre atenta para não deixar que a baixa autoestima levasse embora o rendimento da aluna, que podia facilmente se acomodar com o pouco que achava merecer.

“Pessoalmente, acho os coques simples os mais bonitos.”

Aos olhos de Maria, aquele garoto agia como Yulia, mas de forma mais suave. Plisetskaya costumava dizer que estava tudo bem pedir ajuda quando se precisava dela, de modo que naquela situação, estava tudo bem aceitar a feliz oferta de Georgi. Se Yulia estivesse ali, com certeza já teria decidido por ela.

“Tudo bem.”

Diante da tímida afirmação, Georgi calçou as lâminas com os protetores coloridos e deixou a pista para seguir Maria até o banco mais próximo. Abraçada à sacola feita em casa, ela encolheu os ombros e virou-se de costas, esperando com a esperança de manter-se em silêncio até o coque estar finalizado, quando a mão de Georgi, aberta, surgiu por cima de seu ombro.

“Escova?”

“Ah, é…”

Ela quase tinha se esquecido daquele detalhe.

Atrapalhada, tirou da sacola mais que apenas a escova, esparramando o par de meias viradas do avesso e os grampos de cabelo pelo chão. Ela queria poder caber naquela sacola e não sair nunca mais.

“Tudo bem, deixa que eu recolho isso.” Maria achou melhor não contestar, ou talvez as próximas coisas a caírem fossem suas lágrimas.

Depois de uma breve pausa em silêncio ouvindo-o separar os poucos materiais que usaria, ela acabou lembrando de um pequeno detalhe, que no momento pareceu muito maior do que de fato era, ares de grandeza que tornavam seu esquecimento a maior turbulência daquela viagem:

“Eu…!- Eu esqueci a minha rede...!”

“Garanto que prenderei seu cabelo tão bem que nem sentirá falta da rede,” disse ele, antes que o nervosismo a deixasse ainda mais agitada.

Maria estava se sentindo muito estúpida perto do garoto. Georgi estava ajudando-a em algo que não passava perto de ser sua responsabilidade, mas ela só sabia se desesperar e choramingar.

Que bagunça… Como ela seria capaz de equilibrar-se na ponta dos pés naquele estado? Era melhor nem pensar nisso.

Sensível o bastante para não forçá-la em um diálogo constrangedor, Georgi começou a pentear os cabelos da garota para trás, algo repetido por ele tantas vezes, mas que para aquela situação em específico o fazia se lembrar de Minako. Ela ainda penteava e prendia os cabelos daquela forma?

“O coque precisa ser três dedos acima da nuca.” A voz baixa atravessou suas lembranças, o alertando àquele detalhe desconhecido. Mesmo em um cenário tão familiar a Georgi quanto o balé, era sempre bom descobrir algo novo.

Atendendo ao conselho, ele correu com as cerdas da escova rente à nuca e puxou os fios para cima, apoiando três dedos na margem dos cabelos para tirar a medida, algo esquecido assim que Georgi sentiu, na ponta das digitais, pequenas e circulares quelóides marcando a pele escondida de Maria; aquelas marcas eram muito familiares a qualquer russo, um vício quase nacional, tão popular quanto os destilados em comemorações — cigarro. E alguém havia usado aquela criança como cinzeiro. O coração de Georgi falhou com aquela constatação.

“Essas são… Cicatrizes?” Dar-se conta que o garoto havia descoberto aquele segredo tão bem guardado, fez a menina se arrepiar, afastando-se para a ponta do banco. “Desde quando?” A respiração acelerada e o subir e descer dos ombros mostrava o tamanho do trauma que aquela menina de onze anos trazia naquelas cicatrizes. “Yulia sabe disso?”

Lidando com bem mais que a pressão do teste, ela deixou a cabeça cair com o peso daquele medo, acenando em afirmativo.

“Por isso eles pararam,” confidenciou. Aquela era a principal razão pela qual Yulia a ajudava tanto. “Não querem que eu dê problema.”

Aquelas palavras, balbuciadas em incerteza, haviam sido decoradas pela infinita repetição daquela que era quase uma acusação. Georgi conseguia chegar sozinho à conclusão do porque Maria conquistar aquela vaga era tão importante.

“Acha que dá para ver?”

A mão pequena tocava as antigas feridas sob o cabelo liso. Ela os deixava compridos daquela forma não para mantê-los presos como sugeria o protocolo clássico; Maria tinha a inocente sensação que o longo comprimento seria capaz de preencher as falhas e cobrir sua vergonha não superada — ela ainda não entendia totalmente ser uma vítima de maus tratos.

Segurando a escova como se visse nela o coração de Maria, o mesmo tipo frágil que um dia fora o seu antes dos remendos que o marcaram para sempre, Georgi se aproximou da beirada, voltando, com cuidado, a cuidar do penteado.

“Nem dá para perceber,” garantiu, notando que aquela simples afirmação foi capaz de tirar boa parte do peso há tanto repousado naqueles ombros mirrados.

“Muito obrigada…” agradeceu ela, mas Georgi não foi capaz de entender exatamente pelo quê ela era grata. Seria o penteado? Por estar sabendo ser discreto diante daquele passado parcialmente revelado? Por falar o que ela queria ouvir?

Nem mesmo Maria sabia ao certo, mas sentia-se grata mesmo assim. Devia ser interferência daquele pingente.

.:.

A caligrafia não era bonita, mas tinha algo de fascinante na letra comprida de Oleg, pontuda como um espinho. Um parágrafo inteiro daquela letra, por vezes, era ilegível aos olhos desacostumados, que não poderiam diferenciar a cursiva de um P para um Q. Para autógrafos, no entanto, aquele tipo de caligrafia rabiscada tornava-se ainda mais admirável, embora nem todos entendessem quando ele assinava Nikiforov com o H cirílico ou o N romano.

Legível ou não, nada disso importava naquele momento, contanto que ele assinasse o montante de papel.

Sorridente para as câmeras e galanteador nas entrevistas, o comportamento expansivo de Nikiforov inspirava as pessoas a recepcioná-lo sempre com grandes cumprimentos e piadas, como nas estupendas festas e banquetes de encerramento que ele protagonizava na época das competições, mesmo que o pódio não tivesse lhe cedido um de seus degraus. Na vida real, longe da multidão que exigia o amor do ídolo na mesma medida em que o dava, Oleg era bem mais calado, quase inexpressivo, sendo os vincos ao redor de seus lábios e olhos, recordações gravadas em pele de todo o esforço que ele fez ao longo dos anos. Quando não se quer sorrir, fazê-lo é sempre doloroso.

Drozdov percebeu isso no primeiro contato com seu principal cliente. Advogado do patinador desde que ele havia assumido sozinho a paternidade do filho, Edik cuidava das posses da família há mais de uma década e, pelo que podia ver em Victor, continuaria auxiliando os Nikiforov até onde sua saúde deixasse.

“Você ainda poderia cuidar da parte administrativa, Oleg…” tentou convencer uma última vez, mas como já era esperado de sua teimosia, ele estava irredutível.

“De que vale colocar meu nome em algo que não apareço?” A frase, que em outras situações teria sido jogada com desprezo, carregava ali uma tristeza que doía cada palavra. Às vezes, Oleg fazia parecer que um ego partido doía mais que um coração nas mesmas destroçadas condições.

Suspirando, Drozdov deslizou o contrato que encerrava as atividades do empreendimento de Oleg, o espetáculo no gelo que o levava como atração principal, entre demais patinadores convidados, uma equipe renovada a cada temporada de apresentação, que abrangia de outubro a janeiro. Ele tinha assistido a algumas apresentações quando Nikiforov precisava de seus serviços, outras o advogado visitou por puro entretenimento. Não entendia muito a parte técnica ou sabia grande coisa sobre patins, mas até seus olhos leigos podiam entender a diferença entre um Nikiforov com os demais. Devia ser algo a ver com o nome.

Bom, talvez não com o nome propriamente dito. Drozdov tentava não pensar muito em certos assuntos que envolviam paternidade, cujos quais apenas quando Oleg tocava, ele estava autorizado a responder.

“Preciso de um último autógrafo seu aqui,” ele ainda tentou brincar, apontando a linha pontilhada. “E na segunda via, além de rubricas no canto de cada página.” Obedecendo às ordens, Oleg repetiu a assinatura em todas as guias exigidas.

“Só isso?”

“É, isso e mais o valor da multa por romper o contrato com três pistas…” Pelas sobrancelhas unidas e a ruga na testa, Nikiforov soube entender que o valor seria um pequeno absurdo. “Você tinha datas reservadas para mais dois anos.”

“Fui irresponsável,” admitiu, inconformado com a própria ignorância. “Ninguém consegue fazer triplos para sempre, muito menos depois dos quarenta.”

“Ora, não diga isso, assisti-lo ainda hoje é um espetáculo e tanto.”

“Meu tempo já foi.” Largando a caneta sobre a mesa, ele puxou as mãos trêmulas para fora das vistas de Edik. “E a casa? Novidades?”

Daquela vez, foi o advogado que desejou poder esconder os tremores do nervosismo para si.

“É, tivemos uma boa proposta.” Aquilo não era mentira; em quase um ano de contrato aberto para venda, aquela era a melhor proposta recebida pelo imóvel até o momento. “Se quiser dar uma olhada na oferta…”

De olho no contrato, Nikiforov sequer terminou de ler a primeira linha para esboçar a pior de suas caretas. Claramente, o melhor de Drozdov não era o melhor de Oleg.

Essa foi a boa proposta?”

“Eu sei que é vinte por cento abaixo da oferta mínima…”

“Que por sua vez é trinta e cinco por cento menos que o valor inicial.”

“É uma casa antiga, Oleg…” Drozdov ponderou, ciente do campo minado que era conversar com Nikiforov. “Quem a comprar, vai ser para reformar, na melhor das hipóteses.”

“É uma boa casa,” ele tentou argumentar, frustrado com a depreciação do imóvel em solo americano.

“É uma casa excelente, sem dúvidas, mas a arquitetura já não é mais o principal atrativo.” Infelizmente, as tendências não se resumiam apenas às passarelas de Milão; imóveis também tinham seus arcos arquitetônicos questionados e o revestimento das paredes substituídos a cada atualização da paleta da Pantone. “Isso porque um casal me procurou para fazer a oferta, os outros interessados são imobiliárias ansiosas para pôr as mãos na casa por um preço inferior, apenas para lucrar em cima da diferença de venda.”

O suspiro de Oleg foi ruidoso e inconformado. Encarando a proposta com muitos zeros a menos do esperado, ele parecia ridiculamente esperançoso que a qualquer momento, os dólares americanos saltassem para o dobro.

“Se esperarmos um pouco mais, há chances de melhorarem a proposta?”

“Dificilmente.” Depois de tantos meses exposta, a casa fechada há cinco anos e alugada pelos dez anteriores, já estava caindo no esquecimento e desconsideração dos possíveis novos proprietários, e ninguém mais desejava ser inquilino de uma construção tão antiga.

Mais um suspiro ruidosamente infantil — e muito similar às demonstrações frustradas de Victor — e Oleg cedeu.

“Certo. Mas tente negociar para que pelo menos vinte e cinco por cento do valor total seja dado de entrada, não quero correr o risco de perder nem mais um centavo.”

“De acordo.” Batendo papéis e alinhando-os para guardar novamente na pasta de couro, Edik lembrou-se de outro imóvel, tão antigo quanto o americano, porém em terras russas, que certamente valiam alguma coisa, ao menos o suficiente para completar e alcançar o valor desejado na venda anterior. “É só uma sugestão, mas, Oleg, por que você não coloca o apartamento de São Petersburgo a ve-”

“Não.” Sem dar chances para o advogado finalizar a frase, Nikiforov prontamente dispensou a ideia.

“Eu apenas quis sugerir isso porque o imóvel também está parado…”

“Não ficará vazio para sempre.”

“Você dizia o mesmo da casa em Detroit.”

Poucas eram as pessoas que contestavam as palavras de Oleg e menos ainda as que permaneciam ao lado dele depois disso, mas com Edik era diferente; ele era o único que Nikiforov ainda tinha por perto, ainda que para apenas negócios.

“A documentação está em nome de um laranja, os papéis do apartamento ainda são seus,” insistiu o advogado, era seu último argumento.

“Não, não são.” Negou mais uma vez. “Vou me desfazer dele quando for a hora certa.”

Internamente surpreso em ouvir aquela frase novamente, Edik exteriorizou o assombro com apenas um elevar de sobrancelhas, já que Nikiforov não gostava de ter suas palavras, quando usadas para assuntos sérios, reagidas com alarde. Contudo, era difícil não se surpreender com os planos a longo prazo, ideias que somavam dez anos ou mais, que ele ainda mantinha, incapaz de esquecer um mínimo detalhe sequer.

“Queria que todas as pessoas com quem já trabalhei tivessem um pouco dessa sua teimosia.” No fim das contas, ele sorriu e Oleg permitiu-se o mesmo. “Pouparia meu trabalho redigindo inúmeros contratos.”

“Será por pouco tempo, você sabe.” Rapidamente o patinador fechou a expressão, voltando ao tom soturno. Às vezes Edik pensava quão bom era manter planos por tanto tempo... “Victor logo fará dezoito anos, poderei enfim dar a ele o que é de direito.”

“Não que ele vá realmente precisar,” brincou Drozdov, com a maleta fechada, pronto para ir embora. Anos de experiência tinham o ensinado mais do que apenas a profissão, como também um timing interno que o avisava quando não era mais preciso ficar. “No ritmo que está crescendo, é bem provável que ele acabe a carreira com mais do que o pai dele conquistou.”

“Já está acontecendo, na verdade.” Erguendo-se da poltrona para enfim despedir-se do advogado, Oleg virou-se em direção a porta, educado o bastante para acompanhar Edik até a saída. De onde estava, ele já podia ver o leve mancar de Nikiforov, por mais esforço que o patinador fizesse para manter a postura no caminhar elegante. “Obrigado mais uma vez pelos seus serviços, Edik.” Espiando por cima do ombro, o olhar lançado, ao contrário de seus passos, não era nada oscilante. “Conto com sua discrição, mais uma vez.”

“Sempre, Oleg.” Alcançando-o, ele estendeu a mão, esperando pelos sempre formais e educados cumprimentos. “Telefono quando tiver novidades.”

“Ficarei no aguardo.”

Drozdov deixou a grande casa para trás, conseguindo ouvir o trancar da porta ecoar por todo o interior vazio da construção. Por mais vezes que tivesse ouvido da boca do próprio Oleg como ele apreciava a solidão e de ser a única companhia de que precisava, o advogado não conseguia sentir menos pena daquele que em todas as suas conquistas, parecia não ter nada.

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A cabine individual do trem, comprada por Yulia ao desembolsar um valor um tanto salgado na troca dos bilhetes simples, era quase um prêmio de consolação, ela só não sabia dizer para quem. Maria havia dado o melhor de si na seletiva, que ela conseguiu assistir enquanto disputava a cotoveladas a pequena janela na porta da sala. A melhora da aspirante ao Vaganova era visível desde o começo das aulas com Plisetskaya, mas, infelizmente, não havia sido o bastante; após longas e exaustivas horas de pliés, jetés, elevés, tombés e mais um punhado de passos com rimas francesas, o nome de Masha pouco se fez notar na lista de classificados. Yulia ainda insistiu um pouco mais, permanecendo no local da prova por mais duas horas, aguardando todos já irem embora, apenas para reler novamente a lista com pouco menos de cinquenta aprovados. O número ainda preso ao collant de Maria era o trezentos e sessenta e cinco.

Com os olhos marejados junto às sobrancelhas juntas e um sorriso triste, Yulia olhou para a aluna, que aguardava pacientemente a hora de ir embora, e suspirou entre os lábios o tipo de frase que a menina não esperava ouvir:

“Me perdoe, Masha…”

E Yulia pedia desculpas por tanta coisa… Por ter alimentado a esperança de Maria, por ter criado tantas expectativas, por ter cobrado tanto nos ensaios, por ela precisar voltar para a casa que nunca deixava Yulia dormir direito por medo do que poderiam fazer… Plisetskaya pedia desculpas por sua impotência, por não poder ser metade do que queria, embora fosse tudo o que podia.

Dos olhos castanhos da professora, hora ou outra Maria podia notar um brilho diferente do normal, um contorno de lágrimas que ela não deixava cair, a sensação de desalento disfarçada enquanto observava o caminho de volta a Moscou pela janela do trem. Yulia não conseguia se conformar, não importando quantas vezes a menina lhe dissesse que estava tudo bem.

Maria não estava mentindo; ela ainda achava que estava tudo bem. Antes de ir até o local da seletiva, ela estava nervosa, não podia negar. Estava apavorada com a ideia do cabelo soltar, das fitas afrouxarem, do ponto no collant romper e do furo na meia abrir, acabando despida no meio da sala com dezenas de outras garotas, melhores do que ela. Na hora de entrar, no entanto, Maria não sentiu nada daquilo. Seu coração ainda batia forte no peito, mas assim que ela e o grupo de garotas com quem dividiu tempo em barra se organizaram para começarem com o teste, ela sentiu, preso em sua mão fechada, o formato ovalado do pingente de Georgi, o amuleto de sorte que o garoto de gentis olhos azuis havia prometido ser fonte inesgotável de força. Nana era o nome, certo?

Nana não estava ali, mas a menina, de um jeito mágico, podia senti-la no centro de sua palma e por mais que abrisse e fechasse os dedos, a pedra imaginária permanecia ali, imóvel, a alimentando com um tipo de força desconhecido até então; confiança.

Durante todo o teste, Maria sorriu. Ficou em ponta como se os dedinhos esmagados pelo peso do corpo não fossem nada, rodopiou imaginando-se em uma das dramáticas e emocionantes coreografias de Marcia Haydée como a trágica Dama das Camélias, sentindo-se leve, alta, esguia e maleável como admirava as bailarinas profissionais serem. A dor das aberturas foi ignorada, assim como o espelho de classe montado para posicioná-las durante a avaliação, onde seu lugar foi a última fileira, atrás de outras cinco meninas. Nada daquilo importou. Mesmo depois de horas, nada estava importando. Maria sentia-se vitoriosa, pois havia dançado por cima de seus receios, enfrentando dentro de si mesma, o tipo de monstro que não encontraria do lado de fora.

“Eu consigo na próxima!”

Pega de surpresa pela declaração confiante, vários tons acima do que estava acostumada a ouvir da doce e tímida menina, Yulia encarou Masha com os olhos estalados, liberando assim e de uma só vez, todo o choro contido desde o fim daquele teste. Sim, existia ainda muito no que melhorar, fosse em técnica ou emocional, mas um importante passo havia sido dado naquela decisão; Maria não ia desistir.

“Tenho certeza que consegue, Masha,” respondeu Yulia, dando o melhor e mais aberto de seus sorrisos. “Quando voltarmos, retomaremos do começo. Acho que podemos aprimorar mais a sua ponta.”

De acordo com os planos da professora, Maria concordou. Emocionada e ao mesmo tempo tentando manter a tristeza afastada, Plisetskaya puxou a menina para um abraço afobado, cutucando-a na altura das costelas para assim arrancar risadas pelas cócegas. Grata à professora e feliz pela acolhida, ela devolveu o abraço, apertando a mãozinha com força enquanto o fazia;

Ela ainda sentia a força pulsando em sua mão direita.

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Quando chegou à final do Mundial de Patinação, Georgi não acreditou.

Na verdade, a descrença havia começado quando seus patins tocaram o degrau da segunda colocação no Campeonato Russo, onde permaneceu estático com seu sorriso sem graça, enquanto câmeras de todos os cantos brilhavam com seus flashs ao lado da iluminação especial do ginásio, para a cerimônia de medalhas. Não fosse Margosha o puxar para um abraço emocionado e repleto de lágrimas, tendo uma escandalosa Yulia saltitando e gritando ao fundo, ele provavelmente teria ficado lá, parado, esperando um beliscão que o acordaria daquele sonho; era a medalha de prata, a segunda colocação nacional o premiando, o melhor presente que poderia ganhar de aniversário: a retomada de sua carreira. Yakov não poderia estar mais orgulhoso e sua mãe mais emocionada.

Então veio o Campeonato Europeu e com ele, novamente, a medalha prateada brilhando em seu peito, como se possuísse luz própria. Bom, na verdade era reflexo dos holofotes — ou de Victor, faiscando na primeira colocação —, mas aquilo quebraria a magia a qual Georgi ainda era muito apegado. Daquela vez, o garoto conseguiu reagir um pouco melhor, até porque em Ostrava, tão longe da torcida organizada por Popovevna e os Plisetsky, ele não podia contar com ninguém que lhe chacoalhasse para a vida real, restando pelo menos desconfiar do que estava acontecendo.

“A gente conseguiu, Gosha!!” Não que Victor pudesse deixá-lo duvidando em silêncio. “Eu falei pra você que a gente conseguia, não falei?!”

Para os gritos dele, Georgi só conseguiu acenar. Victor podia estar acostumado com os degraus premiados, mas tudo aquilo era tão novo para Popovich, que ele se via cada vez mais agarrado ao pingente de pedra, recarregando constantemente a energia gasta na incredulidade. Tocar a medalha arredondada, perceber as bordas detalhadas, o nome do percurso vencido gravado com emblemas oficiais… Tudo aquilo soava tão estranho, distante, como se fosse de fato um sonho. Se apertasse demais aquela medalha, não duvidava que ela pudesse dissolver entre seus dedos e seus olhos enfim abrirem para o teto do dormitório. Um sonho sim, mas de contorno um pouco mais sólido, possível de tocar, ao passo de que também era frágil demais para considerá-lo agarrar-se a ele com tanta força. Tal como sonhos, as medalhas também eram um acontecimento único, para sempre premiando o passado, imprevisível para o futuro. Quanto tempo ele havia levado para entender que o pódio nunca era de fato conquistado!

“Parabéns, filho!!” A voz embargada de Margosha também era distante, naquele caso em sentido literal. “Eu sabia que você podia conseguir, eu sempre soube!!”

Popovich até podia duvidar de tudo aquilo, mas se existia algo ou alguém no que ele acreditava, esse alguém era Margosha. Dar-se conta da realidade que era a torcida daquela que sempre fora sua fã número um, o convenceu da validade do prêmio. Mais do que isso; o fez lembrar por quem ele continuava lutando:

“Obrigado, mãe…” Separados por milhares de quilômetros, mãe e filho nunca se sentiram tão unidos. “É por você, sempre foi por você...”

Georgi podia se lembrar do apoio de Margosha desde… Desde quando, mesmo? A data exata não era necessária, não quando desde sempre respondia a questão. A primeira a lhe apresentar o gelo, a ouvi-lo falar por longas horas sem cansar sobre os programas que assistia na televisão, a ensiná-lo como se equilibrar em um par de patins alugados e, principalmente, por sonhar a seu lado, vendo sempre a frente de tudo o que Georgi podia imaginar quando criança, como asas que podiam fazê-lo voar sobre a multidão e chuva de papel picado para cada spin bem executado. Lembrar cada devaneio insano em idade prematura o fazia rir e corar pela vergonha de imaginar demais, sonhar — de novo! — demais… Mas Margosha nunca viu exagero nos desejos do filho. Georgi sempre sonhou grande e sua mãe sempre esteve ali como base para que esse sonho fosse ainda maior. Se ele havia começado tudo aquilo, havia sido por causa dela.

“E continua sendo por você, mãe…” murmurou ele para Nana, aquele presente que não havia sido dado por ela, mas que por alguma razão, era o principal elo entre eles.

“O próximo a se apresentar é Georgi Popovich, de dezessete anos, da Rússia, trazendo Romeu e Julieta — Fantasy Overture, de Tchaikovsky!”

Poucos aplausos acompanharam o anúncio, discretos com a entrada de Georgi e muito curiosos também. O patinador era um dos mais bem vestidos de toda a temporada, com o figurino do programa livre sendo o mais popular entre os espectadores. A calça preta, de tecido fosco, acompanhava elegantemente a camisa branca de manga bufante, coberta pelo colete de veludo azul-escuro como os olhos de Popovich, com bordados caprichados que, corriam boatos, havia sido feito pela costureira mais talentosa de todo o Bolshoi, a chefe da equipe de costura do corpo de baile e responsável principal pelo figurino dos solistas. Verdade ou não, a aplicação de ladrilhos prateados destacava-se com delicadeza e bom gosto em meio ao pálido gelo, cintilando de forma suave, encantando a imagem daquele Romeu solitário, um príncipe adormecido há dois anos, que encontrava naquele tão esperado retorno, sua vez de despertar novamente.

Aquilo fazia parte de um dos inúmeros contos de um príncipe adormecido… Teria Georgi a chance de apresentá-lo ao público um dia?

Depois do que pareceu uma vida, a música deu início, uma adaptação cortada e emendada que levou meses para encontrar o encaixe perfeito, vinte minutos reduzidos a quatro, milimetricamente trabalhado e ensaiado na ponta do lápis. E dentro daquela montagem, ele deslizou, mostrando, conforme o programa avançava, que independente daquela composição levar Romeu no nome, não era o trágico herói de Shakespeare que os espectadores viam; aquele fascinante e apaixonado personagem realizando um impecável russian split, era apenas Georgi Popovich.

No começo de seu retorno às competições, Georgi podia não acreditar no que estava acontecendo. Quando ele finalizou a sequência salchow-toe loop, sentiu o joelho vacilar a aterrissagem do último salto, quase o tragando para fora daquele sonho quando precisou espalmar a mão no chão para evitar uma queda, antes de conseguir emendar o twizzle. Dali, Georgi não acreditou poder render mais nada.

Georgi não acreditou, ao fim da apresentação, que as pelúcias lançadas eram para ele, que a ovação era merecida e que apenas um ponto de toda a programação havia sido desconsiderada. Também não acreditou quando viu outras apresentações depois da sua, incapazes de alcançá-lo em nota, nem quando a melhor das apresentações antes de Victor, não conseguiu derrubá-lo das três primeiras colocações. Ao fim do programa de Nikiforov, garantido no ouro desde o programa curto, Georgi prosseguiu incrédulo com o terceiro lugar que pôs uma reluzente medalha de bronze em seu peito.

E em meio a tantas dúvidas, Georgi Popovich chorou sua conquista no Mundial quando viu as duas bandeiras russas subirem para a celebração do hino campeão, sabendo que pelo menos uma delas, representava seu nome.

No fim das contas e dos aplausos, Georgi finalmente conseguiu acreditar.

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A Constelação Russa

Por G. Phillips - Tradução: G. Takeo

 

Que desde a inauguração do esporte, a Rússia sempre dispensou o melhor no treinamento de seus atletas, todos sabem; é de comum acordo que São Petersburgo seja quase a sede dos mais bem sucedidos patinadores do mundo, tal como sua irmã, Moscou, o berço dos bailarinos clássicos. Terra de esportistas de sucesso, não é de estranhar que em meio ao clima invernal, solistas e pares sintam-se em casa, por já estarem profundamente familiarizados, tanto com o gelo, quanto com o sucesso.

Não raro, chamamos nossos melhores atletas de estrelas, e isso pode ter uma infinidade de significados; pode ser por sua distância de nós, reles mortais que jamais sonhariam calçar um par de patins, ou mesmo pela distância que eles têm uns dos outros, representando quão difícil é ter dentro da mesma modalidade, um nome que venha superar seu antecessor. Pode ser inclusive o triste fato de que, na patinação artística, a carreira dificilmente estende-se muito tempo, fugaz e passageira como a vida de um corpo celeste.

Uma cadeia de estrelas, em especial, destaca-se mais do que as outras. Trata-se da equipe comandada por Yakov Feltsman e ele sozinho já é a primeira esfera luminosa a ser comentada; o atual técnico e coreógrafo já protagonizou programas de execução fantástica e notas ainda melhores, no topo das categorias júnior e sênior durante a curta carreira, interrompida abruptamente após a orgulhosamente vencida Olimpíada de 1964, aos dezessete anos. O que foi surpreendente para plateia e júri, cientes de quão fechado era o povo soviético, repetiu-se treze anos depois, quando Oleg Nikiforov substituiu o feito de seu técnico, ainda sob o regime da união. Ninguém, por mais que quisesse — e sabemos bem que muitas nações queriam —, podia ignorar o brilho daquelas estrelas e admirar a carreira meteórica dos dois principais nomes envolvidos na continuação desse planetário de gelo.

Victor Nikiforov não somente é filho de Oleg, como também traz nas veias o sangue de Narkissa Nikiforova, que ocupava um patamar totalmente diferente de estrelismo; não é de se surpreender que o jovem de apenas dezessete anos seja, sozinho, o próprio sol de primeira grandeza, atraindo para si o que nem mesmo seus pais e técnico puderam no passado. Ao lado dele, destacando de forma um pouco mais tímida, mas não menos brilhante, está Georgi Popovich, dividindo com Victor não apenas o técnico, como pódio e idade. E, para espanto de muitos, foi sua terceira colocação a colocá-lo em evidência.

A surpresa da temporada, contudo, não é uma novidade, não para os mais entusiastas do esporte, que conhecem o trabalho de Popovich desde antes do herdeiro Nikiforov entrar nas disputas. Enquanto Victor passou os últimos dois anos disputando sem trégua, Popovich usou o tempo distante para aprimorar as performances que o colocaram rente ao colega na corrida pelo pódio, praticamente colado à sua sombra. Enquanto Nikiforov, conhecido por seus extremos, honra a memória da mãe em aparência e técnica, Popovich é um show quase literal, onde o excesso se faz presente nas cores, nos brilhos, nos gestos, nas expressões e, em especial, nas lágrimas. Se os saltos triplos não convencem os juízes, sua performance artística é capaz de salvar a pontuação, uma qualidade cênica que podemos dizer não vermos desde Oleg Nikiforov.

Percebem a cadeia estelar?

Embora guiados por nomes passados, o caminho trilhado pela nova geração tem se mostrado cada vez mais distante das estrelas que um dia fizeram o nome da patinação artística russa. Aos entusiastas e aos mais conservadores amantes da nostalgia, fica o conselho deste astrônomo esportivo; dê uma chance à nova geração. Eles têm prometido ser mais do que passou, uma verdadeira supernova.

 

“Que puxa-saquismo!” resmungou Nishigori, de forma audível demais para a paciência de Yuuko suportar.

“Cala a boca, Takeshi!” Não querendo perder mais nenhum segundo dando atenção ao garoto, ela deu as costas a um Takeshi deitado sob o kotatsu, voltando a sorrir para Yuuri, que dividia com a amiga a empolgação daquela matéria. “Isso foi lindo, não achou Yuuri?!” Abraçado a Viichan, o menino concordou com acenos animados e um sorriso que ia de orelha a orelha. “Tem mais alguma coisa escrita sobre eles, Minako-sensei?!”

Mesmo tendo ouvido a pergunta da garota, Okukawa viu-se incapaz de responder sem que começasse a chorar ali mesmo. Com os olhos molhados encarando o papel de baixa gramatura da revista de esportes local, ela lia e relia o nome de Georgi Popovich, como se ao fim da última letra pudesse se esquecer. Ela havia passado um quarto de toda sua existência sem saber dele, o que era para Georgi a maior parte de sua vida. Agora, Minako podia ver um pedaço de todo aquele tempo sem notícias, uma foto sem muito contorno e nitidez do adolescente que ainda morava em suas memórias como uma criança doce e sonhadora. Seu gentil e amoroso Gosha, um patinador premiado, como sempre sonhou e mereceu ser…

“Crianças, quando mesmo começa a próxima temporada?”

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A conquista do pódio tinha lá suas vantagens. Depois de toda aquela experiência vitoriosa, Georgi começava a entender melhor como Victor conseguia ter tantas coisas. Grande parte de suas roupas, eletrônicos e material de patinação não saía de seu bolso, sendo presentes de grandes e renomadas marcas. Esses presentes se chamavam patrocínio.

É claro que ele não quis entrar no mérito de que o amigo ganhava muito mais do que precisava — muito mais que Georgi —, mesmo porque entendia o apelo público que seu nome possuía desde o nascimento. Ser um Nikiforov era como ter um patrocínio por letra, um nome comercial que basicamente o pagavam para ter, e o cheque de Victor já era capaz de pagar coisas até por Yakov, se o mais velho deixasse.

E mesmo recebendo bem menos que o colega, por uma questão de popularidade, Georgi não conseguiu desfazer o sorriso de quando recebeu pagamento pela primeira oferta de patrocínio desde o fim da temporada, um sorriso que ele manteve durante a semana, enquanto comia, treinava, dormia e sonhava. Georgi ficou tão contente que mandou um cartão no modo expresso para Margosha, apenas pela satisfação de saber ter sido responsável por pagar pelo envio mais caro.

Não era como se ele não tivesse um emprego, mas realizar monitoramento de crianças em algo que ele gostava, poucas horas por dia e ainda sendo pago logo pelo avô, era muito mais uma mesada do que trabalho em si. Um patrocínio, sim, tinha cara de trabalho, ter a responsabilidade de realizar algo por uma pessoa que não tinha nenhuma preocupação com você além do retorno que pudesse dar à ela, isso sim era um trabalho e Georgi achou incrível.

“Eu fico tão feliz em saber que seu trabalho está rendendo frutos, Gosha!” Àquela altura, ele já não sabia mais quando conversaria com a mãe sem que ela estivesse emocionada. “Você merece! Sempre se empenhou tanto por isso!”

“Agora o Gora é rico!” Gritando por cima de Margosha, Yulia cantarolou a brincadeira. Ele ria muito imaginando a bagunça que deveria estar acontecendo do outro lado da linha. “Posso pedir presente?”

“É claro, Yulia, o que você quiser!”

“Eu quero você movendo essa bunda famosa pra cá nas férias, sentimos muito a sua falta!!”

Sentindo que agora eram seus olhos começando a marejar, Georgi continuou rindo, disfarçando a voz embargada.

“Eu também sinto falta de vocês, quero muito ir para Moscou!”

“Então venha, Gosha!” insistiu Popovevna. “Quero muito você aqui…”

“Todos nós queremos!” apoiou Yulia.

“Eu quero um gato!”

“Yuri!”

Os gostos de Yura, todavia, eram um pouco diferentes.

Ter patrocinadores, infelizmente, mostrou ter algo de contra em sua lista de prós. Georgi havia lido os pormenores do contrato, só não imaginou que em nome das cláusulas, teria de abrir mão da flexibilidade que uma agenda com Yakov permitia durante as férias de verão. Antes de ter algum tempo livre previsto em agenda, ele já se via preenchendo esses suspiros de descanso com algum compromisso, reuniões da marca, exposição de produtos, shows no gelo em que deveria manter o nome patrocinador o maior tempo que pudesse em tela, o tipo de atividade que o esgotava de uma forma que nenhum programa livre jamais havia cansado. Finalmente ele conseguia entender porque Victor dormia até o último minuto antes de um compromisso ou apresentação; sem tempo, todo minuto de descanso era valioso.

E pensando no tempo, ele estava passando rápido demais, tanto que Georgi já não se dava mais conta dos dias corridos, ocupados por responsabilidades muito maiores quando se estava em evidência. Não apenas as horas pareciam em uma competição de velocidade, como também Georgi estava o tempo todo — e literalmente — correndo. Era acordar e ir correndo para o banheiro, depois ir correndo ao refeitório e terminada a refeição, outra corrida ao rinque, onde acabaria vez ou outra disputando entre risos e empurrões a meia maratona percorrida ao lado de Victor, além das corridas para o colégio e no retorno dele. Pelo menos ninguém poderia dizer que Popovich não tinha resistência física.

Em uma de suas corridas rotineiras, a pressa em deixar a sonífera aula de literatura para trás com os colegas mais lentos, ele acabou por quase trombar em Victor, que vinha de uma direção completamente oposta, sorrindo duas vezes mais aberto naquele dia em especial. Por ter uma carreira bem maior do que a agenda didática conseguia permitir, Victor não frequentava o ambiente escolar tanto quanto o amigo, sendo ensinado em casa por Yakov, na maioria das vezes — notícia essa que fez Margosha rir do outro lado do telefone, seu filho apenas não soube identificar se foi um riso divertido ou nervoso —, comparecendo apenas para as avaliações. Seu boletim não era dos melhores, mas pelo menos Victor passava de ano.

“Quer apostar uma corrida até o ginásio?” sugeriu Georgi, em meio à respiração acelerada. Não era muito justo, mas ele sabia que com a mochila presa em suas costas, tinha muito mais vantagem que Victor com a bolsa de alça única transpassada sobre o peito.

“O último a chegar perde a sobremesa!” Aceito a proposta e estabelecendo um prêmio por conta própria, estava firmada a competição pelo primeiro lugar, embora aquele fosse um risco e tanto, uma vez que Georgi nunca perdia uma fatia de bolo.

As ruas passaram rápido, os atalhos foram percorridos sob protestos de Victor, risadas ecoaram pelas paredes de tijolos e as tímidas águas do Fontanka refletiram sem muita nitidez o contorno risonho de Georgi que deixava para trás Victor e a longa cabeleira prateada. Tudo passava rápido, mas momentos como aquele duravam o suficiente para ser eterno.

Ao chegarem ao centro de treinamentos, Victor se forçou à primeira colocação, empatando com Georgi e disputando a cotoveladas, quem conseguiria espremer primeiro os ombros pela abertura da porta de vidro antes que ela espatifasse no meio daquela disputa juvenil.

“Georgi!!” O chamado por Popovich pegou ambos de surpresa e, em um hilário empate, os dois caíram um em cima do outro, estatelados no tapete grosso. Ao menos a sobremesa do dia estava salva. “Me siga, precisamos conversar.”

Victor riu do compromisso de última hora que colocaria a refeição em segundo plano, divertindo-se o dobro quando percebeu a infelicidade de Georgi, que queria resmungar e sapatear de frustração, como a criança birrenta que nunca havia sido, porém, sabia que o melhor a ser feito seria obedecer; quanto antes atendesse ao chamado, antes seria liberado. Com a ajuda de Victor, ele se ergueu e bateu a sujeira dos joelhos ralados. Sem questionar, ele se pôs a seguir Yakov e, sem ser convidado, Nikiforov fez o mesmo, saltitando em direção à sala de uso particular de Feltsman, esperando pela oportunidade de poder dividir as ideias brilhantes que havia tido sozinho para a apresentação de gala. Tinha certeza que o técnico iria aprovar sua decisão baseada em sucessos da rádio soviética, já que Yakov era o tipo de pessoa demasiadamente apegada ao passado, fã da nostalgia de outros tempos onde tudo era melhor e base de comparação com o decadente presente.

Silencioso e sem questionar a razão dos risso e cochichos comuns entre Gosha e Vitya, Feltsman continuou o curto trajeto até a sala, parando abrupta e dramaticamente e com isso atraindo a atenção dos alunos para sua expressão estarrecida:

“Esqueci Makkachin amarrado na praça!”

A notícia, mais assustadora que qualquer título de horror, fez o sorriso sumir dos lábios de Georgi e lágrimas surgirem nos olhos claros de Victor.

“Você fez o quê?!” O pânico com o cachorro o deixou mais pálido que a cor de seus cabelos.

Praguejando, Yakov deu meia volta, prontamente seguido pelos dois jovens, parando no meio do monólogo desesperado de Victor para voltar-se para Georgi com o dedo erguido em riste.

“Você não.” Popovich não sabia o que tinha feito para merecer a reprimenda, engolindo a indignação contra a vontade. “Entre aí e nos espere.”

Georgi não sabia o que tinha feito para merecer aquele castigo e, consternado, ele entrou na sala, olhos fixos no chão e cabeça vagando longe, tentando se lembrar no pé de quem teria pisado para ter passado por um reprimenda como aquela.

“Ele foi sempre terrível para fazer surpresas,” riu uma voz tão conhecida sua.

“Mãe?” Primeiro, Georgi duvidou, depois, correu — mais uma vez correndo… — até a mãe, que o envolveu com um abraço apertado. Se ele soubesse que ela estaria ali, teria tido um pouco mais de pressa. Georgi já estava acostumado, mesmo. “Quando você chegou? E por que não me avisou antes? Eu teria te buscado na estação!”

“Cheguei hoje de manhã e não avisei porque se não iria estragar a surpresa.” Surpresa ou não, ver Margosha o fazia perceber que por mais que sua vida corresse, o tempo longe da mãe sempre seria uma imensurável.

“E como foi a viagem, mãe? Você está cansada? Quer alguma coisa? Eu vou te arrumar um lugar confortável para sentar!” Ciente de quão cansativo podia ser o trajeto de Moscou até São Petersburgo, Georgi desfez o abraço e se agitou para providenciar uma das duras cadeiras de madeira para que ela se acomodasse, não sem antes tentar deixá-la mais confortável com duas das almofadas que tentavam deixar a sala mais aconchegante e menos soviética.

“Tranquila, não tinham muitas pessoas no vagão.” Enquanto o filho se preocupava com a cadeira, Margosha abria a grande mala quadrada que havia trazido, tirando dela um embrulho reforçado por muitas camadas de jornal e plástico bolha. “Aqui, Gosha, para você.”

A embalagem não era encantadora como se espera de um presente, mas na falta de laços coloridos e repletos de brilho, fitas adesivas transparente fechavam o embrulho de notícias variadas — e a simplicidade da embalagem não tornava a expectativa menor. Surpreso pelo presente repentino, Georgi olhou do pacote à mãe com desconfiança nos olhos e um meio sorriso animado nos lábios, sem saber como reagir. Nenhuma caixa promocional mandada pelos patrocinadores, com fitas e lacres personalizados com suas iniciais, lhe despertavam tanta atenção.

Curioso com o conteúdo do embrulho, porém receoso em destruir papel tão delicado, Georgi pinçou a fita adesiva lateral, tentando abrir apenas parte do pacote, tão concentrado que não notou o risinho baixo de Margosha — no lugar do filho, ela já teria transformado as letras miúdas em confetes. Tamanho cuidado, contudo, preservava a magia que era revelar cuidadosamente o presente, aumentando a expectativa com as pistas que seu tato dava, uma textura suave e fina na ponta dos dedos, delicada como...

“Yulia ainda tinha a tiara de plumas que usou na apresentação de noventa e três.” Emocionado, Georgi encarava o adorno enquanto um filme falho do passado corria em sua mente. Ele lembrava vagamente daquela tiara, o enfeite feito por Margosha para presentear tanto Yulia quanto Minako. Será que Okukawa ainda tinha a dela? “Precisei arrumar, fazer uma nova aplicação de plumas, mas depois da reforma, ela achou que pudesse lhe servir.” Sorrindo, Popovevna observava o filho, genuinamente feliz pelo presente, como se ainda tivesse cinco anos de idade. Seu menino continuava sendo tão precioso…

“Eu adorei, mãe!” Georgi estava extasiado. Aquela tiara havia enfeitado os cabelos de Yulia para o pas de quatre, a mesma composição que ele usaria na execução do programa curto naquela temporada. Achou que o figurino branco com poucos detalhes cintilantes passaria a imagem imaculada de um dos fiéis cisnes que acompanhavam Odette, mas agora sim, encaixando o adorno de plumas macias em sua cabeça, conseguia ver o cisne por inteiro.

“Você ficou lindo! Estou ansiosa para ver o traje completo!” Margosha também estava emocionada, contendo na ponta dos dedos, as lágrimas que ameaçavam deixar os olhos embargados. “Yulia queria ter vindo, mas não tem tido muito sossego com as turmas de balé, vou precisar tirar centenas de foto para que ela se dê por satisfeita,” comentou Margosha aos risos, enquanto ajudava o filho a prender a tiara nos cabelos curtos. “Fora isso, estamos também ocupadas organizando o apartamento e levando todos os pertences aos poucos para a casa de Nikolai, mas no ritmo que estamos indo, só entregaremos as chaves no fim do ano…”

Georgi não foi capaz de acompanhar a risada baixa da mãe, nem esboçar qualquer reação positiva que acompanhasse o bom humor dela. Mesmo aos mais desatentos, o desconforto do garoto não passaria despercebido. Mesmo se Popovich tentasse disfarçar, ele não conseguiria mais escapar da preocupação da mãe; pelo reflexo do velho espelho era possível ver os olhos castanhos atentos sobre si, questionando com bondade e um pouco de preocupação, a razão pela falta dos sorrisos de Georgi, que sempre foram tão fáceis, especialmente para ela.

“Quer dividir comigo o que te deixou tão cabisbaixo de repente?” A pergunta vinha acompanhada de uma carícia nos cabelos negros, o carinho reconfortante que embalava quando criança seus sonos leves. Georgi sempre acabava descobrindo um detalhe ou outro que o fazia desejar poder voltar aos despreocupados e felizes anos adoçados por caramelos, onde existia apenas sua família especial em um pequeno apartamento manchado no subúrbio de Moscou.

Sua família de antes estava desfragmentada, a marca dos caramelos havia deixado de existir no ano anterior e o apartamento, a última página amarelada daquele livro de edição única, seria entregue para que uma nova família pudesse escrever a sua história. A de Georgi parecia já estar rasgada.

“A senhora vai morar onde, agora?” Os olhos azuis, baixos e desolados, encaravam o chão ao invés da mãe. “Vai ser com o…” Hesitou, tentando recordar-se do nome dito por Plisetskaya no começo daquele ano. “Ah, a senhora sabe, o seu namorado.”

Georgi ouviu um suspiro surpreso e depois, uma gargalhada, alta, divertida e reconfortante de ouvir. Ele sempre amou a espontaneidade das altas risadas da mãe, mas estava sentindo-se um pouco traído consigo mesmo por estar cedendo tão facilmente ao desconforto de imaginá-la recomeçando sem ele.

“Ora, Gosha, de onde tirou que eu tenho um namorado?” Surpreso, ele virou-se para Margosha, que dobrou o riso ao reparar melhor no choque do filho. “O que andam lhe falando para achar que estou namorando?”

“Yulia… Yulia falou… Tinha um pianista…” Entre um gaguejar e outro, enfim Popovevna entendeu o tremendo mal entendido, terminando de rir para suspirar, totalmente desconsolada pelo alarde infantil providenciado por aquela que tecnicamente era uma adulta.

“Andrei é apenas um bom amigo meu. Apenas na cabeça dela e na sua, nós temos algo além de amizade.” Era fácil notar o constrangimento de Georgi depois de esclarecido o alarde provocado por Yulia. A moça era tremenda entusiasta do romance, mas aos poucos estava sabendo lidar com a realidade.

“Ela falou que esse homem estava tentando agradá-la…”

“Mostrando recortes do meu filho, não é muito difícil,” sorriu, beijando o rosto de Georgi com a intenção de acalmá-lo. “Mas nossas conversas não passam de eu mesma sendo tiete do meu patinador preferido, posso garantir isso a você.” Provando ter puxado um pouco do humor duvidoso de Yulia com os anos de convivência, Margosha aproveitou o bico do filho para provocar uma última vez. “Você não precisa ter ciúmes.”

A alegação de seu lado ciumento por pouco não o fez engasgar, indignado com a ousadia naquela brincadeira.

“Eu não estava com ciúmes!” reclamou, parecendo o oposto. “Só estava preocupado!”

“Com sua mãe, uma mulher adulta?” Mais uma vez, Margosha divertia-se com as provocações ao filho.

“Tive medo que pudesse se machucar de novo.”

Entendida as intenções por trás daquelas palavras, Popovevna calmamente envolveu o filho em um abraço, retribuído com a mesma ânsia que costumava ter quando criança. Às vezes, Georgi sentia que os anos não tinham afetado em nada seu apego à segurança contida nos abraços de Margosha. Novamente, tudo parecia correr.

“Isso tudo já passou, Gosha…”

“Mas ainda dói, não dói?”

“Não.” A calma com a qual Margosha dizia aquelas palavras, não era aceita facilmente pelo garoto. “Doeu, sim, doeu muito, tanto que naquela época eu achei que não fosse sair viva de tamanha decepção, e, não vou mentir para você, ainda dói se eu cutuco…” Popovich não queria saber com qual frequência aquela ferida era mexida. “Mas se eu trouxesse essa dor sempre comigo, talvez não tivesse suportado até hoje.”

Olhar para sua mãe, tão pequena e delicada, e imaginá-la trazendo nas costas tamanho fardo, conseguindo se livrar daquilo, era mais um dos motivos pelo qual Georgi admirava-a tanto. Contudo, a mesma imagem miúda e bondosa, inspirava o pior de seus sentimentos; que tipo de pessoa podia machucar Margosha e saído sem o mínimo de remorso?

“Eu não teria suportado ser abandonado.”

“Georgi, não fui eu a abandonada…” Juntando o rosto do filho entre os dedos macios e sempre gélidos, Margosha assegurou que os olhos de Georgi não pudessem escapar dos seus. “Abandonei antes que isso acontecce comigo. Fui eu quem fui embora com você.”

Conhecer apenas fragmentos da própria história acabava deixando para Popovich a responsabilidade de preencher as lacunas com a mais cabível das hipóteses. Para ele, era óbvio que Oleg havia abandonado sua mãe para assumir Victor, o herdeiro perfeito. Margosha ter sido a primeira a fazer as malas, bagunçava a linha temporal de sua existência e a confusão se fazia visível no par azul de seus olhos.

“Como…? Como assim, mãe?”

“É uma história longa demais para tempo de menos…” murmurou, a voz embargada denunciando a emoção. “Mas não significa que ele tenha sido inocente,” tratou logo de esclarecer. O ele, sem nome e sem definição, era o pai de Georgi. “Eu descobri a mentira e deixei ela para trás, antes que pudesse alcançar a mim e a você.” Aquilo não preenchia muito a nova lacuna formada em sua cabeça, mas ajudava a formar a base para uma nova possibilidade. “Fiz o que pensei ser melhor para nós e não me arrependo.”

“Mas doeu,” insistiu ele.

“Doeu, sim.” Margosha não tinha porque mentir sobre aquilo. “Mas aqui estamos nós, não é?”

Vivos, era o que ela queria dizer. Quão fúnebre era o significado daquilo?

“Queria ser como a senhora… Estou sempre chorando pelos cantos com minhas desilusões amorosas…”

A mudança abrupta de assunto arrancou mais uma gargalhada de Margosha e, para Georgi, era melhor assim.

“Ora, Gosha, tome cuidado para não se ferir demais e acabar quebrando esse coraçãozinho de cristal…” aconselhou, ajeitando melhor a tiara de plumas nos cabelos negros. “Vai acabar como Odette.”

“Teria que mudar a cor do figurino.”

A risada dos dois foi atravessada por latidos baixos que vinham do lado de fora, provavelmente ao fim do corredor, anunciando a chegada de Victor e Yakov. Para Margosha ainda era difícil acreditar que seu pai havia permitido a entrada de um bicho, por qualquer que tenha sido, embaixo do mesmo teto que o dele — no entanto, era engraçado perceber como Feltsman estava nas mãos de seus patinadores, ainda que nem ele e os garotos se dessem conta disso.

“Vitya, segure melhor esse bicho!” brigou Yakov do outro lado da porta, começando a girar a maçaneta. O aviso não teve tempo de ser ouvido, nem por Victor, nem pelo cachorro; quando a mínima brecha da porta foi aberta, o poodle se enroscou entre as pernas de Feltsman e forçou passagem, correndo de forma desengonçada até Georgi. “Maldição, Victor, o que eu disse a você?!”

“Senhora Popovevna!” Ignorando a bronca, ou provavelmente esquecendo-se de que receberia uma, Victor exclamou a presença da mãe de Georgi como se fosse ela a sua. “Seja bem-vinda! Quando a senhora chegou?”

Por um breve momento, Margosha hesitou, porém não de forma defensiva como seria o esperado. Sua filha estava um tanto estranha desde que ligara há alguns dias para o pai, informando a viagem de última hora. A resposta recebida após o questionamento do motivo daquela decisão, ainda o incomodava com a incerteza;

“Quero ver você, Georgi… E também, Victor.”

“Cheguei hoje pela manhã,” respondeu finalmente, como se durante todo o trajeto de Moscou a São Petersburgo, tivesse segurado o fôlego. “Está lá meu cúmplice.” Sorrindo travessa, como era sua miniatura de seis anos, ela apontou para Yakov.

“A senhora vai ficar comigo, não vai, mãe?”

“Apertada naquele quarto de dormitório? Sem chance.” Yakov interviu, vendo a esperança de Georgi vazar pelas orelhas e esparramar-se pelo chão.

“Tem uma cama sobrando no meu quarto, desde que o Georgi nos abandonou, sabe senhora Popovevna...” Um tanto irônico e de fundo dramático, Victor fez a oferta indireta, ao mesmo tempo em que cutucava o remorso de Georgi com um beicinho ressentido.

“Ora...!” Encurralado, Popovich não soube como se defender. Para aumentar a indignação do rapaz, Margosha riu baixo, unindo-se à provocação.

“Tão malvado, Gosha…”

“Não comece, Vitya, Margosha é alérgica a cachorros, ela ficará em um hotel,” disse Yakov, percebendo apenas naquele momento que o poodle rolava aos pés da desconhecida, ansioso por sua atenção e afagos. “É melhor tirá-lo daqui.”

“Não se preocupe, pai, não é nada tão grave, apenas alguns espirros…”

“Espirros que duram uma semana toda.”

“É uma pena, Makkachin parece ter gostado tanto da senhora...” Lamentou o garoto, puxando a coleira escondida sob o pêlo encaracolado.

Makkachin?” estranhou Margosha, achando graça naquele nome e na imaginação de quem o teria batizado. “Makkachin é nome de cachorro?”

“Fui eu que escolhi!” Dividido entre preocupação com o bondoso poodle e a animação por ter alguém mostrando interesse em seu amado bichinho de estimação, Victor agarrou a oportunidade e desatou a falar tudo o que podia sobre ele. “Achei que soava engraçado, porque é exatamente como o espirro de uma competidora da Alemanha da categoria de dança no gelo!”

“Genial, não acha?” zombou Yakov. Se o técnico da moça descobrisse, seria um escândalo.

“Foi você quem deixou! E ainda riu quando eu falei!” Para Victor aquela era a maior e mais divertida surpresa de toda a inusitada saga em busca de um nome para seu cachorro. “Por mim teria sido Pavel, mas agora já acostumei, não é Makkachin?”

Se estivesse menos atento, Georgi teria deixado escapar quão quebrado Margosha e Yakov pareceram ao ouvir aquele nome. Ou teria sido apenas sua impressão?

“Está tudo bem, mãe?” A dúvida passou despercebida a Victor, rindo e se divertindo com as lambidas babadas que recebia em sinal de afeto.

“Não, está tudo bem, eu juro…” Sorriu, como forma de pedir desculpas. “É só que… Parece que faz uma vida desde que ouvi esse nome.”

Havia um brilho no fundo dos olhos castanhos de Popovevna e nos azuis de Feltsman, uma memória há muito deixada de lado, tanto tempo que quase parecia ser mentira. E era mais uma coisa sobre o passado da mãe que Georgi não conhecia. Ele estava quase sentindo ciúmes daquele nome e daquele passado em branco.

“Sento una voche che piange lontano…”

A voz de Margosha cantarolou baixo aquele trecho de uma composição desconhecida aos ouvidos de Georgi. O tom carregava um sentimento que ele não sabia dizer com certeza qual poderia ser, se dor, saudade ou uma mistura de ambos, já que não entendia uma só palavra do que ela cantava. Aquilo era italiano? Independente da resposta, Yakov parecia conhecer.

Ao olhar de soslaio para o técnico, contudo, Georgi pode ver quem mais parecia saber aquelas palavras; os olhos de Victor, arregalados em espanto, espelhavam no brilho de lágrimas o significado daquele idioma.

“Anche tu sei stato forse abbandonato.”

Mais do que reconhecer, Victor sabia a sequência das palavras de Margosha.

“Conhece Stammi Vicino?”

A expressão chocada de Nikiforov, transformou-se com o enorme sorriso de quem finalmente conhece alguém que gosta das mesmas desconhecidas coisas que você.

Trinus é minha ópera preferida!”

“Quem diria...” riu Margosha, estranhando a coincidência e achando-a curiosamente hilária. Virando-se para a mala de viagens ainda aberta, ela tirou dentre as macias peças de roupa, uma grande e gasta embalagem de um disco de vinil.

“Não sabia que você ainda tinha essa velharia.” Os sentimentos de Yakov diante daquele disco eram uma bagunça incerta.

“Nem eu…” já Margosha, estava saudosa. Ela tocava o título da ópera com cuidado, temendo gastar ainda mais as letras em vermelho. No rodapé, destacava-se o nome da orgulhosa orquestra da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que pouco depois do lançamento daquela gravação, enterraria as composições de Trinus como o maior pecado artístico dos tempos da União. “Gostaria de tê-lo?”

Victor demorou para entender que o disco estava sendo oferecido a ele.

“Eu?” E, por via das dúvidas, preferiu perguntar, apenas para ter certeza.

Georgi não conseguia entender porque estava tão incomodado. Ele também não sabia identificar o tamanho do ciúmes que estava sentido.

“É uma relíquia, hein?” Embora um sorriso acompanhasse a brincadeira, Yakov não somente reconhecia, como dividia a dor que a acompanhava. “É praticamente impossível achar o vocal original de Niko nos dias de hoje.”

“Eu-” engasgou Victor, quase sem acreditar. “Eu adoraria!”

Emocionado, ele apanhou seu mais novo presente como se ele fosse um prêmio a nível mundial. Com certeza o garoto deixaria aquele disco tocando em loop, até enlouquecer Yakov com a repetição infinita de Stammi Vicino.

“Por que eu não conheço essa ópera?”

Para Georgi, desconhecer da existência daquela peça era bem mais que a ignorância de uma produção artística, era não saber parte dos gostos de sua mãe, perder um pedaço de Margosha, ao mesmo tempo em que esse pedaço pertencia a Victor. Stammi Vicino era a ária que Georgi não dividia com nenhum dos dois, mas que ambos dividiam entre si, uma conexão única que o garoto sentiu nunca possuir com aquela família desfragmentada que a vida havia lhe presenteado. Naquele momento, a única conexão existente era entre Popovevna e Vitya. Naquele momento, eles eram a única família daquele recinto.

“Foi proibida durante a união soviética,” explicou Margosha, voltando a atenção ao filho. “Um diretor inovador decidiu que Nika, a protagonista, seria substituída por Niko, e isso causou uma enorme confusão.”

“Principalmente porque a ária cantada por um vocal masculino foi mais elogiada que a interpretação feminina, na época,” Yakov terminou de explicar. Margosha não deixou de sorrir para aquela afirmação. Na época, a crítica positiva havia corrido a Europa, escandalizando o regime fechado. “Todos os discos com o elenco original desapareceram das lojas, muitos quebrados e em seguida queimados.” Relatou aquela lembrança que ainda lhe era bem viva. “Mas eles já eram raros antes da rebelião começar.”

“Meu pai me contou as histórias.” Abraçado com o disco, inconscientemente temeroso que mais uma onda de revolta pudesse levar as composições embora, Victor relembrou tanto quanto sabia sobre a história de amor e procura que se tratava Trinus, a busca de uma alma apaixonada por sua metade chorando ao longe; era sobre isso que a ária dizia. “Sabia que eu só conseguia dormir ouvindo essa música quando era bebê?”

E agora Oleg também fazia parte disso. Será que ele não podia voltar ao momento em que estava só com a mãe e sua tiara emplumada?

“Vou interromper a conversa para pedir a ambos que comecem o aquecimento, eu já sigo vocês,” pediu Yakov. É, pelo jeito Georgi não conseguiria resgatar tão cedo o contato materno. “Não se preocupe, Georgi, você ainda terá uma semana toda para ficar abraçado a sua mãe.”

“Fico até duas,” prometeu Popovevna, tirando com cuidado a tiara dos fios negros. “Vou querer assistir seu treino, não vou aguentar esperar até outubro.”

Um pouco mais calmo, Georgi beijou os dedos de Margosha, seu jeito de garantir dar seu melhor naquela competição.

Enquanto os dois patinadores deixavam a sala de Yakov, com Victor implorando ao amigo poder experimentar a tiara que ganhara da costureira, Margosha se aproximou do pai de braços abertos, apertando o abraço assim que sentiu ser acolhida por ele. Sentia ter acabado de sair de uma grande prova de resistência, ainda que o desfecho dela estivesse programada para o fim da temporada que ainda não havia começado.

“Tem certeza disso, Margosha?”

Ela não tinha, mas já não cabia mais a ela escolher por Georgi; era preciso que seu filho conhecesse todas as alternativas para saber optar pela melhor opção. Yakov , por outro lado, não teve coragem de contar à filha que o tema central daquela conversa já era ciente a Georgi há pelo menos quatro anos.

“Vai dar tudo certo, não vai, pai?” Ele sabia o que aquele tudo significa, já que tudo na vida dela se resumia ao filho.

“Vai sim, Margosha.” Alisando os cabelos da filha com as mãos calejadas, Yakov não conseguia sentir outra coisa se não a de estar acalentando sua menininha. Ele queria poder cuidá-la assim para o resto de sua vida.

Era estranhamente pavoroso ter a sensação de que por mais que estivesse abraçando-a agora, em breve aquilo não passaria de uma memória.

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Yuuri correu risonho ao lado de Minako, tendo uma de suas mãos puxadas pela ex-bailarina. O ensaio daquela tarde estava cancelado, independente das contas acumuladas passando por baixo da porta — ela poderia passar por cima de um boleto ou outro de vez em quando, até com um par de patins, se quisesse. Patins como os que os competidores daquele dia usariam para o programa curto do Campeonato Russo de Patinação Artística no Gelo, um nome comprido demais, do tamanho do nervosismo dos patinadores e da própria Okukawa.

Temendo estar atrasada demais para o começo da apresentação, Minako passou pela entrada de Yuu-topia sem tirar os calçados e o mesmo fez Yuuri, tão animado quanto para assistir os programas que alimentavam seu sonho de um dia competir nas nacionais japonesas com sucesso e reconhecimento. Bastava um pouquinho mais de confiança para isso, mas não era algo que ele pensaria no momento.

“Senpai, Yuuri, sejam bem-vindos!” Ocupada com um pequeno montante de lençóis dobrados, Hiroko cumprimentou amiga e filho antes de correr corredor adentro, rumo aos quartos dos novos hóspedes previstos para aquela semana.

“Yuuri, sensei!!” Yuuko, armada de pôsteres e cartazes para a torcida que ninguém veria, gritou e saltitou para chamar atenção da professora. “Katsuki-san já colocou no canal da transmissão, mas não dá para entender nada!”

Rindo do inconformismo da garota, Minako tomou uma almofada ao lado dela, se apossando do controle e aumentando o volume, enquanto Yuuri se servia da tigela de katsudon. Hiroko já tinha deixado tudo preparado para recebê-los naquela tarde que prometia ser barulhenta.

Fazia tanto tempo que não acompanhava uma programação russa por completo, que ouvir os comentaristas resgatou toda a fluência no idioma que ela pensou ter esquecido. Feliz, percebeu conseguir notar cada palavra, identificar os nomes, em sua maioria estranhos ao conhecimento de Minako, com exceção de um muito especial:

“Aos cuidados de Yakov Feltsman teremos também Georgi Popovich entrando no penúltimo grupo e Victor Nikiforov, no último, por motivos óbvios.” O favoritismo tirou risadinhas dos dois. Daquilo, Okukawa podia dizer não sentir saudade alguma.

“O que eles estão falando, sensei?” pediu Yuuri, que já havia identificado o Nikiforov daquela discussão.

“É impressionante ver como ambos estão crescendo e roubando cena em um meio onde a maioria dos nossos patinadores tem mais de vinte anos.”

“Não é de se duvidar que eles conquistam o pódio, hoje, Sergey.”

“Senseeeei!!” Yuuko não estava assim tão paciente para esperar.

“Estão falando bem do desempenho dos competidores de Yakov Feltsman e que são favoritos ao pódio de hoje.”

Os olhos dos dois jovens brilharam de admiração, tanto pelo apoio aos patinadores quanto pela fluência de Minako.

“E quando o Victor entra?!” saltitou a garota, amassando o cartaz de tanta animação.

“No último grupo,” murmurou, ansiosa em antecedência. As imagens já haviam cortado para o primeiro grupo da competição em aquecimento.

Uma coisa era certa: para Minako, uma competição de patinação artística assistida ao vivo, não tinha a mesma demora que a transmissão televisiva. A energia do local, a correria, o burburinho da plateia, o silêncio coletivo quando uma apresentação começava… Tudo era diferente. Estar na plateia te tornava parte do acontecido, ver de tão longe separava mais do que a distância e uma tela.

Foi essa distância que ela sentiu quando Georgi apareceu.

Anunciado como Georgi Popovich de dezessete anos, cujo tema do programa curto era o famoso Pas de Quatre de O Lago dos Cisnes, lá estava ele, o jovem adulto que em nada lembrava a criança doce que ela viu nascer e crescer até certa idade. O rosto longo e cavado, marcado pela palidez da maquiagem branca e prata, não tinham mais as macias bochechas coradas, alvo do mais diverso tipo de apertão entre as bailarinas do Bolshoi. As sobrancelhas ralas, cobertas por glitter, margeavam os olhos azuis como uma máscara, responsável por ocultar o patinador por trás do personagem — responsável por ocultar a criança sonhadora dentro daquele que há muito tempo não podia mais se dar o luxo da inocência.

Georgi certamente não era Odette — não a protagonista, não Victor —, mas existia em sua apresentação algo tão marcante quanto o papel principal. Tal qual os pequenos cisnes, sem ele o campeonato estaria incompleto. Sem sua sombra circulando pelo rinque, sua combinação de doubles e flips em coreografias perfeitamente sincronizadas com a música, não seria a mesma coisa… E após as dolorosas aberturas, a postura feminina na finalização dos saltos mais desafiadores, Georgi Popovich ultrapassava a melhor pontuação até o momento com quase nove pontos de folga do primeiro colocado, uma pontuação que dificilmente seria batida… Pelo menos até Victor Nikiforov entrar em cena.

“Foi lindo, não foi Minako-sensei?” sorriu Yuuri, mostrando-se compreensivo às lágrimas da professora, sem saber que muito mais que admiração era a razão delas.

No fim do segundo dia de competição, não interessou a Minako os pontos faltantes para centralizar Georgi no pódio; seu desempenho mais do que especial o colocava como único em seu coração saudoso, que sangrava ao se dar conta de que a distância entre ela e aquela criança de seu passado não era apenas física; já não existia mais nenhum laço ligando-a aquele belo rapaz, cujo a medalha de prata lhe servia tão bem.

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Expondo os dedos à baixa temperatura local, Georgi clicou o maior número de registros que o negativo da câmera permitia, querendo fazer daquele final de Grand Prix, uma recordação cheia de fotos a serem mostradas quando estivesse em Moscou. Ele passaria um mês ao lado da mãe, Yakov já havia prometido, era seu presente por feito tão grande. Se pudesse, Feltsman também se juntaria ao garoto naquelas férias fora de época, uma vez que Victor usaria a pós-temporada para ficar na antiga casa, por um surpreendente pedido de Oleg. Nem Victor conseguia entender tamanho interesse do pai, agora que estava aposentado de sua principal ocupação dos últimos anos.

Parado de frente para uma das tantas construções locais que visitara quando pequeno, os olhos de Victor vagavam entre as fachadas com cara de Europa antiga, sem vê-las de fato. Poderia afirmar admirá-las, mas não existiria sinceridade naquelas palavras, apenas a estranha sensação de algo não estava certo. Nunca voltar à Suíça parecia certo.

“Lar, doce lar…”

Acostumado com a presença de Victor desde que ambos eram crianças, Georgi quase se esquecia que o outro garoto havia passado toda sua infância pré-São Petersburgo, tendo os Alpes Suíços como quintal. Pelo tom irônico e o nariz enrugado, aquelas memórias infantis não eram nada saudosas.

Indiferente — porém não de forma intencional — às recordações solitárias de Victor, Georgi não disfarçava o interesse naquela cidade com detalhes tão fascinantes. Ele ainda adorava como a arquitetura antiga se encontrava com o minimalismo da dureza moderna, como se as marcas do passado e as promessas do futuro fossem responsáveis pelo agora, a oportunidade de viver no futuro do ontem e no passado do amanhã. Talvez por essa razão que presente levava esse nome.

Um presente que apenas ele estava desfrutando no momento. Georgi só se deu conta da careta idêntica dividida por Yakov e Victor, quando um homem totalmente desconhecido para os olhos de Popovich se aproximou cumprimentando alto e sorrindo largo, técnico e competidor. Pelo inglês fluente e sem sotaque evidente, ele logo considerou que o homem fosse de fora. Algum membro da ISU, talvez? Yakov havia lhes explicado as alterações na avaliação dos programas e novo sistema de pontos, embora a princípio isso não tivesse ficado muito claro para Victor e Georgi.

“Senhor Smith, obrigado por gostar dos meus patinadores, mas não posso falar agora.” A frase não muito coerente dita por Yakov teve a secura natural do técnico acentuada pelo forte sotaque. Feltsman detestava ter de falar qualquer língua que não fosse o russo e não fazia o mínimo esforço em melhorar a pronúncia ou ampliar o vocabulário.

Georgi tentou rir para Victor, fazer piada da situação constrangedora, mas o garoto fazia um esforço enorme para manter o sorriso torto no rosto, tentando atenuar o mesmo desgosto visível em Yakov. Popovich não estava entendendo a contrariedade de ambos com o tal senhor Smith e isso dizia por si só que, se ele não sabia, era para continuar sendo assim.

O homem, por outro lado, prosseguia insistente em sua sua abordagem, culpando o sotaque de Yakov para fingir não entender direito a dispensa do mais velho, matando aos poucos o sorriso de coração de Victor. Se ele já estava sofrendo com a abordagem daquele tipo de abutre midiático, dois dias antecedendo a final do Grand Prix, Georgi não queria imaginar como seria depois de entregues as medalhas.

Internamente traindo colega e técnico, Popovich não estava assim com tanta pressa em entrar no ginásio e repassar três horas de treinamento… Ele queria aproveitar a câmera nova — resultado de seu salário, como orgulhosamente gostava de lembrar — e tirar quantas fotos conseguisse para depois enviar a Margosha, havia prometido isso e sua mãe, tão empolgada quanto ele, se não mais, incentivou o filho com risos e palavras de carinho. Tendo-a em suas lembranças, Georgi sorriu, levando a câmera à altura do único olho aberto, espiando em volta algo ainda não fotografado por sua empolgação com absolutamente tudo naquele lugar. Não via a hora de acabar com todo o filme daquela câmera e substituir por um novo rolo, e depois outro - e mais outro! Nas suas férias, andaria incansavelmente todos os dias para fazer registros por toda Moscou, fazendo questão de reunir Nikolai, Yulia, Yuri e Margosha, apenas para tirarem uma foto em família. Finalmente ele teria uma foto em família.

“Será que eles estão com problemas?”

Ouvir o timbre de Oleg perguntando aquilo com tão bom humor, fez Georgi acionar a câmera por acidente, fotografando quem sabe um poste, na melhor das hipóteses. Já fazia tanto tempo que o mais novo não o via, que reconhecer sua voz descompassou o coração do garoto, comprometendo seu momento fotográfico e interferindo na pouca paz de Georgi nos dias que antecediam a apresentação. Ele devia ter ajudado Yakov e Victor a se livrarem do tal Smith quando teve a oportunidade…

“Tudo bem com você?”

“Sim, e o senhor?” Educado, como havia sido desde pequeno, Georgi devolveu o cumprimento, sem poder olhar diretamente para Nikiforov. Os poucos anos afastado da patinação não tinham sido o bastante para ele encarar Oleg de frente mais uma vez.

“Bem, obrigado por perguntar,” pigarreou de forma estranha e Georgi não quis entender a estranheza daquele gesto. “Vou ver no que posso ajudar, você vem?”

E agora? O que sua educação mandava fazer?

Olhando para Victor, Georgi soube que não podia deixá-lo sozinho naquela situação. Vitya havia ficado tão contente em tê-lo ali, competindo ao lado dele em um campeonato responsável por reunir sempre atletas mais velhos… Adaptar-se à nova categoria não tinha sido tão difícil quanto adaptar-se à uma diferente maturidade emocional, onde anos de experiência técnica e pessoal davam mais vantagens aos patinadores com mais de vinte anos de idade e pelo menos metade disso de carreira, outros prontos para despedir-se do esporte em jovens aposentadorias. A vontade de Georgi era a de fingir que tudo estava bem e continuar buscando coisas para fotografar, mas sabendo de tudo o que seu amigo vinha enfrentando, não teve essa coragem. Sua mãe estava certa quando o mandava tomar cuidado com o próprio coração, Georgi sempre metia os pés pelas mãos quando se tratava das pessoas que amava.

Com um gesto discreto ele aceitou o convite de Oleg, seguindo o ex-patinador que já preparava um sorriso para intervir na conversa. Os anos de experiência no meio artístico não era trunfo apenas dos que ainda estavam na ativa e, se existia uma pessoa que sabia lidar com a imprensa, essa pessoa era Oleg Nikiforov.

“Bom dia,” sorriso e tom humorado na medida, foi daquela forma que o ex-patinador, porém ainda o maior detentor russo de títulos e medalhas na categoria, se apresentou. “Precisando de uma mãozinha, aqui? Ou quem sabe duas?”

Ao ver e ouvir o pai, Victor sorriu de alívio.

“Oi, pai…” murmurou, exausto dos cinco minutos de discurso em inglês que haviam lhe sugado a alma. “Não pensei que te veria tão cedo.”

“Decidi vir antes, precisava falar com seu técnico, mas pelo jeito vocês estão ocupados.” Alheio à conversa russa, o candidato a patrocinador parecia prestes a entrar em combustão estando ao lado de não apenas um, como dois Nikiforov.

Se ele soubesse que na verdade eram três…

“Já que está aqui, use sua habilidade bilíngue para mandar esse americano para o inferno, eu tenho dois campeões para treinar e ele está atrapalhando meu caminho.” A reação risonha de Oleg com o comentário de Yakov, fez Smith acreditar no total oposto do que significou cada palavra.

“Por que não vão para o rinque? Yakov e eu resolvemos aqui,” orientou Nikiforov, dirigindo-se aos dois mais jovens. O alívio de Victor foi tamanho que ele começou a saltitar e quase em direção aos braços do pai.

Para felicidade de Victor e não disfarçada estranheza de Georgi, eles deixaram que os mais velhos conversassem entre si e seguiram para o ginásio realizar o aquecimento e reconhecimento do gelo antes que os patinadores da categoria júnior entrassem para fazer o mesmo.

No rinque, Georgi limitou-se a apenas deslizar e passar mentalmente os passos que mais exigiam espaço para execução, mas sua mente não estava atenta totalmente ao russian split; enquanto Victor divertia-se com as tentativas seguidas em seus triple flips, Popovich tentava justificar um encontro entre Feltsman e Oleg que não fosse cheio de farpas. Entendia que a presença de um possível patrocinador de Victor pudesse ser um freio no temperamento do avô, mas depois de ter presenciado a última briga entre os dois há alguns anos, não existia na concepção de Georgi uma conversa onde ambos estivessem, sem que acusações terminassem em choro e ranger de dentes. Tinha algo errado naquela história e não devia ser a enfim aposentadoria de Oleg.

A pedidos de jornalistas locais e equipes de televisão coletando imagens para a cobertura do evento, Georgi precisou deixar de lado a desconfiança do incerto e contribuir com alguns saltos e um pequeno depoimento nervoso por não saber o que dizer;

“Posso mandar um beijo para a minha mãe?”

Ao menos eles deixaram que Margosha recebesse seu beijo via transmissão internacional.

No fim do treino não tão aproveitado por Georgi, ele viu Yakov se aproximar com Oleg, chamando Victor e apenas ele. Aproveitando a distração, Popovich atrasou a si mesmo na hora de tirar os patins, evitando olhar na direção de Nikiforov por maior que fosse sua curiosidade. Não queria estar assim tão abalado com a presença de Oleg, saber como ignorá-lo, como tornar sua presença insignificante, mas só a ideia de tê-lo na plateia em uma final de Grand Prix, era de um peso que estava começando a incomodar… Sentia que devia dar o seu melhor, Georgi iria dar o seu melhor, só faltava se convencer de que a razão daquilo continuava sendo sua briga pelo pódio, não a presença do antigo patinador. Ele não tinha que provar nada a Oleg.

Seus pensamentos estavam tão focados no astro russo, que quando Georgi sentiu uma mão pousar em seu ombro, sua reação ao susto foi extremamente exagerada.

“Já chega por hoje?” perguntou Yakov, sério demais para perceber o sobressalto. “Ainda podemos visitar a cidade, se quiser.”

“Claro, podemos sim.” Olhando ao redor, esperava poder ver Victor e perguntar a ele alguma dica de evento local, deparando-se com nada, nem sequer os fotógrafos que tanto o assediavam. “Vitya…?”

“Com o pai.”

Logo ele que não queria ficar sozinho entre os demais veteranos, estava deixando Georgi. Popovich tentaria não levar aquilo para o lado pessoal.

“Georgi,” tomando assento ao lado do aluno, Yakov soltou um suspiro pesado, incômodo. Estava claro que um problema estava por vir, ele só não queria que chegasse tão rápido. “acho que tenho um assunto que te diz respeito e que pode não agradar.” Quieto, Georgi encorajou que o outro continuasse a falar. “É sobre aquele Smith, o americano intrometido que nos abordou hoje de manhã. Antes tivesse sido apenas hoje, ele vem importunando Victor e eu desde o fim da temporada passada e hoje finalmente conseguimos nos entender com esse porco, porém…” Antes de continuar, ele retomou o fôlego. “Ele quer voltar com esse contrato assinado, ou pelo menos confirmado, assim que o Grand Prix acabar, está apostando alto que Victor ficará no pódio, então conseguir ele para ser o rosto da marca de lâminas para a qual trabalha, seria um marketing e tanto.”

“É um contrato muito extenso?”

“Ainda não vi, mas com certeza vai ser. Se Victor aceitar a proposta, teremos que fazer algumas reuniões bem extensas para negociar imagem, pagamento… Sem falar que precisaremos de um advogado para ajudar a agilizar, mas, em resumo, serão os próximos dias, incluindo os de competição, trancados em uma sala, Victor e eu.”

“E isso significa…?”

“Treinos em horários diferentes para Victor? Eu não sei ainda, mas não conseguirei te acompanhar nesses dias e…” hesitou, retomando o fôlego mais uma vez. “Oleg se ofereceu para ocupar meu lugar.” O baque durou pouco, e Yakov não esperou uma resposta. “E eu não duvido da sua capacidade, Georgi, mas todo patinador precisa de um técnico, porque um técnico precisa ficar de olho na execução dos elementos técnicos, postura, não apenas pelo sucesso dos elementos, mas pela segurança do patinador, você não vai conseguir vigiar a si mesmo.”

“Sei disso, Yakov.”

“Escute, não precisa ser Oleg,” ponderou. “De verdade, não precisa. Eu posso conversar com os técnicos de outros competidores e combinar para um deles ficar de olho em você, só precisa me pedir.”

A solução existia e veio tão rápido que deixou Georgi sem palavras. Ele, que estava tão preocupado em precisar lidar com Nikiforov, poderia facilmente se desvencilhar daquela circunstância e optar para que qualquer outro técnico cuidasse de seu desempenho, qualquer um.

Qualquer um daria conta?

“Conhece algum desses técnicos?”

“De vista, sim, alguma conversa informal, não negariam ajuda, assim como eu não negaria se fosse o contrário.”

Georgi voltou a silenciar, encarando os patins sobre as pernas dobradas. Sim, seria fácil, conhecia Yakov, bastava dizer e ele sairia buscando o melhor técnico em todas as opções, não sairia daquele ginásio até resolver o problema, só precisava que Georgi falasse, apenas isso.

Era o que esperava Feltsman, também. O problema era Georgi ser tão transparente sobre seus sentimentos, até quando não se dava conta disso.

“Mas se achar que dá conta de lidar com ele sem derreter o cérebro…” Ele não poderia deixar que Popovich se sentisse culpado por escolher Oleg. “Ele é um patinador competente, acima de tudo.”

“Disse o contrário sobre ele.”

“Eu? Quando?!”

“Várias vezes.”

“Oh, bom,” resmungou a língua ferina. Devia tomar mais cuidado para não acabar se comprometendo no futuro. “Com raiva eu digo qualquer besteira, até que Lilia não prestava nem para fundo de cena.” A piada tirou um sorriso de Georgi e o garoto não ousou estragar a tímida tentativa humorista de Yakov. “Falarei com ele mais tarde, agora vamos,” chamou, erguendo-se do banco baixo. “Você disse que queria tirar um milhão de fotos para mostrar à sua mãe.”

“Não sei se consigo tirar um milhão de fotos,” riu do exagero.

“Ah, mas eu tenho certeza que sim.”

A ausência de Victor até tinha seu lado bom, pois fazia tempo que Georgi não tinha um tempo a sós com o avô. Fazia-o lembrar do primeiro ano em São Petersburgo, das aventuras pela cidade desconhecida até então, o tipo de programa que agora eles repetiriam nas ruas suíças. E para aproveitarem aquele dia, nenhum dos dois precisou relembrar de Oleg Nikiforov.

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Popovich chegou ao rinque com vinte minutos de antecedência, pensando ser o primeiro a aparecer. Ele não contava que Oleg estaria ali esperando, uma hora mais cedo que o combinado.

Assim que seus olhares se cruzaram, Nikiforov deixou o canto no qual estava encostado para caminhar lentamente até Georgi, lento demais para a ansiedade do patinador suportar sem fazer nada. Nervoso e provavelmente oscilando uma pisada ou outra, Georgi fez o próprio caminho até Oleg, passadas curtas como fariam o par de pernas de uma criança; era como se sentia, era como se via, novamente seis anos de idade, novamente admirado. Talvez tivesse de encarar de uma vez que a admiração nunca havia acabado. Talvez por isso doesse saber tudo o que sabia.

“Bom dia, Georgi.” Sorrindo, Oleg cumprimentou Georgi, a mão enluvada junta em um aceno. “Preparado para o treino?”

“Bom dia, senhor Nikiforov.” Para surpresa de Popovich, não foi difícil cumprimentá-lo de volta. Estranho mesmo era perceber ter exatamente a mesma altura do ex-campeão enquanto sentia-se uma criança. “Sempre pronto.”

“Ótimo, então acho que podemos começar!” Oleg sorria muito, até demais para os padrões televisivos. Era impressão de Georgi, ou ele estava nervoso?

“Claro, vou apenas preparar meu equipamento, antes.”

Ansioso, ele preparou os esparadrapos e enlaçou os cadarços com um pouco de demora, sendo vigiado o tempo todo por Oleg. A ansiedade causada por tanta atenção o fez errar o nó duas vezes.

A pista estava livre e Georgi não duvidaria se aquilo tivesse um dedo muito rico no meio — ou talvez não, pela falta de fotógrafos ao redor. Queria poder se concentrar unicamente nos programas, incerto sobre o que sentia a respeito de ser observado durante o ensaio, expectativa e ansiedade colidindo naquela agitação em sua cabeça. Ele precisava de coragem, foco, precisa de força. Foi com isso em mente que Georgi apertou o pingente em seu pescoço. Já fazia tempo que não precisava extrair motivação daquela pequena fonte inesgotável de poder.

“Vou passar o programa curto,” avisou, e Oleg respondeu com um aceno afirmativo, encorajando em silêncio.

Ao posicionar as mãos para a lateral, Georgi conseguiu ver que seus dedos tremiam, todos eles. Temendo ficar ainda mais nervoso, ele fechou os olhos e respirou fundo, procurando se concentrar na coreografia. Tinha que pensar na inclinação da cabeça, o flexionar dos joelhos, todas as similaridades extraídas dos pequenos cisnes de Tchaikovsky para o lago gelado que Georgi idealizara, tornar cada ave uma só dentro de si, compensar os pas de chat na combinação de duplos e mudar o desafio técnico para a expressão lúdica de um cisne enfeitiçado. Eram os dois minutos mais difíceis que já tinha apresentado, o ensaio mais demorado de toda uma vida, feito com tanta dedicação e alma que quase o levaram a chorar na finalização que merecia uma salva de palmas.

Não foi bem uma multidão que ergueu-se em ovação, mas ter Nikiforov o aplaudindo sem muito alarde o fez sorrir tanto quanto uma plateia faria, e ele não conseguiu se lembrar, naquele momento, que não deveria ficar feliz com a atenção de Oleg.

“Isso foi…” Incerto sobre o que dizer, Oleg perdeu a fala, rindo antes de finalmente saber o completar. “Lindo. Lindo é a palavra exata. Imagino como será te assistir com a composição junto. Parabéns, Georgi.”

Havia sinceridade no elogio, tanta que o garoto não quis buscar por algo escondido no sorriso vacilante.

“Obrigado… Fui eu que criei toda a coreografia.”

No geral, Georgi costumava ser muito humilde quanto as criações de coreografias e figurinos, contudo sentia que aquele momento era o de se orgulhar de cada folha amassada e hematomas conquistados até lapidar a ideia de um balé para a patinação artística. Ele estava feliz, até o dobro do que estaria normalmente.

“Yakov me contou.” Escondendo as mãos novamente nos bolsos do casaco, Oleg parecia estar escolhendo as próximas palavras a serem ditas, soando sempre como se tivesse mudado de ideia na última hora. “É admirável, de verdade. Você é um patinador muito talentoso.”

O sorriso de Georgi cresceu, assim como a vontade de chorar ao se lembrar de Margosha. Ela costumava lhe dizer a mesma coisa.

“O senhor acha que eu precise melhorar em alguma coisa?” Era melhor mudar logo de assunto, antes que a culpa o fizesse arrancar os patins e jogar para longe.

“Melhorar?” Estranhando aquela pergunta, enfim Oleg demonstrou lembrar da razão em estar ali. “Oh sim, por favor, pode repetir o duplo axel? Tive a impressão de ter visto um pequeno erro de saída, mas pode ser apenas impressão.” Sem contestar, Georgi patinou para longe e, ganhando velocidade, concentrou toda sua atenção no salto, arriscando emendá-lo com um segundo duplo axel.

Se ele estava aproveitando a situação para um pequeno exibicionismo? Calúnia!

Após a combinação de saltos, Georgi olhou para Nikiforov, que expressava bem mais atenção e seriedade. O rosto subia e descia em concordância com os argumentos disponíveis apenas em sua cabeça, quase matando Popovich pela expectativa da resposta.

“É uma combinação muito boa, excelente, mas na emenda, você não entrou com a lâmina tão inclinada quanto deveria,” explicou, da mesma forma que Yakov teria feito, com a diferença que o velho técnico não elogiava tão facilmente. “Foi a única coisa que eu vi precisar de um pouco mais de trabalho, o que me diz? Podemos treinar isso?”

“Claro, o que o senhor achar melhor.”

“E você acha que mais alguma coisa pode melhorar?”

“Tudo pode melhorar.” Oleg riu com aquela afirmação tão rápida. De fato, na patinação, não existia programa que não pudesse ser aprimorado, as temporadas existiam para mostrar isso.

“Então vamos primeiro cuidar desse axel, depois vemos se dá para fazer esse cisne voar,” brincou e a risada contida de Georgi o fez rir também.

Popovich perguntava-se intimamente se alguma vez Oleg teria tido um momento como aquele com Victor. Nikiforov pensava a mesma coisa.

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O telefone tocou apenas uma vez antes de Margosha atender, sem deixar para Georgi tempo suficiente de preparar o coração, cheio naquela manhã e totalmente trincado naquele momento — e Georgi não sabia se ele estava trincado pela terrível sensação de traição, ou por Victor estar naquele momento, jantando com Oleg enquanto Yakov buscava a janta na cozinha do hotel.

“Margosha falando.”

“Oi, mãe.”

“Gosha!” Contente em ouvir o filho, a animação de Popovevna atravessou a ligação internacional e preencheu o quarto. “Não achei que fosse ligar tão cedo! Ah, Yulia iria gostar tanto de falar com você, mas nem ela e Nikolai estão em casa, foram levar Yuri ao médico…”

“Tudo bem com Yura? O que aconteceu?”

“Nada grave, apenas uma tosse, acho que ele deve ter estranhado o tanto de pó mais cedo, quando o levamos para fazer uma faxina no apartamento,” explicou. Estavam quase terminando de organizar o apartamento para entrega, faltando cumprir com pequenas cláusulas do contrato. “Nervosismo de mãe de primeira viagem, mas eu não posso julgar muito quando fazia o mesmo com você.”

“Ela aprendeu com a melhor!”

“Está me deixando vermelha, Georgi…” Imaginá-la corada e sem graça o fez sorrir. Sentia falta de não precisar lembrar de nada daquilo quando a tinha por perto para ver ao vivo. “E você? Está tudo bem, meu amor? Ansioso para amanhã?”

“Você sabe que é verdade, e eu não podia competir sem falar com você, antes, eu faço isso sempre, lembra? É meu amuleto de boa sorte!” Ouvir o doce riso da mãe encheu seus olhos de lágrimas. Aquilo era tão difícil! “Estou bem, um pouco cansado de treino, só isso. Acho que ansioso mesmo eu só fico amanhã.”

“Pobre Gosha… Yakov foi duro com vocês hoje, imagino…”

Aquela era a hora. Não esperava que Margosha lhe desse a abertura para falar sobre Oleg tão cedo, mas se não aproveitasse a chance, ela só saberia quando a transmissão televisiva centralizasse o rosto de Nikiforov ao seu lado no Kiss and Cry. Não existiria descoberta mais traumática que essa.

“Não sei dizer, ele anda muito ocupado com algumas reuniões, coisa de patrocinador… Não tem tido muito tempo para mim.”

“Ele chegou mesmo a comentar sobre isso comigo ontem… Conseguiram te arranjar um técnico substituto?”

Rápida, certeira e fatal. Georgi queria voltar no tempo e falar apenas de Yuri, sem nunca deixar o assunto chegar naquele momento.

“Ah, sim, não é o ideal, mas improvisa bem.” Minimizando a importância de Oleg naquela manhã, Georgi imaginava que a notícia não seria tão impactante. Sonhar ao menos ele podia. “Yakov conversou com Nikiforov, sabe? O pai- pai de Victor.”

Pronto, ele havia dito. Tecnicamente, o pior deveria ter passado; então por que Georgi sentia-se tão mal?!

“Faz sentido para mim, um campeão treinando outro.” A resposta foi rápida e com um fundo levemente bem humorado. “E ele é um bom técnico?” Aquela foi a vez de Margosha esperar. “Gosha? Filho? Você ainda está aí?”

Com o fone apoiado no ouvido e a mão livre cobrindo os lábios tampando os soluços, Georgi tentava entender o rumo daquela conversa. Margosha não tinha ficado nem um pouco desconfortável com aquela notícia? Ela sequer estava hesitando respondê-lo? Nenhum protesto? Palavras engasgadas, tratamento mais frio? O que ele deveria pensar?!

“Georgi?”

Ouvi-la preocupada afrouxou seu autocontrole e fez um soluço engasgado denunciar o abalo emocional, apavorando Margosha em Moscou.

“Georgi, o que foi que aconteceu?!”

“Eu me sinto culpado!” chorou, soluçando todas as lágrimas seguradas até o momento.

“Por que, Georgi?!”

“Eu não deveria estar feliz sendo treinado por Oleg Nikiforov!”

No quarto de hotel, lágrimas; em Moscou, o silêncio.

“Ora, Gosha, e por que não?”

Tanta compreensão em sua voz, tanto cuidado com as palavras… Georgi quase se esquecia que Margosha não estava sabendo de quão ciente era o filho a respeito do pai.

“Porque… Porque ele não é o melhor pai do mundo para o Victor…” Aquilo não era exatamente uma mentira e justificava pela metade o bastante para deixá-lo desabafar. “Mas hoje me tratou tão bem, eu estou tão confuso, mãe, tão confuso!”

Mais um curto momento de silêncio e Margosha voltou a falar, servida das melhores palavras colhidas para a resposta.

“Nem sempre um bom profissional é um bom pai, nem um bom pai um bom patinador. Vivemos diferentes situações no dia-a-dia, em diferentes cenários, por isso para cada cenário, cada lugar, uma diferente maneira de agir. Não é assim quando você está com os patrocinadores?”

“Sim…”

“E o mesmo comigo. Preciso agir de uma forma no Bolshoi, de outra quando estou na rua…”

“Você é uma mãe maravilhosa,” protestou, antes que Margosha se desse como um exemplo totalmente impensável.

“Eu fico muito feliz em ouvir isso, Gosha… Veja, não estou livrando Nikiforov da negligência, mas pode ser que ele não saiba lidar com a paternidade da mesma forma como lida com a patinação.”

“Mesmo sendo filho dele?”

Porque Oleg estava lidando muito bem com Georgi.

“Sei que é difícil, Victor é seu amigo e é totalmente normal que a relação deles te abale, mas no momento ele não está agindo como pai, está agindo como profissional e está tudo bem separar as duas coisas.”

Georgi já havia entendido;

“É para eu separar o Nikiforov pai do Nikiforov técnico.”

Ele só não podia dizer não querer separar; ser treinado pelo próprio pai era uma satisfação acima de qualquer programa concluído sem penalidade na somatória de notas. Ainda assim, não era só isso.

“Eu ainda o admiro tanto, mãe…” confessou em voz baixa, mais um de tantos segredos divididos com Margosha. “A cada elogio, cada correção de saltos, eu conseguia ver, conseguia sentir o que eu sentia quando era criança, aquele brilho, aquele sonho inalcançável, que hoje esteve do meu lado, igual a mim!” Georgi voltou a chorar a culpa sentida. “Mas não devia ser assim! Eu não queria que fosse assim!”

O silêncio mais uma vez. Após breve pausa, o amparo de Margosha.

“Está tudo bem estar feliz, Georgi…” Ela era tão doce que ele quase conseguia sentir as mãos macias acariciando seu rosto. “Você não precisa deixar de sonhar só porque cresceu.”

Aquele conselho teria sido maravilhoso se Georgi ainda tivesse a ignorância infantil de quando ainda sonhava.

Ao menos, ele ainda tinha Margosha. Ele ainda podia sonhar por ela.

“Eu vou te mandar um sinal amanhã.” Notavelmente mais calmo, ele garantiu. “Vai saber quando eu fizer.”

“Tenho certeza de que vou amar, Gosha!” O timbre feliz de Margosha entregava a mesma impressão. “Estaremos todos assistindo!”

Georgi podia até ficar contente com as orientações de Oleg, mas o que o deixava ainda mais feliz era a torcida em polvorosa e isso ele já tinha, uma muito bem organizada na cidade de Moscou.

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Enquanto a maioria de suas colegas voltava para a casa dos pais aos finais de semana, Maria preferia a segurança do Bolshoi. Ainda não era o Vaganova, mas antes o grande teatro ao nada. Ela ainda tinha esperança de conseguir trabalhar em São Petersburgo.

Os bailarinos que não tinham para onde ir nos dias de folga, ou passeavam pela capital, ou mantinham-se em seus dormitórios, descansando as pernas da semana exaustiva de treinos pesados. Maria estaria fazendo o mesmo se naquele dia não estivesse acontecendo a transmissão da final do Grand Prix.

Junto com outros funcionários do teatro, ela estava sentada no refeitório, desfrutando dos chás perfumados e bolos doces — de vez em quando não fazia mal, era o que a cozinheira costumava lhe dizer —, comentando entre as apresentações o desempenho dos atletas. Eram todos leigos no que se dizia patinação artística, mas era divertido ter com quem dividir seus aplausos entusiasmados com belas apresentações e os lamentos com cada queda e desconto de notas que posteriormente aparecia no telão. Era divertido ser acolhida daquela forma, quase substitutos para a família que Maria pouco via desde o ingresso no Bolshoi. Entrar para o Bolshoi havia sido uma das melhores conquistas de sua vida.

O astro daquela final era Victor Nikiforov, mas era por Georgi que ela estava assistindo, para poder dividir com Margosha quando se esbarrassem nos corredores e então Yulia, quando se reencontrassem, quais haviam sido as impressões, dividir com sua antiga professora de balé um assunto em comum, um que Plisetskaya muito gostava e Maria havia aprendido a gostar. A garota ainda não havia tido a oportunidade de assistir nenhum dos programas de Popovich naquela temporada, mas animava-a saber que o tema escolhido para o programa curto pertencia a Lago dos Cisnes.

Quando Popovich foi anunciado, o refeitório mergulhou em silêncio e o coração de Masha saltou. A roupa branca era linda, muito próxima aos figurinos feitos por Popovevna. A aplicação de plumas na altura do quadril faziam Maria se lembrar dos tutus brancos usados por Odette e o decote na altura do busto remetia o design feminino de Odília. Mas ali ele não era nenhuma das duas, não era nem um fiel cisne da protagonista trágica; aquela combinação inusitada era Georgi.

Maria não soube dizer exatamente o nome dos saltos, pois ainda se confundia ao diferenciá-los, mas tinha certeza de que gostava do que via. Se pudesse escolher um dia ser um dos pequenos cisnes, o coreógrafo a colocaria para fazer algo tão bonito quanto? Será que chegaria a tanto?

O programa foi curto demais, em comparação aos outros assistidos, tanto que a deixou levemente triste vê-lo ajoelhado sobre um dos joelhos, na finalização coreográfica idêntica a criação de Petipa. Mas era tão bonito, tão emocionante, que ela teve que aplaudir.

“Isso foi tão bonito! Será que ele ganha medalha?” perguntou uma das funcionárias à sua colega.

“Tomara que sim, eu não entendo nada dessa nova pontuação deles…”

Maria também não entendia como os juízes julgavam quem merecia o pódio, mas se fosse pela performance mais bonita, ela com certeza colocaria Georgi com uma medalha de ouro no peito.

Os comentaristas revezavam elogios com normas técnicas incompreensíveis para a menina, e que no fim não importavam muito, já que elas não podiam mudar a primeira impressão tida por Maria. Ela tinha certeza que Yulia e Margosha pensavam da mesma forma.

A apuração das notas levou uma vida inteira, mostrando a expectativa de Georgi ao lado do técnico substituto, enquanto ambos aguardavam. O homem de cabelos prateados comentava alguma coisa com o patinador quando os melhores momentos passavam no telão, distribuindo tapinhas encorajadores nas costas de Georgi, rindo nervoso para cada comentário inaudível aos telespectadores.

De repente, uma tabela apareceu na tela, dois tipos diferentes de notas, sem nenhuma penalidade, somando o resultado que fez o técnico aplaudir e o patinador saltar, comemorando emocionado a conquista dos 85,7 pontos que o colocavam em primeiro lugar naquela disputa que ainda não havia encerrado.

No ápice de sua emoção, Georgi ainda conseguiu unir as mãos em um coração vazado, um sinal que Maria tentou imitar antes que o rosto de Popovich deixasse a tela e o último competidor fosse anunciado. Achando graça  daquele gesto, ela nem prestou atenção quando o patinador seguinte entrou, ansiando pelo próximo encontro com Yulia onde poderia falar sobre aquele coração.

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Durante a temporada, Victor apresentou o programa longo com nada mais que o figurino reformado de Narkissa. O penteado simples era o mais próximo que ele conseguia chegar da aparência da falecida patinadora, e com “mais próximo”, Georgi referia-se ao tom do cabelo. Victor já era uma cópia exata da mãe e naquela temporada, tablóides não poupavam comentários e comparações, ele com certeza não precisava de mais nada para ser assunto até a próxima temporada, até a próxima vida.

Exausto de sentir-se amargo daquele jeito, Georgi suspirou, deixando a maquiagem de lado e deitando o rosto sobre a bancada espelhada. A inconformidade não era bem com Victor, ele não tinha nada contra o amigo e nem poderia, mas aquele sentimento não deixava seu coração desde que ele viu, mais cedo naquela manhã, Oleg entregando ao filho a tiara de rosas azuis que coroou Narkissa na tão recordada temporada de Life and Love. O tom de azul já estava desbotado em várias das pétalas de tecido expostas e certamente cheirava a guardado, mas para Victor aquela velharia brilhou, radiante como o sorriso que não deixava seu rosto desde que colocara as mãos no adorno. Ele encaixou a coroa na cabeça e recusou-se a tirá-la mesmo durante o treino, precisando da ajuda de Oleg para encher a cabeça de grampos e prendê-la firme o bastante para aguentar todos os saltos insanos de sua programação. Da mesma forma que Oleg havia ajudado Georgi no dia anterior, com a tiara de plumas.

Por que Georgi pensou que seria diferente? Oleg não o ajudou por vontade própria, aquilo foi um improviso de última hora, Yakov tinha lhe dado opções, quem escolheu foi Popovich. Mas ele tinha achado, com todo seu coração, que existia algum coisa por trás do sorriso o recepcionando após o programa curto, da parabenização entusiasmada, dos aplausos efusivos após a nota lançada e depois daquilo dos elogios infindáveis. Georgi achou que teria chance, que aquilo não era mais uma coisa a competir com Victor, já que ambos teriam o mesmo lugar.

Quem Georgi queria enganar? Se fosse para ser daquele jeito, ele teria sido um Nikiforov desde o começo. Era Victor a criança de ouro, as medalhas e troféus estavam lá para provar. Ingênuo não era a palavra para Georgi, estúpido seria melhor. E ele ainda havia deixado Oleg opinar na finalização de seu programa livre! Estúpido, estúpido Georgi Popovich!

Pensando melhor, Georgi não precisava fazer a alteração. O triplo axel nos segundos finais eram sua aposta alta para largar na frente e deixar a disputa do ouro mais acirrada, quem sabe conquistada de uma vez? Poderia conseguir pontos extras, aquela era ousadia o bastante para qualquer patinador!

Retomando a maquiagem de onde tinha parado, ele decidiu, em uma discussão cheia de gritos mentais e dedos erguidos, que não mudaria um único passo da coreografia arduamente ensaiada ao longo de todos aqueles meses sem Oleg, todos os anos. Precisava continuar firme ao que sempre fez, precisava de força e não considerando tê-la toda concentrada no punho, Georgi puxou Nana, sua pedra escura, com tamanha brusquidão, que o gesto foi capaz de arrebentar a corrente, escapando de sua mão, deslizando pelos dedos frios e caindo no chão, quebrando-a pela metade. O choque conseguiu parar até sua respiração naquele momento.

“Georgi? Como estão os preparativos?” Oleg não esperou resposta após as curtas batidas, entrando no camarim cheio de bom humor e expectativa, interrompidas pela visão atordoada de Georgi encarando o chão. “Georgi? Está tudo bem?” Novamente sem aguardar pela resposta, ele se aproximou, percebendo o que tinha abalado a concentração do garoto.

“Nana…” balbuciou ele, quando viu Oleg agachar-se com dificuldade para apanhar os pedaços partidos de seu pingente. “Eu não podia ter quebrado… Foi um presente, eu não podia ter quebrado…!”

“Hey, Georgi, acalme-se,” pediu Nikiforov, abaixando-se até cair sentado no chão, de frente para o patinador. Vendo-o ali, abaixo de si, não foi capaz de reviver a revolta de outrora. “Eu vou mandar arrumar, tudo bem? Conheço um ourives excelente, ele pode lapidar a melhor parte da pedra e soldá-la a um adorno de metal, bem mais firme, que a proteja, o que me diz?” Georgi estava feliz que outra pessoa estava pensando por ele naquele momento; a única coisa que conseguia fazer era concordar. Ainda não tinha perdido Nana, ainda tinha seu amuleto.

Mas como competiria sem tê-la consigo?

“Preciso ligar para a minha mãe!”

“Agora? Estamos um pouco em cima do horário… Não acha melhor ligar depois?”

Novamente outra cabeça pensando em seu lugar foi mais certeira. Não adiantaria nada ligar para Margosha faltando tão pouco para a apresentação, ela com certeza brigaria com o filho pelo risco. Pensar na mãe ao menos garantiu um sorriso, como falar com a própria teria sido. Georgi poderia considerar-se um pouco mais calmo, agora.

“Vou te ajudar a terminar de se arrumar.” Com dificuldade, Oleg voltou a ficar de pé, mancando não muito disfarçadamente até o balcão repleto de produtos espalhados. “Nas últimas apresentações vi que usou bastante preto, não? Posso tentar algo diferente?”

Georgi pensou em negar, mas ver Oleg segurado um pincel nos dedos enluvados, o impediu de ir contra. Era aquela sensação de novo, a de ter um momento que não podia ser de mais ninguém.

“Claro…”

De olhos fechados, ele esperou sem reclamar. Não reclamou a textura fria do pancake usado para pintar seu rosto, nem espiou quais tons Nikiforov usava para esfumar o contorno de seus olhos cerrados, assim como Oleg não reclamou quando lágrimas escaparam por debaixo das pálpebras fechadas, obrigando-o a refazer parte da maquiagem. Ele também foi educado o bastante para não perguntar a Georgi o que, além do pingente partido, estava acontecendo.

“Acho que eu finalizei.” Deixando os itens cosméticos de lado, Oleg afastou-se da cadeira, deixando espaço para Georgi. “Quer dar uma olhada?”

Popovich sequer hesitou e por conta disso, ver seu rosto maquiado daquela forma impactou em um sorriso largo, emocionado, a felicidade abraçada ao medo que marejava os olhos e ameaçava a integridade do rímel preto e do sombreado púrpura.

“Posso considerar isso uma reação positiva?” Respirando fundo e engolindo os soluços, Georgi concordou em silêncio. “Fico mais aliviado, assim.”

Batidas na porta fortes demais para ser de qualquer outra pessoa que não Yakov, avisaram da hora e da necessidade de se apressarem. Em uma troca de olhares, ambos conversaram e se entenderam, deixando a sala para trás e, assim esperava Georgi, todos os sentimentos controversos, também.

Enquanto atravessavam o corredor, Georgi tentou ignorar o burburinho de funcionários e staffs que se concentravam ao redor das televisões espalhadas pelo caminho, repassando mentalmente A Valsa das Flores e associando para cada nota musical uma combinação diferente. Deveria tentar mudar o final? Precisava decidir logo, ou deixar aquilo para o gelo poderia ser catastrófico.

A entrada para o ginásio fez disparar seu coração e ele precisou que Oleg discretamente o empurrasse pelo corredor lateral. Já não conseguia mais dizer nenhuma palavra, puxando o zíper da jaqueta e deixando que Nikiforov a retirasse. No estado em que estava, ele não lembrava nem mesmo que a jaqueta tinha mangas.

“Apenas entre lá e faça o que sabe,” aconselhou Oleg, em um tom estranhamente afável. “Sei que dá conta. Você também sabe.”

Nikiforov viu a cabeça de Georgi concordar com cada palavra, ou quem sabe se convencendo a acreditar, antes dele retirar os protetores das lâminas e se forçar gelo adentro. Oleg estava tão nervoso que era como se fosse ele naquele gelo.

“Entrando agora temos Georgi Popovich de dezessete anos, da Rússia, com A Valsa das Flores de Tchaikovsky para o programa livre.”

“Georgi que conseguiu a segunda melhor nota no dia de ontem e, até agora, a maior nota de sua carreira na categoria sênior!” O comentarista televisivo completou as informações. “E, assim como ontem, seu técnico substituto continua sendo Oleg Nikiforov, memorável patinador da União Soviética e pai de Victor, o favorito da competição, que continuava a ativa até o começo desse ano com seu show Fairytale on Ice!”

“Vale lembrar que durante boa parte de sua carreira júnior, Georgi teve Nikiforov como principal patrocinador. Será que a parceria se repetirá após essa final, Golubev?”

“Eu acho que sim, Aparin!”

 

“O que eles estão dizendo, sensei?” Yuuko insistia, querendo saber cada vírgula cirílica dita pelos comentaristas.

“Agora não, Yuuko-chan, já vai começar…”

 

Abaixado no meio da pista, Georgi esperou que as primeiras notas começassem para iniciar a coreografia, uma flor preparando-se para despertar de seu estado inicial como botão. Concentrando os movimentos na parte superior do tronco, mantendo os patins fixos no gelo, Georgi usava os braços para gesticular alto e em curvas moderadas, torcendo o tronco enquanto erguia-se, interpretando uma flor que, assim como ele, via-se com suas raízes tão presas no chão que o impediam de crescer, abrir-se para a vida.

À medida que a composição crescia em ritmo e notas altas, os passos foram ficando mais arriscados, uma flor forçando-se para fora das sombras, ciente de que elas não podiam mais ajudá-lo a florescer. Próximo ao refrão ele preparou-se, deslizou de costas e então;

“Um duplo salchow e toe-loop!”

“Muito bem acertada combinação!”

 

“Ele pulou, vovô!” Yuri gritou da sala de estar. Da cozinha, Nikolai preparava uma bacia inteira de piroshky para acompanhar a competição.

“Já estou indo, Yurachka!”

“Cadê a mamãe? Ela vai perder tudo!” reclamou, bicudo. À manha do neto, Nikolai só soube rir.

 

Os gritos da plateia o fizeram sorrir, a flor dentro de si timidamente começando a aparecer. Não esquecendo dos twizzles que compunham aquela valsa solitária, a flor de Georgi girou pelo gelo, alegremente crescendo, esguia em direção a um sol que já não lhe era mais impossível. E quando as cornetas de Tchaikovsky anunciaram, Georgi saltou mais uma vez.

“Russian split, uma de suas especialidades.”

E outra.

“O-oh, acho que ele pode perder alguns décimos nesse lutz.”

Georgi não se importava. Até mesmo flores podem errar o percurso para o alto.

A plateia não poderia estar mais encantada com aquele programa. Era um conto de fadas russo, escrita por aqueles patins, ressoada pelos gestos de Popovich, a entrega profunda de uma violeta presa dentro do patinador, que vez ou outra trocava o deslizar pelas curtas corridas em cima das serrilhas, ameaçando arrebentar com as raízes daquele espécime florido raro e florescer para cima da plateia.

“E parece que até Nikiforov está emocionado!”

Para a transmissão internacional, Oleg não conseguia disfarçar a emoção.

Mais uma vez as trombetas retumbantes, mais uma vez um axel que não passou de um giro e meio frustrado na finalização, lamentado pela plateia. Mas não tinha acabado, não ainda. Georgi ainda tinha o final do programa, o salto que lhe garantiria tudo ou o jogaria novamente ao nada… Que ele desistiu no último momento.

Com as serrilhas presas ao gelo, Georgi se lançou ao ar, voltando ao gelo para um sit spin rápido, cansativo, esgotante à altura daquela apresentação, mas que por algum motivo, o impulsionou para cima, as mãos que subiam do quadril em direção ao alto, finalizando o spin com ambos os braços apontados para cima, dedos abertos, olhos fixos na mesma direção, junto aos últimos acordes da valsa; aquela era a sugestão de Oleg, não um salto desafiador, mas a mensagem que o programa de Georgi tentava passar, a de uma flor desabrochando. Georgi finalmente sentia-se florescer.

Durante alguns segundos, ele assistiu a chuva de pelúcias e flores vir em sua direção, não acreditando naquela visão que lhe fora negada até mesmo nos mais lúdicos sonhos. Exausto, e ele não sabia dizer se pela dificuldade do programa ou pelo emocional fragilizado, os joelhos de Georgi vacilaram e permitiram que ele caísse, chorando sua maquiagem sobre o gelo riscado. Ele tinha conseguido! Será que Margosha tinha visto tudo?

 

“Ah, Minako-senpai, você está chorando!” Hiroko, servindo uma nova rodada de misoshiro para os telespectadores do Grand Prix, logo abandonou a bandeja para correr atrás de um lenço.

“Eu estou bem, Hiroko-chan, verdade…” soluçou, esfregando os olhos que não paravam de expulsar lágrimas.

 

“E você aí de casa pode conferir os melhores momentos da apresentação de Georgi Popovich! Foi realmente espetacular, fazia tempo que não tínhamos uma interpretação dessas, não acha Aparin?”

“De fato, os patinadores de Yakov são fantásticos. Victor é um show a parte, mas Popovich tem uma entrega artística muito similar a Oleg, que inclusive não para de sorrir no Kiss and Cry!”

“Agora, vamos lá, teremos o anúncio das notas…” No ginásio suíço, a comoção foi geral. “Os descontos que já esperávamos pela entrada errada do lutz e a não finalização do duplo axel, mas aí está a nota, 165 pontos cravados!!”

“Popovich assume a liderança e já garantiu o pódio!”

Sentado ao lado de Oleg, Georgi não acreditava e quando finalmente conseguiu, ele chorou abertamente para o mundo todo assistir sua emoção sem travas, tão contrária à imponente figura do homem russo. Quem ligava? Naquele momento Georgi era tão somente uma flor.

Embora aquele momento tivesse durado uma eternidade, a atenção da plateia já estava em Victor Nikiforov, o anúncio de sua entrada e composição apresentada ecoando até o banco onde Georgi ainda não tinha se levantado.

“Victor vai entrar,” Oleg avisou, pousando a mão em seu ombro e chacoalhando de leve. “Vai querer assistir?”

“Eu…” Os aplausos e gritos vibravam por Victor; seu solitário Pas de Deux estava para começar e nenhum fã gostaria de perder, muito menos Georgi. “Eu preciso ligar para a minha mãe.”

Não seria daquela vez que Georgi se uniria à torcida. Vitya o perdoaria por isso, tinha certeza.

“Certo, certo, vá lá. Nos vemos no pódio, mais tarde?” Sem graça, Georgi sorriu, concordando em silêncio, as bochechas quentes por baixo do pancake branco. “Você… Você me emocionou muito hoje, Georgi. Eu nunca tinha visto nada igual, muito menos feito.”

Popovich sentia que poderia recomeçar a chorar e não estava mais tentando conter.

“Obrigado,” soluçou, terminando de borrar o que ainda restava da sombra roxa. “Muito obrigado-” pai, era o que ele quase disse e o que gostaria de ter dito. Depois de tudo o que tinham passado, existiria oportunidade para Georgi naquela família?

 

“E aí está, mais um patinador de Feltsman e mais um fã de Tchaikovsky.”

“Interessante observar que tanto Nikiforov quanto Popovich escolheram composições normalmente dançadas em pares ou por grandes corpos de baile. Popovich encantou a todos ao fazer uma valsa sozinho, será que podemos esperar o mesmo grande feito com Victor?”

“Eu aposto que sim, Golubev.”

 

Não demorou para Victor provar a que tinha vindo. Mal os violinos começaram a tocar na composição clássica e ele surpreendeu com um impecável triple salchow, arrancando aplausos da plateia e de seu pai, que já conseguia assisti-lo ao lado de um muito sério Yakov.

Longe do ginásio, Georgi tentava procurar por algum telefone disponível, quase suspirando de alívio quando lhe cederam o fone para uma rápida chamada. Ele só esperava que a mãe o atendesse logo, tinha pouco menos de quatro minutos até o fim do programa de Victor que, pelas ovações que podia ouvir vindos da plateia, estava sendo fascinante.

Primeira chamada — nada.

Segunda chamada — nada.

Terceira chamada e a queda da ligação.

Mas que demora! Ela não havia dito que estaria assistindo junto com a família de Yulia?

 

“Vovô?” Estranhando o avô não estar se movendo para atender o irritante tilintar do telefone, Yuri tentou chamá-lo. Aquele som estava incomodando muito, o irritando tanto que estava quase chorando. E por que a patinação de repente tinha desaparecido da televisão? Ele ainda queria assistir!

 

“Oh meu Deus…” a voz da pobre cozinheira estava falha diante de tamanha tragédia. Com aquele furo de reportagem interrompendo a transmissão do Grand Prix, nenhum dos funcionários presentes conseguia falar.

“Ainda não se sabe como o incêndio começou, tudo o que temos até agora é a notícia de que o fogo começou no quinto andar. Algumas famílias conseguiram escapar antes das chamas de espalharem, mas infelizmente, ainda não se tem nenhuma notícia dos moradores dos outros andares.”

“Não é onde mora Margosha?” perguntou um dos funcionários responsável pela manutenção. O temor em sua voz era um pedido implícito para que alguém o corrigisse e negasse.

“Os bombeiros suspeitam de um curto circuito na fiação antiga,” narrava a jornalista, enquanto imagens do incêndio não contido eram recuperadas pelo arquivo do jornal. “As labaredas se alastraram principalmente na parte exterior da estrutura, chegando até três metros além do vigésimo andar do prédio, o que dificultou a aproximação da equipe de bombeiros via aérea.”

"Masha...?"

No vigésimo andar era onde a família de Maria morava.

 

“E lá vem Nikiforov mais uma vez…”

“Triplo axel! E mais outro!”

“Esse triplo-triplo vai garantir uma pontuação e tanto!”

 

Mais uma ovação emocionada e Georgi não conseguia conter a curiosidade. Tentando discar o número de Nikolai mais uma vez, ele procurou por alguma televisão em volta, querendo pelo menos assistir a transmissão e não ficar com aquele débito com Victor.

O programa passado, contudo, não era o de patinação.

 

“Death drop.”

“Com o incêndio contido, os bombeiros começam a entrar para tentar realizar os resgates.”

“Três seguidos!”

“Parte da equipe de resgate tenta levantar os nomes dos moradores do prédio e o número total por andar, para conseguir agilizar a retirada, caso haja algum ferido.”

“Pelo jeito o ouro não é mais de Popovich…”

“Uma equipe com mais de trinta profissionais da área da saúde aguarda do lado de fora, as ambulâncias já preparadas para sair em caso de extrema urgência.”

 

Oleg estava encantado, sem conseguir desviar a atenção do gelo. Por mais propaganda que tivesse feito do filho em situações passadas, ele nunca havia de fato assistido e apreciado o trabalho de Victor. Não era exagero algum dizer que era a primeira vez que via-o patinar.

 

“Duplo Lutz.”

“Aí vem os primeiros bombeiros e, infelizmente, pelo que podemos ver pelas imagens, estão trazendo dois corpos.”

“Acho que é a primeira vez que vemos Oleg Nikiforov tão abalado…”

“Pela transmissão feita pelo chefe de bombeiros, nenhum sobrevivente foi encontrado nos primeiros andares atingidos pelas chamas.”

“O que será que Victor nos mostrará na segunda metade da coreografia?”

“Nossa equipe está apurando junto a equipe de resgate o número de vítimas. É até agora a maior tragédia noticiada em toda Europa.”

“Triplo Flip!”

“Já temos os primeiros nomes.”

“Fenomenal!!”

“Grigory Ivanov.”

“O público está incontrolável!!”

“Lidya Ivanova.”

“Podemos dizer que nós também, Aparin!”

“Dois corpos sem identificação.”

“E agora…”

“Nenhum morador no sexto andar para ser incluso na lista.”

“Lá vem ele mais uma vez!”

“Anfim Zaytsev.”

“Um quad flip!! Ele acaba de fazer um quad flip!!”

“Boris Snegir.”

“Escute a comoção da plateia!! Feito inédito em toda história da patinação artística!!”

“Filipa Zelenskaya.”

“Olhe a emoção de Oleg Nikiforov! As lágrimas de Yakov Feltsman no Kiss and Cry! A plateia não para de gritar!”

“Yulia Plisetskaya.”

“E a nota para esse feito, qual será?”

“E Margosha Popovevna.”

“198,4 pontos!!”

“Por enquanto esses foram os nomes informados, lembrando que os resgates ainda não terminaram.”

“Um recorde nunca antes visto!! Victor Nikiforov de apenas dezessete anos acaba de firmar a conquista da medalha de ouro em um programa memorável!!”

“Continuaremos por aqui para mais informações.”

“Que dia, amigos de casa, que apresentação!”

“Quem puder colaborar com o corpo de bombeiros com informações úteis à equipe de resgate, favor contatar nossa equipe pelo número abaixo.”

“Todos nós só podemos celebrar essa conquista! Inacreditável, Golubev, ainda estou arrepiado!”

“O Canal Treze só tem a lamentar esse terrível acidente.”

“Olhe a emoção do jovem Nikiforov! Merecidas lágrimas, Victor, merecidas! Esse dia, merecidamente...

“Essa tragédia, infelizmente...”

“... entrará para a história!”

“... entrará para a história.”

 

— Fim do Terceiro Ato —


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Notas finais do capítulo

Essa foi, sem dúvida, uma das cenas mais difíceis que eu já escrevi. Toda crítica será bem recebida!

Por favor, não me matem, tá nos avisos que tem tragédia ;w; -qq Mas eu aceito que fiquem tristes, até eu estou, aaaaaaaaaaaaa quero Margosha e Yulia para serem minhas mães ;A;

Caso algumas cenas tenham ficado um pouco confusos, algumas explicações:

— Os comentários feitos pelo pessoal cobrindo o GP eram na maioria sobre os elementos técnicos realizados. Eu fiquei um pouco presa aos já conhecidos, porque percebi, infelizmente, não ter deixado nos capítulos passados, descrições de layback, por exemplo. Acho que o mais desconhecido, aí, é o death drope, mas é aquele salto que o patinador faz com as pernas no ar (e o que o Georgi fez para finalizar com o sit flip);
— Maria estava no refeitório assistindo ao último dia de competição, assim como havia feito no dia anterior. A família dela também morava no prédio que pegou fogo.
— Nikolai entrou em estado de choque quando viu a notícia do incêndio, por isso não conseguiu atender ao telefone. Yulia e Margosha haviam ido ao apartamento pegar mais um punhado de quinquilharias e, infelizmente, somaram seus nomes à tragédia :c
— Como Minako estava assistindo à transmissão russa internacional pela TV a cabo de Yuu-topia, sim, ela viu sobre o incêndio. Toda a família Katsuki parou o que estava fazendo para consolá-la.
— Sim, Georgi viu quando o nome da mãe foi noticiado. Ele já tinha reconhecido o prédio quando viu o noticiário.
— Victor não soube de nada até finalizada a cerimônia de medalhas. Yakov deixou a Suíça sem conseguir parabenizá-lo, deixando ele com o pai. Foi nesse mesmo dia que ele conheceu o Chris (versão soft que ainda não dançava semi-nu em pole dance).
— Minha descrição de Makkachin como um poodle macho é mais pela análise de como o focinho é desenhado, mais arredondado, quando fêmeas dessa raça tem o focinho comprido. Se foi confirmado de Makkachin ser fêmea, vou dar uns tapas na Kubo.

Acredito que para esse capítulo seja isso. Obrigada pela leitura e até breve!! ♥



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