Carabosse escrita por Nat King


Capítulo 2
Primeiro Ato


Notas iniciais do capítulo

Olá~ Voltamos agora com mais um capítulo dessa fic! :D

Agora, como em um espetáculo de balé, entramos no primeiro ato! owo Espero que gostem desse capítulo! Comentários são apreciados, ficarei muito feliz com seu retorno! ♥

Grande abraço e boa leitura!



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Primeiro ato

A pista GUM estava estranhamente vazia naquela tarde, mas não era algo o qual Georgi reclamaria. Ele adorava ter todo aquele espaço a disposição, onde poderia patinar como quisesse sem precisar limitar suas passadas e conter a expressividade de seus movimentos para não bater nos demais ocupantes do gelo. Geralmente, aquela era a rara oportunidade onde podia fingir ter a pista toda só para si, imaginar o céu coberto como um ginásio iluminado por holofotes e toda a extensão de arquitetura e neve substituída por uma enorme plateia. Era daquela forma que Georgi sonhava, era daquele jeito que imaginava ganhar uma medalha.

Porém, com Yakov os visitando, ele tinha um acréscimo àquele sonho, sentindo como se estivesse tendo todos os seus passos vigiados pelos olhos pequenos, analisando seu deslizar e condenando sua postura. Como um rival? Um juiz? Não… Como um técnico. Sendo ele um ex-patinador profissional, conseguiria impressioná-lo?

Com as mãos elevadas acima de sua cabeça, Georgi abriu os dedos, imaginando se aquele era o tipo de visão que os patinadores tinham quando executavam suas coreografias. Projetando um holofote central no sol oculto pelo tempo nublado, ele contou mentalmente o tempo inicial de um de seus programas preferidos, um pas de deux que sabia pertencer a Tchaikovsky, embora não se lembrasse de qual peça… Tchaikovsky tinha muitos pas de deux para Georgi lembrar de todos.

Abrindo os braços no ritmo melancólico do violino, imaginou-se coberto de renda negra, como o cisne de tutu bordado por Margosha. Começando a se mover pelo gelo, acompanhava os passos cravados em sua memória o mais fielmente possível, sorrindo com o que pensava ser uma reprodução impecável de um dos programas curtos que tinha gravado em sua fita. Embora na realidade não estivesse conseguindo — e nem tivesse toda a preparação técnica e corporal de um competidor sênior para isso —, Margosha achava adorável os trejeitos meio tortos do filho e todo o esforço colocado naqueles patins. Somando ao sonho dele, ela começou a aplaudir, tendo o som das palmas abafado pela luva grossa, substituído pela ovação de uma ginásio lotado.

“Quando ele começou a ter aulas?”

Tirada daquele sonho acordado, Popovevna olhou para o pai.

“Oh, não, Georgi ainda não tem aulas de patinação…”

“E por que não?” balbuciou azedo. “Quando me escrevia que ele gostava de patinar, achei que fosse em uma escola.”

“Meus horários no teatro não batem com as turmas infantis e eu não posso deixar o trabalho para levar Gosha e buscá-lo depois. Minako e eu estávamos esperando ele começar a estudar, você sabe que as escolas possuem atividades extras de patinação-” Yakov não deixou que terminasse de falar.

“E o que a japonesa tem a ver com isso?”

“... onde ele poderia patinar no contra turno, ficaria até mais fácil de conciliar meus horários.” Ignorando o azedume paterno, Margosha terminou de explicar. “Minha vida gira em torno do meu filho, pai, tem sido assim há cinco anos. Faço de tudo para que Gosha possa aproveitar sua infância, às vezes Minako e eu o trazemos para se distrair-”

“Se distrair?” Novamente ele a interrompia. “Do jeito que ele já patina?” Yakov chegava a estar ofendido. “Margosha, ele acabou de fazer um buncle brincando! Imagine esse menino devidamente instruído, o monstro que não seria no gelo?”

“Meu filho não é um monstro” murmurou, olhando para o rinque. “Georgi gosta de fadas.”

Incrédulo, ele rebateu.

“E você terá uma fada triste se ficar o afastando da patinação” debochou, fechando a expressão logo depois.

Novamente em silêncio, ambos continuaram a assistir aquela criança, feliz e divertida em sua segunda casa, sem imaginar ser pauta do leve desentendimento entre sua mãe e o pai que há anos ela não via.

Não era intenção de Yakov criticar Margosha ou causar um novo desentendimento, não depois de tudo o que haviam passado. Se precisasse passar por cima do próprio orgulho inflado para pedir desculpas, assim o faria.

“Eu quero que ele patine” Contudo, no que poderia ser um tipo bem contraditório de sorte, Margosha começou a se explicar. “Não queria a princípio, é verdade, mas nunca o proibi ou frustrei seu sonho e isso você pode perguntar para qualquer um que nos conheça, pai…” Contendo as lágrimas, ela sorriu. “Georgi diz sempre que quer ser um grande patinador e sempre me traz um desenho novo, um figurino que ele imagina para o futuro. Ele já escolheu as músicas que quer patinar para uma vida toda e mesmo sem saber escrever, memorizou o nome da maioria das composições clássicas. E eu quero, pai, quero muito ver meu filho no pódio, coberto com toda glória que ele merece e estou passando por cima de muitos receios para isso, mas ele vai ser um patinador, ele vai ter reconhecimento e, principalmente, eu estarei lá por Georgi quando isso acontecer” garantiu com toda convicção que podia. “Porque desde agora eu já estou o aplaudindo.”

Talvez a culpa de sua seriedade fosse a época em que teria nascido e crescido — assim tentava Feltsman justificar. Criado com tantos limites empurrados goela abaixo, quisesse ele ou não, conversas e ponderamentos nunca fizeram muita parte em sua vida. Margosha não havia lhe dado nenhum tipo de problema e tamanho apego à ela o fez ignorar as diferenças de uma geração diferente a sua. Acostumado com os dois extremos, o tudo ou o nada, ponderar entre eles e aprender a ler nas entrelinhas revelou-se algo complicado que sua teimosia relutava em aceitar. Margosha sempre foi mais flexível a mudanças e ao diferente e mesmo que o conservadorismo de Yakov fosse tido por ele como algo bom, podia ver como aquilo afetava a filha. Ter parte naquela culpa era algo que ele preferia ignorar.

Nem sempre o julgamento externo pesa para uma pessoa; ele começa afetar quando a exclusão social atinge alguém amado, ou pior, parte de quem se ama. Yakov havia ferido Margosha o bastante para ela temer que toda essa dor fosse passada para Georgi, uma herança maldita da qual ninguém ali tinha culpa. Agora ele aceitava, porque saber, por mais amargo que fosse admitir, Yakov sempre soube.

“Você não tem nada do que se esconder, Margosha” disse tão baixo que poderia ter sido apenas seu pensamento.

“Eu não quero que o machuquem…” Aquela resposta foi o suficiente para ele saber ter sido ouvido. “Eu sei que não posso, mas minha vontade é de escondê-lo do mundo, de fugir para um lugar que ninguém nos conheça, longe de qualquer ameaça…” Yakov sabia qual era a ameaça a qual ela se referia. “Eu jamais me perdoarei se Georgi for prejudicado por minha culpa, pai. Foi por isso que eu pensei em mantê-lo comigo o quanto pudesse, para reforçar quão importante é a pequena família que temos. Não sei, penso que se ele acreditar nisso o bastante, nenhuma outra provocação o atingirá.” Ter os grandes olhos marejados da filha o encarando com humildade, o fazia vê-la com sete anos. Ele sempre a veria como uma criança, no final das contas. “Sou muito ingênua?”

“Um pouco.” Não foi a intenção de Yakov ser tão direto e sua sinceridade desmedida fez Margosha rir por cima da vontade de chorar. “Não podemos proteger uma criança do mundo.” aquilo ele dizia com conhecimento de causa, todavia era muito difícil pôr em palavras tudo o que trazia em mente.

No gelo, Georgi terminava sua coreografia, curvando-se em agradecimento e acenando para o vazio, totalmente imerso em sua fantasia infantil. Ambos Yakov e Margosha riram da cena, acenando quando o menino virou em suas direções e curvou novamente. Yasha apenas confirmou como ele havia definitivamente saído à mãe.

“Por que não vão para São Petersburgo?” questionou como se a sugestão fosse completamente inocente. O choque dela com o convite disfarçado a fez parar de acenar, sustentando a mão no ar. “Tenho planos de começar uma turma própria, Georgi poderia ser meu primeiro aluno.”

Aquilo era mais do que uma oferta de treinamento para Popovich, era um convite para Margosha voltar para São Petersburgo, voltar para casa.

“Não sei mais lidar com esses jovens, querem começar uma revolução, não obedecem mais às instruções dos antigos técnicos, eu não tenho paciência para ajudar a instruir esses rebeldes, prefiro treinar um patinador desde criança que me dá menos problema.”

Foi um alívio para ele ter um sorriso como resposta.

“Eu vou pensar no assunto.”

De longe, Georgi percebeu quando Yakov trocou algumas palavras com sua mãe e se afastou, indo em direção à entrada do rinque. Curioso, disfarçava o interesse dando voltas no mesmo lugar, lançando olhares para o homem que depois de pagar pela entrada, dispensou a orientação dos funcionários do GUM e ficou buscando entre os patins disponibilizados aos visitantes, um que lhe agradasse. Pela sua demora, pelo jeito nenhum deles era apropriado e depois do que pareceu uma vida inteira, Feltsman calçou os patins e entrou na pista, resmungando todo o trajeto até alcançar Georgi.

De frente para o menino, Yakov não soube muito bem o que dizer, preferindo por encará-lo. O observava muito atentamente, analisando com cuidado algo que Georgi sequer fazia ideia do que poderia ser. Tentando ver em si mesmo o que aquele homem aparentava enxergar, abaixou a cabeça e olhou esticou os braços para os lados, analisando com extrema atenção, até desistir ao não ver nada de mais e juntar as mãos novamente, tentando enxergar nos dedos pálidos e na palma macia, algo de diferente a ser notado. Mais uma vez frustrado, ele resolveu alisar a barriga coberta, achando que talvez o problema estivesse na lã do casaco, porém, sem enxergar o que os olhos de Feltsman estavam vendo, Georgi voltou a olhar para cima, com as sobrancelhas franzidas em um questionamento frustrado: o quê?

A resposta àquela silenciosa pergunta, foi um resmungo nada esclarecedor. O complemento das ações de Yakov foi um arrastar de patins em sua direção, usando uma das lâminas para separar o espaço entre os pézinhos, quase desequilibrando Georgi ao fazê-lo. Julgando a nova posição do menino boa o bastante, Feltsman finalmente começou a falar.

“Vamos dar uma volta.”

Pego de surpresa, Georgi levou um tempo para entender que aquele não havia sido um convite, se apressando para alcançar Yakov, que não havia esperado pelo menino para começar a patinar. Temendo perder o ritmo, resolveu manter sua atenção presa em Feltsman, por mais que quisesse deslizar para onde a mãe os assistia e perguntar o que devia fazer naquela situação. Georgi já havia entendido que conversas com o pai de sua mãe — poderia chamá-lo de avô? — só aconteciam quando o próprio se dispunha a isso e, pelo que pôde perceber, seu estoque de palavras havia acabado na tal história de Lenin e a União Soviética. Já distraído do seu objetivo inicial, Georgi começou a pensar consigo mesmo se quando findada as palavras diárias de Yakov, o ex-patinador não começava a se expressar com aqueles resmungos sem propósito, o que explicaria o uso de bufares na maior parte do tempo. Margosha, ao menos, entendia o que cada uma daquelas reclamações queria dizer, como se ela tivesse um dicionário mental ou pudesse ler sua mente. Qualquer uma das opções era incrível e Georgi já estava totalmente impressionado com o poder não confirmado de sua mãe.

Sorrindo para suas ideias internas, não notou quando Yakov diminuiu o ritmo das próprias passadas, deixando o garoto tomar uma distância de alguns metros, onde passou a avaliar o desempenho de Georgi naquela pista pública. Mesmo muito jovem, aquela criança tinha total domínio sobre os patins e eles nem deviam ser o tamanho exato de seus pés. O deslizar era suave e as passadas longas e graciosas, fazendo-o parecer estar apenas dando um agradável passeio. Yakov nunca tinha conhecido alguém com tamanha facilidade em se adaptar ao gelo antes, nunca exceto…

De olhos fechados, mentalizou o rosto daquele que amargava seu coração com tanta facilidade, vendo-o dissipar aos poucos quando a risada de Georgi encheu seus ouvidos. Fazendo do gelo seu próprio parque de diversões, ele aumentava a velocidade, rindo do frio cortando seu rosto e arrepiando os cabelos negros, abrindo os braços não para enfrentar o vento, mas unir-se à ele naquela brincadeira que fazia voar o cachecol e sua imaginação. Jogando o peso em uma das pernas e elevando a outra, girou com a brisa e dançou em curvas, esticando as mãos para frente quando apanhou os dedos gélidos da estação, trazendo-a para perto enquanto deslizava de costas, animado com a própria valentia de patinar sem olhar certo para onde. Não tinha medo de cair, ao contrário de Margosha, roendo a ponta das luvas de preocupação; Georgi confiava no gelo como só confiava na mãe, sabendo por essa comparação, nunca estar abandonado ao incerto. Aquela pista era seu mundo e Georgi conhecia cada centímetro, como a palma de sua mão.

“Quer ver algo interessante?” Pego de surpresa pela proximidade, ele ouviu Yakov perguntar. Estava tão distraído que havia se esquecido por um breve período não estar ali sozinho.

Percebendo estar tão sem falas quanto Feltsman, Georgi respondeu com um leve aceno positivo. Não tinha ideia do que Yakov poderia fazer de admirável, mas seu interesse infantil não o deixava negar uma oferta como aquelas, onde ele não sabia o que poderia acontecer. Surpresas sempre o animavam.

Inclinando o corpo para frente, Feltsman começou a se afastar. Temendo perder algum detalhe daquele tal algo interessante, Georgi o seguiu, achando graça do leve sorriso no rosto marcado, algo que em poucas horas o menino já sabia ser difícil de conseguir. Feliz por estar presenciando aquela raridade, ele também sorriu.

“Pai?” De onde estava, Margosha falou consigo mesma. Ele não iria fazer o que ela estava temendo, iria? “Pai!” Erguendo a voz, tentou chamá-lo, na esperança de que ouvi-la pudesse frear aqueles patins. Como forma de rebeldia, a velocidade aumentou e Georgi riu alto, incentivando o patinar. “Yakov Feltsman!”

“Uh… Sua mãe me chamou pelo nome completo…” riu ele para Georgi, caçoando da tentativa de autoridade de Margosha. Popovich, que nunca havia afrontado a mãe — ou dado motivo para o fazer —, achou aquilo ofensivamente engraçado, tampando a boca para ocultar o riso. Se não pudessem vê-lo rindo, era como se nunca tivesse acontecido.

Yakov abriu distância de Georgi e antes que o menino pudesse alcançá-lo novamente, ele girou sobre as lâminas e forçou a serrilha do patins esquerdo na superfície gelada, impulsionando o corpo pelo ar. Impressionado por estar vendo tão de perto um toe loop, Georgi deixou de mover os pés e observou a tudo de queixo caído e olhos estalados, chocado com o giro duplo feito por Feltsman e querendo fazer o mesmo.

“Gostou?” perguntou Yakov, parecendo ter o dobro do tamanho para os olhos admirados de Georgi.

“Sim!!” A comemoração do pequeno veio com uma ovação solitária e um sorriso escancarado. E pensar que tão pouco poderia fazer a alegria daquela criança…

“Que bom…” Yakov sorriu para si mesmo. “Porque acho que trinquei meu tornozelo…”

Do lado de fora do rinque, Popovevna os esperava de cenho franzido, pronta para puxar os dois pela orelha.

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Era um tanto estranho para Yakov, acostumado com a discrição de Margosha — enquanto tinha a filha por perto — e a solidão, quando ela já não mais vivia com ele, ter tanta atenção. Chegava a sentir uma leve irritação ter os olhos azuis de Georgi constantemente presos em si, cheios de questionamentos que a voz infantil nunca fazia, mas sempre acabava respirando fundo algumas vezes, sabendo não ser culpa da criança seu humor pouco afável. Ele só estava curioso tendo Yakov como novidade em sua casa, cercando-o de longe e se atrevendo a aproximar quando notava algo totalmente fora do esperado, como agora. Por que ele tinha inventado de dizer a Margosha ser capaz de cuidar de Georgi enquanto ela estivesse fora?

Popovich estava intrigado. Ele sabia que apenas adultos e Yulia podiam mexer com fornos e fogões — não, ela não estava inclusa na categoria adulta, ainda —, mas geralmente panelas eram usadas para cozimento. Georgi nunca antes tinha visto alguém usar uma colher diretamente no bocal aceso. Olhando do talher incandescente para o responsável por seu uso inusitado, ele tentava buscar uma resposta que justificasse aquilo. Não era perigoso?

“Você quer?” A pergunta desinteressada de Yakov causou grande estranheza. Queria o quê? A colher quente? “É um doce, olhe.”

A primeira reação de Georgi foi se encolher e cobrir o rosto com as mãos, certo de que apenas isso serviria como escudo protetor. Espiando por entre os dedos, observava a calda escurecida borbulhar levemente na base metálica do talher, tentando associar a aparência espessa com os doces que ele conhecia. Como a maioria de suas guloseimas preferidas vinham embaladas em papéis coloridos ou em formato de bolo, aquilo estava longe da aparência convidativa que tinham os caramelos oferecidos por Nikolai. O cheiro era bom, no entanto.

“O que? Não conhece?” O timbre grave deixava a incredulidade de Feltsman muito parecida com uma bronca. “Não acredito, sua mãe comia isso sempre quando tinha a sua idade!” Colocando a colher na boca, ele abriu uma gaveta e tirou dela uma colher limpa. “Puxe uma cadeira, vou te mostrar como faz.”

Margosha sempre lhe dizia sobre os perigos de lidar com o fogão. Todavia, ela dizia isso quanto a estar sozinho, não ao lado de um adulto. Ela nunca dispensava sua ajuda na cozinha, mas deixá-lo se aproximar das panelas estava fora de cogitação… Entretanto, Yakov havia o convidado primeiro e eles não estavam lidando exatamente com uma panela…

“Vai demorar?”

Conflitos internos esquecidos, Georgi correu até o cômodo vizinho e empurrou a pesada cadeira até a cozinha, posicionando-a ao lado de Yakov, com o encosto voltado para o fogão. Se alguma explosão acontecesse, ele teria uma proteção extra, pelo menos.

“Primeiro você pega açúcar” ensinou Yakov, afundando a colher nos cristais esbranquiçados. “Não pode ser muito pouco, porque ele encolhe e pode queimar, mas também não pode ser muito, ou a calda vai cair da colher.” Mostrando estar entendendo as orientações, Georgi balançou a cabeça em afirmativo. “Agora você coloca a base sobre o fogo baixo e espera.”

“Só isso?” estranhou. Nada de ovos, farinha, uma grande assadeira?

“Espere e veja.” O homem sorriu de lado, achando graça como aquele doce de preparo tão singelo estivesse o impressionando e intrigando tanto.

Conforme orientado, Georgi esperou e não foi preciso muito para o que parecia mágica acontecer; começando pelas beiradas, o açúcar branco cristalizou, dissolvendo a princípio em uma calda transparente, que dissolvia os demais cristais açucarados até ganhar um tom acastanhado que logo borbulhou por toda a porção concentrada na colher, caindo no fogão e queimando as balas de açúcar que escapavam do talher. O cheiro adocicado estava ainda mais presente, preenchendo a cozinha e escapando para o restante do apartamento, impregnando as paredes com o aroma que provavelmente ficaria incrustada pela próxima semana.

“E está pronto o melado” declarou risonho, desligando o fogo. Ainda estava achando engraçado os olhinhos impressionados do garoto com aquela guloseima tão simples, que a própria Margosha já sabia fazer com a mesma idade. “Tome, mas cuidado que a colher ainda está quente.”

Segurando-a com cuidado, ainda receoso que o doce pudesse de alguma forma explodir em suas mãos, Georgi tomou a colher, afastando-a de seu rosto. Aparentemente, era inofensivo.

Com a pontinha do indicador, ele tocou a calda escura, morna ao toque. Não apresentando um perigo a sua vida, puxou o dedo de volta e com isso, um fio caramelizado seguiu seu gesto, esticando mais e mais conforme Georgi, assustado, tentava se ver livre do melado. Rindo rouco, Yakov divertia-se do desespero da criança, pesando uma mão nos cabelos negros e os bagunçando energicamente.

“Não precisa ter medo, é doce!” empurrando mão de Georgi em direção ao rosto infantil, encorajou que provasse da calda, o que com muita relutância o menino fez. Sua reação, passando da apavorada para surpresa e enfim assombro com o quão bom era aquele melado, fez Yakov rir mais uma vez. Crianças faziam alarde por coisas tão simples! “Pode por a colher na boca, eu deixo.” ironizou o que Gosha levou muito a sério.

Ainda com muito receio, Georgi mordeu a ponta da colher e tentou cortar com os dentes parte daquele doce. Só percebeu seu erro quando, ao tentar puxar o melado, inúmeros fios doces acompanharam o gesto e ele acabou com a mão e o queixo sujos de açúcar queimado, o que fez Yakov continuar rindo. Desesperado em conter a bagunça, Georgi colocou o restante do doce dentro da boca e tentou mastigar o conteúdo da colher, notando tarde demais ter cometido outro erro; grudento e espesso, o melado grudou em seus dentes e lábios, e a impressão engraçada de estar mastigando algo tão pegajoso o fez rir e babar, oscilando entre sentir vergonha de toda aquela bagunça e rir da mesma cena catastrófica. E pensar que crianças e açúcar de fato poderia resultar em caos.

“Que cheiro é esse?” mal Popovevna havia posto os pés dentro do apartamento e o cheiro adocicado a recepcionou. Se livrando da touca, cachecol e do pesado sobretudo, ela seguiu até a cozinha, rindo alto ao ver o rosto bagunçado do filho. “Por Deus, Gosha!” Com a colher dentro da boca, o menino mordia a calda caramelizada, tentando se ver livre do doce o quanto antes. “Você está parecendo uma bengalinha de açúcar…”

“É doche, mamãe!” explicou Georgi, antes de babar mais uma vez.

“Isso foi ideia sua?” Margosha virou-se para o pai, sustentando o sorriso. Ela estava fazendo um enorme esforço para seu divertimento não constranger o filho, ao contrário de Feltsman. “Eu também vou querer.”

Feliz em atender o pedido da filha, Yakov abriu a gaveta e dela tirou uma colher limpa. Situações como aquela pareciam resgatar os bons e velhos tempos que ele tanto sentira falta.

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Brincando na neve, Georgi fazia questão de parar certa altura da corrida e olhar para trás, voltando todo o caminho percorrido em um jogo que consistia em pisar nas próprias pegadas sem tropeçar ou cair. Era divertido e às vezes ele acabava prendendo o pé em um amontoado muito fofo de neve, que o enganava quanto sua profundidade. Estava acostumado a fazer a mesma brincadeira com a mãe, mas ela estava muito ocupada caminhando ao lado de Yakov para acompanhá-lo. De qualquer forma, aquilo não era um problema, não quando o ritmo dos dois era lento o bastante para dobrar o tempo que Georgi teria para brincar.

A casa de Nikolai e Yulia era uma construção de madeira simples, muito mais comuns de serem vistas na zona rural, o que a tornava bem mais interessante aos olhos de Georgi. Elas não eram de todo raras em Moscou, mas contrastando com as construções cada vez mais modernas, o lar Plisetsky era um refúgio ao alcance dos dedos, uma datcha no meio urbano, que sempre cheirava a madeira queimada e pão quente. A principal graça naquela casinha de madeira, era a forma como ela estalava constantemente, enrijecendo pelo frio e estufando com o calor, no que Nikolai sempre dizia se tratar das vozes da casa, uma forma das paredes falarem. Desde então, Georgi se esforçava para entender o que cada estalo significava. O dialeto da madeira era meio difícil de entender.

“Não sei se quero entrar” murmurou Yakov. Seus passos diminuiam de ritmo e ele enrijecia a postura conforme a casinha de madeira se fazia mais visível.

“Por que, pai?” Margosha já suspeitava do motivo, mas não queria que ele se sentisse pior por ser de tão fácil leitura.

“Faz muitos anos que não passo o ano novo em uma festa, e você sabe que eu nunca soube lidar bem com pessoas.”

Mais a frente, Georgi já havia parado de brincar, olhando para a mãe na espera de sua autorização para continuarem o caminho.

“Não vou interferir na noite de vocês, podem ir que eu volto para seu apartamento.”

“Não, pai!” insistiu, não podendo evitar o tom pesaroso na voz. “Se não está confortável, podemos voltar, só me deixe avisar Nikolai…”

“Margosha, não precisa-”

“Mamãe?”

O chamado de Georgi atravessou a curta conversa e incomodou Yakov. Ele não tinha nada contra a criança, e sim contra a aparente falta de poder que sentia perto dele. Era como ter de lidar com uma segunda Margosha, acuado por todos os lados.

“Só um momento, Gosha!” pediu, voltando a se atentar ao pai. “Pode ser assim, pai? Eu deixo Nikolai avisado e-”

“Vamos logo.” Desistindo de virar as costas e ir embora, Yakov caminhou sozinho em direção à entrada da casa. Ao passar por Georgi, ele abaixou a aba frontal da touca peluciada, bloqueando a visão do pequeno e tirando uma risada do mesmo. Margosha sorriu e fez o mesmo caminho.

Nikolai os recepcionou com um sorriso tranquilo, diferente das risadas estridentes protagonizadas por Minako, no interior da casa. Da porta já era possível vê-la com uma garrafa de destilado na mão e outra vazia no chão, ao lado da poltrona onde estava confortavelmente acomodada. Vê-la fez Yakov fechar ainda mais o semblante e Popovevna sabia que a causa era seu constrangimento.

“Sejam muito bem-vindos.” O cumprimento de Plisetsky era receptivo como ele e a aparência aconchegante de sua casa. Chegava a ser divertido imaginar como uma garota tão intensa quanto a jovem Yulia podia pertencer àquele lar.

“Obrigado por me receber em sua casa.” Polido e muito sério, Yakov entregou uma caixa de trufas trazidas de São Petersburgo. Pela aparência da embalagem, deviam ter custado caro.

“Eu é quem agradeço sua visita, Margosha sempre falou muito bem de você.”

“Sempre, é?” desconfiou, erguendo uma das sobrancelhas para a filha.

“Desde que esse rapazinho aqui era um bebê de colo.” Georgi não sabia o que estava acontecendo, mas gostava de ser incluído em assuntos que faziam as pessoas sorrirem. “Margosha também disse que suas saladas são quase tão boas quanto as minhas” gabou-se, deixando a costureira incrédula.

“Que mentira! Eu disse que eram tão boas quanto as suas!” protestou ela, em defesa de seu bom nome.

“Deixe as saladas para ele, Nikolai, você sabe que seus piroshki são imbatíveis!” Minako ergueu a voz antes de se erguer do assento. Com o equilíbrio muito bom para quem já havia secado uma garrafa e meia de vodka, era de suspeitar quem teria ensinado os russos a beberem. “Olá, Yasha, quanto tempo.”

O cumprimento dispensando formalidades foi respondido com um aceno simples e um resmungar que poderia ter sido “Olá” ou nem mesmo isso. Georgi não havia prestado atenção o bastante para perceber o leve estranhar, puxando o casaco da mãe para ter sua atenção.

Já sabendo o que ele queria, Margosha tirou a pasta escura da bolsa e entregou com cuidado, escondendo o objeto dos olhos de todos e os demais presentes fingiram nada ver, contribuindo com a ilusão. Crente de seu anonimato, Georgi caminhou pé ante pé até a simples árvore de ano novo — porém brilhante aos seus olhos — e colocou a pasta embaixo dos galhos plásticos, feliz e ansioso pela meia-noite em que poderia presentear todos os convidados.

“Onde está Yulia, Nikolai?” Tal como a mãe perguntava, Georgi também havia estranhado a falta da menina. A casa estaria bem mais barulhenta com ela por perto.

“Lilia fez uma lista dos bons e maus meninos do ano e segurou todos eles para treino extra, hoje.” Minako respondeu por Plisetsky, apiedada, porém muito risonha, com a punição de Yulia e demais bailarinos.

“Ela continua terrível, pelo jeito” balbuciou Yakov, um tanto saudoso em seus resmungos.

“Você nem faz ideia!”

“Oh, eu trouxe as batatas que pediu, Nikolai!” Mudando de assunto, Margosha ergueu a sacola que trazia, recheada das raízes que protagonizariam o prato da noite.

“Podemos colocar para cozinhar agora, então, para dar tempo de Yulia chegar.” E voltando-se para Yakov, Nikolai esclareceu. “Minha filha adora participar do preparo da ceia.”

“Tomara que ela volte antes da meia-noite” brincou com o semblante sério. Conhecia bem o temperamento de Lilia para saber que ela seria capaz de prender seus alunos até a transmissão do discurso presidencial, dez minutos antes das doze badaladas. “E as beterrabas…?”

“Estão na bacia, em cima da pia.” Minako, à vontade na casa que já era seu segundo lar, orientou Yakov pelos cômodos. “Margosha disse que você faria o arenque, estou tão ansiosa! Há anos não como uma salada como a sua, cheguei até a sonhar com ela de ontem para hoje!”

Sério e ainda estranhando a presença da bailarina, Feltsman apenas acenou e nada respondeu. Okukawa provavelmente estaria menos amigável, não fosse a vodka ingerida — ainda que ela precisasse de muita concentração alcoólica para ficar bêbada de fato.

“Cuidarei dos ovos, então.” Margosha ofereceu-se, desembalando caixas e pegando panelas. “Gosha, quer ajudar a descascar as poncãs?”

Ela não precisava ter feito o convite; descascar aquelas frutas era um dos passatempos mais divertidos para Georgi. Ele adorava puxar as cascas lustrosas e observar o néctar doce desprender em gotas, no que pareciam pequenas nuvens de cheiro ácido. Os gomos, separados e montados cuidadosamente por ele no prato mais bonito de Nikolai, ficavam parecendo uma obra de arte, ou era que gostava de imaginar. Isso sem falar no cheiro cítrico que ficava em seus dedos e permanecia mesmo após várias lavagens. Quando ninguém estava olhando, Georgi pegava um gomo escondido e mastigava com vontade, apreciando o suco que se soltava dele, tratando de engolir o bagaço de gosto levemente amargo e as sementes que por ventura pudessem ter. Era melhor prevenir e eliminar toda a prova de seu pequeno crime, do que arriscar se livrar das sementes e ser flagrado.

“Margosha quer uma dose de vodka?”

“Você sabe que eu não bebo, Minako…”

“Yasha?” Concentrando toda sua atenção nas beterrabas descascadas, Yakov não respondeu. “Não me diga que não bebe, também, eu já te vi secar duas garrafas de álcool como se bebesse água.”

Podendo estar corado de irritação ou constrangimento, Feltsman preservou seu direito de permanecer calado.

Antes que pudesse intervir a favor do pai, Margosha ouviu o estardalhaço típico de Yulia anunciar sua chegada. Abrindo a porta com vontade, a menina conversava animadamente e com a voz nas alturas e aos adultos ocupados na cozinha, restou uma divertida troca de olhares. Yakov já podia prever, pelo temperamento expansivo de Plisetskaya, que estava velho demais para lidar com a nova geração.

“Gora, você já está aqui!” gritou ela ainda mais alto. Única pessoa na sala e ainda ocupado com as poncãs — quando não as estava comendo —, Margosha ouviu quando Yulia deu um beijo estalado nas bochechas de seu filho, no que ele retribuiu com risinhos e um cumprimento muito educado.

“Sejam bem-vindas!”

Bem-vindas?

Percebendo ter um convidado extra, Nikolai abandonou as batatas e atravessou o cômodo secando as mãos no avental úmido. Parada no meio da sala, tão séria quanto Yakov com suas beterrabas, Lilia Baranovskaya expressou algo parecido com um sorriso e estendeu uma cara garrafa de champanhe, tanto um agradecimento pela recepção quanto um pedido de desculpas por sua repentina presença.

“Senhorita Baranovskaya, seja muito bem-vinda.”

Da cozinha, o cumprimento travou Yakov.

“Sua menina sabe ser bem insistente, quando quer, Plisetsky” esclareceu, levemente exausta de todos os “por favores” ditos por Yulia. “Gostaria de ver tamanha persistência nos ensaios.” Claramente, ela não perderia uma oportunidade de incomodar a aluna.

Ignorando o leve puxão de orelha, a garota justificou o convite em cima da hora.

“Lilia iria passar o ano novo sozinha e isso é tão triste! Não concorda, Gora?” Assustado com a atenção, o menino concordou prontamente, torcendo para não precisar responder nada e assim descobrirem o sétimo ou oitavo gomo de poncã surrupiado no intervalo de meia hora.

“Eu disse que estou acostumada a passar pelos festejos sem de fato festejá-los…” Constrangida, reação rara se vinda da ex-prima ballerina, Lilia não teve tempo de justificar a discussão que acabou levando-a até a casa de sua aluna, recebendo o sorriso singelo de Nikolai.

“É um prazer recebê-la para a ceia. É sempre bom ter a mesa cheia no ano novo.” Lendo o rótulo do champanhe que tinha em mãos, sorriu mais uma vez. “Além do mais, temos mais um convidado extra, o pai de Margosha festejará a passagem de ano conosco!”

Os olhos de Lilia, sempre cerrados em desinteresse, arregalaram quando ela finalmente entendeu quem estava ali.

Largando a faca e os legumes cozidos, Feltsman percebeu quão longa poderia ser aquela noite.

“Eu vou aceitar a bebida agora, Okukawa.”

.:.

Por mais rica que fosse sua imaginação, Georgi jamais teria fantasiado sobre Lilia picando cenouras e pepinos na cozinha de Yulia. Não somente cenouras, como também as batatas de Nikolai e logo as beterrabas de Yakov ficaram a seus cuidados, cortados em cubinhos tão pequenos e bonitos que fizeram as poncãs perderem a magia, convidando Georgi a mudar o foco de sua atenção.

“Corte menor essas beterrabas, Yakov, a disposição dos legumes ficará desproporcional na salada.” Com o tom blasé de sempre, Lilia chamou atenção de Feltsman e Georgi achou graça de como ela sabia o nome do pai de sua mãe sem ninguém precisar dizer.

“É vinagrete, Lilia, não precisa ser bonito.”

“Não, claro que não, apenas seus patinadores precisam ser.”

O tom ácido, mais cítrico que as poncãs, foi percebido até mesmo pela criança.

“Gosha, venha, sabe que é perigoso crianças mexerem com objetos afiados.”

Ele até quis dizer para a mãe que as facas estavam com os adultos, não ele, mas optou por obedecer, como sempre. Nikolai havia reforçado a lenha na lareira e a sala mostrava-se bem mais convidativa, razão extra para não discordar do pedido materno.

Achando a tensão entre Lilia e Yakov bem mais estranha do que uma ex-prima ballerina ajudando na ceia de sua casa, Yulia rondava a entrada da cozinha e vez ou outra lançava olhares para Margosha, muito constrangida para falar qualquer coisa, e Minako, esperando uma brecha boa o bastante para despejar a fofoca que fazia sua língua dormente.

A fofoca, claro, não o álcool.

Juntando tanto a bailarina quanto a costureira no canto da sala, o mais afastado que podiam naquele cômodo pequeno demais para tantas pessoas, Plisetskaya cobrou explicações. Tinha uma péssima sensação e esperava que os esclarecimentos a deixassem mais calma.

“Estou perdendo alguma coisa? Eles já se conheciam?” perguntou a garota em um sussurro. O mais baixo que a embriaguez permitiu, Minako deu risada, sobrando para uma muito constrangida Margosha a responsabilidade de contar aquela história.

“Você sabe, Yulia, que Lilia dançou durante muitos anos no balé de Kirov, não é?”

“Mariinski” corrigiu Minako, mais alto do que a conversa clandestina deveria ser.

“Mariinski, é, eu ainda não me acostumei…” reclamou Margosha antes de continuar. “E eu a conheci ainda criança-”

Cansada dos nem começados floreios, Okukawa atravessou a delicada explicação para despejar de uma só vez:

“Eles foram casados.”

Os olhos de Yulia arregalaram de tal forma que de onde estava Georgi pensou que eles pudessem saltar para fora.

“Como assim?”

“Como assim “como assim”, Yulia? Casados! Sabe, aliança no dedo, dividindo a mesma cama, fazendo coisas que casais fazem, tipo reclamar de tudo o tempo todo!”

Ela não sabia o que era mais chocante naquilo tudo, Lilia, logo ela, ter tido um marido, ou imaginá-la em uma vida conjunta.

“Quando ainda estava em São Petersburgo, havia o boato de que Yakov guardava a aliança da ex-esposa, que ela teria jogado do nono andar do apartamento onde viviam.” Tão bizarro boato foi contato em tom risonho. Não tinha como algo daqueles ter acontecido.

“Ele guarda, sim.” Margosha ter confirmado o que parecia a mais absurda das mentiras, sumiu com o sorriso de Minako no mesmo instante. “Não morávamos no nono andar, era no sexto, e ela não jogou a aliança fora, quem disse isso?” Ela nunca soube daquela fofoca antes e não conseguia acreditar nos exageros que aumentavam aquela história.

“Então como ele ficou com a aliança?” O interesse agora também era de Yulia.

“Não sei, ele não gosta de tocar no assunto…” O lamento de Margosha era doloroso. “De qualquer forma, não foi uma separação fácil e eles parecem não ter superado isso até hoje.”

“Eles não se viam há quanto tempo?” Yulia quis saber o tamanho do estrago que havia feito sem saber.

“Acho que seis anos, foi quase na mesma época em que eu vim para Moscou.”

Seis anos… Um ex-casal de passado traumático se reencontrando em uma constrangedora reunião de família e amigos para passarem o ano novo juntos em comemoração. Aquilo era uma sequência de pequenas catástrofes que só faziam Yulia imaginar que a maior delas ainda estava por vir:

“Eu vou perder meu pequeno cisne, não vou?”

“Vai perder até a cabeça, Yulenka…”

“Minako, não exagere!” Margosha tentou apaziguar o horror providenciado pela amiga. “Nada vai te acontecer, Yulia, não teria como você saber e Lilia sabe disso.”

“Claro, acredite nisso” desdenhou Okukawa, se afastando. “Kolya, vi um whisky 1974 na sua cristaleira e eu quero provar!”

Distraído dos problemas adultos, Georgi aproveitava o calor da lareira para deitar confortavelmente no tapete que cheirava a coisas guardadas há muito tempo, e assistir à reprise de um filme temático, muito popular naquela época do ano. Dentro de algumas horas o presidente faria o tão famoso discurso antes da meia-noite e lembrar disso o deixava animado, sentindo-se muito importante com o anúncio gravado que parecia olhar diretamente para ele.

Aos poucos, as horas avançaram e com elas o consumo alcoólico, despertando o bom humor de Yakov. Bem menos sisudo e conversando energicamente com Nikolai, Georgi não teve muita certeza se Feltsman estava sendo amigável ou agressivo, mas como o pai de Yulia passava a maior parte dos monólogos dele rindo, considerou ser algo positivo. Sua mãe, pelo menos, estava rindo por trás das mãos que cobriam o rosto corado.

Como se medindo a disposição de Popovich, Yulia passava por ele vez ou outra beliscando suas bochechas, garantindo quão acordado Georgi estava. Receber seus risinhos como resposta eram sempre a certeza de que tudo estava bem, mesmo com a bagunça dentro de casa. Dado certo momento, ela desistiu dos mimos para pegá-lo no colo, o distanciando da televisão e indo até a mesa, coberta de pratos e bacias recheadas até a borda. Já estava quase na hora da ceia e ele nem tinha percebido, cada vez mais animado com um dos melhores acontecimentos da noite, as badaladas.

“A champanhe, alguém traga a champanhe!!” gritou Minako, desesperada com a possibilidade de passarem pelo reveillon sem brindarem devidamente.

“Pare de gritar, Okukawa, ou não subirá naquele palco nunca mais!” A ameaça de Lilia também veio aos berros e a contradição era divertida aos olhos de Georgi.

“Onde está o meu copo?! Eu quero o meu copo!” bronqueou Yakov, de olhos fechados e rosto muito vermelho, meio acordado, meio dormindo, causando estranheza para o pequeno.

“Na sua mão, pai…” Gentilmente, Margosha encheu a taça segurada firmemente por Feltsman com água gelada, esperançosa de que isso fosse o bastante para amenizar a embriaguez e a provável ressaca do dia seguinte.

“Vai dar meia-noite!” Yulia gritou, erguendo-se da cadeira e com isso quase derrubando metade da mesa.

“O brinde, o brinde!” animou-se Georgi, erguendo o copinho de plástico cheio de suco.

“Já estou providenciando!” Sua mãe riu, rompendo o lacre da garrafa antes de chegar à rolha.

“As badaladas! Já vai começar!” reclamou Yulia, birrenta como nenhuma criança poderia ser.

“Vamos perder o ano novo, Margosha!” Okukawa reclamou com exagero dramático, mas Georgi não tinha nenhum filtro para suas ironias e acabou por se desesperar. Perder o ano novo? Imagine ficar preso em 1992 para sempre!

“Rápido, mamãe!”

“Já estou abrindo, Gosha, só mais um pouco…”

E com os olhos presos no televisor, todos aguardaram. Com os cumprimentos finais do presidente, imagens da Praça Vermelha ocuparam a tela, sendo substituídas em cortes bruscos para o relógio de Kremlin. Silêncio, espera, expectativa… E a primeira badalada soou.

A rolha da champanhe voou pela sala e se perdeu em algum canto, esquecida com os gritos e comemorações que se estenderam pelo minuto seguinte das badaladas. O jantar começou no começo do hino nacional e no fim do mesmo nem todos haviam conseguido se servir, em uma bagunça que quase começou uma briga por uma das bacias de salada olivier. Assistindo a tudo aquilo rindo, Georgi desfrutava das poncãs, as quais podia finalmente comer sem culpa.

Depois de uma hora inteira de comidas e festejos, a sobra de saladas era muita, tal qual a satisfação dos convidados. Com comida a ser servida para mais uma semana, podiam dar a noite como sucesso, faltando apenas a visita à Praça Vermelha para darem fim à primeira noite do feriado estendido. Antes de saírem para assistir os fogos providenciados por diferentes grupos de pessoas, uniram-se ao lado da árvore enfeitada, um dos últimos rituais festivos do ano velho que presenteava literalmente o ano novo; a entrega dos presentes.

Constrangidos pelo imprevisto não ter possibilitado a compra de nenhuma lembrança, Yakov e Lilia permaneceram na mesa, bebericando água e descascando poncãs, já que nenhum piroshki havia sobrado, enquanto assistiam a troca de embrulhos. Margosha foi presenteada com um cachecol azul-marinho feito por Yulia e, aproveitando as habilidades recém conquistadas com suas agulhas de tricô, o mesmo tipo de presente foi dado à Minako, Nikolai e Georgi. Também usando de suas habilidades na costura, Popovevna presenteou as duas bailarinas com tiaras emplumadas totalmente novas — e diferentes das providenciadas pelo Bolshoi —, para serem usadas nas apresentações de O Lago dos Cisnes que começaria logo após o feriado. Os gritos de Plisetskaya agradeceram a tiara enquanto ela a colocava sobre os cabelos soltos, emocionada e fantasiando ser a própria Odette. Para Nikolai, uma manta de lã lisa, o tipo de presente que ele adorava para cobrir os joelhos sempre prejudicados nas baixas temperaturas.

Ainda ocupado com o novo cachecol e se enrolando nele, Georgi viu entre as fibras de lã quando Minako virou-se para ele sorrindo, com uma caixinha em mãos. Ele levou algum tempo para entender ser aquela embalagem simples o seu presente e foi preciso que a bailarina colocasse a caixa em suas mãos para que ele tomasse a iniciativa de tocá-la.

“Não vai abrir?”

Por algum motivo, Georgi estava com receio de abrir, uma vergonha recém-conquistada, mas o interesse das demais pessoas naquela sala, acabou o incentivando a conferir o presente.

Dentro da caixa de papel encerado, havia uma corrente escura, que contra a luz apresentava um brilho metálico. Gelada ao toque, Georgi pensava se não sentiria frio se a usasse, detalhe que precisaria conferir com a mãe mais tarde. O destaque do presente, no entanto, não era a corrente, mas o pingente que ela trazia, uma pedra ovalada e escura, que contra a luz cintilava como um céu estrelado, com inúmeros risquinhos em dourado em uma das superfícies polidas, que Georgi logo entendeu serem as letras japonesas entendidas por Minako:

七転び八起き

“É lindo!” O elogio era sincero e genuinamente feliz. Com tantas pessoas por quem tinha apreço por perto, não poderia pedir por mais nada para considerar sua vida completa.

“Sabe o que está escrito?” Com um gesto, ele negou. “Nanakorobi Yaoki.” Impressionado e muito interessado, Georgi sequer piscava. “Cair sete vezes e reerguer-se oito. Significa não desistir, não importando o que aconteça ou quantos desafios apareçam em nossas vidas, não podemos deixar que o que nos derruba nos segure no chão” explicou o mais objetivo possível, acarinhando os cabelos negros.

“Nana…?”

Nanakorobi Yaoki.” Para Georgi, ainda parecia difícil.

“Me ensina a falar?”

“Só se me prometer nunca desistir.”

Passando a corrente pela cabeça e a descendo até o pescoço, Georgi reforçou sua palavra.

“Prometo!”

Ele não sabia que prometer aquilo era muito mais fácil do que conseguir cumprir.

“Agora que todos já terminaram, podemos ir? Vamos perder os fogos!” Yulia estava animada. No ano anterior ela quase havia sido atingida por um desavisado e ter esse tipo de história para contar era sempre incrível.

“Calma, ainda falta nosso presente.” Margosha sorriu, olhando para o pai. Um pouco lento pelo sono e vodka, Yakov arrastou a cadeira e se ergueu, quase precisando ser amparado por Lilia quando curvou-se sobre a mesa e permanecido deitado sobre ela. Pigarreando e coçando os olhos pequenos, ele caminhou até a árvore, começando a discursar.

“Eu estava conversando com sua mãe sobre seu bom desempenho patinando e, sendo eu técnico e ex-patinador, avaliei sua capacidade nos últimos dias e comentei com Margosha achar um desperdício esperarmos que entre na escola para ter aulas de patinação.” Georgi achava que Yakov falava difícil, mas estava achando muito interessante a parte onde ele dizia ser ex-patinador. “Então, com autorização dela, eu estarei pagando suas aulas esse ano.”

Todos esperavam uma reação que não aconteceu. Eram muitas informações para processar e entender e Georgi precisou de segundos extras para compreender o óbvio. A surpresa e a felicidade que ele não conseguia exteriorizar embolaram seu estômago e a sensação o fez sentir vontade de rir, embora seus olhos ardessem como se pudesse chorar.

“Vou poder patinar bastante?” perguntou com a voz trêmula. Queria confirmar se havia entendido direito e aquele resumo era o máximo que sua cabecinha conseguia simplificar.

“Algumas horas por dia, sim.”

“Como Oleg Nikif-”

“Melhor do que ele.” Yakov não deixou que aquele nome estragasse o ano recém começado.

Desacostumado com demonstrações de afeto e despreparado para recebê-los de forma tão espontânea, o abraço entusiasmado de Georgi o deixou totalmente sem reação. O menino agradecia repetidamente e saltitava de alegria, com tamanha energia que Yakov não se surpreenderia se ele ficasse pulando para sempre.

Usando daquela energia movida a risadas, Georgi jogou-se nos braços da mãe, abraçando-a com força antes de correr até a árvore e tirar debaixo dela a pasta que guardava o presente de todos os convidados. Popovevna recebeu um cartão dobrado com círculos e curvas tentando imitar uma moldura em rococó, onde era ela o destaque em vestido azul e riscos púrpuras sobre os olhos, que imitavam a maquiagem usada por ela. Minako viu a si mesma no palco russo, com rosas de todas as cores sendo jogadas em sua direção, celebrando o protagonismo que tanto ela quanto a criança desejavam vê-la um dia, assim como Yulia, tendo o mesmo Bolshoi como cenário de fundo. Ela e Nikolai sorriam em giz vermelho e pareciam muito felizes na interpretação infantil.

Por coincidência, o desenho feito para Lilia estava entre os demais e Georgi teve a oportunidade de correr até ela, contornar a mesa e entregar a folha colorida, com Lilia parada em um fundo lilás, vestindo um grosso casaco de gola escura.

“Eu gosto do seu casaco amarelo” Georgi elogiou, explicando o porquê de ter escolhido aqueles detalhes do figurino casual.

“Eu também gosto do meu casaco amarelo.” Sorriu, expressão pouco comum em seu dia-a-dia. “Obrigada, Georgi.”

Feliz, ele segurou o pingente em seu pescoço, sentindo o formato ovalado esquentar em contato com sua pele. Por alguma razão, aquela joia parecia lhe encher de energia e saber que poderia patinar o quanto quisesse aumentava essa convicção. Nada poderia estragar a vida maravilhosa que tinha.

“Já podemos ir ver os fogos?” Yulia cortou o momento para expressar sua ansiedade. “Logo as pessoas irão para casa, quero ver os fogos!”

“Eu também quero!” Margosha fez coro à garota, pronta para sair e aproveitar a noite barulhenta dos festejos.

“Pode ser bom, há anos não vejo a bagunça das ruas.” Lilia manifestou-se positiva. Yulia se lembraria de embebedá-la mais vezes.

“Só se não demorarmos, meus joelhos ainda doem.”

Vestindo seus casacos e reforçando a camada de tecidos, todos se prepararam para um animado passeio pelo centro festivo de Moscou. Enquanto Margosha enrolava o novo cachecol no pescoço, Feltsman se aproximou de Georgi e o ajudou a vestir a touca, abaixando-se na altura dele para sussurrar o que apenas o garoto pudesse ouvir.

“Quero que patine o máximo que puder, ouviu bem?” O pedido era uma mistura de cobrança com expectativa, que Georgi assentiu com alegria. “Não me decepcione, criança.”

“Não vou!”

“Pai, Gosha, vamos?”

Atendendo ao chamado da mãe, Georgi correu até ela e se agarrou à mão estendida, com um sorriso que nem a frieza moscovita era capaz de apagar. Depois de tanto tempo evitando e negando aquela família, o técnico agora se via como o maior entusiasta da felicidade dos dois.

Ficando para trás, ele olhou uma última vez para o desenho e, tentando imitar a gravura ricamente decorada em giz colorido, Yakov sorriu.

.:.

Cobertos por polainas ou despidas delas, tornozelos dos mais variados tipos eram apertados pelas fitas de cetim das sapatilhas de ponta, as mesmas responsáveis por piruetas impecáveis e unhas encravadas, o calçado clássico que garantia não somente a pose de todo um corpo de baile, como também deformava os pés que os vestiam, um sacrifício necessário — e o menor deles — para quem queria tirar do palco seu ganha-pão. Quanto maior fosse o destaque de quem dominava a ponta engessada da sapatilha, maior era o retorno e amor de coreógrafos e plateia, garantindo um aumento também nos rublos que recheavam seus salários ao fim do mês. Mais do que um sonho, o protagonismo era também uma ambiciosa necessidade, que muitos perseguiam, mas poucos alcançavam. Mesmo sua personalidade enérgica dizendo o contrário, Minako fazia parte do grupo que se via em uma eterna perseguição sem frutos, só não desistindo por pura teimosia. Com trinta anos e poucos solos, conquistados com unhas e dentes naquele meio disputado, o papel principal já não era mais o seu sonho; a briga era sempre pelos outros solos.

Entrando no grande salão com a mesma feição fechada de sempre, Lilia trazia em mãos um envelope que guardava a escalação de bailarinos para uma das próximas peças a serem apresentadas na temporada de 1993-1994. Responsável por A Bela Adormecida, Baranovskaya prometia dar trabalho para bailarinos, cenógrafos e figurinistas, esses últimos que já haviam inclusive começado a compra de tecidos e reforma de vestidos. Pelas mãos de Lilia, aquela apresentação redefiniria o conceito de espetáculo, e a exigência não seria menos do que a perfeição.

Se aproximando cautelosa, desviando de todos os corpos esguios enfileirados um ao lado do outro, Yulia alcançou Minako, escondendo-se atrás do ombro da bailarina. Queria ela mesma tomar o envelope das mãos magras e conferir se seu nome estava entre os solistas e provavelmente começar uma briga caso não tivesse pelo menos poucos segundos de destaque.

“Prefiro a morte do que o corpo de baile” sussurrou para Minako e por pouco Okukawa não riu de todo aquele drama.

“Não seja cruel, Yulenka, o corpo de baile é importantíssimo para o cenário de uma apresentação e você sabe disso.”

“A peça se chama A Bela Adormecida, não O Corpo de Baile” reclamou, colocando todo o argumento de Minako em descrédito. Ignorando o drama adolescente, ela apenas sorriu divertida.

Ao lado de dois assistentes, Lilia trocou poucas e baixas palavras, abrindo o envelope com displicência, totalmente diferente do grupo que havia suspendido a respiração em conjunto. De onde estavam, não podiam ver nada do que estava escrito naquela lista e nem mesmo a transparência do papel os ajudava a distinguir o borrão escuro das letras rabiscadas na caligrafia cursiva de Baranovskaya. Todo aquele suspense ainda mataria metade dos presentes.

“Você seria uma boa Aurora” murmurou Minako no meio de todo aquele silêncio e por pouco Yulia deixou passar o elogio que era para ela.

“Eu?” Incrédula, ela suprimiu a vontade de rir. “Que exagero, Minako…”

“Loira, esguia, olhos brilhantes e ótimo domínio da ponta, a princesa perfeita.” A bailarina estava sendo sincera e isso surpreendeu Plisetskaya.

“Qual é, Minako, bom domínio da ponta? Eu jamais conseguiria fazer o adágio, você enlouqueceu?” Sem resposta, ela continuou a falar. “Você é uma bailarina muito melhor do que eu, com o dobro de anos de experiência, já passou da hora de te darem uma protagonista.” E para finalizar, emendou: “E daí que eu sou o estereótipo de princesa? vou vomitar se me derem a Cinderela.”

“Jamais poderia ser Aurora.”

“Só porque é japonesa?”

“Só porque sou japonesa aqui.”

“Atenção” exigiu Lilia, atravessando a conversa paralela e fazendo todos enrijecerem como um bando de soldados em posição de sentido. “Começarei a distribuir os papéis e não quero ouvir nenhuma reclamação.” Folheando as duas páginas de nomes e indicações, ela continuou com os avisos. “Se forem chorar, façam isso fora das minhas vistas e se possível, fora do Bolshoi.” O silêncio geral foi a confirmação que ela esperava. “Ivanova e Danilov como Florine e Pássaro Azul, Fedoseyeva, Gridneva, Bessmertnova e Kabalevskaya como as quatro jóias…”

Pegos de surpresa, tanto os indicados quanto os demais bailarinos olharam entre si, confusos e desprevenidos pela ordem aleatória com que Lilia nomeava os intérpretes de cada personagem, jogando o elenco do primeiro e segundo ato em ordem inversa, cada nova chamada um descompassar diferente para o coração do grupo. Era necessária muita atenção em suas palavras e pouca perda de tempo para cumprimentos — sinceros ou não —, apenas Lilia honrando as sapatilhas de ferro e aterrorizando todo o corpo de baile.

“Plisetskaya como Fada da Alegria…” Aliviada, Yulia escorou-se em Minako. “Rurik como Príncipe Charmant, Kalganova como Fada Lilás…”

Enquanto Baranovskaya continuava a distribuir papéis aleatórios, Okukawa não evitou revirar os olhos, pouco preocupada em disfarçar a decepção. Era com Laura Kalganova sua maior rivalidade dentro do Bolshoi, desde que teve a oportunidade de integrar o corpo de baile do mais importante balé europeu. Estranhamente orgulhosa de sua xenofobia, enfrentava Minako com posturas e palavras, indignando-se publicamente quando as duas conquistaram o papel de Fada Açucarada no Quebra-Nozes da temporada anterior. Facilmente ofendida, não aceitava ter sua dança comparada à de Okukawa e fazia de seu trabalho dentro do teatro não somente um emprego, mas uma afronta contra a bailarina estrangeira. Conquistar o protagonismo da personagem que Minako estava de olho desde o anúncio de A Bela Adormecida na programação da temporada, lhe deu enorme satisfação e seu sorriso descarado foi direcionado sem filtros para a inconformada japonesa.

“Okukawa como Aurora…”

O sorriso de Laura não durou o bastante e foi a vez de Minako se escorar em Yulia, sem perceber ter tido um princípio de desmaio com o anúncio. Se estivesse em condições de reparar na reação das pessoas ao redor, teria notado quão abismado estava Rurik, dividido entre aplaudir ou correr beijá-la — o que provavelmente lhe custaria uma bronca ou o papel de príncipe. Com a visão turva e os sentidos afetados, não conseguiu acompanhar o fim da escalação; ignorando o assombro alheio, a alegria de Yulia e a visível vontade de morrer de seu desafeto clássico, ela começou a chorar como Lilia, desde o começo, havia avisado para não fazer.

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A turma de Georgi tinha muitas crianças de sua idade, do tipo mais variado possível, com poucas mais velhas. Era divertido patinar pelo rinque com os outros em fila única, e às vezes alguns de seus colegas se desequilibravam e acabavam por levar mais dois ou três colegas ao chão frio, acompanhado de choros ou risos. Popovich tinha muito orgulho de seu ótimo equilíbrio e de nunca ter caído, mesmo com os esbarrões — que ele nunca sabia dizer se eram acidentais ou maldosas. Ele não gostava nada do olhar zombeteiro das crianças mais velhas, especialmente quando lhe enchiam de perguntas que não sabia responder.

Não conhecer algo, geralmente, não incomodava Georgi. Margosha dizia que ele não precisava saber tudo e que se caso não conhecesse alguma coisa, bastava perguntar para saber. A dúvida nunca era uma vergonha, pelo contrário, era a partir dela que as pessoas iam atrás de respostas, descobrindo coisas novas e expandindo o conhecimento não somente de si mesmos, mas do resto do mundo. Era como haviam desenvolvido tecnologias para a luz elétrica, o telefone, automóveis, aviões, descobertas que surgiram a partir da dúvida: e se pudéssemos ter luz depois que o sol de põe? E se pudéssemos conversar com quem está longe? E se pudéssemos ter a mesma velocidade de um cavalo sem precisar correr? E se pudéssemos voar?

E se Georgi tivesse pai?

Aquela dúvida, todavia, ele guardava para si mesmo. Sentia um desconforto estranho pensando nisso, porque sua família sempre foi muito boa para ele de repente começar a sentir falta daquela peça sobressalente que, até onde ele sabia, nunca lhe fizera falta. Parecia desrespeito com Minako e Margosha, desconsideração com Yulia e os caramelos de Nikolai, ingratidão do pior tipo. Essa confusão o deixava culpado e ir para as aulas começou a desanimá-lo.

“Por que você não tem pai?” perguntou inocentemente uma das crianças. De tanto ouvir as provocações das crianças maiores, a dúvida já começava a ser geral.

“Eu não sei.” Era a única resposta que ele sabia.

“Ele morreu?” sugeriu uma.

“Foi embora?” outra também deu seu palpite.

Georgi também não sabia.

“Ele não o quis” uma das crianças mais velhas se aproximou, com um sorriso muito maldoso para um menino de apenas oito anos. “Nem nome tem!”

“Eu tenho um nome!” rebateu emburrado. “É Georgi!”

“Digo nome de família! Qual é a sua origem? Seus antepassados? Você não tem história, não tem nada!”

O menino estava errado! Georgi tinha sim origem e era a casa dele, com sua mãe e Minako! E Margosha tinha um pai muito legal, que inclusive o pagava aulas de patinação há meses! E Georgi podia até não saber sobre os antepassados, mas poderia perguntar, Yakov era velho e velhos sabiam de muita coisa por terem vivido mais tempo que as outras pessoas, Yulia havia lhe dito! Ele tinha uma história, ele era filho de Margosha Popovevna e futuro melhor patinador da Rússia e também…

“O que aconteceu aqui?”

O instrutor se aproximou do grupo, que se dissipou rapidamente, deixando o adulto para trás com Georgi aos prantos. Todas as suas justificativas e tudo o que sabia haviam ficado dentro de sua cabeça, gritando e discutindo entre si, sem conseguirem se organizar devidamente para poder rebater em palavras as cruéis acusações daquela criança. Os soluços sofridos chegaram aos ouvidos de Margosha, que havia chegado para buscar o filho, lançando a mulher para dentro do ginásio e enfim o rinque. Escorregando e torcendo os pés, ela deu passos inconstantes, porém certeiros até Georgi, o trazendo em seu colo e apertando em um abraço capaz de protegê-lo de todo aquele tormento que só o deixava cada dia mais confuso.

“Calma, Georgi, já passou…”

Popovich queria acreditar naquela afirmação como sempre havia acreditado em Margosha, mas já estava grande o bastante para saber que nada daquilo passaria, não enquanto continuassem a perturbá-lo por sua falta de respostas.

“Por que eu não tenho um pai?” perguntou entre soluços e suas lágrimas não o deixaram ver quando o coração de Margosha despedaçou-se de forma irrecuperável.

Beijando o topo dos cabelos negros, Popovevna dispensou o pedido de desculpas do instrutor e ignorou os olhares de sentimentos variados que recebeu, deixando o rinque sem dirigir palavra a ninguém. Ela não precisava disso, não agora.

Margosha sabia — ela havia falado tanto a Yakov! — que perturbariam a cabeça de sua criança, principalmente estudando ao lado do filho de Osipov. A desgraça ainda havia demorado para acontecer e era triste estar surpresa por não terem o perseguido antes.

O choro de Georgi os acompanhou durante metade do trajeto, reduzindo aos poucos para suspiros que faziam tremer o corpo pequeno, apaziguando quando enfim exausto, acabou adormecendo com a cabeça tombada no ombro da mãe. Naquele momento, onde ele descansava toda a dor da rejeição em um sono sem sonhos, Margosha apertou o abraço e chorou.

Por que Georgi? Por que logo ele?

De volta ao apartamento, ela o deitou no colchão de casal e desejou que Georgi não despertasse tão cedo. Queria que ele descansasse, que esquecesse aquele mundo traiçoeiro e fantasiasse unicamente com o rinque. Os sonhos gelados do filho certamente o fariam acordar melhor, um consolo que nem mesmo ela poderia providenciar.

O mais silenciosamente possível, Margosha pegou sua velha agenda e buscou entre todos os contatos, dos mais buscados aos desatualizados, o nome de Yakov. Respirando fundo, ela olhou para a mancha no teto, uma desculpa para manter a cabeça erguida e as lágrimas dentro dos olhos. Sentia não poder chorar e por essa razão, não podia fazê-lo.

Mas era tão difícil ser forte sozinha.

Firmando a mão no telefone para conter os tremores, errou o número do pai mais vezes que o aceitável até acertar e aguardou, agarrando-se ao fone como se dependesse daquela ligação para viver. Podia ouvir o bater do próprio coração sobressaindo à chamada e perguntava-se se seria ele a cumprimentar Yakov antes de ter a chance de dizer alô.

“Berezin falando.” O atendente desinteressado não era quem Margosha esperava e isso serviu para deixá-la mais nervosa.

“Quero falar com Yakov Feltsman” pediu, despida de qualquer educação e formalidade.

“Ele está na pista, agora.” Azedo pelo destrato da moça, ele devolveu a informação com rispidez

“Por favor, eu preciso falar com Yakov Feltsman agora.”

“Já disse que ele está trabalhando.”

“Diga que é Margosha Popovevna.”

O silêncio do outro lado da linha fez com que a costureira pensasse ter perdido a chamada. Margosha já estava pronta para discar o número novamente, quando ouviu a resposta mau humorada do atendente:

“Só um momento.”

O momento durou uma vida. Caminhando de um lado para outro, tanto quanto o fio sanfonado do aparelho permitia, ela tentava descontar o nervoso no breve caminhar, espiando entre uma passada e outra o sono do filho. Ver Georgi tão inocente tornava ainda pior aquela situação.

“Você nunca me liga.” A falta de cumprimentos formais aparentemente era de família. Yakov sentia que algo de errado havia acontecido, do contrário só teria notícias da filha por cartas.

“Pai!” Notando ter gritado enquanto chamava por ele, Margosha conteve a voz e velou por Georgi mais uma vez. Para seu alívio, ele permanecia dormindo. “Pai, pai…”

Margosha continuou o chamando, despejando em cada “pai” um sentimento diferente, um pedido de socorro impossível de expressar em outras palavras. A responsabilidade em seus ombros era pesada demais, forçando-a para baixo até não restar mais resistência em suas pernas, pressionando Margosha contra o piso gasto, comprimindo sua alma. Era como estar se afogando e ser responsável por se afundar cada vez mais, esticar a mão em pedido de ajuda e não forçar as pernas a nadarem. Estava tão cansada…

“O filho de Osipov está lá… Eu disse que ele falaria, eu disse que todos eles falariam, pai… Eu disse que cedo ou tarde iriam machucar Georgi, eu disse…”

Yakov não tinha o poder de mudar aquilo, mas dividir aquele fardo ajudava a amenizar a dor do filho, que era também sua — ou quem sabe pior. Saber que não podia proteger Georgi de todos os golpes da vida a matava.

“Venham para São Petersburgo” falou ele com seu timbre rouco. Não queria saber quem teria falado o quê, apenas queria acabar logo com aquela merda que arruinava a vida de quem amava. “Eu treino seu filho, eu cuido de vocês.”

Margosha concordou para a geladeira antes de seus soluços responderem.

“Nós vamos.”

Do outro lado da linha, Yakov já pensava em providenciar um novo espaço onde pudesse viver com Margosha e Georgi, balançando a cabeça em concordância com os próprios planos. Um apartamento perto do rinque seria bom, dois quartos seriam o bastante, ele poderia muito bem dormir na sala, como quando ainda vivia nos apartamentos comunitários durante a década de cinquenta.

“Já estou esperando.”

Um sofá não era nada se pudesse pessoalmente secar as lágrimas da filha.

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Escondido no quarto de acesso restrito, a criança buscava nos objetos encaixotados, todas as relíquias que ficavam ali trancadas, proibidas para ele. Havia sido com muito custo que ele conseguira pegar a chave daquele cômodo, portanto a emoção de estar ali era ainda maior. Se ficasse quieto o bastante, ninguém o descobriria e ele sairia daquela aventura sem nenhuma sequela.

Mexendo em uma caixa e outra, observou fotos, folheou antigas revistas e admirou durante longos minutos o belo rosto da mulher de quem havia herdado os olhos claros, tal como todos os suaves traços de sua aparência, tão delicada que frequentemente o confundiam com uma garota. Não era uma preocupação e o garoto também não corrigia quem erroneamente o tratava no feminino, principalmente por sentir-se ainda mais ligado à mãe que a vida infelizmente não o deixou conhecer.

Em meio a suas buscas, a mais maravilhosa foi feita, um tesouro tamanho que afetou toda sua cuidadosa discrição; com a coroa de rosas azuis em mãos, ele encaixou o adorno empoeirado nos cabelos prateados e correu para fora do quarto, barulhento nas passadas pesadas, rindo desde o interior do cômodo até os corredores, preenchidos por sua felicidade em encontrar aquele adereço que poderia ter sido de sua mãe, uma rainha, uma princesa, uma fada!

“Pai!” chamou, no auge de sua emoção. “Pai! Olha o que eu achei!”

Ocupado em uma ligação, com o fone bege em uma mão e um copo de destilado na outra, o homem lançou um único olhar ríspido ao filho, que entendendo a repreensão, tirou a coroa da cabeça e escondeu-se atrás dela. Mesmo a grosseria paterna não foi o suficiente para afetar sua alegria e ele saltitou no mesmo lugar, imensuravelmente contente com a descoberta de seu mais novo tesouro preferido em todo o mundo.

Batendo com o fone na base, o homem suspirou, exausto, tragando o último gole de bebida com uma careta que ele já não sabia ser do amargor alcoólico ou da dor de cabeça causada pela chamada de Osipov. Correu os dedos pelos curtos cabelos prateados e os puxou levemente, contendo a vontade de descontar em si mesmo a raiva de estar perdendo o controle da situação. Ele sabia que deveria ter cuidado disso pessoalmente, o sucesso sempre dependeu unicamente de suas próprias mãos para fazer o trabalho, fosse ele sujo ou não.

“Pai! Pai!” o menino gritou mais uma vez, vibrando em cada letra que o chamava. “Olha!”

“Quantas vezes eu disse para você não entrar naquele quarto, Victor?”

“Era da mamãe, não era?!” A emoção infantil foi incapaz de se magoar com o tom repreensivo.

“Era, era da sua mãe, sim.” Deixando a sala para trás, ele encheu o copo até a borda, deixou a sala e marchou até o quarto, seguido pelo filho.

“São lindas! As mais lindas do mundo!” declarou encantado. “Como elas duraram tanto?!” Iludido com a realidade daquelas flores, Victor tentou entender a magia que as deixavam vivas durante anos.

“São falsas, não existem rosas azuis.”

O baque de duas desilusões freou o ritmo animado do saltitar, logo esquecido pela criança. Falsa ou não, era de sua amada mãe e ele manteria o arranjo consigo, se assim o pai autorizasse. Se Oleg não deixasse, bom...

“Posso ficar com a coroa?”

… sempre existia a opção de escondê-la debaixo da cama.

“Pode, Victor, pode…” autorizou em meio a um bufar irritado. Ele não tinha paciência nenhuma para lidar com o filho e a cada ano parecia ficar pior.

Ocupado com o novo e maravilhoso presente, por pouco Victor não reparou na mala aberta em cima da cama de casal, sendo preparada com uma variedade de blusas para frio e casacos grossos, indicando um longo período fora.

“Vai viajar?”

“Vou.”

“Posso ir junto?”

“Não.”

Victor não gostava de ficar sem Oleg em casa, tendo apenas os empregados monossilábicos como companhia, no entanto, a ausência paterna permitia que entrasse no quarto fechado sem precisar se esconder ou cuidar da passagem das horas. Como nas outras vezes em que Oleg estava fora, ele poderia levar um cobertor até o cômodo e dormir lá mesmo, cercado por todas as recordações maternas que pareciam abraçá-lo e cantarolar cantigas de ninar. A companhia do nada era mais presente que a do pai, embora Victor se sentisse culpado por pensar assim.

“E vai para onde?”

Cansado, sem saber se pelas perguntas insistentes do filho ou o problema que teria para resolver, Oleg fechou a mala e pronunciou o nome daquela cidade que seria seu tempestuoso destino:

“Moscou.”

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Já na Praça Vermelha, Georgi soltou a mão de Nikolai e correu em direção ao grande teatro, ansioso para contar as boas novidades da aula de patinação para Margosha, entre elas a saída de Osipov de sua turma — Georgi já achava que aquela notícia era mais interessante que o sit flip que o professor havia prometido começarem na próxima semana.

Ignorando — com muito respeito, claro — o chamado de Plisetsky e os alertas para tomar cuidado com a rua, ele correu cada vez mais rápido, rindo no ritmo dos patins batendo contra em suas costas, jogado por cima do ombro esquerdo. Ele estava tão feliz que não sabia exteriorizar o sentimento de empolgação, querendo fazer a única coisa que se equiparava com a agitação de seu coração eufórico; gritar.

Conhecido pelos funcionários e conhecendo o caminho, bailarinos se afastaram e funcionários da manutenção lhe deram espaço, abrindo os corredores para acesso do gentil filho de Margosha. Com a agitação naquela reta final para as principais estreias da temporada, ninguém tinha muito tempo para reparar na pressa daquela criança conhecida por sua calma, seguindo seus caminhos de tules e sapatilhas, uma bagunça que, em outras circunstâncias, Georgi teria parado tudo para observar admirado. Aquele mundo artístico era tudo o que ele conhecia e tudo o que desejava para o futuro, independente se o palco pisado fosse de madeira ou gelo.

Nikolai já havia perdido o menino de vista e também se perdido no aglomerado de pessoas, desistindo de tentar conter o ânimo infantil para ficar para trás e beber um chá até a filha ser dispensada dos ensaios, isso se Lilia estivesse de bom humor. Margosha também fazia parte do grupo que possuía hora para entrar e nenhuma previsão para sair, atarefada com as demais costureiras responsáveis pelos figurinos. Encaixando alfinetes, retirando tules e enrolando a fita métrica nas cinturas diminutas, Georgi viu sua mãe muito compenetrada no serviço, o fazendo com a mesma dedicação que ele imaginava fazer as aulas de patinação. Teria saído à ela naquela parte?

Empolgada para chamá-la, mas sem coragem de atrapalhar o serviço, Georgi permaneceu calado, atrapalhando a passagem da porta sem perceber, admirando o passar de linhas finas em aberturas ainda menores das agulhas metálicas, quase um ritual preparatório como o amarrar de seus patins. Se pedisse à mãe, poderia também aprender a costurar?

“Pode vir, Kira” chamou Margosha gentilmente, sem tirar os olhos da renda escura coberta de pedrarias. Quando a bailarina pela qual havia chamado aproximou-se, a costureira sorriu abertamente, feliz em vê-la e em conferir o processo quase completo do sombrio e deslumbrante figurino de Carabosse.

Quem não viu nenhum deslumbre no vestido de tons escuros foi Georgi, por mais que amasse a cor roxa predominante. Assustado com o tule que envolvia bailarina da cabeça à altura dos joelhos, como um cadáver de olhos abertos, Gosha não conseguiu ver a beleza elogiada por Margosha, recuando apavorado até que alguém às suas costas bloqueou a passagem. Suficientemente assustado com a visão cadavérica de Kira e impressionado o bastante para considerar a existência do sobrenatural, o garoto deu um salto espalhafatoso o bastante para fazer Margosha notar sua presença e estranhar tanto alarde.

“Gosha? O que houve?” Erguendo-se do baixo banquinho usado de apoio, Popovevna estava pronta para abandonar as agulhas e todo arsenal de costura para acolher o filho, mas logo seu plano foi interrompido pela pessoa que tinha a maior voz naquela peça.

“Não se preocupe, Popovevna.” Georgi sentiu a mão ossuda de Lilia tocar-lhe o ombro e por pouco não a confundiu com a própria morte. “Eu tomo conta do seu menino até o intervalo do seu turno.”

Confusa com o assombro de Georgi e cheia de preocupações naquela reta final para a estreia de A Bela Adormecida, mal Margosha teve tempo para absorver a visita do filho e ele estava sendo levado pela mão, aos cuidados nada previsíveis de Baranovskaya. Tendo de confiar na ex-prima ballerina e atual coreógrafa do Bolshoi, ela abafou a preocupação com um punhado de paetês e pegou novamente as agulhas.

Conforme se afastavam dos corredores agitados e ganhavam com o isolamento aliviadores momentos de silêncio, Georgi percebeu estar ficando gradativamente mais calmo. O som de seu coraçãozinho agitado já não podia mais ser ouvido, já que o solado do sapato caro de Lilia conseguia sobressair seus medos e impor-se com todo o poder que ela transmitia, independente da situação. Os dedos, longos e esguios, envolvendo os seus, não eram mais vistos como a mão cadavérica do limbo e o garoto podia observar beleza nas finas linhas e sardas amarronzadas marcando a pele clara com anos de história por ele desconhecidas, como a marca circular que ela trazia no dedo anelar da mão direita. Que tipo de anel Lilia deveria usar por tanto tempo para estar marcada daquela forma? Irrelevou aquela questão, notando que assim como belas, elas também eram quentes e Georgi apreciava tudo que fosse quentinho e acolhedor, como cobertores, travesseiros, abraços e colo de Margosha.

“Está mais calmo, agora?” perguntou Lilia, sem olhá-lo diretamente. Aquele era um tipo muito interessante de poder, o de ver sem precisar olhar, pelo jeito era algo que ela fazia muito.

Lembrando da boa educação a qual Margosha sempre se orgulhava em elogiar, Georgi sorriu contidamente e concordou enquanto respondia;

“Sim, obrigado.”

A caminhada calma não parou depois daquilo, mas o menino não quis reclamar e nem sentiu-se aborrecido para fazê-lo. Percorrendo um caminho conhecido apenas por Lilia e seus melhores anos se esgueirando pelas paredes históricas, ambos percorreram uma extensão sem fim de corredores, onde Georgi viu as paredes menos enfeitadas dos bastidores encontrarem fim em acabamentos bem polidos e pintura fresca, adornos esculpidos por mãos de talento angelical e tapeçarias do tempo do czar. O suntuoso passado russo sempre encantava Georgi, fazendo voar longe sua imaginação fantasiosa, alimentando sonhos de roupas clássicas e babados até o pescoço que ele adoraria vestir. Talvez pudesse usar uma daquelas requintadas roupas em alguma apresentação, um dia?

Sem dizer palavra alguma, Lilia parou de andar e suavemente, correu a mão livre — e muito bonita, agora Georgi sabia — por uma porta fechada, abrindo-a com apenas um toque e leve empurrar, para revelar um cenário totalmente vermelho. Aquilo era inusitado, para dizer o mínimo. Portas geralmente abriam para lugares, fossem abertos ou fechados, não para cortinas de veludo. Achando graça, riu para si mesmo e notou aliviado não ter ofendido a mulher, expressando minimamente o esboço de um sorriso, esse sendo um pouco diferente da expressão engraçada achada por Georgi. Adultos tinham jeitos muito peculiares de demonstrar alegria.

Fazendo mistério e mantendo os olhos no rostinho confuso, Lilia afastou uma das partes da cortina com uma das mãos, enquanto a outra o guiou para dentro do camarote real. Conforme seus pés pisavam no tapete que um dia talvez Nikolai Romanov tivesse limpado as botas sujas, Georgi deixava a boca abrir exageradamente, escancarando a surpresa e incredulidade em estar ali, um lugar pertencente apenas a membros da realeza e os chamados por Minako como kanemochi. Ele estar ali, no camarote central que poderia muito bem atrair mais atenção que o próprio palco com todo o corpo de baile nele, era quase errado, destaque demais para Georgi suportar. Tendo tudo isso em mente, ele abraçou o par de patins e permaneceu de boca aberta, engolindo sem palavras todo o esplendor daquele lugar.

“Me acompanha?” Lilia convidou, confortavelmente acomodada em uma das ricas poltronas envolvidas em vermelho e dourado. Tímido, ele não teve certeza se deveria ou não acompanhá-la, visto que Baranovskaya parecia de fato pertencer àquele cenário tão bonito.

Deu-se em conta, enfim, que se ela o estava convidando, era porque deveria merecer um assento acolchoado como aquele. Sem exteriorizar nenhuma de suas linhas de raciocínio, Georgi escolheu a poltrona ao lado de Lilia e sentou sem grandes dificuldades. Não era uma poltrona tão diferente, assim.

De onde estavam, podiam ver o palco cheio, mostrando o cenário construído com minucioso cuidado, principalmente agora que os funcionários percebiam o duro olhar de Baranovskaya sobre eles. Aquele era um dos encantamentos teatrais que sempre encantavam Georgi, o passo a passo no martelar de pregos, pintar de arcos e lixar de madeiras na construção de um sonho. As cortinas, sempre fechadas para guardar a fantasia do balé antes de exibi-la em toda sua glória, permaneciam abertas, livres da obrigação de abraçar aquele mundo de sapatilhas somente para si, fazendo do tablado uma sincera confissão de que o antes das apresentações não era assim tão belo. E, sinceramente, Georgi não via problema nenhum naquilo.

“Nossa Carabosse te assustou?” O comentário o constrangeu até a leve risada avisá-lo de que aquela não era uma condenação. Ainda sem graça, ele alisou os protetores púrpura das lâminas de seu patins, esperançoso em ter aquela conversa evitada. “Deveria ter visto quando eu a fiz.”

Admirado com a revelação, a atenção nos patins perdeu a graça e Georgi levou os olhinhos arregalados para o sorriso saudosista e muito orgulhoso de Lilia. Ela transmitia muita satisfação por aquele papel longe de ser o preferido dos solistas.

“Ultimamente há uma preferência masculina para o papel, mas eu nunca achei que existisse gênero na dança.” Ela usava palavras um pouco difíceis para a compreensão de uma criança, mas de certa forma, ele conseguia acompanhá-la. “A única coisa que me incomoda é o uso exagerado de vestidos longos, mangas compridas, querendo montá-la com ares soturnos, apagá-la de sua verdadeira origem…” Fazendo mistério, Baranovskaya estendeu a frase como se Georgi pudesse completá-la. Olhando com diversão o interesse do menino, ela sorriu e sussurrou aquela verdade que há muito parecia um segredo: “Uma fada.”

Surpreso por tal revelação que mudaria para sempre sua forma de interpretar A Bela Adormecida, Lilia viu os olhos de Georgi dobrarem de tamanho. Tamanha informação acabaria por explodir a cabeça daquela criança.

“Carabosse é uma fada?” Criando coragem, ele perguntou. Quais outros segredos proibidos dos contos de fada ele desconhecia?

“Uma das mais importantes! Sem ela, a história de A Bela Adormecida sequer aconteceria!”

“Verdade?!”

“Mas é claro! Sem o feitiço, o batizado de Aurora seria apenas mais uma festa, a princesa cresceria e se casaria com um príncipe totalmente diferente ao Désiré e sequer teríamos um beijo de amor verdadeiro…” Georgi estava sem palavras.

“Eu não sabia que ela era tão importante...” ponderou. “Ela é má, não é? Uma vilã?”

“Vilões são os mais importantes! Pense só você, sem a existência de Carabosse, a doce Fada Lilás nada poderia fazer, sua presença seria mais uma, sua importância um nada.” Com poucas palavras, ela havia desmembrado toda a importância da heroína de Tchaikovsky. “Carabosse é tão forte e poderosa, que uma fadinha como Lilás foi incapaz de desfazer o feitiço, apenas o suavizou um pouco. Você acha mesmo que um personagem irrelevante teria tanto poder?” Entendendo onde ela queria chegar, Georgi negou. “Carabosse deveria ter um figurino tão requintado quanto sua rival complementar, um solo na ponta dos pés e piruetas como as de Odille, não uma saia pesada arrastando pelo chão! Isso limita o trabalho de uma bailarina, imagine só! Anos dedicando seu corpo a essa dança ingrata, deformando seus pés em sapatilhas de pontas de gesso, para ter suas pernas presas por saias desconfortáveis e seus pés cobertos por sapatos comuns?” A indignação de Lilia era crescente e Georgi começava a se indignar também. “Carabosse deveria brilhar!”

“Brilhar?” Aquela parte havia lhe soado um tanto confusa. “Mas ela não fica nas sombras?”

Recomposta do irritado desabafo, Lilia sorriu suavemente para o menino, entendendo ter ido longe demais para a cabecinha de Georgi acompanhá-la.

“O brilho de alguém nem sempre está do lado de fora, evidente a todos… Por vezes, você precisa olhar com um pouco mais de atenção para ter certeza de que algo está brilhando e, posso jurar a você, esses casos são os que brilham mais.”

“Se ela é uma fada, por que não é boazinha?”

Desacostumada com idades tão prematuras, ela sempre se esquecia de medir as palavras e simplificá-las para compreensão geral.

“Porque nem sempre as pessoas reagem bem ao abandono e descaso” explicou o melhor que pode. “Há muitas histórias para Carabosse… Há quem diga que faltaram assentos na mesa real, outros que não tinham pratos de ouro o bastante… No balé, esqueceram de por o nome da coitada na lista de convidados… Todo um reino convidado, todas as fadas recebidas com honra, menos ela. Uns desprezariam a família real, outros não se importariam, muitos sairiam pelos quatro cantos da floresta reclamando, mas Carabosse? Carabosse ficou profundamente triste…” Bom os lábios torcidos em um bico choroso, Georgi expressava a pena sentida pela fada. “E nem todas as pessoas tristes extravasam o sentimento chorando.”

Ele não imaginava como aquelas palavras fariam sentido um dia.

“Por que ninguém nunca conta a história dela?” Existiam tantas versões e tantos aspectos interessantes sobre aquela personagem reduzida a vilã, que Carabosse poderia protagonizar um balé todo sozinha. Rindo melancólica pelas memórias que aquela complexa e esquecida personagem trazia, Lilia respondeu mais a si mesma que ao garoto.

“Porque ninguém se interessa pela história de uma fada triste.” Tinha algo de forte e muito triste naquela afirmação. “As pessoas querem as histórias prontas, ninguém gosta de pensar muito” brincou e Georgi riu, entendendo o que ela queria dizer; as pessoas eram bobas, Minako também dizia isso e Yulia usava palavras proibidas para falar dessas mesmas pessoas.

“Eu pensaria em Carabosse” afirmou, mostrando não ser bobo como os outros.

“Bom! Quem sabe um dia eu te conte mais sobre ela?” Sorridente, ele concordou animado. Se ninguém sabia a história daquela fada, Georgi poderia contar. Ao menos no gelo, não teriam como ignorá-la. “Ora, se não é a sua mãe!” No palco em construção, Margosha era vista conversando com os funcionários, provavelmente procurando por Lilia e o filho. “Acene para ela, Georgi, avise onde estamos.”

Tímido, porém encorajado pelo apoio da mulher, Popovich caminhou com seus pézinhos até o guarda-corpo ricamente adornado, juntando ar em seus pulmões e soltando junto com o chamado.

“Mamãe!”

Ao longe, Margosha dirigiu-se em direção a voz do filho, sorrindo aliviada ao vê-lo no camarote real, acenando junto com Lilia. Sorrindo, jogou um beijo e acenou de volta. Sabia que Georgi tinha um tremendo carinho por contos de fada, com predileção por fadas e asas brilhantes, mas de onde estava, ela podia jurar que ele parecia um príncipe.

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Ninguém nunca interrompia as aulas de Lilia, pelo menos, não faziam isso e saíam ilesos para contar a experiência. Foi por essa razão que todos, sem exceção, viraram seus rostos para a porta do salão, onde a secretária do administrativo havia arriscado colocar apenas o rosto de forma visível.

Alongando no canto espelhado da sala, Minako prestava atenção no semblante assustado, curiosa com a intromissão e esperando para ver se teria alguma cena para contar à Margosha no fim da noite. Se a razão da interrupção do ensaio fosse muito ridícula, a costureira provavelmente ouviria os gritos de Lilia de sua sala.

Os olhos verdes expressavam irritação e as sobrancelhas arqueadas questionavam de forma seca o que ela queria interrompendo o ensaio do terceiro ato. Com um sorriso murcho e sem graça, a secretária começou a falar com a voz baixa e levemente trêmula.

“Tem uma ligação para a senhora, disse que é urgente.”

Inconformada, Baranovskaya exasperou e relaxou a postura impecável de prima ballerina, apoiando a mão na testa. Haviam interrompido seu ensaio para isso?

“Diga que estou ocupada.”

“Mas ele disse que era urgente…”

“Eu não me importo!” esbravejou no limite de sua paciência. Avançando para a porta, estava pronta para fechá-la no nariz da pobre secretária, que se viu obrigada a usar um recurso extra para convencer Lilia.

“A pessoa pediu para insistir, Yakov Feltsman!”

Surpresa, ela soltou a maçaneta e franziu o cenho. Ainda em frente ao espelho, Minako lançou um olhar desconfiado para Yulia, se alongando em uma barra no lado oposto. O que Yakov queria com a ex-esposa? Logo ele, avesso ao uso de telefones e os usando apenas em casos de extrema emergência?

Okukawa tremeu; qual era a emergência?

“Vou me ausentar alguns minutos, retomem o terceiro ato da cabeça e os demais bailarinos ensaiem suas variações, não quero ninguém parado, lembrem-se que a estreia será dentro de três dias!”

Todos ouviram e quase todos assentiram. Bastou Lilia colocar as sapatilhas para fora que Minako atravessou a sala e o terceiro ato, puxando Yulia pelo pulso. A garota nem perguntou a razão, pois também estava preocupada com o que aquela ligação poderia ser.

Se esgueirando para fora da sala, as duas tomaram o caminho contrário do corredor, circulando uma rota alternativa até a sala do administrativo. No telefone bege cheio de botões, a secretária redirecionava ligações para conversas fechadas em salas de restrito acesso e, sabendo que não poderia ouvir a conversa da própria Lilia, sempre muito atenta aos ouvidos curiosos — um trauma trazido do período soviético —, restava tentar ouvir aquela chamada de uma linha extra.

“Você vai distrair a secretária enquanto eu escuto a ligação” explicou o plano, simples e direto.

“Tá bom” Yulia concordou sem nem pestanejar. “Mas como eu farei isso?”

“Dê seu jeito, Yulenka…”

Dito aquela incentivo nada animador, ela empurrou a garota em direção ao corredor, de onde Plisetskaya pôde ver a secretária se aproximar do fim dele com seus passos rápidos e saltados pelo salto gasto. Minako, que havia continuado a correr até a pequena sala fechada do administrativo, depositava nas mãos da Fada da Alegria, o sucesso daquela infração.

“Você não deveria estar ensaiando, mocinha?” brincou a secretária, passando por ela.

“Devia, mas…!” improvisando, Yulia puxou a mulher pelos ombros e a virou de modo que ficasse de costas para a sala. Embaixo da mesa e com o fone colado na orelha, Okukawa aguardava. “É que tem uma coisa que eu tenho observado faz tempo e eu queria muito te falar, mas sempre esqueço!”

“Oh… Comigo?” ela não imaginava o que Yulia poderia querer lhe dizer. “E o que é, querida?”

“Seu cabelo é muito lindo!” elogiou deliberadamente. Por falta de qualquer argumento que justificasse o elogio, a senhora de meia idade riu e ameaçou continuar andando, quando Yulia forçou as mãos em seus ombros, a mantendo ali. “Sério! Ele é tipo descolorido e eu adoro a sua franja, parece até mesmo aquela atriz… Aquela lá, sabe?” gaguejou, sem saber como se expressar direito. Maldita hora em que dormia no meio dos filmes que seu pai assistia! “Aquela lá que aparece no filme onde o czar vem para os dias de hoje…”

Yulia não sabia quem era, mas a secretária sim. Surpresa pela comparação, a mulher ruborizou e levou os dedos de unhas muito compridas e muito vermelhas para os lábios, escondendo o sorriso vaidoso para simular constrangimento.

“Ora, imagine, eu parecida com Natalia Kustinskaya…”

A bailarina não fazia ideia se era esse mesmo o nome, mas entraria no jogo.

“Parecida? I-gual-zi-nha! Se me dissessem que você é ela, eu não duvidaria!” A mulher riu mais uma vez e foi o bastante para Plisetskaya ver Minako sair abaixada da sala, correndo de volta para o lado oposto.

Oh, Gália, nem imagina o que tenho para lhe contar! O Iákin finalmente deixou aquela bruxa!” recitou aquelas que eram as falas clássicas da personagem. Sem entender uma só palavra, Yulia concordou e aplaudiu.

“Perfeito!” cumprimentou sem de fato saber se tinha sido perfeito. “Era só isso mesmo que eu queria dizer, parabéns, tá, você é linda, tchau!”

A mulher não se preocupou com a pressa de Yulia e caminhou quase flutuando até sua mesa, onde passaria o resto do dia fantasiando ser a estrela do cinema soviético.

Já ao lado de Minako, preocupada com o tom pálido da bailarina e sem saber o que estava acontecendo, Plisetskaya aguardava ansiosa algum esclarecimento. O que de tão ruim tinha aquela ligação?

“Yulia, você se importaria se eu te metesse em um problema?”

A preocupação nos olhos rasgados não deixou que a garota fizesse nenhuma piadinha para amenizar a tensão daquele momento.

“Ficaria brava se não fizesse.”

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Aos fins das aulas, Georgi sempre dava um jeito de ser o último a sair. Fingia não perceber o dispersar dos alunos e patinava para longe, próximo à borda da pista, onde mantinha-se olhando para o gelo, fingindo distração o quanto pudesse, apenas para prolongar seu tempo no rinque, desfrutando de seu tempo ali, que dia após dia se mostrava cada vez mais insuficiente. Não via a hora de ir viver com a mãe em São Petersburgo; Margosha havia garantido que Yakov o deixaria passar quantas horas quisesse no rinque e ele mal podia esperar para aproveitar as manhãs despertas com os pés no gelo e arrastar os patins pela pista até a hora do jantar. Seria maravilhoso e já havia prometido desenhar todas as aventuras que teria em sua nova vida para Minako e Yulia, que antecipadamente já morria de saudades.

Sozinho no rinque, Georgi ainda ouviu quando sussurros baixos pareceram conversar e uma única pessoa deslizou suavemente em sua direção. Não conseguindo esconder a travessura por muito tempo, espiou por cima dos ombros, sentindo algo estranho incomodar seu coração acelerado quando percebeu não se tratar do instrutor de patinação o qual estava acostumado.

Yuki Onna era, no folclore japonês, uma mulher surgida da neblina, pálida como ela. Minako contava que esse espírito surgia da neve — era o yuki significava — e podia ir embora com a estação fria, deixando para trás todos os que havia cativado. Georgi achava as histórias maravilhosas e adorava quando tinham um toque extra de magia, que a tornava inacreditável, boa demais para suas realidades. Era como ele também vinha a silhueta esguia se aproximar, no silêncio do rinque vazio, cercado pelo gelo pálido como seus cabelos lisos e a ponta dos cílios compridos, uma entidade tão maravilhosa quanto o fantasma japonês, com adaptada aparição russa;

“Oleg Nikiforov” murmurou, sem levantar qualquer dúvida. Temia não acreditar no que seus olhos viam e tamanha ofensa espantar o mais lúdico de seus sonhos, que afastaria-se na neblina e dissiparia-se no gelo tal qual a dama gelada dos contos nipônicos.

Achando graça do deslumbramento do pequeno, com boca e olhos arregalados, Oleg riu baixo. Diferente da imaginação de Georgi, ele era dolorosamente humano.

“Então você já me conhece.” Hipnotizado por tamanha proximidade de seu ídolo, o menino apenas balançava a cabeça, acompanhando cada palavra dita. Oleg exalava um cheiro forte e na cabeça de Georgi, o fundo alcoolizado era ligado diretamente a algum perfume caro. “Gosta de patinar?”

A criança não tinha como entender a obviedade do que lhe era perguntado, juntando as mãozinhas no peito e apertando o pingente dado por Minako. Ele o ajudaria a ser forte, o daria forças para dar a melhor impressão possível.

“Gosto” balbuciou, pensando ter dado seu melhor.

“Quer me mostrar alguma coisa?”

“Agora?” Georgi não tinha certeza se podia dar algum passo sem se estatelar no gelo e permanecer nele. E se Oleg risse? Ou ficasse bravo? Por alguma razão, estava apavorado.

“Me surpreenda…”

Com a mão estendida ao gelo, Nikiforov ofereceu a pista para a particular apresentação. Sorrindo levemente, aguardou o começo do patinar infantil, uma forma de alongar o contato com o garoto e ganhar de uma vez sua confiança.

Respirando fundo, Georgi segurou a pedra mais uma vez. Ele havia memorizado muitas das coreografias de Oleg e as reproduzia sempre que podia, mas seria certo copiar seu ídolo na frente do próprio? Tudo o que imaginava tinha como opção ou Nikiforov desapontado ou completamente irado e Georgi não queria nenhuma daquelas reações.

Se afastando do alambrado, ele patinou para o meio da pista, partindo do centro para as laterais, quando contornou todo o limite do rinque de frente e de costas, imaginando curvas em sua cabeça e as reproduzindo com a lâmina dos patins, terminando a demonstração ao esticar uma das pernas para frente enquanto abaixava, quase sentando no gelo quando oscilou o equilíbrio e não conseguiu finalizar o segundo giro. Ele ainda não conseguia girar muito bem para considerar aquilo um sit spin, mas já era o melhor da turma, segundo seu instrutor.

Os aplausos secos pelas luvas de couro, celebraram o desempenho do garoto e ele, envergonhado, curvou-se em agradecimento.

“Maravilhoso! Sabia que eu tenho um filho da sua idade?” Surpreso, Georgi negou. Quanta sorte ser filho de Oleg Nifikorov! “E ele não tem um terço do seu desempenho!”

Se aquilo era um elogio, Georgi ficaria feliz em agradecer.

“Você é meu patinador preferido” confessou com o rosto vermelho. Naquilo ele era igualzinho à mãe.

“É mesmo?” sorriu, vaidoso. Sem o menino notar, o semblante de Oleg pesou, assim como a voz rouca. “E quem te falou sobre mim?”

Georgi levou algum tempo para entender que deveria responder aquela pergunta.

“A mamãe!” Os olhos azuis de Oleg endureceram com a afirmação gritada de forma tão entusiasmada, o que a inocência da criança não o deixou perceber. “A mamãe me contou tudo!”

“O quanto significa esse “tudo”?”

Georgi não entendeu a pergunta e Nikiforov não teve tempo de repetir a questão ou sondar melhor o menino, quando o chamaram na entrada do ginásio. Irritado, ele virou-se para trás, vendo a pessoa que o chamava se encolher com aquele olhar que poderia matá-lo. Oleg havia pedido para não ser incomodado, antes, qual era a dificuldade das pessoas em entender isso?

“Desculpe, Oleg, mas tem uma garota aqui, muito insistente em pedir seu autógrafo…” Assim ele justificou a intromissão, íntimo o bastante, ou pensando o ser, para chamar o patinador pelo primeiro nome. “Ela começou a chamar atenção e como o senhor pediu que sua presença aqui não fizesse alarde…”

Oleg suspirou, como vinha fazendo constantemente, extremo cansaço o acompanhando nos últimos meses. Decidido a dar atenção à fã e depois terminar o que tinha vindo para fazer em Moscou, voltou-se a Georgi e com seu mais brilhante sorriso, convidou:

“Quando eu voltar, você quer ir comigo tomar borsch?”

O sorriso de Georgi alargou-se a princípio, diminuindo rapidamente.

“Não sei se posso… A mamãe diz que eu não posso sair com estranhos…”

“Claro que ela disse, ela é uma boa mãe.” Qualquer outra pessoa teria identificado o tom irônico usado. “Mas você sabe quem eu sou.” A explicação de Oleg era bem convincente. “E eu também sei quem é você, Georgi Popovich.” Oleg Nikiforov sabia seu nome?! Como, se ele não havia dito nada?! “Você é filho de Margosha Popovevna, Yakov Feltsman é seu avô, não é?” Satisfeito, o ex-patinador percebeu que todas aquelas informações tinham acertado e desnorteado a criança, o suficiente para convencê-la de sua proximidade com a família do garoto. “Então, aceita me acompanhar em um borsch?” Com a tímida aprovação de Georgi, Oleg se deu por satisfeito. “Ótimo, me espere aqui.”

Georgi dificilmente iria para algum lugar tendo logo Oleg Nikiforov o convidando para comer. E o homem ainda havia o elogiado! Oh, ele mal podia esperar para contar tudo aquilo à sua mãe, Margosha com certeza acharia tudo maravilhoso!

“Hey, Georgi!” um sussurro o chamou no canto oposto da pista. Abaixada, encolhida atrás do guarda-corpo do rinque, Minako se escondia no acesso lateral. Ela sorria e acenava, mas parecia muito nervosa. “Vem cá, vamos para casa!” Confuso entre obedecer a bailarina ou esperar o ídolo, Georgi não conseguiu sair do lugar. “Anda, Gosha, ou vamos nos atrasar!”

“Mas…” Olhando para a porta de acesso ao rinque, esperava que Oleg voltasse logo e falasse para Minako sobre o borsch. Como ele conhecia sua mãe, esperava que aquela informação fosse o bastante para Okukawa.

“Foi sua mãe quem pediu, querido… Ela está nos esperando com o almoço, estava terminando o borsch quando deixei o apartamento.”

O blefe coincidiu com a oferta de Oleg e na compreensão de Georgi, o borsch oferecido por Nikiforov era o mesmo o de sua mãe. Nesse caso, não via problema em seguir Minako, certo de que iria para casa na companhia tanto da bailarina, quanto a do patinador.

Foi nisso que ele acreditou enquanto Okukawa rapidamente o pegava no colo e entrava no vestiário masculino, saindo para o corredor e atravessando-o até a saída secundária, correndo pela neve com Georgi em seu colo, ainda calçando os patins. Ele se perguntava onde Oleg estaria os esperando para irem comer borsch.

Em frente ao balcão da recepção, Nikiforov ainda distribuía autógrafos, em todas as páginas do caderno em branco possíveis e para todos os nomes ditados pela garota, uma lista que já passava de doze.

“A senhorita irá comercializar minhas assinaturas?” Perguntou em um tom de humor duvidoso. Percebendo a hesitação e nervosismo da garota, riu para amenizar. “Estou brincando.”

Agitada, a garota riu, ocupando as mãos trêmulas nos fios loiros que escapavam do coque escondido embaixo da touca de lã. Parecia prestes a sair correndo quando Osipov, o mesmo que apresentou a menina como sua fã, retornou do rinque de patinação com uma expressão que ele não gostou.

“Não estou encontrando o menino.”

Deixando fã e bloco de autógrafos para trás, Oleg praguejou e correu até a pista de patinação, não encontrando sombra da criança. Raivoso, gritou e culpou Osipov pela incompetência que ele não sabia bem qual era e marchou para a entrada da escola. Georgi não poderia ter ido muito longe sozinho, deveria ser fácil encontrar.

Voltar e achar a recepção vazia, com o bloco de assinaturas para trás, o fez perceber o que teria acontecido e a raiva passou a ser de si mesmo por tamanha estupidez. A maldita garota não passava de uma distração.

Seguido por Osipov, Oleg saiu porta afora, olhando em volta na pequena esperança de localizar Georgi. Tremendo da cabeça aos pés com a constatação de ter sido passado para trás, um ato somou à sua irritação, uma bola de neve que com infeliz precisão o acertara na lateral da têmpora. A responsável pelo golpe tinha os dois dedos médios erguidos em sinal ofensivo, rude como sua boca suja:

“Aí, Nikiforov!” gritou, corajosa pela adrenalina queimando em suas veias. “Enfia no cu aqueles autógrafos!” Atirando as últimas palavras agressivas, a garota correu para longe e foi Oleg quem conteve a iniciativa estúpida de Osipov em segui-la. O que aquele imbecil pensava conseguir com isso?

Mudando o foco de sua irritação, aos poucos retomou mentalmente o plano inicial, repassando a ideia original na memória e revendo o que tiraria dela para reaproveitar em uma nova adaptação. Não estava mais com tanta pressa, sabendo ser ela inimiga da perfeição — e era Oleg a própria definição da palavra.

Como era de se esperar, ele daria um jeito; para o bem ou para o mal, ele sempre dava um jeito.

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O rose adagio de Tchaikovsky era uma das cenas mais esperadas em todo o balé de A Bela Adormecida, às vezes mais esperado que o próprio despertar da princesinha. Os braços de Aurora, sempre altos, abertos em arcos, a destacavam como protagonista, princesa, aniversariante e bailarina. Minako, com toda sua técnica duramente trabalhada ao longo dos anos sendo finalmente reconhecida pelos menos conservadores e puristas do Bolshoi, brilhava com todo o brilho dos dezesseis anos da personagem, dando a ela uma nova interpretação, a beleza, delicadeza e energia com a qual as fadas haviam-na abençoado no prólogo anterior ao primeiro ato.

Em cada pirueta realizada nas composições solo e no revezamento entre os quatro príncipes cortejando Aurora, uma nova salva de palmas ovacionava a bailarina que mais uma vez fazia da composição de Tchaikovsky uma trilha sonora própria. O rose adagio, alusão às flores que os príncipes entregavam às mãos delicadas da princesinha e ao tom de seu vestido enfeitado, encontrava nas sapatilhas de Minako um trabalho à altura, e a realeza, inúmeras vezes interpretada em palcos ao redor do mundo, ganhava nela o frescor das rosas como nunca antes havia se tido notícia, a Aurora que brilhava no figurino e nos olhos rasgados. Escondida pela ribalta, Lilia não continha as lágrimas e todos que se viram obrigados a engolir o orgulho acabaram por engasgar e chorar o dobro. Era de fato um espetáculo; Minako Okukawa nascera para fazer história e Georgi queria muito estar vendo o que os aplausos ensurdecedores tentavam lhe contar.

Margosha havia o colocado embaixo da arara, escondido entre saiotes de tule e dito que tudo ficaria bem. Minako, linda como o menino nunca a tinha visto, o abraçou com força e fez inúmeras promessas caso ele se mantivesse bem escondido, enquanto Georgi, distraído, atentava-se ao cheiro adocicado da maquiagem usada por ela. Yulia, em um tutu magenta, usava o dedo em riste para reforçar a importância de não ser encontrado, como um jogo onde ele seria o grande vencedor se pudesse se manter escondido por mais tempo. Yakov, em uma visita surpresa a Moscou, manteria os arredores vigiados, ajudando naquele que era o maior pique-esconde do mundo. Animado com a possibilidade de ganhar e querendo honrar a confiança depositada pelos amigos, Georgi se encolheu e abraços os joelhos. Poderia ver Minako se apresentando em outro dia, quem sabe até fora da coxia? O prêmio por aquele jogo deveria ser muito bom.

O ritmo do adagio crescia em explosões emocionais e a espera pelo clímax da composição romântica o deixava cada vez mais ansioso, como se com ela o seu esconderijo fosse descoberto. Com a pedra em uma das mãos, Georgi a apertou com força e encolheu-se ainda mais. Não podia decepcionar a confiança de sua mãe e amigos, tudo daria certo! Ele não perderia a concentração! E assim aconteceu, mesmo quando o bater de sapatilhas percorreu o corredor e parou em frente à porta do camarim, mesmo quando ouviu uma porção de gritos vindos de Minako que não conseguiu distinguir e quando os mesmos foram calados por um estalo que parecia muito com o som de uma única palma, um aplauso interrompido pela metade e repreendido com ofensas por Lilia — Georgi jamais poderia imaginar que logo ela conhecesse tantas palavras de caráter ofensivo. Ouvir o choro de sua mãe por muito pouco não o tirou do esconderijo, mas antes que pudesse pensar em deixar a cortina de saiotes, a porta abriu e passos firmes seguiram em linha reta até onde estava, um padrão ritmado que ele não conseguiu reconhecer. A silhueta anônima se abaixou e a sombra de uma mão se aproximou do tule colorido, o puxando para o lado. Estático, Georgi aguardou; teria perdido o desafio?

Foi sorrindo que ele respondeu ao aberto sorriso de Oleg, que sozinho iluminou os saiotes, o camarim e as ideias de Georgi; foi assim que ele descobriu ter vencido aquele estranho, porém engraçado jogo. Sua mãe com certeza ficaria orgulhosa.

.:.

Sua boa postura e caminhar austero, atraía a atenção daqueles que não estavam assim tão distraídos com o estresse do aeroporto. Ainda que nem todos soubessem seu nome, Lilia Baranovskaya era uma pessoa difícil de manter os olhos longe, uma vez que fossem capturados por sua presença marcante. Aqueles que a observavam andar no saguão de embarque, não a imaginariam ocupando a classe econômica, não a imaginariam sequer dividindo sua presença em um avião com pessoas além dela, digna de um jato particular, qualquer coisa que a cercasse de uma redoma impenetrável, servindo de lembrança para os demais mortais, quão longe uma mulher como aquela estava.

Tal pensamento, criando para Lilia uma história fantástica que não a pertencia de fato, cegavam as pessoas para a bagunça emocional passada por ela e escondida pela expressão neutra. Acostumada com a fachada séria, um hábito forçado a aprender em um tempo onde expressar sentimentos fora do palco era desencorajado e severamente punido, Lilia escondia a alma despedaçada com a falta de sorrisos, um comportamento que ela não observava em Okukawa.

Se a atenção atraída por Baranovskaya era por aparentar tudo o que não era, Minako chamava atenção de meio saguão com as lágrimas abundantes, lavando o rosto vermelho. Não chorava alto e continha todos os soluços para si, mas a livre demonstração sentimental não era algo visto todo dia em solo russo, o que tornava a japonesa um tipo muito peculiar de atração.

Suspirando, Lilia ajeitou a alça da bolsa cara e olhou ao redor, torcendo o pescoço esguio para disfarçar os planos de ir diretamente ocupar o lugar vago ao lado da bailarina. Dando a si mesma um intervalo de tempo espaçado o bastante para ela poder andar até Minako sem levantar maiores suspeitas. Assim que reconheceu o bater do solado de madeira no piso, Minako limpou as lágrimas, já sabendo de quem se tratava.

"Seu estado é lamentável, Okukawa."

Rindo tristemente, ela não teve condições de negar.

"Nem todos podem ser Lilia Baranovskaya."

Suspirando para cima, a ex-prima bailarina jogou o echarpe para trás e acomodou-se no assento livre, folheando desinteressadamente as páginas carimbadas de seu passaporte. Fazia quinze anos que aquelas folhas não eram marcadas.

"Qual seu voo?" perguntou a japonesa, com os olhos devidamente secos.

"967, das duas horas." Minako riu mais sinceramente, mostrando o cartão de embarque com as mesmas informações.

"A saudade seria tanta que você está indo embora comigo para o Japão?"

O canto dos lábios finos de Lilia abriram discretamente em um sorriso.

"Eu paro em Munique, acho que é você que já está sentindo falta das minhas broncas."

"Estou, mesmo..."

Silenciadas pela confissão sentimental, ambas permaneceram ouvindo o burburinho ao redor misturado ao eco dos anúncios dos voos e chamados de funcionários. Havia tanto a ser consolado, mas tão pouco que pudesse consolar as duas, que aquela ferida aberta inspirava tanto cuidados, quanto a desistência de ignorar a dor e jogar um punhado de sal no machucado.

“Quem lhe trouxe, Minako?” Se fosse para doer, que doesse de uma vez.

“Rurik.” O nome do bailarino morreu pela metade, tendo as últimas letras saídas em um sussurro. “Acredita que ele chorou o trajeto todo?” Fingiu fazer piada, rindo enquanto lágrimas deixavam seus olhos. “Ridículo.”

“Pensei que Margosha viria te trazer” comentou Lilia, após breve momento de silêncio. Ela sabia que para Rurik, o caso com Minako era muito mais sério do que ambos diziam ser e, pelo que testemunhava agora, a bailarina japonesa sentia o mesmo.

“Ela precisou ir com Yakov e Georgi à estação ferroviária.” Lembrar daquilo apenas transformou a dor da partida abrupta para uma raiva que revirou seu estômago e foi expelido em rancor. “Espero que aquele monstro morra engasgado com o próprio vômito e todos os puxa-sacos televisivos filmem para exibição mundial! Eu irei rir, Lilia, vou sapatear em seu túmulo enfeitado quando aquele desgraçado cair por terra, encomendarei as mais belas flores e eu mesma as depositarei na lápide!” Ergueu a voz mais tons que o necessário, sem ser impedida pela outra bailarina. “Maldito, Nikiforov! Maldito…”

Sentir tanto ódio era cansativo e logo ela estava chorando novamente, debruçada sobre os próprios joelhos, soluçando a dor guardada até o momento. Quase quinze anos de sua vida dedicados à dança daquele país, arruinados por uma única ligação de Oleg. Não interessava seu trabalho, as horas exaustivas de ensaio e os anos sacrificados longe do Japão; Minako havia sido convidada a pedir demissão o mais rápido possível, ou o governo russo arregaçaria suas mangas para providenciar a retirada da bailarina.

Não somente Minako recebera o disfarçado ultimato, como também Lilia teve sua importância histórica, com preparação pelo Instituto Vaganova, carreira pelo Marinski e uma brilhante conclusão como prima ballerina no Bolshoi, empurrados pelo ralo hipócrita de quem tinha bons contatos. Informada de que teria os futuros e incertos dez anos de sua vida longe de solo russo, deixaram para ela a responsabilidade de buscar um novo país que a aceitasse, escarrando o passivo exílio como quem tratava de negócios. Se escarrariam em seu nome daquela forma, Lilia retribuiria à altura, cuspindo não no prato com o qual se alimentara desde o divórcio, mas no rosto dos advogados que escondiam muito bem Oleg atrás de seus papéis e códigos judiciais.

“Eu nem pude me despedir direito de Margosha…” lamentou Minako, agarrada à bolsa. “E Georgi, pobrezinho, não entendeu nada… Ele me abraçou forte e disse “até depois!” e eu…” interrompendo a si mesma antes de recomeçar o choro, Minako aguardou. “O que será dessa criança, Lilia? O que será de Margosha?”

Yakov saberia o que fazer e Lilia queria dizer isso para Minako, mas a exaustão emocional não a deixou proferir palavra alguma.

“E Yulia?!” De repente, Okukawa pareceu se lembrar. “Ela também será prejudicada?!” Se isso acontecesse com a nem começada carreira de Plisetskaya, ela teria uma culpa a mais para colocar em sua lista mental de dívidas.

“Nikiforov não se lembrava muito bem dela para poderem a culpar de alguma coisa, mas por ter o nome envolvido com o de vocês, é bem provável que a mantenham-na no corpo de baile por algum tempo…” Um pouco mais aliviada, Minako respirou fundo. “Ela vai sobreviver, pode ser até bom para aquele orgulho todo.”

Triste, Minako sorriu com a recordação daquela garota e seu gênio difícil, de como a conheceu e ajudou a ensaiá-la para a seletiva do Bolshoi, dos festejos passados na casa de Nikolai e de como ela, ao lado de Margosha, fingia um enorme drama em estar vendo Georgi e Yulia crescerem, as deixando para trás, envelhecendo e morrendo. Agora, ela não mais teria a chance de vê-los realmente fazendo isso.

“E pensar que estamos indo embora após a estreia” riu Lilia, achando graça daquela pequena tragédia. “Já pensou na loucura que deve estar sendo treinarem sua substituta? Ou adaptando meu roteiro?”

Minako concordou com cada palavra, rindo junto à Baranovskaya com aquela constatação. Bom, eles que haviam pedido por isso, que engolissem agora toda a responsabilidade e arcassem com o reembolso dos revoltados que haviam viajado desde a Sibéria apenas para ver Okukawa na protagonização daquela peça.

“Penso se alguém deve ter filmado algo de sua performance… Aquela apresentação é a maior relíquia do Bolshoi, agora.” Voltando-se para Minako, Lilia ergueu uma das mãos e alisou o rosto úmido, afastando o cabelo escuro que ainda escondia o hematoma da agressão sofrida. “E pensar que aquele monstro quase deformou o rosto da minha prima ballerina.”

Minako abaixou o rosto em humildade, não enxergando toda uma vida de trabalho naquele título.

“Sequer cheguei a me tornar uma.”

“A palavra de quem já foi não importa para você?” Tocada pelo carinho, a japonesa voltou a sorrir. “Ainda temos um pouco de tempo, me acompanha para um último chá?”

“Será um prazer, senpai.”

Mesmo sendo aquela a última chance de desvendar os mistérios do idioma japonês, Lilia não perguntou o que senpai significava.

.:.

Triste, Georgi foi informado que não teria uma nova chance de ver Minako dançar. Voltando para o Japão antes de ter a oportunidade de apresentar sua Aurora uma segunda vez, ela o abraçou com mais força do que as outras vezes e prometeu escrever sempre, o fazendo prometer ser forte. Georgi não sabia o tamanho daquela promessa, mas prometeu, mesmo assim.

Margosha, que só sabia chorar, abraçou a amiga e murmurou um punhado de palavras engasgadas, capazes de fazer Okukawa, até então tão forte, desmanchar-se em lágrimas. Eles não podiam acompanhar a bailarina ao aeroporto e imaginar Minako indo embora sozinha deixou Georgi muito triste. Aquele embora demoraria muito? Quando poderiam vê-la de volta? Daria tempo dela voltar antes do fim da temporada de A Bela Adormecida? E por que ela não tinha levado todas as malas?

Popovich estava inconsolável. Havia sido tudo tão rápido que ele mal teve tempo de fazer um desenho.

Na mesma estação de trem onde haviam se despedido, ele soube que Lilia também havia partido mais cedo, um vôo que deixaria a Rússia em direção a Alemanha, onde ela trabalharia em Munique. Uma nova Bela Adormecida, talvez? Mas sem Minako? Para ela, Georgi também não havia feito nenhum desenho.

Yakov preparava-se para ir embora, em um dia esquisito onde todos estavam partindo. Uma única maleta era levada por ele, o que tornava o dono das malas sobressalentes um completo mistério. Margosha continuava chorando, pedindo exaustivamente ao pai alguma coisa que Georgi não conseguia ouvir para ter uma pista de como consolá-la. Mais tarde, de volta ao apartamento, ele se ocuparia de enchê-la de abraços e beijinhos. Provavelmente teria alguns caramelos guardados que a deixariam melhor e então os dois poderiam assistir à sua fita com os programas de patinação e conversar sobre seu futuro como patinador. Juntos, eles sempre encontravam uma forma de sorrir.

Os flashes seguidos e a movimentação maior a dos transeuntes, cresceu em câmeras e microfones, cercando aquele que era maior que eles, grande como seu sorriso; Oleg Nikiforov cumprimentou Yakov e Popovevna, respondido respectivamente com uma carranca e o dobro de lágrimas. Dando as costas para o detentor do maior número de medalhas de ouro que aquele país já tinha visto, Feltsman pegou as malas extras e caminhou até o trem parado com embarque para São Petersburgo. Estava quase na hora de partir e Margosha o seguiu para mais um abraço apertado e um pedido desesperado.

“Cuide bem de Georgi.”

O abraço de sua mãe estava tão apertado que pela primeira vez ele quis que Margosha o soltasse. Contudo, quando assim ela o fez, Georgi percebeu algo de errado, algo que só faziam suas lágrimas multiplicarem. Com uma das mãozinhas, tentou em vão limpar o rosto molhado, recebendo em agradecimento por aquele gesto uma porção de beijinhos em seus dedos gelados.

“Prometa para mim que vai obedecer Yakov” pediu ela, fazendo enorme esforço para não tremer.

“Eu prometo.” Georgi só não estava entendendo muito bem o motivo da promessa.

“Eu juro que irei te visitar sempre que puder e que vou te ligar sempre e você também poderá me ligar quando tiver vontade…” cada palavra uma nova lágrima. Nervoso, Georgi estava começando a chorar também; ele só queria que a dor de sua mãe parasse. “Por favor, Gosha, não esqueça nunca, nunca, que eu amo você com toda a minha vida.”

“Não vou.” Era uma promessa. Mas por que ele precisava prometer isso também?

“Tudo pronto?”

Olhando para cima, Georgi viu o sorriso de Oleg e não soube dizer se o brilho vinha dele ou da equipe de filmagem. Era a primeira vez que não ficava feliz por ver seu ídolo.

“Senhor Nikiforov, alguma palavra para a imprensa?” gritou um repórter.

“Uma foto para celebrar?” outro sugeriu. Nos braços de Margosha, Georgi recebia um último abraço.

“Eu te ligo quando chegarmos.” Yakov, que das sombras parecia ter surgido, estendeu a mão à filha, a mesma que com força segurava a mão do filho.

Popovich não soube definir o que sentiu quando os dedos roliços e macios da mãe entregaram os seus para a desproporcionalmente grande e calejada mão de Yakov, mas algo dentro de si desmanchou-se em cacos. Quando o último pedaço espatifou, Georgi finalmente parou de fingir não saber o que estava acontecendo e encarou a triste realidade daquela despedida; aquelas malas eram dele.

“Yakov Feltsman, como se sente, depois de ter treinado Oleg Nikiforov por tantos anos, ser responsável agora por seu protegido?”

Ignorando o repórter, Yakov pegou Georgi no colo e entrou no vagão do trem, encontrando na cabine simples um parcial silêncio, infinitamente melhor que o lado de fora.

Confuso, tirado abruptamente da vida que conhecia, Georgi apoiou as mãos na janela e colou o nariz no vidro, observando desolado aquela estranha vitrine que exibia o presente que mais desejava no momento, a figura chorosa de sua mãe, que não podia mais pedir, afinal, o Natal já havia passado.

Do outro lado da janela, sozinha e ignorada na plataforma cheia, Margosha forçou um sorriso e disse por cima das lágrimas aquele sentimento que não teve nenhum som:

“Eu amo você.”

A resposta de Georgi foram suas lágrimas, que pesaram ainda mais quando o trem começou a partir e Feltsman tentou em vão consolá-lo. Apertando a pedra, ele queria cumprir sua promessa de ser forte, mas pensou que Minako o perdoaria se ele compensasse isso outra hora e fosse forte mais tarde.

Ajoelhada na plataforma, vendo o trem sumir com a distância, Margosha agarrou a própria medalha e rezou em busca de um milagre, a única coisa que poderia confortar seu coração naquele momento. Antes dos repórteres dispersarem, seus olhos ainda cruzaram com os de Oleg, mas ela não soube dizer o que eles diziam. Depois de anos, ela se conformava em nunca ter descoberto.

Naquele mesmo dia, os noticiários locais não pouparam manchetes, notas e elogios para Oleg Nikiforov e seu generoso apadrinhamento para o jovem talento da patinação artística que atendia pelo nome de Georgi Popovich.


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Notas finais do capítulo

Olha só quem deu as caras :v Ganha uma caixinha de lenços quem sacou a função de Oleg Nikiforov nessa história :v (nossa, que mistério, não é mesmo??)

Espero conseguir postar os demais capítulos até o dia 31 (BÓRA TORCER POR MIM, VLW FLW), concluir esse presente até o fim desse ano! *-* Então arrisco te convidar para acompanhar a continuação amanhã! Quais mais curiosidades te aguardam nas notinhas finais? haha xD

Abaixo, as curiosidades de hoje :3

~Curiosidades~

— Dado ao longo período soviético, muitas pessoas crescidas na época se tornaram fechadas e extremamente desconfiadas e resistentes à mudanças, o que explica o comportamento conservador e um pouco rude de Yakov.

— O caramelo/melado de colher era um dos doces mais populares entre as crianças do período soviético, pela facilidade em fazê-lo dentro de casa. Considerando que Margosha passou boa parte de sua vida criada nesse regime, achei que essa pudesse ser uma boa escolha para seu doce preferido :3 (se for fazer em casa, cuidado para não queimar a calda; EU FIZ ISSO E ELA PEGA FOGO DE VERDADE!!);

— Por não festejarem o Natal como no ocidente, é para o Ano Novo que fica a festa comemorativa, celebrada com a família e amigos. Saladas são as protagonistas, em especial a Olivier, conhecida também como Salada Russa, ou aqui no Brasil, a boa e velha MAIONESE. Você aí que desdenha da mistura do almoço, está comendo na verdade iguaria importada :v

— Mariinski/Kirov: Durante parte do período soviético, o Mariinski atendia pelo nome de Kirov e só voltou ao primeiro citado com o fim da União Soviética (1991). Lembrando que até então a história se passa no fim de 1992, por isso Margosha ainda não está adaptada com o novo nome xD

— Poncãs, ou tangerina, ou mimosa, ou mexerica, é uma fruta popular também na mãe Rússia e mais popular nos festejos de fim de ano que os nossos pulinhos em sete ondas :D

— Kolya é apelido de Nikolai, caso tenha soado estranho para alguém ><. Oh, e Yasha é apelido de Yakov, só para desencargo de consciência xD

— O fervo para abrirem a champanhe nas baladas de ano novo faz parte do costume das celebrações, como aqui para nós :3

— A Fada da Alegria, papel dado para Yulia em A Bela Adormecida, nem sempre tem esse nome. Assim como em O Quebra-Nozes, depende muito da montagem feita da peça. Aqui, preferi escolher por esse nome, mas a composição pode ser apreciada nesse link (https://goo.gl/Vsgt6a) **UPDATE** ENCONTREI a minha variação preferida dessa fada, TÔ MUITO GRATA, OBRIGADA INSTAGRAM ♥ Agora vocês podem ver como eu imagino a menina Yulia dançando aaaaaaa ;w;

— Sobre Georgi não ter um nome: Popovich, na verdade, é um nome comum na região de Montenegro (não tão próxima assim da Rússia, mas com um porcentagem bem pequena de falantes do idioma), mas aqui eu usei uma brecha na questão de sobrenomes na Rússia para incluir o headcanon dessa fic. Em rápida explicação, na Rússia o nome de uma pessoa é formado pelo primeiro nome, seu patronímico e enfim o sobrenome. O patronímico seria o nome do seu pai + um sufixo condizente com o gênero da pessoa, e o sobrenome todos sabem como funciona, no mesmo esquema de adaptar o final de acordo com o gênero. O patronímico significa basicamente "filho de fulano" e é assim como as pessoas são apresentadas na Rússia: pelo patronímico e pelo sobrenome. O primeiro nome é apenas para pessoas próximas e apelidos para pessoas mais próximas ainda (na fic eu uso "senhor/senhora/senhorita" por pura formalidade, pois não encontro forma de melhor adaptar esse uso :/). Por que toda essa explicação? Bem, os sufixos usados nos patronímicos são diferentes aos usados nos sobrenomes. É bem comum encontrarmos sobrenomes como Ivanov e Ivanovich, mas esse último, no caso, é um patronímico que significa Filho de Ivan. Opa, mas identificou ali o ICH? Também presente em PopovICH? Georgi filho de Popov. Mas e seu sobrenome? Até agora não foi apresentado, ou será que o personagem de fato não tem uma família? De quem ele é filho? Quem é Popov? Bom, aqui entra outra curiosidade: Popov significa padre (ele pode sim ser filho de um, na igreja ortodoxa o casamento de um padre é autorizado), mas isso também significa que ele pode ter sido criado por um padre. Como aqui na história, Margosha é quem cria o filho e ela atende por PopovEVNA (Filha de Popov/Filha de um Padre), o que tanto nos aguarda nessa trama? owo //aliás, recomendo as pesquisas por patronímicos, é um pouco confuso no começo, mas interessantíssimo!

— Se eu citei Natalia Kustinskaya só porque esse é meu nome? kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk Não, pior que não LOL É que eu achei muito engraçada essa fala da personagem dela, estou doida para assistir o filme! xD E também, Natalia é tipo um Valentina lá na Rússia, todo mundo tem q

— O Rose Adagio de Tchaikovsky (https://goo.gl/nDpKbZ) é uma das composições mais lindas de A Bela Adormecida, embora a valsa seja a mais famosa (aquela lá do filme da Disney). Minha interpretação preferida é a de Marianela Nunez, recomendo fortemente! ♥



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