Luisa Parkinson: A Companheira Fantástica escrita por Gizelle PG


Capítulo 82
O complexo da jaqueta de couro


Notas iniciais do capítulo

Oi gente!!!

Como prometido, vim postar na quinta! :D

"Inexplicavelmente, o Doutor havia retornado à sua 11ª Regeneração, e estava bastante animado com isso. Porém, as coisas não se estabilizaram simplesmente do jeito que imaginou, e novas complicações ainda poderão estar por vir"



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—Onde ele pode estar? –Luisa percorreu todos os limites da Magazine e não encontrou registro nem da sombra do melhor amigo. –Ah, Doutor... Cadê você. –bufou, cansada, andando distraidamente pelo corredor. Foi quando esbarrou sem querer em um lagarto azul, de rabo comprido, escamas e um sorriso tão largo e brilhoso que era de dar inveja á qualquer dentista profissional.

—Hagran!? –ele grunhiu.

—Ah, meu Deus... Me desculpe! –ela deu um pulinho para trás, ansiosa. –Eu não pretendia... Ah... Hã? –ela observou-o melhor e reparou que ele estava usando um distintivo laranja, com a figura estampada de um lagarto azul sob um outro alienígena, mascarado. Este segurava em uma das patas uma sacola do dinheiro “duns”, e na outra, um diamante negro. O sorriso do lagarto em cima da criatura era largo e orgulhoso, como se tivesse capturado um malfeitor. A partir disso, Luisa supôs que havia encontrado um segurança.

—Ham? –o lagarto perguntou em seu dialeto. Graças ao sempre presente tradutor TARDIS (embora a nave mesma não estivesse), Luisa entendeu o significado.

—Não. Não estou perdida. Mas não consigo encontrar meu amigo –explicou. –Será que você poderia me ajudar a localizá-lo?

—Aham –assentiu o lagarto sorridente. –Trá-tró! –ele estalou a língua, insinuando que ela devesse acompanhá-lo.

—Ah... Finalmente me deram um help—Luisa murmurou consigo mesma.

 

*      *      *

Enquanto isso, em algum outro canto do shopping, o Doutor começava a retomar a consciência. Aos poucos, sua visão foi voltando e ele pôde enxergar novamente.

Porém, levou um baita susto ao detectar vultos embaçados passarem rente ás suas pernas.

Contudo, logo tomou conhecimento de que os “vultos” eram na verdade cabeças alienígenas, e que ele estava, de alguma forma, voando por cima delas.

Confuso e assustado, não demorou a olhar para cima e encontrar Kyra carregando-o, enquanto voava em uma velocidade alarmante.

—Ah, é você –ele sorriu para ela. –Olá de novo!

—Olá, belo dorminhoco. –ela brincou, tirando os olhos do horizonte, momentaneamente, para lhe dar atenção. –Dormiu com as libélulas angelicais?

—Não na verdade –ele massageou a cabeça. –Mas acho que em breve me juntarei a elas...

—Do jeito que você desmaiou, pensei que já tivesse passado dessa pra melhor... –ela disse comicamente.

—Talvez eu faça isso até o fim do dia... –o Doutor considerou. –Puxa vida, diga à Donna que eu irei chegar a tempo para o Happy Hour—disse, abobalhado.

—Como? –Kyra estranhou o recado. –Dizer à quem? Pensei que estivéssemos procurando uma “Luisa”...

—Kyra. –o Doutor enxergou algo grande e embaçado, logo a diante, que se aproximava em alta velocidade e parecia aumentar de tamanho, gradativamente. –Kyra... –A Abeliana, porém, estava ocupada tagarelando e não prestou atenção nos avisos dele. –Kyra... Kyra! Aaaaaaaah! Cuidado! —ele fez questão de gritar, quando teve que erguer as pernas, exclusivamente para desviar da cabeça de um gigante Crowz. Kyra voltou os olhos para frente, de imediato, e deu uma rápida guinada pelo ar, desviando da criatura ainda em tempo.

—Ai! Pára! Não se debata tanto! Eu só tenho quatro patas! –a Abeliana bronqueou-o pela turbulência.

O Doutor levou a mão à testa, ao mesmo tempo que soltou o ar preso nos pulmões.

—Puxa, essa foi por pouco...

—Não teria sido, se você tivesse ficado quieto, e confiado mais nos meus instintos de vôo! –ela retrucou, aborrecida. –Eu já ia aumentar o nível de altitude, mas você tinha que erguer essas pernas compridas!

—Tudo bem! Está certo, eu admito, foi tudo culpa minha. Olha, vamos deixar as intrigas para depois, está bem? –o Doutor articulou. –Lá na Terra, eles têm uma regra que diz claramente que nós não devemos discutir com o “piloto” enquanto ainda estamos voando sob seus cuidados.

A Abeliana ergueu uma sobrancelha peluda.

—E por que eles dizem isso?

—Para o caso do piloto se zangar e fazer alguma loucura... Tipo abandonar o avião. Ou se livrar dos passageiros.—e apontou para si mesmo.

Kyra deu um risinho de satisfação.

—Inteligente, esse povo da Terra.

Voaram mais alguns metros em silêncio, até que o Doutor se manifestou novamente:

—Nós estamos voando dentro de um Shopping... Escuta, me corrija se eu estiver errado, mas não é proibido voar dentro de ambientes fechados?

—Se fosse proibido, então por que eles contratariam seres com asas para trabalhar aqui? –Kyra argumentou. –Só... Não me dê motivos para desequilibrar, que vai ficar tudo bem.

—Certo. Ui! –ele sentiu a cabeça latejar, de novo.

—Que foi? –ela voltou-se para ele, preocupada. -Está doendo de novo?

—Está latejando –ele explicou. –Me diz uma coisa, por quanto tempo eu dormi?

—Uns 10 suns, no máximo.

—Dez minutos? –ele traduziu, pensativo. Depois observou as mãos e, como se respondessem sua pergunta, elas oscilaram de leve. –É. Eu ainda não estou pronto... Devia descansar por muito mais tempo para poder me recuperar da regeneração. –então voltou-se para Kyra. –Como eu estou? Pareço doente?

—O que quer que eu diga? Você está diferente de novo. –ela disse.

O Doutor franziu a testa.

—O quê? –ele se empertigou. –Como assim “estou diferente”? Diferente como?

—Ah... Por Clun! Você não se lembra, não é? –ela arregalou os grandes olhos de prismas. A cara espantada do Doutor respondeu por ele. –Você se regenerou de novo antes de desmaiar. Está com uma aparência nova, de novo.

—Como? Eu estou? –ele voltou a observar a mão oscilando, parecia ficar mais brilhante a cada minuto.

Captando a aflição e o desespero evidente do rapaz, Kyra usou seus instintos para localizar uma fonte líquida, então voou na direção dela, com zelo.

—Veja você mesmo –e suspendeu o Doutor acima do líquido roxo, que serviu perfeitamente como espelho.

Ele ficou boquiaberto.

—Mais é o décimo rosto... O viciado em ternos e All Stars!! –ele parecia incrédulo. A cachoeira de cabelos espetados erguia-se por todos os lados, como se tivessem brigado entre si. –Olha... As Super-Costeletas voltaram!—ele sorriu, inesperadamente, acariciando-as. –Senti tanta falta delas... O modelo Três em Um era menos acentuado...

—Já acabou de se admirar ou quer um pouco de privacidade? –cutucou Kyra.

—Caramba! Eu estou ótimo! Me sinto tão jovem... Tinha me esquecido como era ter 900 anos! –animou-se, consigo mesmo, basicamente esquecendo-se de que Kyra estava presente.

A Abeliana não deixaria barato; Não somente porque fora ignorada, mas também porque “se vingar só por diversão” era uma grande característica impulsiva de sua espécie. Sem pressa, olhou para a fonte abaixo de si, jorrando líquido roxo e teve uma idéia astuciosa. Sorriu torto e libertou o Senhor do Tempo do abraço que o mantinha flutuando no ar. Isso o fez despencar tão rápido das alturas, que o Doutor nem teve tempo de gritar. Quando deu por si, já estava sentado na fonte, com líquido roxo pingando em sua cabeça, e ensopando suas roupas.

A Abeliana se pôs a rir. O Doutor cuspiu líquido roxo.

—Kyra! –ele fez bico de indignação, com as mãos nos quadris. –Você me jogou de propósito!

—Ué? Nunca te disseram que os Abelianos odeiam ser ignorados?—ela riu, fazendo cara de pouco caso.

No começo o Doutor ficou sério, mas depois acabou rindo também da situação. E deu seu troco, espirrando líquido roxo nela.

 

*     *     *

Ao mesmo tempo, em outra parte do Shopping, Luisa acompanhava o Lagarto azul até uma saleta de comunicações. Ele prometera que a deixaria mandar uma mensagem para que todo o Shopping pudesse ouvir, e quem sabe, localizar seu amigo.

—Então... E só falar aqui que o Doutor vai me ouvir de qualquer ponto do shopping? –Luisa apontou, incerta, para um aparelho estranho, que se assemelhava a boca escancarada de uma cobra, com a língua esticada para fora. O aparelho parecia todo tipo de coisa, menos um microfone.

—Ahan –assentiu o lagarto azul sorridente. Luisa fitava-o e sua mente só conseguia fazer referência ao gato de sorriso de meia lua, de “Alice no Pais das Maravilhas”.

—Tudo bem –ela respirou fundo e se inclinou para perto da coisa fina e comprida, que era o microfone. –Então vamos lá... Pode ligar isso aí.

 

   (...)

—Obrigado. –o Doutor agradeceu, quando Kyra entregou-lhe um tecido preto, embolado. –Mas, para quê isso?

—É para você vestir. –instruiu. –Você tomou um banho de Aglinio Púrpura gelado. –o nome do líquido esquisito. –Se não se cuidar, pode pegar um resfriado.

—Interessante –ele disse, enquanto vestia-se. –É extremamente curioso o fato de a própria pessoa quem me jogou no chafariz, estar agora, se preocupando com a minha saúde.

Kyra riu do comentário.

—Ah, qual é? Eu só queria pegar no seu pé! Meu plano não incluía deixá-lo doente...

Sei —ele enfatizou, como quem duvida. Então vestiu o que ela mandou, e fez uma careta ao perceber se tratar de uma jaqueta de couro.

—Por que essa cara?

—É que não gosto muito de jaquetas de couro. Peguei uma ojeriza geral dessa peça de roupa depois de ser perseguido pela Igreja Anglicana por causa de um exemplar. Eles me viram usando e decidiram que, fosse o que fosse “não era coisa de Deus”. Então, já viu no que deu... Desde então, detesto jaquetas de couro.

—É um Burdon Cronun—corrigiu Kyra, com ar de importância. –Mas acho que dá na mesma.

—Pois é. Hoje mesmo eu estava trocando uma idéia com aquela minha amiga, sobre este estilo... –e torceu o nariz. –Não me leve a mal... Eu já fui a favor de couro no passado, mas hoje em dia prefiro mil vezes um sobretudo.

—Então, está mau-humorado assim por causa da jaqueta de couro?

—Não estou mau-humorado. Só não consigo gostar tanto assim dela.

—E não pode fazer o favor de usá-la sem reclamar?

—Acho que até para os meus padrões, isso é pedir um pouco demais. –ele se observou mais uma vez. –Não sei. É estranho... Parece não se encaixar. Não orna com nada que eu estou usando. Fica completamente desproporcional.

—Mas não pode ser tão difícil assim voltar a aderir à tendência do couro... Ainda mais porque você já gostou de jaquetas de couro! Quando tinha outro rosto, quero dizer. –completou Kyra. –Assim como agora, mas com outra personalidade e gostos próprios, não é? 

—Não. Agora é diferente. –ele assinalou. –Se estou voltando a ter os rostos que já tive, então isso não pode ser uma regeneração... –refletia o Doutor, enxugando o rosto em um lenço cedido por Kyra. –Tem que ser algo novo... Pois não estou evoluindo. Estou retrocedendo...

—Seria algo como uma “desregeneração”, então? –sugeriu Kyra.

—É! Uma desregeneração!—ele gostou do nome. -Pena que “a coisa em si” é bem menos empolgante que o nome de batismo...

Então, de repente, ambos ouviram uma rápida microfonia vinda dos auto-falantes, e logo a seguir, a voz tremula de uma garota meiga, que parecia deveras preocupada, ganhou vida na repercussão imediata por toda a extensão do shopping.

—Hã... Já estamos sintonizados? –soou a voz de Luisa, com um pouco de distorção.

Perto da grande fonte jorrando líquido roxo, o Doutor encarou Kyra com tremendo espanto, e franziu a testa.

Luisa?

Enquanto isso, na pequena sala de comunicações, o lagarto terminou de apertar alguns interruptores e acionou uma ou duas alavancas, então fez sinal com a cabeça para que ela começasse a falar; O mega-fone do Estrela Guia estava ligado e funcionando.

—Ah... Certo. —a garota assustou-se primeiramente, pois não esperava uma equalização tão forte. Para incentivá-la a prosseguir, o lagarto fez movimentos giratórios com as palmas das mãos. Aparentemente, a ação era equivalente a um polegar erguido com votos de boa sorte. –O.k. Doutor, se estiver me ouvindo, essa mensagem é pra você. –e fez uma ligeira pausa. –Esteja você, onde estiver agora, eu peço que volte para a Magazine SK assim que puder. Eu estarei esperando por você bem ao lado da porta, tá bom? E... Ah, só pra você saber... A roupa serviu que foi uma beleza! Queria que estivesse lá para ver, mas você sumiu... –a voz dela foi morrendo aos poucos. Por um momento, teve medo de suas palavras estarem ecoando em vão, pelos corredores do Estrela Guia. Sem pestanejar, ela se afastou do microfone, com as mãos entrelaçadas. O aparelho deu microfonia.

—É ela! É a Luisa! Rá! Garota esperta! Eu sabia que ela daria um jeito de me encontrar! –gritava o Doutor, animado, comemorando na direção de Kyra.

—Espera aí! Deixa eu entender direito... Então é essa a garota que estamos procurando?

Precisamente!—ele explodiu de empolgação, mal cabendo em si de tanta alegria. –Ah, Kyra, Kyra, você precisa conhecê-la... Ela é fantástica! Incrível! Imagine só:“Seu melhor amigo se perdeu de você em um shopping exorbitantemente fora de escala de tão grande que é...” Como resolver a situação? Fácil: É só sair à procura de um baita mega-fone cheio de microfonia, que tá tudo resolvido! —terminou com um sorriso de orelha a orelha, enfiando as mãos nos bolsos da calça.

—Tá, retomando: essa é a garota.  –concluiu Kyra. –Ela disse que está na Magazine SK, certo? Bem, você está com sorte... Conheço um ótimo atalho até lá.

Não brinca!?—ele exclamou, excitado, sorrindo amplamente. –Brilhante! Sendo assim, Allons-y KYRA!

O Doutor permitiu que a Abeliana o suspendesse de volta ás alturas. Percorreram alguns metros pelos ares, em rápida velocidade, mas então o Doutor queixou-se de umas dores abdominais e Kyra foi obrigada a desacelerar.

—O que foi? Estamos indo rápido demais?

—Não, não. Não é isso. –o rapaz explicou-se, apalpando a barriga. –É uma coisa esquisita... Parece algo como um espasmo muscular, misturado com um soco na boca do estômago. Caramba, quase perdi o fôlego...

—Acha que consegue agüentar até chegarmos na Magazine SK?

—Não sei. –ele disse, inseguro. -Eu espero que sim –então percebeu o brilho dourado aumentar por todo seu corpo em uma velocidade realmente alarmante. –O-ou! Faça o que fizer, isso nunca é um bom sinal...

—Ah, não! –Kyra gemeu, colocando-o de volta no chão. –Vai começar tudo de novo...

—É. E eu que pensei que ainda teria tempo de correr um pouquinho por aí para estabilizar o físico... –ele bufou. –Que Inferno! Será que um homem não pode querer curtir as próprias costeletas mais uma vez na vida?!—resmungou.

O brilho disparou em seu rosto e alguns traços das feições começaram a variar.

—Está vindo, Doutor! –Kyra chamou-lhe a atenção. –Você já começou a mudar! Agora, concentre-se! Não vá fazer nenhuma besteira...

Besteira?—ele arfou, contendo um gemido. –Que tipo de besteira eu faria em uma hora dessas? Logo quando estou tão perto de... Opa!—contorceu-se, dando um pulo para trás. Durante o ato, suas pernas bambearam de tal maneira que quase pareceu que ele estava sapateando. –Droga! Eu não quero ir, de novo! —gemeu, depois fez uma careta, apertando o estômago. –Que clichê... Porcaria de padrão de despedida dramático!

—É. –Kyra avaliou, distraidamente. - “Clichê” parece mesmo ser a palavra do dia... Apesar de eu não fazer idéia do que possa significar.

Aaaarrrrrr!—o Doutor gemeu, inclinando o corpo para frente e acendendo seu rosto num fleche de luz instantâneo. Tudo para depois permanecer exatamente... Igual.

Mas!?—as antenas de Kyra vibraram. –Doutor, você não está diferente! O processo congelou neste rosto! Será que parou definitivamente? –disse, esperançosa.

Não!—ele rangeu os dentes, ainda angustiado. –Longa história... Eu manipulei uma regeneração minha certa vez. Me convenci de que estava mudando cedo de mais, e segurei as pontas para manter as aparências por mais algum tempo; É. Não me olhe assim... Eu tinha muita estima pelo meu 10º rosto!

Puxa, e você nem é convencido —Kyra alfinetou. Depois se arrependeu, mordendo o lábio ao ver o Senhor do Tempo rolar no chão de dor.

Arrrrrrr! Agora é pra valer!—debateu-se, cerrando os dentes.

E o Doutor gritou;

E o brilho aumentou, banhando todo o corredor;

E Kyra cobriu os olhos;

E toda aquela confusão amplificou-se para o espaço ao redor, como uma explosão contida, preenchendo assim, o silêncio do mega-fone.

 

   (...)

Sem nem ao menos desconfiar dos guaios que o Doutor vinha passando, Luisa continuava em silêncio na sala de comunicações. Sagaz, o lagarto segurança entendera todo aquele silêncio como um aviso de que “a mensagem havia chegado ao fim”. Captando a idéia, dirigiu as mãos escamosas na direção dos botões, para desligar o aparelho, mas no último segundo, Luisa se inclinou para frente e agarrou o microfone.

—Hã... Desculpe. Eu... Me deixei levar. –seus olhos perderam-se por um momento. –Só quero dizer mais uma coisinha... Não vai demorar, tá? –prometeu. Então concentrou-se em finalizar a mensagem. -E... Hã... Doutor. Volta logo, tá? Eu... Estou com saudades. –e recuou alguns passos, com as mãos cruzadas nas costas. O lagarto, perto de si, fez um tímido muxoxo, sentido por ela. –Eu já acabei agora. -desta vez, ela permitiu que o segurança prosseguisse e desligasse o mega-fone.

—Espero que ele me encontre –Luisa disse consigo mesma. –Não quero ficar aqui sozinha... –suspirou, largando-se em um banco. -Ah, Doutor... O que terá acontecido a você?

E havia acontecido o pior. Naquele exato momento o Senhor do Tempo encontrava-se de quatro no chão, respirando com extrema dificuldade, quase sem forças. Momentaneamente, o lado bom é que o sufoco havia acabado; o lado ruim, é que ele sabia que ainda faltavam um montão de outros rostos pela frente. Mas por hora, a situação atual era a seguinte: Não havia mais sinal das costeletas; O cabelo espetado havia sumido. Na verdade, quase por completo. Ficou apenas com uma fina camada cobrindo a cabeça, com duas entradas nas laterais, acima da testa; os olhos se tornaram tão azuis quanto o firmamento; o nariz e as orelhas tornaram a crescer e ele ficou um pouco mais baixo. O rosto daquele novo homem representava, ninguém menos que sua 9ª encarnação.

—Doutor! Ah, Doutor... -Kyra correu para acudi-lo. Depois ficou observando-o, com as mãos prensadas contra o próprio peito. -Você está bem?

Minha nossa... Mais que caos!—praguejou, pondo-se em pé, com dificuldade. Fitou-a por um momento, mas pareceu confundir-se. Então, deslocado, o Senhor do Tempo procurou algo para lavar o rosto, e acabou jogando líquido roxo na cara. Kyra fez uma careta ao vê-lo se lavar com aquilo.

Argh! Tem certeza que você está mesmo bem?

—Não. –ele disse simplesmente, fazendo cara de nojo. Sem pestanejar, inclinou-se novamente para o chafariz e cuspiu parte do líquido roxo. –Caramba. Que horror... Me lembre de nunca mais fazer isso.

—Isso o quê, em específico? –Kyra indagou. –Tomar líquido roxo? Se regenerar?

—Não –ele retorquiu. –Pular num chafariz, sem bóia inflável! Ai!—ele estalou a coluna. –Doeu...

Kyra ficou boquiaberta.

—Como pode estar sentindo o baque da queda só agora?

—É como eu disse: “primeiras quinze horas de recuperação”. Eu estou ignorando a minha cota de descanso desde cedo, e como conseqüência, as sensações agora ocorrem fora de sincronia, atrasadas de acordo com a ação, parecido com o que acontece em um filme com as vozes dos personagens em delay.

—Então... Quer dizer que a reação está atrasada, perante a ação? Como um eco dentro de uma caverna?

—Exato. –o Doutor assentiu, apoiando-se nos joelhos. –Sério... Isso já está ficando ridículo até pra mim. –então pô-se a espanar as vestimentas, e acabou por sorrir, a final de contas: -Olha só... Eu adorei essa jaqueta de couro! Você tem muito bom gosto... –voltou-se para Kyra, agradecendo-a pela escolha, mas não demorou a perceber sua surpresa. Com certa casualidade, ergueu a cabeça para ela e arqueou as sobrancelhas: –Quê foi?

Kyra suspirou e arrastou-o pelo braço.

—Anda, temos que encontrar sua amiga, lembra? –e, sem dar espaço para ele falar, suspendeu-o novamente no ar, para que prosseguissem com a busca.

 

*    *    *

Não tão longe dali, Luisa balançava o pé, inquietamente. Estava sentada em uma cadeira e não desgrudava os olhos da entrada da Magazine.

Mas foi assim, de um momento para o outro, que percebeu um zumbido aumentar de sonoridade, a medida que se tornava mais próximo. Distraidamente, a garota olhou para cima e hesitou, ao se deparar com uma grande sombra recair sobre ela.

Assustada, Luisa quase caiu da cadeira ao perceber a aproximação de um inseto, grande como ela, que calculava o ângulo da distancia entre ela e o chão, para conseguir fazer uma boa aterrissagem.

—O quê? –Luisa exclamou.

—Abra espaço! –Kyra passou sua frente, com urgência, estendendo o corpo do Senhor do Tempo no chão.

Luisa inclinou-se para ver o que a Abeliana estava fazendo, e espantou-se ao vê-la acomodando um estranho homem, desacordado.

—Ah! Que é isso? Quem é você? O que está fazendo com ele? –Luisa disparou um montão de perguntas.

Kyra apenas ergueu a cabeça.

—Você é Luisa, não é?

—Como sabe meu nome? Quem foi que...?

—O Doutor me disse. –Kyra adiantou-se, fazendo Luisa se calar.

—O Doutor!? –ela repetiu, relaxando um pouco os ombros. Se mais alguém sabia do paradeiro dele, isso com certeza devia ser um bom sinal. –Você o viu? Ele falou com você? Onde ele está?

—Hã... Bem, chegamos à parte complicada. –Kyra sorriu forçado.

O sorriso de Luisa foi sumindo aos poucos.

—O... O quê quer dizer? Onde ele está? Cadê o Doutor!? –sua voz demonstrou novamente desespero, misturado com assombro. O silêncio de Kyra deixou-a ainda mais ansiosa. –O que está me escondendo? Você sabe onde ele está, não é? Então diga! Diga pra mim onde ele está! Diga! —inacreditavelmente, Luisa viu-se segurando-a pela gola da camiseta. -Ele desapareceu sem me dar explicações... Eu estou aqui desde cedo, procurando por ele... Esperando por um sinal de vida... Por favor! Se você sabe de alguma coisa... Tem de me contar agora.

—Calma. Fica calma, colega –Kyra fez com que a garota afrouxasse o aperto em seu colarinho. –Eu não apenas o vi, como também falei com ele. Mas não há segredo sobre seu paradeiro...

As mãos de Luisa começaram a tremer.

—Como assim? –sua voz vacilou, temendo pelo pior. –O que você quer dizer com isso?

—Ele está aqui. Entre nós.

—O quê...? Não... –ela murmurou, desconsolada, apertando o peito. –Não me diga que... –ela desviou os olhos lacrimejantes, pesarosa. -Ele morreu...

—Morreu? –Kyra franziu a testa, estranhando. –Não. Não! Ele está bem. Pode confiar. Só está meio fora de si no momento... Mas acho que vai se recuperar.

—Ah! Então ele está vivo! –ela suspirou, realmente aliviada. Depois parou para refletir e acabou por fazer cara feia para Kyra. –Mas você disse que “ele estava aqui entre nós”... Então eu automaticamente supus...

—Eu não falei no sentido de “morte” –Kyra explicou-se. –Quando eu disse “entre nós”, estava me referindo ao sentido literal da palavra... Olha só pra ele!—e apontou para o homem desacordado, deitado no chão entre elas.

—O quê? Mas este não é o Doutor... Esse não é...

O rosto dele?—Kyra instigou. –Por acaso você não se esqueceu de que ele se regenera, não é?

Luisa arregalou os olhos para o corpo no chão.

—Oh meu Deus –espantou-se, perplexa. –Não me diga que este é ele...

Kyra apenas assentiu, em silêncio.

—Eu não mentiria sobre isso. Ele me fez prometer que diria tudo a você, caso não conseguisse permanecer acordado para explicar.

Luisa se abaixou ao lado dele e ficou observando-o.

—Ele está tão diferente...

—Ele se regenerou. –Kyra enfatizou. –Ele disse que você poderia se surpreender, mas que já havia deixado-a a par do assunto. Imagino que saiba o básico sobre regenerações, não é?

—Sim... Eu acho. Ele tentou me explicar uma vez. Mas eu nunca tinha visto o processo... Pessoalmente. -a garota estendeu a mão, sobrepondo-a sob a do amigo, desacordado. Então sorriu, tristemente. -Ele está bem?

—Está só dormindo. Repetiu diversas vezes que precisava descansar após o término do processo. Ele queria muito poder estar dizendo tudo isso pessoalmente, mas eu o persuadi a dormir um pouco e deixar tudo comigo. –Kyra desviou os olhos. –Quem sabe assim, os efeitos colaterais deixem de acontecer...

Efeitos colaterais!?—Luisa voltou-se para ela, preocupada. –Que efeitos colaterais?

—Eu sinto muito... Mas algo de anormal aconteceu com ele. –Kyra anunciou, sentida. –O Doutor... Mudou três vezes seguidas até agora. Nem ele mesmo soube explicar a freqüência do processo. E essa nem é a pior parte.

—E qual é a pior parte, então? –Luisa ergueu as sobrancelhas. –Me conte tudo que sabe, por favor.

—Ele não está apenas se regenerando. Está retrocedendo. Eu juro que nunca ouvi uma lenda que dissesse algo sobre “um retrocesso de encarnação”... Simplesmente porque não deveria acontecer. Está errado!

—O que houve com ele? –a garota respirou fundo, abalada.

—Ele está se desregenerando. Voltando, pouco á pouco, a habitar os rostos que já usou um dia. Até agora, ele já mudou três vezes, mas disse que ainda falta muito pela frente... –Kyra se ajoelhou junto de Luisa. –Olha, eu não sei o que fazer sobre isso... Mas ele parecia ter esperança. Falou muito sobre você. Disse que é uma garota fantástica. Deu a entender que saberia como ajudá-lo. –Kyra olhou-a de cima a baixo. –E realmente, vendo-a frente a frente, acredito que ele estará sob bons cuidados. –sorriu.

Luisa sorriu de volta, apesar de não ter exatamente certeza de que era a pessoa mais qualificada para o serviço. Preocupada e ao mesmo tempo ansiosa com a responsabilidade, logo voltou a fitar o amigo, que dormia profundamente.

—Obrigado por tê-lo trazido até aqui em segurança. Eu nem sei como agradecer... –Luisa apertou a mão da Abeliana. –Posso perguntar seu nome?

—Eu me chamo Kyra. -ela fez uma rápida pausa, conferindo o relógio. Deu para ouvir sua respiração ofegante. –Por Clun, eu realmente queria ficar para ajudar, mas preciso voltar para o meu trabalho. Abandonei a loja de calçados já faz muito tempo e se não voltar, logo mais não terei nem chance de me explicar. –ela balançou a cabeça. -Digamos que meu chefe não é muito compreensivo...

—Você largou seu trabalho para escoltá-lo até aqui? –Luisa ficou espantada.

Kyra deu de ombros, corando levemente.

—Ele disse que precisava encontrá-la, Luisa. A todo custo! Devo ressaltar que eu até tentei convencê-lo a descansar um pouco, mas ele não me deu ouvidos. Disse que precisava encontrar você. Que você estaria esperando por ele... O Doutor não queria de modo algum desapontá-la. –e sorriu, pretensiosa. -Espero que não fique muito espantada ao descobrir que ele se importa muito com você.

Foi a vez das bochechas de Luisa se acenderem.

—É. Eu sei –ela disfarçou o ar enrubescido. –Sou eternamente grata, Kyra. Obrigada mesmo!

—Não há de quê. –Kyra foi se afastando. –Ah! Quase me esqueci... Se precisar ir ao pronto socorro: fica a três corredores daqui.

—Obrigada. Eu vou me lembrar.

Kyra levantou vôo e passou pela porta, dizendo:

Não esqueça de me informar sobre a melhora dele!

Eu direi!—Luisa acenou em pé, então voltou-se para o amigo, insegura sobre seu estado atual. –É claro que direi...

Durante o momento em que ficou observando o amigo dormir, o tempo pareceu não passar. As horas pareceram congeladas e o ponteiro do relógio de pulso nem se movia. Tudo porque ela estava extasiada. Sentia-se como se houvesse dado uma voltinha de montanha russa, e acabasse de botar o pé em solo firme. Definitivamente, estava com as mãos abanando. Não sabia o que fazer para ajudar. Sentia uma inquietação monstruosa e infinitamente conflitante crescer dentro de si mais e mais a cada segundo, como uma massa fermentada no forno. Não sabia se deveria acordá-lo ou então se continuava ali, esperando que o amigo acordasse por conta própria. Por quantas horas ele ficaria repousando mesmo? Horas... Até parecia brincadeira. Ela não conseguia se conter nem mais por um minuto! Precisava fazer alguma coisa, nem que fosse respirar dentro de um saquinho plástico.

E foi isso que ela fez.

—Estou com falta de ar! AH! Cadê ele? Preciso dele! Onde foi que eu coloquei?—esbravejou, revirando a bolsa rosa, esbaforida. –Achei! —gritou, ao erguer na palma da mão um saquinho plástico.

HÃ!? O QUÊ? ONDE? QUANDO?—gritou o Doutor, agora acordado, assustando-se com a reação dela e erguendo o corpo para frente, abruptamente.

—Ah... –Luisa respirou dentro do saquinho, com extremo alívio. –Ai, que horror! Sinto como se meus pulmões tivessem sido expremidos...

—Nossa! Que pesadelo... –o Doutor disse, por outro lado, ainda meio confuso com tudo aquilo. Não sabia onde estava. Mal se lembrava do que acontecera antes de desmaiar... Como chegara ali mesmo?

—Ah! DOUTOR! –Luisa tratou de agarrá-lo pelo pescoço.

—Ai! –ele gemeu, ainda atrapalhado. –O que aconteceu? Pra que tudo isso?

—Você está melhor! –ela respondeu, suspirando aliviada. –Ah, Doutor... Pensei que estivesse doente.

—Doente? Acho que você me subestima –ele contrapôs e Luisa fez cara de pouco caso: sabia que logo viria com uma bela desculpa pra cima dela. –Falando em subestimar... Acho que subestimei a capacidade de locomoção da Rose... Ela devia estar aqui para que possamos partir desse lugar horrível de uma vez por todas.

—Rose? –Luisa estranhou. –Que Rose?

—Como “que Rose”? Estou falando da minha companheira! –ele disse com convicção. -Você por acaso não a viu por aí? Loira; de pele rosada; estatura média; olhos castanhos... –especulou. -Nada?

—Não. –Luisa estava estupefata demais para dizer algo mais concreto.

—Tem certeza que não a viu? Ela é humana, sabe? Eu aposto que nenhum humano passaria despercebido nesse lugar... Especialmente com tantas espécies diferentes. –ele sorriu, rindo do próprio argumento. –Você trabalha aqui?

—Não. –outra resposta curta. A garganta de Luisa parecia ter secado de repente, mas isso não foi nenhuma surpresa para ela. Surpresas são, de certa forma, rotina quando se viaja pelo universo à bordo de uma máquina do tempo... Mas com certeza, aquela faceta de “bancar o esquecido” estava levando o Oscar do dia. –Doutor, pára com essa bobeira...

—Mas não é bobeira. Rose é minha companheira e eu preciso achá-la. Prometi à mãe dela! Prometi á Jackie Tyler que a manteria em segurança... –devagar, foi baixando os olhos azuis. –Eu falhei de novo. Eu sempre faço isso. Por mais que eu tente... Sempre a perco de vista. –suspirou, chateado. -Eu sou mesmo um zero á esquerda.

—Não! Não... Mas não é mesmo! –Luisa afagou suas costas, aproximando-se. –Você só é meio avoado... Tipo, quando uma garota diz que você deve esperá-la perto dos provadores, e você sai por aí, vagando sem rumo por um local desconhecido, feito um andarilho sem instrução.

O Doutor baixou a cabeça.

—Tem razão. Eu sou tão idiota... –xingou-se. –Eu... Eu... Eu só queria poder ser melhor! –e fitou-a, com seus claríssimos olhos azuis, com tamanha intensidade que quase fez a garota perder o fôlego.

—E você é. Acredite. –Luisa assentiu. –Não fique se culpando á toa. Estão todos bem. Não precisa se preocupar.

—Mas a Rose... Você disse que não sabia do paradeiro dela.

—É, eu disse. –ela desviou os olhos por um instante, procurando a resposta certa no ar. –Mas me enganei. Eu a vi e ela está segura. Não precisa se preocupar. –garantiu. Quando tomou a decisão de mentir sobre isso, não imaginava que o amigo ficaria tão aliviado. Essa Rose deveria ser mesmo alguém importante... Partindo desse principio, procurou revirar a mente e se lembrar de algum fato que ele já tenha mencionado sobre ela. Sim, porque o nome não soava estranho. Assim como com Sarah Jane, Martha Jones, Amy Pond e uma tal de Donna, ele já devia ter mencionado o nome “Rose” alguma vez... Só não se lembrava o teor da conversa e nem porque o assunto fora abordado. Se Luisa lembrasse de qualquer fato, ao menos alguma coisa começaria a se encaixar naquilo tudo.

O problema era que não havia nada concreto. Nem mesmo uma menção direta. Até onde ela sabia, era apenas o nome de outra companheira anterior a ela. Talvez ele já o tivesse mencionado por engano, em algum dia qualquer. Talvez tivesse se perdido em pensamentos e dito o nome dela por impulso. O fato, é que Luisa não fazia idéia do quanto Rose era importante para ele, e naquele momento, o próprio Doutor se esquecera do quanto Luisa também era importante;

Não chamá-la pelo nome; não falar com a empolgação de sempre; Tudo era tolerável... Mas ver a confusão nos olhos dele ao contemplá-la, machucava... E isso Luisa não conseguia disfarçar.

—O que foi? Por que fez essa cara? –ele indagou, intrigado. –Eu não ofendi você, ofendi?

—Não! Não. Imagina... –ela relaxou a expressão. –É só que eu estou preocupada com você, Doutor.

Ele encarou-a de cima a baixo, com desconfiança.

—E você seria...?

Mais uma pontada no coração da garota.

—Hã... Luisa. Luisa Parkinson –e segurou a mão dele, com intensidade. –Uma velha amiga...

—Velha? Mas é tão jovem! –ele retorquiu, impressionado.

Luisa sorriu.

—Não sou mais tão jovem... –desviou o olhar por um momento, brincando distraidamente com a mão dele, ainda mantendo o sorriso simplista de canto de lábio. –Eu costumava ser... Jovem e imatura. Na época em que nos conhecemos. –ela disse sem compromisso.

Estava tão indiferente que nem notou quando os olhos dele se iluminaram.

—Na noite em que aterrissei no seu jardim por engano –ele prosseguiu e ela arregalou os olhos, esperançosa. –Era uma noite quente... A TARDIS mudou o curso e errou de trajeto. Acabei materializado no seu jardim. E... Havia uma barraca...

—VOCÊ SE LEMBRA! –Luisa o abraçou mais forte do que nunca, e agradeceu aos céus quando teve o gesto retribuído. Tentou acariciar seus cabelos, mas desistiu, quando passou a mão por sua cabeça e sentiu falta de quaisquer fios longos. Independente disso, ela não pensava em nada além de comemorar o retorno milagroso da memória do amigo: –Ah, meu Deus! Você se lembra! Realmente se lembra de nós... Melissa e eu! Puxa, nem consigo acreditar! –se afastou dele por um momento, para poder olhá-lo nos olhos. -Pensei que tivesse me deletado da sua memória pra sempre.

—Isso nunca! –ele sorriu confiante. –O que estava pensando? Eu sou um sonhador distraído; não um imbecil insensível!

—Eu sei... –ela se afastou por um momento, mexendo os olhinhos inquietantes de um lado para o outro, tentando fitá-lo por inteiro, e como resultado, vindo a piscar muito rápido. –Nem acredito que está mesmo aqui. Pensei que não o veria de novo tão cedo... -então, inesperadamente sorriu torto: –E essa jaqueta marota aí?

Ele observou as próprias vestes.

—É minha jaqueta de couro!

—Estou estranhando muito você hoje. Digo, tenho total noção de que você ainda é o mesmo por dentro, mas essas contradições cabeludas ainda vão me enlouquecer... –ela fez uma careta. –Desculpe o uso do termo “cabeludo”. Acho que não o empreguei direito na frase...

—O que está insinuando?

—Nada. –ela mordeu o lábio. –Puxa, você está tão mudado! Parece que o que falta de cabelo, veio de sobra no nariz e nas orelhas...

—Será que pode parar de tentar ser indiscreta. Não está funcionando! –bronqueou. –E que papo é esse agora de implicar com as jaquetas? Eu adoro jaquetas de couro!—ele insistiu.

Luisa crispou o nariz, cruzando os braços de modo provocativo.

—Não foi o que você deu a entender hoje cedo –ela acrescentou. –Senhor:“acho os futuristas psicóticos”. –e  ainda fez as aspas. –É... Já deu pra notar como são os “futuristas viciados em couro”, não é não?—ela brincou, fingindo estar revirando a bolsa. –Será que pode repetir isso pro meu gravador?

O quê?—ele não estava entendendo mais nada. –Gravador? Como é que é?

Luisa sorriu e levantou do chão.

—Ora, esqueça! Aqui... –e estendeu a mão pra ele. -Consegue se levantar? –Luisa posicionou-se de modo a ajudá-lo a se erguer do chão.

—Mais é claro que consigo –ele apoiou-se nela, confiante, mas na prática precisaram de um pouco mais de jogo de cintura. –Pronto. Viu? Eu disse que conseguia!

—Estou vendo –ela fez careta, sustentando metade do peso dele. –Consegue andar? Podemos ir buscar umas ataduras em alguma farmácia. Kyra disse que há um posto de primeiros socorros aqui perto. Garanto que não irão pensar em te “dissecar”, por aqui. Afinal, isso é “coisa de humanos”, certo?

—Mais ou menos –ele balançou a cabeça. –Tive uma idéia melhor: nós diremos que é você quem precisa de curativo... Você eles não irão pensar em dissecar com toda certeza.

—Ah! E será que eu posso saber de onde vem tanta certeza assim? –Luisa questionou.

De mim. Se alguém tentar encostar em você, eu juro que dou uma lição! –ele estalou os punhos.

Luisa riu e o fez baixar as mãos.

—Por favor... Contenha-se! –pediu. –Vai bater neles com o quê? Um par de muletas?

Ele fez um bico, ofendido.

—Sabe, você anda passando tempo demais com aquela Melissa... –resmungou. –Essa companhia não está te fazendo bem!

Ah, agora a culpa é da Melissa!—Luisa não conseguiu conter o riso. -Bom... É bom saber que os velhos hábitos ainda persistem! –ela averiguou, ao que ele deu um tropicão em sua canela, sem querer, que quase a desequilibrou. -Ah, e é claro que eles vão acreditar que sou eu quem precisa de curativos... –ela revirou os olhos. -Com você mancando do meu lado desse jeito, é obvio que todo mundo vai sentir pena logo de mim.

O Doutor ergueu as sobrancelhas.

—Não reconheço esse tom de ironia –interveio. –Depois dizem que fui eu quem mudou!

—Ah, olha só quem fala... –Luisa riu de gosto. –“O garotinho da mamãe que está com medo de passar numa consulta médica...”. Ah, fala sério Doutor! 

—Não seja tonta! Pro seu governo, já deixei de ser criança faz muito tempo... –ele afirmou, irritadiço. –Eu sou homem. Não tenho medo de umas poucas enfermeiras! Só... Não quero provocar um escândalo, entende?

—E por que você provocaria um escândalo se não fosse por manha?—Luisa cutucou. –Ah, desculpe “senhor maturidade”. –ela parou no meio do caminho, encarando-o olho no olho. -Doutor! Você é a pessoa mais criança que eu conheço... Como pode dizer o contrário de si mesmo?

O Doutor baixou os olhos e fez beicinho, evidentemente envergonhado.

—Desculpe. Eu só estava tentando ser... Um adulto responsável, pra variar.

Luisa riu. Mas não foi uma risada debochada desta vez. Na verdade, agora ela o fitava novamente com pureza e compreensão.

—Certo –encaixou sua mão na dele. –Então pare de perder tempo tentando ser o que não é e seja mais quem você é de verdade. –sussurrou, perto de seu ouvido. Depois se afastou e sorriu. –Eu já disse que adoro caras doidos e infantis?

O Doutor sorriu amplamente. Foi a primeira vez que ela viu aquele rosto sorrir tanto, até agora.

—Puxa, então eu sou um candidato forte. –avaliou. Ela tornou a rir, pegando em seu braço. Os dois deram mais alguns passos à frente, até o Doutor sentir uma nova pontada e cair de joelhos.

—DOUTOR! –nada de sorrisos. A alegria espantou-se novamente. Por uma fração de segundos, que permaneceram mais que uma eternidade, Luisa pode falar com o amigo sem julgá-lo pelo rosto e manias novas. Não que ela fizesse isso de propósito; era praticamente inevitável e o Doutor não se importava. Sabia que no fundo tudo não passaria de um tremendo choque cultural, para ambos, e que Luisa saberia lidar brilhantemente bem com seu novo temperamento. Mas, talvez por conta desse ainda ser o 9º rosto (que fazia parte da regeneração mista de três, com quem Luisa interagia todos os dias), até agora, ela não achasse tanta dificuldade em se aproximar dele.

Chamá-lo de Doutor e em seguida ter de encarar o novo homem que ele se tornara, com nova aparência e tudo mais, era sem dúvida um desafio; Mas, poder pular meramente essa fase e simplesmente conversar com ele, foi ótimo pra variar. Por apenas um momento, a menina riu, junto dele, e sentiu a presença do bom e velho melhor amigo. O Doutor de sempre. A manifestação da essência que ainda se mantinha, tornando aquele homem, o que ele era afinal de contas. Mas, tudo aquilo se partiu em desilusão quando ela o viu desabar no chão, ao seu lado, com fortes dores abdominais.


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Notas finais do capítulo

Ai ai ai... A coisa tá ficando feia hein? kkk

Matt Smith (11º Doc), David Tennant (10º Doc) e Christopher Eccleston (9º Doc) já deram as caras por aqui. Nesse ritmo, as coisas podem ficar deveras preocupantes...

***Só pra descontrair um pouquinho: quem aí curte jaqueta de couro? Esse capítulo foi um embate danado sobre esse estilo kkkkk Ainda bem que existe senso de humor mesmo nessas horas... Já pensou o que seria de nós sem esses alívios cômicos?

Bem, nos vemos próximo domingo com a continuidade :D

Teorias? Comentários? Protestos? Quero ouvir tudinho kkkk

Beijos e até mais!



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