Luisa Parkinson: A Companheira Fantástica escrita por Gizelle PG


Capítulo 44
Um Sonho Pra Lá de Real


Notas iniciais do capítulo

Oláááá! :D

"Uma Floresta Fechada com Folhas Mortas Sob o Solo"

Por enquanto é só isso que vou dizer.

Emblemático não?

Não se preocupem, depois eu explico.



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Ela estava fora de si, mergulhada no seu subconsciente, onde as coisas nem sempre faziam sentido, quando uma voz exaltada cortou sua linha difusa de pensamentos perdidos e inacabados, de modo a trazê-la de volta, acordando-a por fim.

—Luisa! Luisa! Está na hora... Eles estão reunindo todo mundo no galpão do refeitório para a caçada! Chagou o dia. Você está me escutando? Temos que ir pra lá... –gritava Charles, chacoalhando-a um bocado, vendo que ela não demonstrava reação alguma diante de suas palavras.

Durante um curto período de tempo Luisa, confusa e sonolenta, resistiu bravamente aos chamados insistentes do garoto, mas como “insistência” era seu nome do meio, ela teve que ceder aos chamados ansiosos e meramente descontrolados do rapaz. Demorou a focalizá-lo, mas quando o fez, deparou-se com um moço de cabelos loiros e olhos azuis bem claros, ela quase podia enxergar o próprio reflexo naqueles olhos esperançosos que fitavam-na com angustia. Ele estava em cima dela, segurando-a pelos ombros e gritando que eles tinham que ir à algum lugar... mas do que ele estaria falando?

—Que é que está havendo? –Luisa finalmente ergueu o corpo do fino colchão, percebendo logo em seguida que estivera dormindo em um saco de dormir, como os que são usados em acampamentos. Tudo ao seu redor pareceu ganhar foco e ela vislumbrou de imediato um alojamento inteiro, com várias meninas como ela, de sua idade ou mais novas, que preparavam suas mochilas, ás pressas, para o evento que viria a seguir. Esfregando os olhos, para ter certeza de que aquilo não passara de um sonho, ela ergueu-se de corpo inteiro e ponderou por fim: -Que diabos é esse lugar...?

Não houve tempo para resposta, Charles já a puxava alojamento á fora, seguindo por uma trilha, até adentrarem em um tipo de acampamento mirim, as qual vários adolescentes e pré-adolescentes faziam parte, prestando serviço a alguém. Foi quando Luisa, sendo mais alta e, aparentemente, mais forte que o menino, freou o passo, impedindo-o de continuar a arrastá-la por aí.

—Pare com isso! –replicou ela, indignada, recolhendo o próprio braço, nervosa. –Olha, eu não sei quem é você, por que está me puxando por aí ou mesmo o quê estou fazendo nesse lugar, mas isso tudo está errado! –ela fez uma pausa, da qual ele encarou-a com estranheza. -Você só pode estar me confundindo com outra pessoa... Escute, eu nem deveria estar aqui! –Luisa se deteve no meio da frase, e Charles pareceu notar sua inquietação ao sentir falta de alguma coisa específica: -Onde estão Melissa e o Doutor? Eu estava viajando com eles... Eu sei que estava! Pelo menos eu me lembro de estar. Ah, não... Acho que nós caímos. E eu acho que desmaiei com a pancada... –ela pôs a mão sobre a cabeça, sentido uma dor eminente, como se tivesse levado uma pancada com força. Começou a andar em círculos, de um lado para o outro, falando sozinha, ainda sendo insistentemente observada por Charles que parecia, além de confuso, um tanto impaciente. Por fim ela concluiu: –É isso! Tem que ser um sonho. Talvez se eu me beliscar...

—Não é um sonho! –retorquiu Charles, apressado, puxando-a pela manga enquanto andava de costas para o caminho, sem tirar os olhos dela. –Olha, eu sei que você deve estar nervosa. É a minha primeira vez também e, se isso te serve de consolo, eu também estou com medo...

—Medo de quê? –perguntou ela, arregalando os olhos. –O que está havendo aqui?

—Está havendo a caçada. –explicou ele, deixando-a na mesma. –Eu sei que é arrepiante ter essa idéia em mente, mas hoje é o dia. –ele parou de andar, olhado-a firmemente. -Você pode inventar desculpas, pedir clemência ou até voltar atrás com sua palavra, mas agora é um pouco tarde para isso. Eu sei como você queria poder evitar isso, mas não pode! –então, ele segurou-a pelos ombros e seu olhar amoleceu, aparentemente compreensivo. –Você tem que vir com a gente. Todos estão contando com você. Eu estou contando com você. Você é a nossa única chance de vitória... Eu sei que não vai nos decepcionar. –ele olhou-a com afinco e sorriu, revelando o sorriso mais cativante do mundo. –Você é melhor que todos nós juntos, por isso precisamos de você. É a nossa arma secreta, se lembra? –ele piscou. –É a única que pode capturar a grande arma, na investida final.

Ele parou, certo de que ela havia captado novamente o sentido da coisa. Por um segundo eles trocaram olhares e Charles realmente achou ter vislumbrado um brilho de determinação no olhar dela, o brilho característico que ela sempre emanava quando estava decidida. Aquela era a Luisa que ele conhecia, a mesma garota que estivera ao seu lado desde sempre, e que jamais deixara de lutar. Ele sentiu o que viria á seguir: sua amiga, com o juízo novamente recobrado, trataria de apressar o passo, convidando-o a correr com ela, apostando uma ultima corrida até a base da reunião onde estariam todos os outros. Por fim, a menina fitou-o e disse:

Luisa vai fazer o quê?—perguntou em terceira pessoa, retornando a expressão amedrontada e confusa de antes, de quem não fazia idéia do que estava fazendo lá.

Charles bufou, arrastando-a consigo sem pestanejar. Chegaram ao alojamento central, a tempo de pegar o final das recomendações de Melvin, o Primeiro Sargento que sempre repassava as regras a todos a pedido do coronel. Rapidamente, Luisa percebeu como todos estavam usando roupas de soldado, aquelas com cores verdes em diferentes tonalidades: para camuflagem. Chocou-se ao perceber que também compartilhava da moda, observando estar vestida igualmente aos demais. Ela ainda não sabia como, mas de algum modo, ela fazia parte daquilo tudo. Notou que todos, sem exceção, eram adolescente ou pré-adolescentes de 12 á 20 anos. O discurso se seguiu com o Sargento Melvin retomando o quanto eles deveriam ser bravos e corajosos e que a coisa toda do sucesso da batalha, estava em suas mãos. Por fim, terminou com um grito de guerra que motivou a todos e fez estremecer o pavilhão inteiro.

Uma vez Quimera, sempre Quimera!

Quimera? –repetiu Luisa, como se aquela palavra lhe deixasse um gosto azedo na boca.

—É o nosso nome –explicou Charles. –Como se você não soubesse disso! –riu. –Está aqui a mais tempo do que todos nós...

—Eu estou? –ela pareceu estupefata. –Tudo bem, isso vai dar uma dor de cabeça e tanto, mas... Será que dá pra começar pelo começo?

—Não há tempo! –advertiu-a Charles, apontando para o Sargento Melvin que seguia, com o restante do grupo suficientemente grande de soldados mirins, rumo a uma floresta sombria á alguns metros dali. –Precisamos seguí-los, ou ficaremos para trás...

—Para aquela floresta? –perguntou ela espantada. –Não há nenhuma chance de mudarmos a rota para um jardim florido e luminoso, cheio da presença acolhedora da luz do sol, há?

Charles riu descontraídamente.

—Você está muito bem humorada esta manhã... O que aconteceu?

—São três e meia da manhã –conferiu ela em seu relógio de pulso. –Eu não faço a mínima idéia.

Eles seguiram juntos até que os pés do Sargento Melvin tocassem o solo da floresta sombria. Quando chagaram lá, ele girou nos calcanhares, ao que todos pararam, á espera de novas ordens.

—Cadetes, Soldados e... Nosso maior orgulho: A Cabo 26. –ele ergueu a cabeça na direção de Luisa, ao que todos os olhares acompanharam a risca de seu líder, indo terminar em cima da garota que passou a mão no braço, constrangida com toda aquela atenção em excesso. –A nossa vitória dependerá exclusivamente de vocês. Tenho certeza que não nos decepcionarão, porque se o fizerem... –ele riu, uma risada estranha e contínua, como se as conseqüências chegassem a um nível preocupante. Todos pareceram engolir em seco, ao que ele terminou, assumindo novamente a posição séria de antes: -Não nos decepcionem. Será melhor assim. Senão... Bem, já sabem.

—O que acontecerá se fracassarmos? –perguntou Luisa vivamente preocupada. Charles também parecia abalado com aquele ultimo lembrete que o Sargento dera a todos, mas ignorou-a completamente, evitando falar sobre isso por questão de segurança ou até mesmo por medo. Ela não sabia dizer, só achava que os olhos do rapaz, expressivos, como só eles eram (como se sua alma fosse capaz de falar através deles), estavam bastante alarmados. Luisa pôde perceber que a situação não era mesmo brincadeira. Por fim, dado o sinal, o grupo se dispersou pela floresta, como se já a conhecessem de cabo a rabo. O rapaz foi correndo ao lado de Luisa e logo ela percebeu que havia um grupo inteiro escoltando-a através da floresta, o que sugeria que a garota teria um papel extremamente importante na “caçada”, como Charles dissera anteriormente. Isso só serviu para deixá-la ainda mais inquieta. Ela se sentia estranha estando ali. Nunca participara de uma caçada antes, mas todos ao seu redor agiam como se ela fosse a melhor opção de escolha para o trabalho.

Quando conseguiu uma oportunidade, debruçou-se sob Charles, alerta, e perguntou-lhe algo que a deixava preocupada e fazia sua ansiedade aumentar á cada segundo:

—O que é isso Charles, o que estamos fazendo...?

—Shhhhh! –repreendeu-lhe uma garota do grupo que segurava uma arma comprida, com três tubos de escape de munição. –Quer entregar nossa posição atual ao inimigo? Controle-se!

 Luisa aquietou-se contra sua vontade, ainda a tempo de ver Charles lançar um olhar significativo à sua pessoa, como se fosse um pedido de calma silencioso. Ao abaixar os olhos, percebeu que todo o seu grupo estava segurando armas, ou tinham-nas amarradas á cintura e perna, para usar caso houvesse um ataque surpresa contra eles. Seguidamente, percebeu que também carregava uma arma pendida na perna e assustou-se com aquela visão de estar carregando um objeto tão perigoso. Nunca colocaria suas mãos naquilo, nem que sua vida dependesse disso! Ela seria incapaz de ferir outro ser vivo e se sentia mal por estar fazendo parte de uma missão que dependesse justamente de ações como aquela. Tentando esquecer dos próprios problemas, a menina procurou com os olhos o restante do pelotão, já que mais da metade dos quase cinqüenta adolescentes que estiveram ao seu lado na caminhada inicial, escoltados pelo Sargento, haviam desaparecido. Olhou de esguelha para o lado, ainda á tempo de ver uns três soldados rolando por entre os arbustos e outros mais nas copas das árvores, para ter uma visão aérea da situação atual. Luisa também viu que, a alguns metros á diante, Charles se afastou do grupo, tentando, com um aparelho que tirara do bolso, rastrear algum tipo de sinal que vinha das profundezas da floresta escura, assustadora e repleta de folhas mortas pelo solo: sendo quase impossível andar por ali sem causar nenhum ruído. Foi então que a menina apurou os ouvidos e percebeu: realmente não havia ruído algum. Como eles estavam conseguindo aquilo? Olhou para seus pés e percebeu, com assombro, que tanto ela, tanto o restante do grupo usavam botas especiais, que flutuavam á alguns centímetros do solo real, impedindo-os de fazer ressoar qualquer barulho que fosse, o de folha seca amassada contra a sola do calçado ou outro ruído qualquer. Por fim, um bip começou a tilintar baixinho, do aparelho de Charles, em uma freqüência desconhecida aos ouvidos de Luisa, mas que para os demais, não soou como um problema, pois ninguém olhou feio para o garoto que continuou seguindo, agora com um rumo certo á seguir.

Adentraram todos mais um bom tanto da floresta, de modo que Luisa já não podia distinguir o verdadeiro caminho por onde eles vieram inicialmente. Ou estavam devidamente perdidos ou aquilo tudo fazia mesmo parte do plano. Luisa rezou para que a opção dois fosse comprovada em breve.

Num certo momento, já quando a menina ficara desatenta ao perigo alheio (já que nada acontecera até agora), eis que um som quebrou o silencio da madrugada, assustando a todos e deixando-os novamente alerta. Era encrenca! Alguma coisa vinha vindo em sua direção e eles não sabiam o que era, o que os deixou mais alarmados ainda. A ansiedade tomou conta de todos até que, do alto das copas das árvores, um rapaz gritou um estrondoso: “Os Vornes estão aqui! Eles sabem do nosso plano! Nós fomos descobertos...”.

Todos pareceram agitarem-se como nunca, pondo-se em posição de defesa. De repente, tudo passou de um borrão para Luisa, já que ela não pode assimilar todos os ocorridos tão rapidamente: Primeiro um silêncio mortal, depois um som inigualável de motores que ecoaram de todas as direções e, como se já não fosse o bastante, um navio voador surgiu no céu, planando sob a copa das árvores, atirando bombas nos soldados mirins que escaparam como puderam.

—Como eles nos descobriram? Isso não faz sentido algum... Fomos tão cuidadosos! –reclamou a menina que chamara a atenção de Luisa anteriormente. –Mas se eles querem guerra, então será o que terão!

Os soldados passaram a tirar suas munições contra o casco do navio, mas outra coisa inesperada aconteceu: O casco pareceu interceptar a munição antes que ela alcançasse o navio, de modo a anular sua programação de mira instintiva. Havia mais segredos naquele casco do que eles imaginavam: Primeiro, o casco não era comum, era feito de cristal. Um cristal límpido e transparente, de modo que era até mesmo possível ver os marinheiros correndo de um lado para o outro no porão, no convés e em todas as localidades do barco. A vantagem que, aparentemente, tiveram sob o inimigo, na verdade era mais um caso de “as aparências enganam”, pois o casco de cristal –tão frágil, fraco e delicado—como parecia ser, na verdade tinha seus truques na manga. Aquele cristal não era um cristal comum. Era feito de uma matéria que anulava a ação inimiga, fazendo com que as munições das armas desacelerassem no caminho, se auto-desarmassem e o pior: ricocheteassem de volta para seus legítimos donos, de modo que o feitiço realmente virou contra o feiticeiro.

Ao meio de gritos e desespero, Os Quimera foram bombardeados por si próprios, por assim dizer.

Luisa correu desesperada, tentando localizar Charles que se afastara do grupo nos últimos minutos.

—Charles! Charles! –gritava ela, chorando ao se ver perdida e sem ação no meio de todo aquele bombardeio.

—Estou aqui! –gritou ele, quase indistinguível por entre as árvores. –Venha comigo!

—Não sei onde você está... –disse ela com os olhos marejados. –Oh, meu Deus! Eu vou morrer aqui...

—Não vai não! –interveio ele, puxando-a, no exato momento em que uma bomba explodira as suas costas; A onda de choque derrubando-lhes contra o chão fofo (por causa das folhas) e barulhento. –Você ficou maluca? Não devia ficar dando sopa na linha de frente... Você se esqueceu?

—Eu acho que é por aí... –disse ela hesitante. –Quem foi que te disse isso, foi o Sargento Melvin?

—Não –ele olhou-a com as sobrancelhas erguidas. –Foi você.

O ataque se intensificou, agora causando uma queima de alguns troncos de árvores negras.

—Quem são eles? –perguntou Luisa aflita, tentando se reerguer, com a ajuda do amigo.

—Eles são os Vornes. Piratas inimigos. Vivem tentando atrapalhar nossos planos... –ele pôs a língua entre os dentes. –Só não imaginava que usariam a Cristaleira Imperial para conseguir vantagem sobre nós...

Cristaleira Imperial?

—É o nome do barco deles –explicou Charles pesaroso. –Ninguém esperava que os Vornes pudessem melhorar ainda mais as defesas da nave deles, mas pelo jeito podem...

—Humanos? –perguntou Luisa franzindo o cenho para os tripulantes do navio.

—É claro –afirmou ele intrigado. –Por que a pergunta?

Luisa parou por um segundo, contemplando a enorme embarcação em grande vantagem sobre eles. Não havia nada á se fazer, a não ser procurar um bom esconderijo e esperar a poeira baixar. Ela pareceu ficar fora de si, pensativa, indiferente aos problemas alheios.

O homem é o lobo do homem. –recitou ela, as palavras do filósofo Thomas Hobbes, mantendo a cabeça distante dali.

—O que foi? –insistiu Charles, agora preocupado. –Está se sentindo bem?

—Não, é só que... –ela arregalou os olhos para todo aquele caos, de modo que não conseguiu focalizar um só ponto fixo por um longo tempo, querendo captar o máximo de variantes possíveis. -Depois de tudo que vi, depois de todas as coisas maravilhosas e aterrorizantes que pude vislumbrar no universo... Nada é mais assustador que ver o próprio homem em ação.

Charles crispou os lábios, olhando dela para o barco de cristal e depois novamente para ela.

—Precisamos continuar... –disse ele com calma, segurando seu braço e guiando-a na direção contrária ao ataque dos Vornes.

—Onde estamos indo? –perguntou Luisa, recompondo-se.

—Eles acham que estão nos detendo com aquela banheira de cristal—arfou Charles, a raiva evidente em sua voz, como jamais Luisa pudera ouvir. –Mas eles se esqueceram de uma coisa... De mim e do meu amiguinho aqui —ele mostrou à garota o tal aparelho com o bip de freqüência estranha: Era um rastreador que encontrara a tal coisa que eles estavam indo caçar desde o princípio. Apesar do baque e tudo o mais, o aparelho continuava intacto, apenas um pouco chamuscado. –Pronta?

—Pra quê? –indagou Luisa, confusa.

Charles olhou-a determinado e voltou-se para frente, mirando o caminho que o monitor do rastreador apontava, cheio de expectativas:

—Vamos à luta!

Eles dispararam em uma corrida contra o tempo por entre a floresta sombria, adentrando ainda mais em suas entranhas, já sem ter qualquer cautela que fosse em evitar fazer barulho por onde passavam. De repente uma criatura correu emparelhado a eles e a dupla imediatamente soube que estava sendo perseguida.

Não pare agora!—aconselhava Charles em gritos abafados pelas patadas do animal contra o solo. Em nenhum segundo ele soltou a mão da menina, mesmo que ela fraquejasse, ele não a deixaria para trás de maneira alguma. Prometera nunca abandoná-la e cumpriria sua promessa, mesmo que isso o matasse.

Não vamos conseguir!—dizia ela aos gritos, vendo a criatura sombria se aproximando cada vez mais.

—Mais uma vez você se enganou, olha! –ele apontou para uma caverna estreita o bastante para que eles pudessem se esconder e, se dessem muita sorte, despistar o animal. E foi o que fizeram: Apertaram o passo a ponto de cruzar a passagem sem dificuldade nem demora, deixando a criatura comendo poeira.

—Que diabos é essa coisa? –perguntou ela quando já estavam seguros, deixando o animal indignado, bicando ruidosamente a frente da passagem, buscando um jeito de entrar.

—É um Multanivestruz —disse Charles, como se já fosse acostumado com aquilo, e ao ver que ela ficou com cara de nada, completou: –Um avestruz mutante, com garras e dentes afiados, além da plumagem toda negra e dos olhos vermelhos... –falou, consultando o rastreador. –Droga! Perdi o sinal...

—Talvez seja essa caverna –sugeriu ela. –É muito denso aqui dentro...

—Ou... –recomeçou ele, girando os olhos de um lado para o outro, desconfiado, tateando o solo e as rochas na parede do outro lado da caverna. -Devemos estar muito... Muito perto.

—Você me lembra alguém quando fala desse jeito... Um amigo meu –disse Luisa, sorrindo inconscientemente, para depois deixar seu sorriso morrer aos poucos. –Acho que nunca mais irei vê-lo de novo... Nem ele nem Melissa, uma outra amiga minha.

—Ahan... –Charles parecia indiferente á tudo o que ela falava. Só tinha olhos para uma maneira de sair dali, não entendendo como ela poderia preferir ficar sentada, recordando uma seqüências de fato que nem tinha sequer certeza de que havia vivido ou não, ao invés de ajudá-lo a pensar num jeito de escapar. Foi então que, fixando o olhar novamente nela, andou decidido em sua direção. Segurou-a pelos ombros, olhando-a atentamente nos olhos, e resolveu por fim, bombardeá-la com uma questão em especial: -Luisa... O que fizeram com você?

—Comigo? –a menina olhou-o com estranheza. –Que eu saiba, eu sou a mesma de sempre.

—Não, não é –disse ele com certeza, desviando o olhar, ao mesmo tempo que ela fez o mesmo, ao ouvirem as bicadas do avestruz ficarem ainda mais fortes, começando a criar uma pequena rachadura na roxa fortalecida. –Precisamos sair daqui...

—E o rastreador? Não há como consertar?

—Ele perdeu o sinal. Não está quebrado...

—Entendi. –disse Luisa, calando-se logo em seguida, criando novo alarde no garoto.

—Entendeu? Era disso que eu estava falando –disse ele, como se houvesse flagrado um ato inconseqüente vindo dela. –A Luisa que eu conheço nunca se renderia dessa maneira! Desistindo de pensar em uma saída, esperando que alguma coisa caia do céu ou que algum milagre aconteça para que nós possamos escapar... –atacou ele, de modo que ela baixou a cabeça, envergonhada por não ser exatamente o que ele esperava que ela fosse. –Você não é mais a mesma. Você nunca agiu assim antes...

É porque eu não deveria estar aqui, entendeu? Eu não deveria! Não sou a Luisa que você procura! Eu nem pertenço a esse mundo! Então vê se larga do meu pé!—gritou ela, de um modo que Charles até se encolheu com a junção da potencia da voz da amiga e do eco proporcionado pela caverna, que ressoou por todos os lados, como num alto falante, deixando até a menina surpresa com o resultado amplificado.

Ta legal... Alerta de atitude!—disse Charles retirando as mãos dos ouvidos e retomando um sorriso tímido e orgulhoso para ela. –Essa! Essa é a Luisa que eu conheço... É assim mesmo que ela agiria!

Os dois não conseguiram conter o riso; ele rindo logo de imediato, ela, cedendo aos poucos ao rosto alegre e descontraído do amigo. Luisa não conseguia entender porque, mas ela sentia como se tivesse um tipo de vínculo com Charles, que se fortalecia ainda mais quando ela o via sorrir daquele jeito. Foram rindo até finalmente se acalmarem, podendo retornar ao foco inicial:

—Como vamos sair daqui? –perguntou Luisa, simplista.

—Eu não faço idéia. –admitiu ele, jogando a toalha, sentando-se ao lado dela, sob uma pedra.

—Eu queria ajudar –disse ela fitando seus próprios pés. –Mesmo. Eu queria poder fazer alguma coisa.

—Você já fez o bastante...

—Eu só atrapalhei! –retrucou ela. –Desde o momento em que eu acordei essa manhã, só trouxe problemas a vocês todos...

—Todo mundo tem dias ruins... –argumentou ele sincero. –E, já que estamos sendo francos um com o outro, hoje não é mesmo o seu dia.

—Eu acho que já percebi isso. –ponderou ela, olhando ás próprias mãos. –O que estamos fazendo aqui? O que é isso tudo?

—Como se você não soubesse –riu Charles. –Que é isso, Luisa! Deixe de brincadeira...

Ela sustentou seu olhar firmemente, até não conseguir mais, o que foi o bastante para convencê-lo.

—Tudo bem, então é sério mesmo –admitiu ele, desviando o olhar.

—Encare isso como uma situação real. –começou ela. –Finja que eu perdi a memória ou alguma coisa do tipo, deste modo, não poderei me recordar de nada...

—A Luisa que eu conheço se lembraria –retrucou ele.

Então finja! Eu disse pra fingir! É uma questão hipotética! Não precisa realmente acreditar nisso...

Está bem! Está bem!—aceitou ele, arregalando os olhos, ao ser pressionado. –Então tá. Você quer a verdade? Desde o começo?

Luisa assentiu esperançosa.

—Muito bem –ele deteve-se em falar. –Trouxe a pipoca? Porque a história é grande...

Charles!

—Okay, okay... –riu ele. –Essa é 5ª geração de sobreviventes de 4.709, a geração mais desenvolvida e futurista de todas, até hoje, na Terra. É de se admirar termos chegado a sobreviver nos tempo de hoje... As coisas andam difíceis ultimamente. –ele fez uma pausa, fitando o teto da caverna. –De 2.750 até 3.049 ou mais um pouco talvez, as pessoas ainda conseguiam viver em sociedade, mas de alguns séculos pra cá, a vida em conjunto, na Terra, já vem se tornando impossível. As pessoas evoluíram nas tecnologias, mas diminuíram em questões de inteligência. De repente, tudo ao nosso redor era matança, medo e terror. Tudo sempre girando ao redor do poder. Todos queriam uma chance de reger a população ao seu modo, determinando como as coisas se desenvolveriam e coordenando a vida de todos. Houve um tempo que isso ficou insuportável de se aturar, então ouve uma ruptura na sociedade, determinando na cara dura, quem era bom e quem era ruim. Então as ameaças começaram, aterrorizando tudo e todos. As pessoas já não podiam mais sair de casa e os maus elementos tomaram conta das cidades, já que os bons eram ajuizados demais para poder tomar qualquer decisão extremista: O que os Vornes queriam, no fim das contas. O Governo, vendo á que ponto chegou a sociedade, não reagiu de modo algum, como sempre, fingindo não haver nenhum problema para se preocupar, tentando evitar o que estava visivelmente aparente. O Governo deixou a população em níveis críticos, ao que um dia, alguém decidiu que já era hora de agir. Ao mesmo tempo que as ameaças contra a sociedade continuavam, uma guerra dos bons contra os maus foi declarada, por baixo dos panos do Governo, em um acordo de que, o grupo vencedor seria responsável por decidir o rumo do futuro da sociedade, moldando-a como assim desejar. É certo dizer que só se alistaram os bons que estavam muito cientes dos perigos que veriam á enfrentar, correndo o risco que for pela lealdade ao seu grupo, já que não teriam nada a perder. –Charles fitou as próprias mão e Luisa entendeu o que ele quis dizer. –A maioria dos que se alistaram foram adolescentes órfãos, que já não teriam nada a perder lá fora e que não fariam falta ao mundo...

—Não diga isso... –disse ela, emotiva. –Vocês todos são importantes...

—Não somos nada para o mundo lá fora –disse Charles cabisbaixo. -Eles nem mesmo sentiram nossa falta quando desaparecemos. Não sabem quem somos e nem o que estamos tentando fazer por eles...

—Você voltou à cidade para conferir? –perguntou Luisa, ao que ele negou com a cabeça. –Então como pode ter tanta certeza?

Charles ficou quieto, preferiu não continuar essa parte da história.

—É obvio que, quase nenhuma parte da população sabe sobre a existência dos Quimeras e dos Vornes, mas mesmo assim, estamos aqui, lutando pela liberdade de cada um daqueles cidadão, ou o contrário, no caso dos Vornes, mas a idéia geral seria essa mesmo: Ou libertá-los ou conquistá-los. Só tomamos a decisão que ninguém se propôs a tomar... Lutamos por uma causa justa! 

—Parece bem nobre para mim –disse Luisa. –Falo sobre os Quimeras, é claro...

—Eu sei. –disse ele, voltando-se para ela. –Você é nossa maior esperança. Pode até “não se lembrar disso”, como você diz, mas é sim.

Luisa lançou-lhe um sorriso, mais tranqüilo agora que metade de tudo aquilo fora esclarecido, então brotou uma dúvida:

—Eu sou órfã?

—Você é uma das exceções. Você nasceu no acampamento. Sua mãe serviu aos Quimera até a idade adulta, quando resolveu partir em uma busca de novos cadetes órfãos, á serviço do General Marte, nosso líder até hoje, da qual ela nunca mais voltou. Ninguém sabe o que aconteceu com ela...

—Então, sou uma órfã não oficial. –disse Luisa, tentando captar o sentido que o som daquelas palavras traziam aos seus ouvidos. –Não dá na mesma que ser uma órfã assumida?

—Em parte, até que não faz diferença. –admitiu Charles dando de ombros. –Acho que é por isso que você sempre foi tão forte e decidida... Teve que aprender a tomar decisões desde cedo, diferente da maioria de nós...

—Eu sinto muito por você –disse ela pesarosa. –Por todos vocês. E as coisas que esses caras maus estão fazendo com a sociedade... Puxa! Eu me sinto horrível! –desabou ela.

—Bom, eu me sentia assim todos os dias... –disse Charles com ar de superação. –Até claro, te conhecer.

 Ela ergueu as sobrancelhas, atenta á resposta da próxima pergunta que faria a ele:

—E eu sou assim, pra você, como uma...?

—Sempre fomos como irmão e irmã. Por isso as briguinhas matinais...

—Entendi. –sorriu ela, desviando o olhar, aliviada pelo clima não ter ficado tenso. Seria difícil ter de explicar que ela se “esquecera” dele, se ele fosse seu namorado ou coisa parecida.

—Como você pode ter se esquecido de tudo isso?

—Eu não sei dizer direito... Mas eu vou tentar explicar –disse ela, voltando-se pra ele. –Eu acho que não pertenço a essa versão do mundo, pelo menos não á esse século. Talvez eu seja uma humana do passado ou alguma coisa do tipo, desculpe, eu disse que era complicado de explicar...

—Tudo bem, continue! Se aqui é possível haverem navios de cristal que voam pelo céu, você acha que eu não acredito em viagem no tempo?—perguntou ele, sorridente.

—Você é esperto, Charles. –sorriu ela de volta. –Você tem quantos anos?

—Catorze. Ah! E você tem vinte, só pra constar, caso você também tenha esquecido disso...

Vinte?—indagou ela, olhando para o próprio corpo: não parecia diferente dos seus dezessete. –Tá legal, agora você conseguiu confundir a minha cabeça... Meus parabéns, Charles!

No mesmo instante a conversa foi cortada por uma nova bicada do Multanivestruz, que partiu de vez a roxa, que caiu sobre o chão causando uma nuvem de pó enorme que se alastrou por todos os lados, confundindo meramente tanto os dois adolescentes, tanto o animal, que cambaleou para trás, com a intenção de fugir da fumaça.

Vai!—Luisa puxou Charles pela gola do macacão de soldado e arrastou-o para longe dali, enquanto o bicho ainda confuso, tentava entender o que estava acontecendo ao redor. Eles passaram correndo pela floresta; sabiam que aquela nuvem de fumaça não o deteria para sempre e que logo em breve, ele já estaria na cola dos dois, quase á ponto de estraçalhá-los com as próprias garras, ou com o bico pontudo e afiado. O bicho pressentira a escapatória de sua presa e já recomeçara a correr rumo á floresta, seguindo o cheiro de medo e desespero que os dois emanavam.

Sem ter mais saída e com o avestruz monstruoso na sua cola, os dois só tinham uma certeza: Eles certamente não sobreviveriam até chegar ao acampamento dos Quimera. Iriam morrer ali mesmo, no frio e completamente sozinhos. Pelo menos, tinham a companhia um do outro, o que de certo modo, já era confortante. Agora era mesmo o fim, não haveria mais Doutor, nem Melissa para se procurar. Se ela morresse ali estaria tudo perdido, ao menos que tudo aquilo fosse um sonho, o que Luisa torcia com todo o afinco possível: Queria poder acordar em breve, pra não dizer imediatamente!

Foi aí que tudo deu errado: Luisa tropeçou na raiz gigante de uma árvore negra e machucou superficialmente a perna. Mancando, ela seguiu junto de Charles para os escombros da parte da floresta, onde anteriormente estivera ocorrendo a investida do Cristaleira Imperial contra eles.

Ela dizia-lhe que não havia saída, mas Charles, vendo-se em uma situação problemática, inventou sua própria saída. Pediu que ela se apoiá-se nele e, simplesmente apertou um dispositivo existente no tênis que mudou de forma, disparando com os dois para cima como se fosse um jato, deixando a ave maligna para trás, voando (literalmente) rumo ao acampamento. Ao chegar lá, Luisa sentiu-se mal, sua pressão baixara bastante e ela já não conseguia parar em pé, desmaiando por fim, nos braços de Charles.

 

*     *     *

Luisa abriu os olhos. De relance pensou ter enxergado algo brilhante e extenso á sua frente, abriu um grande sorriso, imaginando estar vendo nada manos que o painel de controles da TARDIS. Ela queria acreditar que aquilo fosse o painel, mesmo quando sua visão voltou ao normal e ela pôde ver claramente que se tratava de uma mesa coberta com um pano que brilhava á luz do sol. Ela ergueu-se sobre a maca da ala médica do alojamento dos Quimeras e deu um soco nesta, desapontada. Pouco antes de ao menos poder pensar em se acalmar, a visão súbita de um bilhete pendurado ao lado da sua maca, chamou-lhe a atenção. Lia-se:

 

Não é um sonho, por assim dizer

Se aqui você morrer, aqui deve perecer.

 

Ela estreitou os olhos para o pedaço de papel. Era como um aviso. Como se a resposta pela qual ela esperara por tanto tempo, desde que chegara ali, finalmente tivesse se manifestado. Sem dono nem remetente, ela não sabia quem escrevera aquele bilhete, mas independente disso, quem fosse, com certeza quisera preveni-la de alguma coisa, o que já parecia um avanço. Pelo menos ela sabia que alguém estava do seu lado, e que, aquilo tudo pelo que estava passando não se tratava de um sonho. Ela só não tinha certeza se descobrir isso fora uma coisa boa ou não. Ouviu passos próximos do seu alojamento e pôs-se a guardar o papel no bolso. Não sabia se era seguro revelá-lo para mais alguém, pelo menos nas circunstancias atuais.

Já perto dali, uma figura de altura média e magricela aproximando-se dela, com cuidado.

—Eu sei que você deve estar com o orgulho ferido... –começou Charles, brincando distraidamente com a atadura em uma de suas mãos, ele tinha machucado o braço. –Pelo menos é assim que ela se sentiria...

Luisa não respondeu, apenas lançou-lhe um olhar afetado junto de um tímido sorriso agradecido. De algum modo, evidentemente, eles haviam escapado da morte. Charles estava ali, bem na sua frente, mais vivo do que nunca, para comprovar isso. De repente, ela percebeu que não mais queria discutir as possíveis formas de ter vindo parar naquele lugar, o fato de estar ali ou até mesmo o aparecimento do estranho bilhete porque, se não morrera até agora, talvez fosse por algum propósito específico. Ergueu seu corpo, na direção do amigo e abraçou-o com força.

—Obrigada –agradeceu.

—Foi por pouco –relembrou ele.

—Eu não posso reclamar... Você salvou a minha vida!

—Eu fiz mesmo, não é? –riu ele, junto dela. –Obrigado por ter acreditado em mim.

Idem.

Acabou que, depois de recolocar o papo em dia, Charles contou-lhe todos os chiliques que o Sargento Melvin tivera após o retorno deles com as mãos abanando, sem a grande arma, intensificando a parte em que ele dissera que não deveriam fracassar de maneira alguma na missão, o que os deixou intrigados.

—O que será que ele vai fazer com agente, agora que fracassamos?

—Ele enviou todos os soldados para a missão, de modo que jamais conseguirá dar conta de punir á todos, por isso, acho que nossa punição não será tão severa...

Naquele momento, um cadete mais novo chegou para transmitir-lhes uma mensagem, de que deveriam ir ao pavilhão central –onde ocorrera, mais cedo, o discurso do Sargento Melvin –para ouvir as novas ordens do General Marte, transmitidas sempre pelo Tenente-Coronel dos Quimera.

Foram correndo, como puderam (ainda estavam mancando e tudo mais) rumo ao pavilhão central, já esperando ouvir um grande sermão vindo de seu superior. Mas foi quando entraram novamente no espaço –onde também ficava o refeitório improvisado –que ela viu, parado em cima de uma das mesas para atrair a atenção de todos, com a cara fechada, postura um tanto firme e rígida, cabelos cuidadosamente penteados com gel para uma só direção, usando uniforme militar apertado, com uma seqüência de medalhas fincadas contra o lado esquerdo do peito e usando um monóculo no olho direito, ninguém menos que seu grande amigo: O Doutor.

Ela não acreditava em seus próprios olhos. Durante uma questão de tempo, ela era a única pessoa alegre no pavilhão de recrutamento geral, já que todos estavam desde envergonhados, até arrependidos de não terem feito algo a mais pelo seu grupo. O fato é que, após o ataque inimigo –que só serviu para confundir á todos, inclusive, sem querer, aos próprios Vornes—todos puseram-se a correr, esquecendo-se do objetivo central da missão, voltando correndo para o acampamento ou simplesmente, procurando abrigo. Eram todas atitudes muito infantis perante ás circunstâncias, mas o que eles podiam dizer? Quase todos ali eram crianças. Não havia como esperar algo mais ousado, com jogo de cintura e tudo o mais, de soldados mirins. Aquilo sim era querer demais!

Luisa mal cabia em si. Quando o Doutor pôs-se a falar e todos silenciaram, já esperando a bronca alheia, foi que Luisa já não pode mais deter o controle das pernas, que levaram-na multidão à dentro, fazendo-a parar somente quando já se aproximara o bastante, vislumbrando de perto a pernas do amigo, que parecia ainda mais alto, agora em cima da mesa.

—Luisa! Volte aqui...—sussurrou Charles, tentando fazê-la mudar de idéia, sendo ignorado pela menina, que seguiu em frente, como que hipnotizada pela imagem dele. Ela até esquecera do machucado na perna, erguera-se com dificuldade, em cima da mesa, emparelhando-se ao Senhor do Tempo, vislumbrando-o de lado. Ele não fez nada; nem prosseguiu com o discurso, nem a deteve. Isso até que ela tomou uma decisão drástica: Curvou-se e abraçou-o forte. O Doutor não retribuiu o abraço, na verdade, ele enrijeceu o corpo, com a mesma expressão de nada no rosto. Ficou parado como uma estátua, enquanto ela o abraçava na frente de todos. Não mexeu um músculo além do pescoço, fazendo sinal para que dois guardas, ali perto, arrastassem-na para longe dele. Agora ele tinha um sentimento no rosto: algo entre rispidez e desprezo.

Doutor! Que está fazendo? Sou eu!—protestou ela, tentando se soltar dos dois guardas. –Não brinque assim comigo que eu já estou começando a acreditar nessa sua postura séria...—brincou ela, estranhando a falta de reação dele. –Vamos! Mas o que quê há com você?

Houve um silêncio mortal ao redor, em que todas as atenções voltaram-se exclusivamente para a menina e o rapaz em cima da mesa, já esperando a hora em que ele daria um tapa na cara dela por sua ousadia ou algo do tipo. Ele tremeu a narina, olhando-a com azedume, como se houvesse acabado de provar um limão ou jiló.

—Tirem essa fedelha daqui. –foi a única coisa que ele pronunciou, fazendo o sorriso dela vacilar mais um pouco. Charles estapeou a própria testa com a mão, como se dissesse: “Eu avisei para ela não fazer isso!”.

Ele ergueu a cabeça, superior, e se aproximou dela, ainda presa junto dos guardas. O Doutor trincou a mandíbula, encarando-a firmemente com seu ar mais sombrio e autoritário –um lado seu que ela nunca pensou que teria voltado para si, ao invés de para algum vilão malvado, como sempre costumava acontecer. Até parecia que naquela versão da história, ele a odiava por algum estranho motivo ou, foi pelo menos o que conseguiu aparentar. Emparelhando-se a ela, bancou o intimidador ao esticar o corpo ao máximo, deixando-a bem baixinha perto dele, de modo a fazê-la se sentir inferior á sua posição de Tenente-Coronel. Aos seus olhos, ela não poderia ir chegando e abraçando-o daquela forma. Quem ela pensava que era? Ah! Ao menos que ele também não se lembrasse de nada! Talvez aquele Doutor ali presente, não fosse o que ela conhecesse, mas uma versão paralela ou alternativa dele... Como um clone mal feito, que é totalmente o oposto do real. O problema é que ela não aparou para pensar naquela possibilidade naquele momento. Queria mais do que tudo acreditar em seus olhos, esperando que a qualquer momento aquela farsa toda acabasse; que o Doutor desse um salto para abraçá-la, rindo á beça, junto de Melissa, surgindo de algum lugar entre os soldados mirins, dizendo ambos se tratar apenas de uma brincadeira. É claro que ela ficaria brava, mas seria mil vezes melhor que passar por toda aquela tortura psicológica.

Doutor! Não! Espere! Sou eu... Sua amiga Luisa! Não se lembra de mim?—disse ela inconformada.

Ele ainda estava á contemplá-la de maneira assustadora, com o corpo espichado por cima dela.

Preste bastante atenção nisso—começou, ríspido. –Ali fora, junto do restante do mundo, você pode ser quem quiser; pode ser Luisa, Maria, Catarina, quem você quiser —ele fez uma pausa, em que apontou para algum lugar, atrás da floresta sombria. –Mas aqui dentro, você é a Cabo 26. Nada mais que isso. Se quiser usar títulos, então vá para a civilização, se conseguir sobreviver—ameaçou ele, como se a vingança fosse uma bebida doce de se beber. –Enquanto você servir aos Quimeras, agirá de acordo com as nossas regras... Fui suficientemente claro?

Ela piscou, aturdida. E acenou com a cabeça, as palavras fugindo-lhe da boca...

Ótimo.—ele deu-lhe uma última olhada, como que avaliando-a. –Agora terminem o trabalho: Tirem-na daqui.

Luisa baixou a cabeça, desconsolada, sendo despejada para junto do restante dos outros soldados, como se fosse só uma a mais na multidão. Ele estaria dizendo que todos os soldados ali presentes não passavam de números para toda aquela organização? Se fosse verdade, então qual seria a diferença dos Quimera para o próprio Governo? Não era assim mesmo que ele pensava? E sobre Luisa? Ele quisera dizer que ela não significava nada? Talvez fosse isso mesmo, ela só não esperava ouvir isso vindo de seu melhor amigo. Luisa correu, com dificuldade, sem olhar para trás; queria um lugar bem afastado para se abrigar e poder chorar em paz. Apesar de tudo, antes de conseguir cruzar metade do espaçamento do lugar, os guardas á detiveram novamente, removendo-a para cima, de modo que seus pés não pudessem tocar o chão, dificultando a escapada, então viraram-na novamente para o Tenente-Coronel, que tinha as mãos ás costas, e continuava com a mesma cara de nada.

—Ouvi boatos de que vocês todos fracassaram essa manhã –muitos estremeceram ao ouvir o som daquela palavra ribombar em seus ouvidos. –E sei de quem foi à culpada de tudo. Aquela garota. –ele apontou para a menina, deliciado com a oportunidade de se vingar ainda mais do péssimo comportamento dela. –Não irei revelar as fontes que me confirmaram isso, só destacarei que foram bem... Precisas. –ele deu um sorriso forçado, que mais pareceu um sacrifício para a pele de seu rosto magro, já que aquele Doutor parecia não estar acostumado a sorrir muito. Seu sorriso saiu psicótico. Até maníaco, se for pra ser mais preciso. O importante era que ele queria acertas as contas com ela, o que não a deixou nada satisfeita. Ela podia ter, ao menos, se contido e evitado dar a mancada de dar-lhe aquele abraço...

Infelizmente, já era tarde para arrependimentos. Ele já havia dado o veredicto final: E ela iria pagar caro por tudo que fez.

Por fim, ordenou que á levassem para longe, na sala de testes para que ela ficasse lá, em observação por uns tempos. Imediatamente Charles repetiu para si mesmo o nome da sala, saindo disfarçadamente entre todos os outros, rumando ás escondidas ao lugar onde á deixariam presa.

 

*    *    *

Sua visão estava turva, e ela já não conseguia saber a diferença entre um enfermeiro militar e um cabideiro, com seis porta cabides de madeira. Mexeu-se um pouco para o lado, percebeu estar amarrada á uma maca, diferente de antes, quando chegara lá, tomando um chá que lhe deram; lição de moral: Nunca tome chá oferecido por pessoas suspeitas: É envenenamento na certa!

Ela estava se sentindo mal, a cabeça pesava, manter os olhos abertos era quase impossível dadas as circunstancias e, além de tudo, ainda tinha o fato dela estar magoada. Não podia simplesmente engolir a dispensada ríspida que o amigo lhe dera! Simplesmente não conseguiria. De certo modo, ela tinha total conhecimento de que ele não era verdadeiramente “o seu Doutor”, mas mesmo assim, mesmo tentando resistir e se conscientizar de todas as variantes, aquele argumento perfurara seu coração. Afinal, poderia não ser ele, mas ele tinha as feições, o físico, a voz e, os intensos e misteriosos olhos, exatamente idênticos aos do seu amigo, o que tornava a tarefa de “não se magoar”, ainda mais difícil. Antes de ter a visão totalmente embaralhada, conseguiu enxergar uma ultima coisa: mais um bilhete, como o que encontrara anteriormente, no seu alojamento, onde estivera descansando. Nesse outro papel, lia-se:

 

Não se deixe levar pela plena impressão,

Nem sempre o que aparentar é verdadeiro de coração.

 

Ela piscou pensativa, mais uma vez quem quer que fosse estava tentando ajudá-la e novamente, ela não recusaria ajuda. Com toda aquela confusão, nem parara para pensar direito no primeiro bilhete. O que sabia até agora: Que nada daquilo era um sonho, que se ela morresse naquele lugar, pereceria lá, que seu amigo não sabia quem ela era, apesar dela lembrar muito bem de quem ele era; sabia também que ela, de alguma forma, tinha tido uma vida inteira naquele lugar, rodiada de amigos e conhecidos, que pareciam conhecê-la melhor do que ela mesma, o que chegava a ser meio assustador. Agora, com essa última mensagem, chegara a quais conclusões? Não compreendera grande coisa, pelo menos por enquanto, entendera apenas que as impressões enganam, e que nem sempre o que se vê é a verdade. Muito filosófico, mas á quem se tratava? Ao Doutor, á Charles, á ela mesma? Afinal, que droga de ajuda era aquela!?

Aos poucos, já começava a se desligar dos pensamentos, as dúvidas iam se perdendo, as questões, se dissolvendo, chegou ao ponto de que nada mais parava em sua cabeça, além da idéia de continuar ali, presa naquela sala, amarrada numa maca sob efeito de alguma droga, ainda consciente, lutando bravamente contra o sono. Tudo parecia estar perdido para ela, até que de repente, uma luz dourada muito forte cortou o ar, surgindo através da porta da sala, agora aberta. Luisa pôde identificar facilmente a sombra de uma silhueta humana bem no centro da luz, avançando pela porta junto com a luminosidade, como se fosse ela á irradiar aquele brilho todo. Por fim, a luz foi cessando aos poucos, levando a sombra da silhueta com ela, até desaparecerem ambas totalmente e a luminosidade ambiente voltar, fazendo com que tudo ao redor novamente se aquietasse. Pouco depois, já quase desacordada, ela ouviu passos apreçados avançarem pelos corredores até adentrarem na sala onde estava.

—Meu Deus! O quê fizeram com você... –espantou-se Charles, correndo para desamarrá-la da maca. –Eles não poderiam ter sido piores... Você está com uma aparência horrível!

—Obrigada, você também não está nada mal –brincou ela, fazendo cara de dor ao tentar ficar em pé.

—Você tem que conseguir ficar em pé, preciso tirar você daqui agora ou eles terminarão de usar os Procedimentos padrões para quem falha nas missões...

—Quer dizer que isso é freqüentemente realizado? –indignou-se ela. –É horrível, vocês deveriam abolir isso! –ela fez uma careta. –Eu, particularmente não gostei nada do tratamento daqui...

—E nem devia –alertou ele. –Você fracassou, ao menos sabe o quê isso significa?

—Significa que não vou ganhar sobremesa no jantar dessa noite...? –disse ela descontraída, forçando um sorriso que custara muito para sair, já que cada músculo de seu rosto parecia doer ao mínimo movimento.

—Nada disso –interveio ele seriamente, ajudando-a a se apoiar nele para prosseguirem com a fuga por entre os corredores. –Significa que você não serve para eles e, não ter utilização aqui dentro, quer dizer ter a mente apagada por um raio super-potente e depois, ser largado na Floresta Sombria, sozinho e confuso, á mercê dos seres que vivem lá, deixando que criaturas malignas como o Multanivestruz terminem o trabalho para eles.

—Esse pessoal é doente... Não seria mais fácil fazer eu assinar um acordo de silêncio ou coisa do tipo?

—Seria uma boa, mas esse não é o jeito deles de resolver as coisas... –advertiu Charles, sombrio. –Qualquer coisa que fuja de seu controle, pode virar uma ameaça aos olhos deles.

—Então é o que me tornei? Uma ameaça?—indagou ela. –Engraçado, quando cheguei aqui, você me disse que eu era a única chance de vocês se darem bem na missão... Que eu era um tipo de “arma secreta”. Uma hora sou um tipo de heroína, no momento seguinte sou a ruína de todos! Como o mundo muda...

—Não fale assim –pediu Charles pesaroso. –A verdade é que eles temem você. Acham que, ao se livrarem de você, estarão quebrando o vínculo que criaram com a soldado que você foi em todos esses anos e, por assim dizer, você pode acabar se unindo ao exercito inimigo ou até mesmo ir alertar a humanidade sobre essa guerra secreta... Eles preferem te destruir, acabando com a sua história na cara dura, do que deixá-la continuar a viver e escolher a quem quer servir. “Uma vez Quimera, sempre Quimera!”. Entendeu agora o simbolismo do nosso grito de guerra? Uma vez Quimera, e você nunca mais terá escolha de tomar qualquer outro rumo... —explicou Charles com a voz pesada.

—Então, sou oficialmente uma fugitiva, imagino...? –conferiu ela. Já estavam deixando para trás aqueles corredores sem fim, ressurgindo finalmente ao ar livre, no acampamento. Os alojamentos estavam logo á frente, mas eles desviaram de caminho, rumando para as sombras, os cantos escuros nunca pareceram tão acolhedores quanto agora. –Só mais uma coisa, quem era aquele cara cheio de luz?

—Cara cheio de luz? –Charles pareceu confuso. –Não havia nada iluminado quando eu cheguei na sua sala! Só encontrei a porta aberta e entrei... –ele sorriu. –Parece que mais alguém aqui, além de mim, quer o seu bem...

Graças á Deus por isso!—Luisa sorriu também, sentindo-se um pouco mais aliviada com aquela idéia de estar sendo protegida por alguém. –Muito obrigada, “ser iluminado” seja lá quem você for...


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Notas finais do capítulo

Oi gente!

Yep, a Gigi não ficou maluca não...

Sim, acreditem se quiser, a aventura que envolve esse capítulo e mais um só, surgiu toda daquela frase lá nas notas iniciais. Querem saber de onde veio essa frase? De um Livro de Biologia do ensino médio, da qual eu abri numa página qualquer e essa foi a primeira coisa que eu li.

Quer coisa mais emblemática do que essa?

Assim que eu comecei a pensar na frase, toda essa história apareceu na minha cabeça, tipo DO NADA. Começou primeiro com aquela perseguição deles na floresta, depois eu tive idéia para ter uma espécie de "piratas" num barco voador chamado "Cristaleira Imperial", enquanto tava lavando o cabelo... Yep, foi um dia interessante.

O LEGAL é que eu tinha pego o livro de biologia aquela tarde justamente pra estudar a matéria. Agora, depois de todas essas informações me bombardeando de uma só vez, alguém aí ainda acha que eu estudei? kkkkkkkkkk Nop.

E se vocês por acaso gostaram dessa aventura intrigante até agora, vão gostar ainda mais do que vem adiante! AGUARDEM.

Beijos!!!



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